Jayme DE MAGALHÃES LIMA TRANSVIADO Romance illustrado com magnificas gravuras LISBOA EMPREZA EDITORA 35 -- Travessa da Queimada-35 1899 A Luiz DE MAGALHÃES Dedico-te este livro que é simultaneamente uma recordação e uma promessa da nossa amizade . Nasceu da vida commum do nosso espirito , da experiencia na aspera e triste jornada pela terra que temos feito juntos e em que caminharemos unidos até que o destino lhe ponha termo . Nos campos do Mondego , abaixo de Coimbra , a primavera é frequentemente agreste e fria . Quando o vento do mar sopra rijo sobre os brancos lençoes de malmequeres a surgir da terra humida e paludosa , ainda farta das aguas do inverno , as tardes são inclementes para o corpo ávido do repouso e doçura da natureza . Este rapaz que além se apeou d' uma carruagem , em frente da estação de S.||_Braz Braz|_Braz , na estrada que vem dos lados de Albergaria , atravessou a linha conchegando o gabão que o vento desconcerta , e , mal entrado na gare , em que só destaca uma carreta abandonada com poucos fardos , procura onde se abrigue . Estamos todavia n ' uma tarde d' abril . O rapaz seguiu vagarosamente , ao longo da gare ; na porta em que leu " sala d' espera " abriu e entrou . A um canto , sobre o duro banco de madeira , dormitava um homem gordo , de lunetas , mãos nos bolsos e chapéu derrubado para os olhos ; ao lado uma mulher esbelta e franzina , um olhar brilhante sob o véo que lhe cobria o rosto . O homem levantou-se levemente turbado , com modos submissos , e pareceu hesitar . -- Eu agora ... contra a luz ... , não distinguia bem . Perdoe v. ex.ª ! disse dirigindo-se ao recem-chegado . -- Eu tambem , como vinha de fóra e a sala estava um pouco escura , não o conheci á primeira vista . Foi necessario reparar um pouco ... -- Então como tem passado v. ex.ª depois da sua jornada ao estrangeiro ? ... Será melhor sentar-nos , acrescentou apressadamente o homem das lunetas sem esperar resposta ... V. ex.ª tem aqui logar ... dizia affastando um cesto de morangos d' um sofá que parecia mais commodo . -- Muito obrigado , muito obrigado ... Não se incommode ... Em qualquer sitio ... E o rapaz ia a sentar-se quando o outro , abruptamente , o obriga a aprumar-se apontando-lhe a mulher . -- Minha mulher ... o sr Claudio -- Souza Portugal , um cavalheiro muito illustrado e do meu maior respeito ! Trocaram-se as palavras sacramentaes e todos se sentaram . -- Que extravagante modo de vêr ! começou Claudio . Nas cidades , onde não faltam recursos , a " Companhia " dá-nos uma sala de espera com certo conforto , e aqui , n ' este deserto , no meio d' um charco , reduz todas as commodidades dos pobres passageiros a um banco mal pintado e frequentado sabe Deus por quem . Na Suissa chega a haver , nas estações que estão nas circumstancias d' esta , uns pequenos quartos em que se pernoita com agasalho e aceio . Aqui , que barbarie ! ... Havemos de ser sempre assim ; um paiz de toiros ha-de ser forçosamente um paiz de campinos . Tambem tem a sua belleza , é verdade ; mas , quando se tem frio , uma manta do Ribatejo e duas taboas de pinho , confessemos , são pouco . E fitava a mulher , nervoso , contente com esta apparição inesperada , captivo da sua graça . Ella respondia : -- E v. ex.ª bem o deve estranhar . Segundo tenho ouvido , fez ha pouco uma linda viagem pelo estrangeiro . Provavelmente , agora mesmo , vae aproveitar a primavera em melhores terras . -- Não , venho aqui apenas para vêr um meu amigo que passa para Lisboa e volto já a Albergaria . Não é sacrificio , para mim , viver ali . Em Paris , em Vienna d'Austria , por toda essa Italia que é a melhor galeria do mundo , no meio de riquezas artisticas sem numero , nunca houve prazeres sufficientes para me apagarem as saudades do meu paiz . Pelo contrario , tinha horas d' uma tristeza prolongada . Creio até que mais d' uma vez caí na fraqueza de chorar . Porque , não sei bem ; não eram saudades com um objecto determinado , era uma dôr vaga mas penetrante . Ella , sorrindo , replicou : -- Bem diz o ditado que dá Deus nozes a quem não tem dentes . Só eu aborreço cordealmente a vida de provincia e estou condemnada a soffrel-a . Já não queria Paris nem Vienna , com Lisboa me contentava . Nem isso ! ... Não posso comprehender o mundo sem muita gente . A Avenida e S. Carlos e o Campo Grande e as praças e as ruas , tudo isso é para mim encantador , e infinitamente melhor que o pó e os tamancos da villa -- Albergaria . Eu sei que é de máu gosto não elogiar as bellezas do campo , mas fui educada em Lisboa e hei-de ser lisboeta até ao fim da vida . Não ... Parece-me sentir se o comboio . Até já , que nós tambem não saimos , concluiu ella , erguendo-se , com visivel interesse em continuar a palestra . O comboio entrava na gare e separaram-se , dirigindo se cada um ás carruagens em que descobriam as pessoas que procuravam . Depois , rapidamente , bateu o signal da partida , a confusão de pregoeiros de jornaes e de passageiros que corriam do restaurante dissipou-se , e , novamente , na gare ficaram sós Claudio , os seus interlocutores , e poucos empregados que arrastadamente recolhiam da sua tarefa a dormitar pelos armazens , entre as bagagens . Claudio approximou-se do par que momentos antes tinha deixado e offereceu-lhe logar na sua carruagem para regressarem juntos a Albergaria . -- Não , muito obrigado , vamos incommodal- o . Temos ali um carrito em que viémos . Instou ; que a tarde estava horrorosa , que iriam talvez um pouco mais agasalhados , que lhe davam o maior prazer com a sua companhia . -- A Emilia dirá , respondeu o homem de lunetas voltando-se para a mulher . -- Ah ! por mim , acudiu ella muito alegremente , acceito e agradeço ; não sei desprezar tão boa fortuna . Desculpe-me v. ex.ª a franqueza ... Conheço o apenas ha uma hora e vou dispondo já das suas cousas com uma familiaridade que póde induzil- o em mau juizo ... -- Oh ! pelo amor de Deus , minha senhora , não diga mais , que blasphemias ! ... Muito prazer , fico muito reconhecido a v. ex.as . Encaminharam-se , atravez da linha , para a carruagem , que era um vasto " landau " tirado por dois possantes cavallos , e Claudio sentou-se em frente de Emilia e do marido . Apenas sairam da estação , a conversa reatou-se no tom de banal animação em que a vimos começada . Claudio ia inquieto , um pouco embriagado pela belleza da mulher que tinha deante de si . Examinava-a á claridade d' este poente coado pela leve neblina do norte ; ha pouco , na escuridão da sala , mal a tinha visto , só agora podia julgar inteiramente da estranha seducção que logo ao primeiro encontro o impressionára . Emilia era uma mulher de feições quasi vulgares , magra , testa alta , rosto oval com as faces ligeiramente angulosas , a bocca grande , os labios delgados , o nariz secco e pronunciado ; mas uma mobilidade d' olhar , de gestos e de sorrisos , desprendidos entre um collar de dentes sem mancha , que enfeitiçava . Com excepção dos olhos que eram soberbos de doçura e languidez , nem uma só feição que merecesse a arte atteniense ; ainda assim , um poder d' attracção enebriante . Com esta superior espiritualidade contrastava a grosseria do marido , trigueiro , quasi calvo , o olhar embaciado , taciturno , todos os signaes de vida interior apagados . Era escrivão de fazenda , chamava-se Ricardo Dias d'Almeida , e na villa conheciam-n* ' o pelo " Canadas " , porque a sua medida habitual , nas noites d' alegria , era uma canada de vinho . A carruagem seguia vagarosamente , pesadamente , a estrada desabrigada que ia ladeando os campos despovoados ; o crepusculo approximava-se e a conversação corria sempre viva , sem repouso . Eram Claudio e Emilia que sós a alimentavam , ella não cessando de interrogal- o sobre as suas jornadas , elle descrevendo e contando , ora relembrando as maravilhas de luxo e de arte que tinha visto , ora referindo incidentes alegres da vida nomada . Quando jornadeava mais assiduamente , as paixões não tinham fim , uma cada dia , quasi invariavelmente . No lago de Como o amor fôra grande por uma sueca de cabellos dourados e bocca pequenina , que passara uma tarde com elle na villa Carlota , onde ha plantas exoticas e esculpturas de Canova ; mas nenhum como o que tivera por uma ingleza com quem viajara seis horas no Rheno , de Mayance a Colonia . Eram incendios romanticos , labaredas ephemeras a que a sua imaginação por momentos se entregava caprichosamente . o que não pensou quando viu essa rapariga ingleza ? ! Sonhava-a filha d' um lord que por ali , algures , nas margens do rio , devia ter um castello para descansar no estio . Via-a nas torres , roupagens brancas , tranças ao vento e havia de raptal- a por uma noite de luar montado n ' um soberbo cavallo arabe , veloz e nobre . Ao amanhecer andaria tudo em correrias doidas pelo castello , o pae espumando vinganças , os creados atonitos , chorando ; e já longe , em mysteriosos campos desconhecidos , o cavallo jazendo extenuado e elle moribundo de fadiga e amor a deixar-lhe nos labios o ultimo alento . Depois , ao cair da noite , os pastores que o sepultavam na montanha e os soluços da sua amada sobre o corpo hirto e frio , e tarde , em tempos distantes , a scena ultima , o perdão do pae e a solidão no convento . Emilia ouvia attenta esta indiscreta revelação d' uma alma . Com breves perguntas provocava ou novas confissões ou narrativas em que o espirito femenil se deleita . E Paris ? Devia ser deslumbrante de luxo e de prazeres . E o " Bois " e a Opera e os Campos-Elysios e as corridas em Longchamps ? Vinham então as descripções de soberbas equipagens e de magnificos espectaculos . E diziam que agora era uma sombra do passado ! Um fidalgo francez , com quem Claudio se relacionara , levou-o uma noite , depois da opera , ao Tortoni , quasi deserto , só para lhe mostrar logares que elle reputava celebres . Aqui se sentara o duque de X ... , aqui o marquez de Z ... Na rua a fila das carruagens não tinha fim . Então , sim , então havia luxo em Paris , dizia o fidalgo . Tambem passara quinze dias em Londres , na " season " , admirara muito a solidez do luxo britannico e , estava mesmo em dizer , o seu bom gosto , uma sobriedade de linhas e de decoração que tocava o atticismo . -- Mas tudo isso , concluia Claudio , não vale aquelle cantinho , e apontou para fóra da carruagem , atravez dos vidros . Era quasi noite e estavam em frente das azenhas dos Casaes . Entre os troncos de choupos , as aguas espumantes sarjando a terra e as madresilvas debruçadas nos vallados , entre os vultos mal distinctos que a obscuridade confundia e deformava , a porta do moinho lançava um clarão e ao fundo via-se , em volta da lareira , o moleiro , a mulher e os filhos , abrigados do vento frio que corria no valle , sobre a ribeira . -- Que mau gosto ! Perdoe-me a franqueza , respondeu Emilia . É impossivel que o sinta , está a brincar . Ou então , como já me percebeu a fraqueza , quer-me ouvir . -- Não , replicou Claudio , é a verdade . Se vivesse um pouco commigo , havia de convencel-a . Estou certo de que mudaria de sentimentos . Fez-se um breve silencio ; e houve entre os dois como uma commum necessidade de recolhimento intimo . Elle pensava com mágoa quanto a concepção vulgar da belleza estava longe do seu ideal , ella ficára indecisa perante uma affirmação tão cathegorica , porventura instinctivamente subjugada pelo poder de insinuação de Claudio . -- Nem v. ex.ª imagina o que isto é , disse Ricardo julgando de boa educação não deixar cair a conversa . Tudo uma miseria ! O que eu não sei é como esta gente vive . Só no anno passado houve mais de cento e cincoenta contribuições relaxadas . Isto na predial , porque na industrial , com a lei nova , ninguem paga . -- É verdade , é , são pobrissimos , respondeu pacientemente Claudio , mas a pobreza tambem tem as suas alegrias e até a sua belleza . Nova pausa , novo silencio , o silencio proprio do contacto de duas almas que se sentem em desharmonia e que ao mesmo tempo se veem attrahidas por mutua fascinação . O certo é que a conversa perdeu todo o movimento e , entre desconnexas interrogações , variando sempre de assumpto , assim chegaram a casa do escrivão de fazenda . -- E então até amanhã , por certo não falta em casa do dr. Carvalho . Tem grande festa , disse Emilia . -- Que remedio ! São os annos d' elle e eu sou-lhe tão obrigado ... E no dia seguinte , emquanto Claudio se sentava a uma mesa do whist , ouvia entre duas solteironas o seguinte dialogo : -- Já reparaste como a Emilia está hoje elegante ? -- É verdade , já vi . Está bonita . E é singular ! Ella que costuma cuidar tão pouco de si ... Só Claudio podia suspeitar o segredo d' aquella transformação . Via a com uma vaga , quasi inconsciente impressão de triumpho e de vaidade satisfeita . Nem sequer sonhava quantas batalhas lhe reservava esta primeira gloria , tão tentadora como traiçoeira na facilidade com que se deixava conquistar . A estrada que partindo de Albergaria para o nascente se interna nas serras , segue paralellamente á ribeira que vem de Alcofa , ao lado de campos ferteis , copiosamente banhados pelas aguas da rega . O valle vae apertando e , passado um estreito em que os montes lateraes quasi se tocam , deixando apenas uma apertada passagem para o rio , a estrada bifurca-se ; um dos ramos segue para a esquerda entre montes desertos , calcinados , de longe em longe marcados por oliveiras solitarias , com a vegetação rachitica dos terrenos calcareos que se esboroam em pó fino e branco . A breve distancia , a encosta começa a ser aspera , de todos os lados apparecem miserrimos campos fechados por muros de pedra solta ; acima , n ' uma quebrada , avistam-se os telhados da aldeia entre bastas ameixieiras e o olivedo já mais viçoso do que o deixamos em baixo . No latido dos cães e no cantar do gallo sentem-se uns prenuncios de vida , signaes de habitação humana com os seus guardas , as suas provisões e os seus pomares . Essa aldeia é Villalva , um montão de casebres cortados de caminhos cheios de matto , de tojo , de urze e de carrasco , degráus informes dando accesso a casitas negras de fumo , cortelhos de magros porcos fossando na estrumeira . Á entrada , uma casa caiada , com tres pequenas janellas , uma escada ao lado , acompanhando a encosta , por detraz os curraes formando pateo ; e por baixo , pelas frestas vedadas com um varão de ferro , espreitam palhas soltas e os cestos da vindima , advinha se o celleiro , a adega e o palheiro . Fôra ali , n ' aquella aldeia e n ' aquella casa , que nascera Claudio . Os paes eram lavradores , tinham bons campos na varzêa , um vasto pinhal no Bunheiro , e bastas courellas dessiminadas nos montes onde colhiam o centeio , o vinho e o azeite . Os filhos foram poucos ; dois morreram novos , n ' uma epidemia de variola , uma filha , a mais velha , casara cedo com um lavrador da Alumieira , a poucos kilometros d' ali , e Claudio ficára só em casa , desde os sete annos . Um tio que se ordenára e era abbade n ' uma freguezia do Minho queria que elle fosse padre ; escrevia ao irmão lembrando-lhe que era tempo de mandar o rapaz á escola , se queriam fazer d' elle alguma cousa , que pela sua parte estava prompto a ajudal- o , como elle bem o sabia , e que emfim não tinha outros parentes e o pouco que possuia havia de deixal- o aos seus . Precisava mesmo de tratar das suas ultimas disposições ; já no inverno passado a gotta o tinha tido preso em casa mais de dois mezes e sentia-se muito fraco . O pae hesitava . Era um homem austero que tinha feito da vida uma tarefa de trabalho . A pé desde o romper do dia , ao lado do unico creado que tinha , vigiando tudo , adeante do gado pelos ingremes atalhos da serra , nas veigas , em noites de estio , com agua até ao artelho , guiando as regas pelos milharaes , curvado , ceifando , sob o sol ardente , o seu corpo não tinha repouso . Pouco fallava ; a mulher e os filhos respeitavam-n* ' o mas temiam-n* ' o , conheciam as suas duras reprimendas , se o creado tardou a fazer a cama ao gado , se a enxada ficou no campo e o milho mal coberto na eira . Era para aquillo que ensinava o filho ; muitos louvores déra a Deus quando elle nasceu por ter quem o ajudasse e continuasse o amanho do seu casal . Para que fazel- o padre ? Tinha ali com que viver . Mas o Veiga , que fôra recebedor lá na terra em que estava o irmão e que o tratava como cliente abastado , tinha-lhe dito , quando elle foi pagar a decima , que o irmão estava muito rico . Era um unhas de fome , não gastava um real , sempre de tamancos , com meias de lã no inverno , e de verão nem meias trazia . Tudo para poupar ! E já outros lhe tinham dito a mesma cousa . Ao certo nada sabia , que o padre nunca lhe disséra quanto tinha ; receiava que lhe pedissem alguma cousa . Só quando foi pelo casamento da sobrinha lhe mandou uma peça em ouro . Seria tudo isso verdade ? Tambem não queria privar o rapaz d' uma fortuna . Toda a vida tinha trabalhado para os filhos ; se agora podia deixal- os ricos , era sua obrigação fazer deligencias para isso . Entretanto Claudio frequentava a escola e , graças ás hesitações do pae sobre o seu destino , não lhe davam na lavoura serviço pesado ; cuidava dos bois , se o creado trabalhava longe de casa , levava o jantar aos trabalhadores , se os havia de fóra , andava á tarde na apanha da azeitona . Era uma creança nutrida e forte , pacifica , as faces rosadas , cabellos e olhos castanhos , uma certa mansidão no olhar ; parecia-se muito com a mãe que fôra sempre um modelo de paciencia . Aprendia mal , continuamente distraido , e associava-se pouco aos companheiros da escola ; ao peão na barra , nas brigas e nas corridas ficava sempre vencido . O seu maior prazer estava n ' um cantinho do quintal onde plantava flores que a mãe lhe pedia para pôr n ' um vaso , no oratorio , aos pés d' um crucifixo . Vagueava pelo pateo , ora examinando os bois , ora afagando o cão , ora debruçado no muro a vêr as gallinhas que na rua apascentavam as ninhadas . O pae tinha-o em pouca conta . -- Nunca ha-de ser nada com aquella preguiça ; comer , dormir e passeiar . O que elle quer é andar de mãos nos bolsos . Está mesmo bom para abbade . -- Ora deixa lá , respondia a mãe , Deus sabe o que elle será . Essa sim , essa tivéra sempre grande inclinação para o filho , e muito mais agora que a rapariga se tinha casado e ficára só com elle . Ensinava-o a rezar , toda a doutrina christã , e repetia-lhe muito os mandamentos da lei de Deus e as bemaventuranças . Bemaventurados os pobres d' espirito , e os que são mansos , e os que choram , e os misericordiosos , e os pacificos ; é para elles o reino dos céos . Pintava-lhe as penas do inferno para os máus e a presença de Deus , na companhia dos anjos , para os bons . A creança não se cansava de interrogar . Como seria ? Pelo seu espirito passavam sombras de terror quando o julgavam e lhe diziam : -- Isso é peccado . Temia o inferno . Penas eternas ! em lá caindo , era para sempre . Os mendigos vinham á porta da cosinha , andrajosos , esfarrapados , calcando o matto fôfo e humido com o bordão a que tremulos se arrimavam . A mãe , para animar o filho na caridade , mandava-lhes por elle um pedaço de brôa . -- Seja pelo divino amor de Deus . Por alma de quem lá tem : Padre nosso que estaes nos céos ... O pequenito ouvia silencioso . Era bom ; Deus ouvia tambem os mendigos e perdoava os peccados aos que tinham morrido e estavam nas penas do purgatorio . Era preciso , dizia-lhe a mãe , rezar muito , e por muito que se rezasse nunca era o bastante para alcançar o perdão de todos os peccados ; ficava-se sempre em divida . Scismava n ' este mysterio . A isto se reduzia a educação de Claudio , ás singelas lições do exemplo e aos piedosos conselhos da mãe quando á noite , findo o trabalho , emquanto não chegava a hora da ceia , se sentava com elle no chão , sobre a esteira , ao canto da sala , proximo do oratorio . Decorreram dois annos n ' este abandono . Ao fim , em agosto , veiu uma nova carta do Minho , decisiva . O abbade voltava a insistir na educação do sobrinho ; as despezas eram por sua conta . Não se prendessem com isso . O seu amigo padre||_Netto Netto|_Netto ia passar as ferias ao Carregal , não tinham mais do que entregar-lhe o rapaz no primeiro de outubro , viria com elle para o collegio . Depois o abbade olharia pelos estudos . O pae d' esta vez não hesitou . A carta era tão terminante que não podia deixar de fazer a vontade ao irmão sem o risco de perder toda a herança para os filhos . Sem demora , com a sua habitual firmeza , tratou do enxoval . Um dia , pela madrugada , metteu algum dinheiro no bolso e foi com a mulher e com o filho a Albergaria . Ahi tomaram a deligencia e seguiram para Coimbra . Por lá andaram algumas horas , de loja em loja , desconfiados dos preços , abrazados de calor , regateando e comprando os pannos , o chapeu , os sapatos , a gravata e a caixa de folha que havia de ser dentro de dois mezes a magra bagagem do bisonho estudante . Á tarde voltaram a Villalva . Veio a costureira e o alfaiate . Queria-se tudo largo , muito largo , senão , elle era um latagão , d' aqui a pouco nada lhe servia , era um desperdicio . N ' esse canto da sala , sobre a esteira , entre a janella e o oratorio , ali onde á tarde Claudio recebia as piedosas lições da mãe , o chão semeou se de linhas e de farrapos , de pedaços de panno orlados de grandes alinhavos , entre elles a pregadeira e a thesoura postas a um lado . Ia n ' aquella casa , tão tranquilla , um bulicio desusado ; a costureira cantava , rasgavam-se asperamente as peças de bretanha , e a mesa animava-se com o novo conviva , a rapariga que tagarellara todo o jantar , contando o que ia na villa e o muito que brincara quando fôra a Balmaes , á Senhora da Saude . Tinham andado toda a noite a dançar no jardim do sr.||_Cunha Cunha|_Cunha , um fidalgo que lhes mandara dar pão dôce e licores . Claudio estava contente , tudo aquillo era para elle ; a singela vaidade infantil alegrava-se com as parcas riquezas que aos seus olhos tamanhas pareciam . O movimento foi baixando , as camisas juntaram-se dobradas sobre uma cadeira , a costureira não voltou , varreu-se a sala e o pequeno casal de Villalva caiu no seu habitual silencio . O pequenito sentiu então o primeiro travo da saudade . Ia partir . Para onde ? Os mestres eram tão maus ... E os bois ? e o seu cão ? e as suas flôres ? Iam talvez seccar . Só se fosse a mãe que as regasse para as pôr a Nosso Senhor . Já lh'o pedira e ella tinha-lh ' o promettido . O padre||_Netto Netto|_Netto mandara dizer que o rapaz devia estar no primeiro d' outubro , ás tres horas da madrugada , na estação do caminho de ferro , em Coimbra , para seguir com elle . Precisavam sair de Villalva á meia noite . Depois da ceia começou a fazer-se a mala . Já estava tudo na sala , faltava arrumar a caixa . Claudio assistia e ajudava , allumiando com o candieiro na mão e ouvindo as recommendações da mãe . Iam duas andainas de roupa , mas a preta era só para os domingos , para ir á egreja , a alguma festa , ou para quando o sr. director mandasse ; que visse bem , não se perdesse alguma coisa , tudo aquillo tinha custado muito dinheiro . Iam tambem uns sapatos pretos , só para trazer com a roupa melhor , não fosse estragal- os na brincadeira . Juntou-lhes ainda um rosario de contas de vidro branco e verde enfiadas n ' um cordão vermelho , não se esquecesse de o resar todas as noites a Nossa Senhora , por alma dos avós e para que ella o ajudasse em todas as afflicções da sua vida e o defendesse das tentações do mundo . A creança ouvia , promettendo fazer o que a mãe lhe ia pedindo . Cerca as onze horas , como já passasse muito da hora a que habitualmente se deitava , encostou-se sobre duas cadeiras e adormeceu , com a cabeça repousada sobre o braço . A noite começava a arrefecer . A mãe foi buscar um chale , abriu-o , afastou-lhe o braço e d' um casaco velho fez um travesseiro em que lhe pousou a cabeça . O pae estava dormindo na cosinha , não quizera deitar-se na cama ; não valia a pena por tão pouco . E , n ' este silencio que a fadiga trouxera , a mãe ficou só , velando , ajoelhada em oração perante o Christo , a rogar-lhe fervorosamente protecção para o filho . Ao bater da meia noite foi accordar o marido , o filho e o creado que dormia em baixo , no palheiro . As despedidas foram breves que nem o marido gostava de expansões nem o pequeno Claudio , tonto de somno , podia dar-lhes grande attenção . A mãe acompanhou-os até á porta e logo os viu perderem-se na confusão da neblina mal illuminada pelo luar , ladeira abaixo , o pequenito pela mão do pae , atraz o creado , varapau ao hombro e sobre elle a caixa de folha , vibrando estridula e compassada . Ao fundo estava o carro . Claudio , mal elle partiu , adormeceu novamente . E assim foi , moido da jornada , accordando só por breves minutos se o chamavam , até ás alturas de Espinho . Quando ali chegou , era madrugada ; cedendo ao habito despertou . Onde estava ? Que era feito dos doces ruidos de Villalva , da voz do pae marcando trabalho ao creado , dos passos da mãe na cosinha , abrindo a arca para levar o milho á creação ? Tinha saudades , as lagrimas marejavam-lhe nos olhos , mas a novidade da payzagem e a vertigem do movimento distraiam-n* ' o e moderavam esta hora de angustia . Estava ao pé do mar . Não o surprehendia , já o tinha visto na Figueira , quando lá fôra em romaria com a irmã , pelo S. João , no anno em que ella se casou ; atraia-o esta vastidão inquieta que Deus creára e em que admirava o seu poder . Apearam-se em Villa Nova de Gaya e causou-lhe grande estranheza a ponte pensil ; mas vira e não comprehendia como tinham lançado aquellas cordas de ferro , d' um ao outro lado do rio . As ruas e as praças do Porto pouco o impressionaram ; eram semelhantes ao que havia em Coimbra , na Calçada , na Portagem e na feira de S.||_Bartholomeu Bartholomeu|_Bartholomeu . O padre||_Netto Netto|_Netto mostrava-lhe as estatuas , D. Pedro IV , D. Pedro V. Sabia quem eram ? O mestre escola fallava d' elles , lá em Albergaria , mas era para os mais adiantados . D ' uma só cousa os seus olhos não podiam desprender-se , cheios de pasmo e curiosidade : os bois . Estranhava-os muito , com os seus grandes cornos , em lyra , e as mãos tortas , quasi aleijadas , deformadas pelo trabalho violento na calçada . Eram feios ; os d' elle eram mais bonitos , cornos curtos , pernaltos , aprumados e nédios . Ao collegio devia chegar á noite , depois de cinco horas de carruagem . Iam continuar os aspectos novos que tanto captivavam a sua curiosidade de creança : Rio Tinto e os seus teares sem conta , -- em Albergaria havia só um , -- Vallongo e as pedreiras de lousa , e as vides a trepar pelas arvores e os valles estreitos e humidos com os seus altos milharaes . Oliveiras não havia . Com que se alumiavam ? perguntava ao padre . O azeite vem de fóra , respondia . E aquillo o que é ? dizia apontando uma construcção desconhecida , sobre quatro pilares de granito . É um espigueiro ; guardam ali as espigas do milho até ficarem bem seccas e só depois é que o malham . Assim passou toda a tarde , interrogando , vendo , observando tudo o que se prendia com os seus habitos e com a propensão natural do seu espirito . O padre ia-lhe respondendo . Era um homem paciente e bom , muito habituado a creanças , sabendo conquistal-as . Os primeiros dias do collegio foram maus , pouco de molde a apagar as saudades que Claudio tinha da casa . Os companheiros escarneciam-n* ' o ao vêl- o nos seus enormes sapatos , a roupa nova , angulosa e hirta , d' uma vastidão desproporcionada . Perguntaram-lhe quem era o pae . -- Meu pae , respondeu vaidoso , é o thesoureiro da junta de parochia . Começaram a chamar-lhe o thesoureiro e Claudio , timido , vexado , sentiu-se só entre aquella multidão desconhecida . O isolamento em que vivera em Villalva , os aturados conselhos da mãe , ensinando-o cedo a distinguir entre o bem e o mal , o exemplo da austeridade do pae , mataram á nascença na sua alma todo o germen de expansão e de lucta , quebraram todas as forças animaes e deixaram o terreno varrido para n ' elle se alastrar a dolorosa consciencia da obrigação . mandavam-n* ' o ali estudar ; era preciso voltar a Villalva , exames feitos , coberto de louvores , sem uma falta . Temia a severidade do pae e temia ainda mais as lagrimas da mãe . O espirito da creança concentrou-se na sua tarefa ; os mestres viram com admiração o estudo e a intelligencia do novo discipulo que vinha com fama de aprender mal . O abbade , o tio , immundo e gordo , arfando de cansaço , vinha vêl- o algumas vezes e pagar as mezadas . Pouco fallava ao sobrinho . -- Que era preciso estudar , eram as suas palavras quasi invariaveis . Pelo director sabia que ia bem e , como não tinha que reprehender , pouco fallava , porque , na sua opinião e na aridez do seu coração de celibatario , era preciso chamal- os ao respeito , não dar confiança a esses fedelhos . Aos sabbados havia lição de doutrina christã . A primeira vez que Claudio foi interrogado , foi para elle um triumpho . Sabia tudo : os mandamentos da lei de Deus , os mandamentos da egreja , as bemaventuranças , as obras de misericordia , os peccados mortaes , tudo , tudo , até os inimigos da alma . Os camaradas ouviram-n* ' o com espanto e elle sentiu-se victorioso e contente . Havia de o contar á mãe ; era uma boa nova a levar-lhe quando fosse a férias . Um dia o padre||_Netto Netto|_Netto espraiou-se mais que de costume na lição ; foi até fallar do inferno , dizendo que os doutores da Egreja ignoravam se era um logar em que se soffriam todos os tormentos e dores que o corpo póde soffrer , se um estado em que a alma andava errante , em continua agonia . Estranha revelação para Claudio , esta que para os seus camaradas passára incomprehendida ! Ficou scismando . Vagamente percebia um céo e um inferno differentes d' aquelles com que a mãe o embalára . O theologo mostrava-lhe a dupla natureza do seu ser , sentia uma alma feliz ou torturada , mas inteiramente apartada do corpo . No seu espirito accumulavam-se os germens de meditação sobre a consciencia e o destino humano . N ' este mesmo anno levaram-n* ' o pela primeira vez á confissão . Foi um dia , que ficou memoravel na sua lembrança , assim como a inquietação que o precedeu . Quaes eram os seus peccados ? Quantas pragas rogára ? Tinha deixado alguma vez de estudar as lições por preguiça ? Queria mal a alguem , aos professores ou aos camaradas ? As duvidas traziam-n* ' o em sobresalto , porque era preciso dizer tudo para que a confissão fosse bem feita . Era preciso dizer tudo , e com sincero arrependimento e proposito de emenda . Além d' isso , -- suprema duvida , -- era preciso arrepender-se pelo amor de Deus e não pelo temor das penas do inferno . Era realmente assim ? Por esforço da vontade procurava obedecer ao amor de Deus , mas a sua consciencia infantil não podia alcançal- o . O temor do inferno predominava . Fosse como fosse , o essencial era fazer a confissão completa e elle ia dizer todos os peccados de que se lembrasse . O collegio ficava n ' uma encosta ; a egreja no valle , sobre a ribeira que o cortava . Descia-se rapidamente e seguia-se depois pelo valle acima , n ' um caminho quasi plano , de grande lagedo de granito , orlado de carvalhos enfeitados de videiras ; ao fim , um pequeno adro , a egreja e junto d' ella o cemiterio . Ao romper do sol , o prefeito fez sair todos os que se iam confessar . Manhã de primavera , orvalhada , fresca , viçosa nos renovos do arvoredo ; e Claudio opprimido , concentrado nas suas duvidas , sentia pela primeira vez bem nitidamente o divorcio entre a alma inquieta e a impassibilidade sorridente da natureza . Com que delicia beberia o ar de manhã ! Mas um demonio interior o suffocava . Começava a aprender o que era a vida humana . Entraram na egreja , indo ajoelhar no altar do Santissimo ; depois , levantaram-se e o prefeito mandou-os sentar n ' um banco que ficava por baixo do pulpito . O confessor era um só , o parocho . Um a um foram chamados os confessandos que , á maneira que voltavam , ajoelhavam rezando a penitencia . Claudio foi o ultimo . Rezou a confissão embaraçado e tremulo , mãos postas , cabeça curvada , os olhos fitos nos pés do confessor . Começaram as perguntas , a seguir pelos mandamentos da lei de Deus e depois pelos mandamentos da egreja . A quantos tinha faltado ? Mentia ? Ah ! n ' este ponto tinha um peccado que fôra o seu primeiro grande remorso . Um dia , um domingo , tinha chovido de manhã , e de tarde o prefeito mandou-os vestir para sairem ; estava uma tarde calma , o ar carregado , os caminhos cobertos de lama . Claudio vestiu o fato preto e calçou os sapatos novos para se mostrar aos companheiros em trajos ricos . -- Para que anda o menino a estragar esse fato ? perguntou o prefeito . -- Tinha frio , respondeu Claudio . Mentira ; não era frio , era vaidade . O remorso ia ficar-lhe de lembrança . Para o futuro seria mais corajoso . O padre , um velhito , magro e bondoso , vendo o mundo já da beira do tumulo , sorriu com sympathia á pureza da creança , não quiz ouvir mais , mandou-lhe dizer o acto de contricção e absolveu-o . A natureza sorria tambem nos gorgeios das aves que esvoaçavam fóra , no cemiterio , e nos suaves raios do sol da manhã que pela estreita fresta da sachristia alumiavam docemente a pobreza dos gavetões carcomidos em que o padre guardava o calice , a alva e as vestes . Claudio veiu ouvir a missa e saiu da egreja contente . Sentia-se bem , a consciencia e a virtude tinham vencido todas as duvidas ; pela primeira vez experimentava a grandeza d' um dramatico triumpho intimo . Com excepção d' estes breves incidentes , que jámais se apagariam da sua memoria , a vida do collegio foi para elle monotona e triste ; timido no recreio , vivendo pouco intimamente com os companheiros , todo se entregava ao estudo . Os mestres estimavam-n* ' o . Um d' elles ficára pasmado do modo porque Claudio lêra um longo trecho de Garrett contando a pobreza de Camões . Não se conteve que não exclamasse : -- Muito bem ! Torna a lêr para estes meninos ouvirem . Impressionava-o a emoção com que a creança lia e que provinha d' uma penetrante comprehensão das dôres que o poeta cantava . No fim do anno eram os exames , em Braga , onde os pobres rapazes iam arrebanhados , pallidos , enfermos de desconforto , afflicções e receios . D ' ahi dispersavam em férias , cada um para a sua aldeia . Claudio veiu em companhia do padre||_Netto Netto|_Netto que em Coimbra o entregou ao pae a quem chamou de parte para lhe dar informações do filho . Ia muito bem ; muito applicado e muito socegado ; fizera só instrucção primaria e portuguez , mas no anno seguinte devia fazer exame de francez , de desenho e até talvez de geometria . O abbade estava satisfeito ; já lhe tinha dito que se o rapaz assim continuasse , o melhor era mandal o para a Universidade . Sempre era outra cousa , outra posição , para que servia ser padre sabia-o elle , por mal dos seus peccados . Isto tudo aqui para nós , concluia ; não se lhe póde dizer nada . Se a gente vae a gabal-os , fazem-se tolos e ninguem os atura . O pae levou Claudio para Villalva . No caminho desceu um pouco da sua habitual frieza , perguntando ao filho o que fazia no collegio , se gostava d' isto , se não gostava d' aquillo , quantos eram os mestres e se lhe tinham dado muitas palmatoadas . Começava a respeital- o ; o que o padre dissera , incendiava-o em ambições . Formado e com a fortuna do tio , a advogar , mandaria em Albergaria ; via-o já presidente da camara , talvez deputado . O filho do Antonio Simões , de Barreiros , não era mais do que elle e estava em Lisboa nas côrtes , um fidalgo . Pois algumas vezes lhe tinha emprestado ás tres e quatro moedas para mandar a mezada ao rapaz ! Agora era elle que mandava dinheiro ao pae ; ainda ha poucos dias déra mais de sessenta moedas pelo Cerrado de Baixo , na Cruz das Almas . Os primeiros dias de férias passados em Villalva foram uma festa para Claudio . Veiu a irmã e ella juntamente com a mãe , ambas contentes e orgulhosas , pedia-lhe a narração do que se passava no collegio , como era a jornada , os exames , o Porto , a cidade -- Braga e o Bom Jesus do Monte . Quem lhes dera poder ir lá ! Claudio , por seu lado , sentia uma nova atmosphera ; ainda ha um anno esquecido , quasi abandonado , via-se agora cercado de attenções que eram novas para elle . Convertera-se n ' uma esperança de riqueza e de poderio , lisongeava a ambição do pae , a vaidade da irmã e a piedade da mãe que tudo attribuia ás suas orações , ás esmolas que dava e á recompensa divina . O filho ouvia-a ; com ella cria tambem que toda a sua sorte vinha da vontade de Deus , mas a edade e a alegria de voltar ao seu casal não o deixavam prender-se muito a esses pensamentos . Os seus cuidados eram a admiração das flôres que deixára plantadas , os gados , os campos e as colheitas . A sua vida consubstanciara-se cedo com a d' esse mundo natural que era o companheiro inseparavel da sua alma e do seu corpo . Uma tarde , em setembro , a mãe começou a sentir uma pequena dôr no ventre . Foi continuando no trabalho , arrumando a cosinha e preparando a ceia , mas as dores repetiam-se cada vez mais frequentes e agudas ; seguiam-se uns ligeiros suores e , depois d' uns instantes de abatimento , parecia-lhe que ia adormecer , concebia uma vaga esperança de cura . Eram simples remitencias ; o mal estava apenas incipiente . N ' uma crise , a mais violenta , chamou o filho : -- Claudio , estou muito mal . Tenho uma dôr aqui , e punha a mão sobre o ventre . Valha-me Nossa Senhora ! Se eu désse+esse um passeio , talvez me passasse . Foram para o quintal e lá se arrastou pelo carreiro junto ao muro . Poucos passos deu . A dôr voltava , ella encostada ás arvores esperava que abrandasse para dar alguns passos . Por fim , não poude mais ; veiu para a sua alcova . Era quasi noite e o marido recolhia . -- Não te quiz mandar chamar , disse-lhe , para te não tirar do trabalho ... Ha duas horas que não páro ... Não sei o que isto é ... E torcia-se angustiada , os olhos cavados , as faces desfiguradas . Mandaram chamar o medico . -- Era melhor chamar o padre , dizia ella ; e a Maria , a filha . Mas não ... a esta hora ... coitada ... ficam lá os pequenitos sós ... ai ! meu Deus ... eu morro ... morro ... Estorcia-se , desgrenhada , os olhos em alvo , os braços nús , punhos cerrados . Veiu o medico e receitou . Emquanto o creado corria á botica , preparavam um banho . Tudo faltava , agua e banheira . A confusão era extrema ; a dôr não abrandava . Só cerca das dez horas chegaram os primeiros medicamentos . Bateram onze horas . O mal não declinava . O pae de Claudio estava aterrado . -- Isto não melhora , dizia para o medico , fitando-o com olhos interrogadores e anciosos . -- Espere , espere ... por emquanto ainda não é tarde . Então ? ! Não me esteja a desanimar . Parece que nunca viu ninguem com uma colica . Pois olhe que eu não tenho visto poucas e até hoje , graças a Deus , ainda nenhum doente me morreu d' isso . Claudio fugira para longe ; chorava mas não queria que o vissem chorar , temia o pae que por certo não deixaria de o reprehender pelas suas pieguices , como elle lhe chamava . Queria rezar . O oratorio era na sala e estava lá o medico . Abriu a porta de mansinho , atravessou o pateo e , seguindo o carreiro onde á tarde estivera com a mãe , foi ajoelhar-se lá no extremo , debaixo d' uma oliveira . A noite estava serena : o luar cobria os montes de que vinham as exhalações quentes que succedem ás calmas do estio . Ajoelhado , de mãos postas , fitando os astros , via a face da Virgem , sentada no seu throno de gloria , entre nuvens douradas . Orava e ella via-o : -- Ave Maria , cheia de graça ... Respondia-lhe um olhar de doçura e esperança . Quando voltou a casa , finda a oração , a mãe dormia extenuada e pallida . Accordou á uma hora da noite . Ainda ali estava o medico . -- Então ? ! Está melhor ? perguntou-lhe . -- Agora estou bem , graças a Deus . Muito cansada . A fé de Claudio tinha n ' este momento confirmação plena ; no seu coração estavam lançadas sementes que o tempo podia transformar , mas nunca anniquilar . Estes dois mezes de férias em Villalva foram para Claudio um começo de revelação consciente da felicidade d' aquelles logares . Ao chegar a noite da partida , não poude , como da primeira vez , vêr distrahidamente os cuidados da mãe e adormecer ; foi uma noite de lagrimas e de saudade confessada . Ainda tres dias depois , no collegio , a um canto da sala de estudo , tinha uma nova crise de lagrimas . Um dos mestres passou n ' esse momento . Vendo-o a chorar e adivinhando o que se passava no espirito da creança , disse-lhe compassivamente : -- Deixe os livros , deixe os livros , vá brincar . As saudades não turvavam porém a applicação do collegial . Pelo contrario , o desejo de voltar a Villalva triumphante , como no primeiro anno , a alegria dos paes e os carinhos que d' ahi vinham e de que a sua alma era tão avida , constituiam uma ambição sempre presente á sua lembrança e que o mantinha invariavelmente no mesmo caminho . Durante seis annos , que tantos foram os que consumiu n ' estes estudos preparatorios , a sua vida manteve-se n ' uma linha ininterrupta de respeito , de obediencia , de concentração , d' estudo e de fé . Se lhe fosse possivel fazer parar ali o desenvolvimento do seu espirito , teria ficado um alto exemplo de caracter e de firmeza . Mas outros destinos e outras amarguras lhe estavam reservados . Aos desesseis annos matriculou-se na Universidade . O pae queria velo advogado ; Claudio , como de costume , ia fazer-lhe a vontade . A entrada na Universidade não desvanecia , antes accentuava , os caracteres da sua alma anteriormente adquiridos . Semelhantemente ao que lhe acontecera quando entrou no collegio , sentia-se por timidez e por natural pendor alheio a esta turba multa que o rodeiava , alegre , buliçosa , fremente de actividade e de pujança ; a primeira e a nova situação eram rigorosamente parallelas , áparte um estado de consciencia agora mais determinado e em breve na sua plenitude . O mundo era para Claudio uma obrigação pesada e instante : alegrias , expansões sadias do naturalismo juvenil , tudo devia ser pautado e regrado pelo dever immanente . Desgraçado ! Mal sabia elle a que abysmo corria . No inverno immediato á sua entrada na Universidade , deu-se um acontecimento que havia de ter na sua vida as mais profundas consequencias . Morreu o abbade e instituiu-o universal herdeiro . Deixava a quinta da Nogueira , propriedade afamada , inscripções e numerosas dividas activas , ao todo uns bons quarenta contos de réis , conforme o pae de Claudio lhe mandou dizer . Fôra elle que cuidára do inventario e liquidação da herança , visto que o filho era menor ainda , mas contrariado porque , dizia , estava habituado a cuidar os seus bens , não sabia cuidar de bens alheios , nunca fôra procurador . No fundo , não podia fugir a um vago ciume e inveja por se sentir , por aquelle lado , em grande inferioridade relativamente ao filho . Demais , sempre esperára que o irmão , embora muito inclinado ao sobrinho , o deixasse ao menos usufructuario ; não podia tolerar sem tentações de revolta esta condição d' um subordinado que sabia que em breve seria independente de qualquer auctoridade . Por isso , quando Claudio veio passar o natal a Villalva , o pae , que desde a morte do tio nunca mais o vira porque evitava a occasião de o encontrar , addiando um momento que lhe era desagradavel , disse-lhe seccamente : -- Teu tio deixou-te tudo . Ora tu tens dezesseis annos e a lei dá-me o direito de administrar o que é teu até á tua maioridade ; mas a minha tenção é emancipar-te aos dezoito annos . Se queres , toma já conta do que é teu ; para mim é um descanço . Sabes muito bem o que tens a fazer , já não és nenhuma creança . Vingava-se , desprezando o que a fortuna lhe negára . Não o comprehendeu assim Claudio , na sua simplicidade ; tomando por generosidade e desinteresse o despeito do pae , commovido , pediu-lhe para que continuasse a cuidar dos bens da herança . Nada queria senão a mezada que já tinha ; vivia satisfeito . O pae recusava , mas os rogos e as instancias acabaram por convencel- o . Cedeu , talvez contente ; julgava o filho humilhado e a humilhação pagava-lhe em grande parte o despeito de não ter sido herdeiro . Não obstante as circumstancias muito particulares em que Claudio ficava vivendo , em completa e espontanea dependencia do pae , a herança que acabava de receber tinha , desde já , na sua vida a mais poderosa influencia . Affastava de vez todas as preoccupações de ordem material , garantia-lhe de futuro uma riqueza que era de sobra para os seus modestos habitos ; a salutar necessidade de ganhar pelo seu braço e pelo seu engenho o pão de cada dia lhe-desconhecida . A sua carreira estava traçada pelas condições particulares da existencia que agora se reuniam ás lições que aprendera no regaço da mãe . A vida era uma obrigação de fazer bem . Simplesmente restava determinar o que era o bem . Nas poucas relações que em Coimbra creára , veio encontrar uma atmosphera absolutamente differente da que deixára no collegio . Deus não existia , era uma invenção do mêdo , conservada pelos reis e pelos padres que especulavam com a crendice popular . Onde estavam as provas da sua existencia ? O positivismo , unica sã philosophia , mandava que só na observação e na experiencia nos fiassemos . Só o que d' ahi vinha era certo , o resto ficava ao sabor de cada um . Não era pois verdade o que os padres e a mãe lhe tinham ensinado . Deixou-se levar n ' esta nova corrente . Obedecendo a uma sêde interior de verdade , ouvia e meditava o que os camaradas estudiosos lhe diziam e lia com avidez as obras que elles lhe indicavam . De lições escolares pouco cuidava , que os lentes eram uns velhos estupidos e ignorantes , do novo methodo nada sabiam . Buchner , Spenser , Comte , Littré , Darwin , Taine e Haeckel , esses eram verdadeiros mestres . Era lêl-os , estudal-os , e ficava-se senhor de toda a verdade . A " Historia da creação " , de Ernesto Haeckel , foi para Claudio uma revelação . Estudou-a , linha a linha , em frigidas noites de inverno , debruçado sobre a banca de cerejeira , mettido em cobertores de papa , á luz frouxa do candieiro d' azeite . Começava a comprehender o novo mundo : a creação foi uma fabula que a ignorancia inventou , os seres transformavam-se , e a pedra , a rosa , a salamandra e o homem eram formas d' uma mesma actividade , producto apenas de leis constantes e universaes ; no mundo tudo é rigorosamente derivado d' um estado anterior , a flôr é uma folha que se transforma . Por conseguinte , o que é bem e o que é mal ? Tudo é relativo , diziam os novos evangelhos , não ha bem nem mal , o assassino e o santo são dois productos naturaes do mesmo quilate . Era n ' esta crença que aos dezoito annos Claudio regressava a Villalva , satisfeito com os progressos do seu espirito , occultando porém á mãe o seu modo de pensar , resolvido a supportar a sua religião . No fundo , não tinha mudado ; só uma ingenuidade infantil lhe fazia crêr que estava regenerado e lhe deixava passar ignorada a contradição interior . Não só todo o seu trabalho provinha d' uma ambição de verdade que não aprendera nos livros que estudava mas que tinha sido previamente lançada no seu coração pelo amor e pela piedade maternal , mas ainda todos os actos da sua vida lhe negavam as affirmações do espirito . Não o via ; o desenvolvimento da consciencia não era ainda sufficiente para lh'o revelar . Sem embargo , a contradição era completa . Que o digam os seus primeiros amores que foram d' esse tempo . Á tarde , Claudio descia de Villalva ; vinha á botica da villa , em frente da praça , ouvir os ociosos que por alli paravam e ensinar-lhes politica . Que eram o Fontes e o Braamcamp ? Idiotas ! Sabiam porventura alguma cousa ? ! Nem sequer conheciam os grandes livros modernos em que se aprendia a sciencia social . O administrador escandalisava-se com a petulancia do rapaz . -- Era para isto , dizia , que os mandavam a Coimbra e que o pae e o tio tinham andado toda a vida a trabalhar . Se elles lhe tivessem mettido uma enxada nas mãos , seria bem melhor . Claudio ouvia as reflexões do administrador que só confirmavam a sua vaidade . Uns estupidos , uns brutos ! Elle é que sabia . Foi n ' uma d' essas tardes , emquanto passeava d' um ao outro extremo da sala , em frente do boticario a jogar as damas com o recebedor , que , n ' um momento em que assomou á porta , viu passar uma rapariga loira , alta , reforçada e agil , cantaro á cabeça , a caminho da fonte . -- Quem é ? perguntou ao boticario . Que linda cousa ! -- É a Conceição , filha do Manuel da Aveleda . Olhe , cuide-me d' aquillo , cuide-me d' aquillo que está no seu tempo , accrescentou o boticario . A minha pena é não lhe poder ser bom . E distraidamente fez avançar a sua " dama " . Claudio ficára profundamente impressionado com a graça e a meiguice da rapariga , um modelo de mocidade e de doçura . Nos dias seguintes , vinha , como de costume , á botica , e ao entardecer não tirava os olhos da estrada , do lado de Villar , onde ella morava . Ella passava sempre , ora só , sizuda e apressada , ora com as companheiras , rindo e parando a cada passo . Já tinha percebido que o estudante a fitava ; uma vez mesmo , ao voltar a esquina , para assegurar o seu juizo , olhára para traz . Não se enganava : elle lá estava , á porta , fitando-a sempre . Chegára até a dizel- o a uma das companheiras . -- Vês aquelle rapaz , o filho do José Portugal , de Villalva ? disse-lhe . Quando eu passo , olha muito para mim . -- É bem rico , quem dera ! respondeu a companheira . Calaram-se . A Conceição não adiantou conversa , um pouco arrependida da indiscrição . Gostava d' elle , e , se ia só , ao passar em frente da botica , punha os olhos no chão e os passos embaraçavam-se-lhe . Por seu lado , Claudio soffria o mesmo embaraço . Que fazer ? Seguil-a ? Mas ella não olhava para elle ; a imaginação representava-lhe a resposta avessa com que seria repellido e o golpe que o seu coração soffreria . Depois , seria uma troça do boticario , do administrador , do escrivão ... e elle gostava d' ella , não podia consentir gracejos sobre uma cousa em que o seu coração era parte . Escrever-lhe ? Responderia ella ? Estavamos no mesmo caso . Ia rir-se com as companheiras e d' ahi a dois dias andaria a carta em todas as mãos . Ainda era peior do que fallar-lhe . Uma vez chegou a trazer a melhor rosa que encontrou no jardim para lh'a offerecer . Em logar de ir á botica , passearia e encontral a-ia em baixo , fóra da villa ; ahi ninguem o via , o caminho é deserto , e fosse o que fosse poderia fallar-lhe sem maior perigo . Foi . Na sua impaciencia , saiu cedo . Quando chegou á fonte , ainda não era sol posto . Começou a subir a encosta que liga a fonte com a villa ; onde o caminho é menos devassado , n ' uma curva , sentou-se sobre um muro , esperando a Conceição . O coração batia-lhe ancioso ; pela imaginação passavam-lhe mil devaneios . Com que palavras começaria ? Estava quasi arrependido . Para que se mettia elle n ' aquellas cousas ? Fugiria ? Tambem não , era fraqueza . N ' isto , n ' esta oscillação entre o amor e a timidez , a Conceição appareceu com as companheiras habituaes Não lhe podia fallar . Para Claudio era um allivio , libertava o d' uma situação afflictiva . Levantou-se e dirigiu-se á botica . -- Muito tarde , hoje , sr.||_Claudio Claudio|_Claudio , disse o boticario . -- Demorei-me um pouco , respondeu laconicamente . Ainda bem , pensou , que a penumbra da baiuca encobria o rubor que lhe viera á face quando o boticario lhe fallou . Não tardou porém que os seus desejos fossem satisfeitos . Uma tarde demorou-se na botica e , ao voltar a casa , fez caminho por Villar . Em boa hora ! A Conceição passava , atravessando a rua para casa d' uma visinha . -- Muito boa noite , meu amor . -- Muito boa noite , sr.||_Claudio Claudio|_Claudio . -- Por aqui , sem medo , a estas horas ? -- Ninguem me rouba . E a conversa continuou ligeira e alegre . D ' ali por deante já Claudio não receiava dirigir-se-lhe , estava certo do amor da Conceição . Dentro em pouco havia hora aprazada para se encontrarem . Esses amores duraram dois annos e foram castos e puros . A Conceição era para Claudio um culto ; tocar-lhe era maculal-a , era destruir o que n ' ella havia de sagrado , a melhor fonte d' amor . As suas cartas respiram a mais estremada candura . De Coimbra escrevia-lhe : Querida Conceição Escrevo-te hoje para te mostrar toda a tristeza em que tenho andado . Desde que vim , nunca mais tive alegria , nem a terei emquanto não voltar para ao pé de ti . Por muito que procure distrahir-me , trago sempre comigo a mágoa de não te vêr . Só para o natal ahi voltarei . Terei paciencia que outro remedio não tenho . Queria ter ao menos a alegria de te fallar um instante mas isso não póde acontecer . Tu nunca aqui vens e eu não posso sair d' aqui . Lembro-me de que estou longe de ti e a tristeza não me deixa , porque te adoro de todo o meu coração e serei até á morte o teu " Claudio " Não podia supportar esta singeleza o rapaz de vinte annos , que do materialismo positivista tinha passado ao naturalismo na litteratura e lia agora Zola , deliciando-se no exame das baixezas humanas , sem attentar no que ellas encerram de grandioso e dramatico , ainda mesmo nos seus aspectos infimos . O falso conhecimento das sciencias naturaes , consideradas superficialmente , junto ao vigor , nunca isento de brutalidade , de gente moça , haviam necessariamente de dar em resultado o desprezo da castidade e da pureza que d' ora em diante passariam a cognominar-se ridiculo sentimentalismo . Por outro lado , a forma impressa na infancia á sua alma permanecia e permaneceria como o verdadeiro fundamento da sua natureza ; a piedade christã , embora sob aspectos differentes , seria sempre uma fonte abundante e inexgotavel de idealismo . Claudio não attingia a contradição intima entre a sua alma e as doutrinas aprendidas nos livros e nas palestras com os camaradas da universidade . Não eram as mulheres simples objectos de amor sensual atravez do qual a natureza assegurava a conservação e a propagação da especie ? Fóra d' isso , tudo era doença , romantismo archaico ou timidez pueril . E todavia não supportava sem um fremito de repulsão a lembrança de que a sua amada , um anjo que a aureola dos anjos envolvia , havia de desfazer em brutal sensualidade a frescura do seu rosto semi-divino e o meigo riso , irisiado de cores mimosas , que desabrochava nos seus labios como a rosa entre o orvalho da manhã . Ignorava a contradição , parecia-lhe apenas inconstancia , que não desejava e queria todos os dias a mesma cousa ; tomava estas fluctuações á conta de fraqueza do proprio animo . Por fim , resolveu acabar com uma situação aos seus olhos ridiculamente inconfessavel . o que ? ! Amar uma mulher só para lhe dizer palavras doces , olhar para ella , contar-lhe o que se fazia em Villalva , ouvir a que horas ella ia á fonte e a que horas lavava a roupa ? ! Não era um homem ! Não se atrevia a ir mais adeante , não queria tomar as responsabilidades do descredito d' uma rapariga ? Por si não se importava com essas pieguices da aldeia , mas a mãe com certeza não gostava , iria magoar-se com o seu proceder . Elle tambem ... não gostava ; repugnava-lhe , embora as doutrinas que aprendera em Coimbra lh'o admittissem . Precisava fallar com franqueza á Conceição . Uma manhã , em que ella tinha de vir a Alcofa , foi encontral- a na estrada e conversaram de pé , á sombra d' uma oliveira . Eram oito horas ; dos montes requeimados reflectia se um sol penetrante , na atmosphera quieta das varzeas o arvoredo esperava sequioso que a briza do norte viesse beijal o , um calmo torpôr invadia toda a natureza . Claudio sentia-se mal , sentia-se fraco ; talvez d' aquelle calor , pensava , mas na realidade a agonia vinha-lhe do coração , da vaga consciencia de que ia quebrar uma urna de affectos limpidos e sãos cujos pedaços jámais poderia soldar e cujo licor sagrado para sempre se perderia no pó em que tão impensadamente o derramava . Aquelle momento havia de lembrar-lhe , muitos annos depois , com um arrependimento lancinante quasi com remorso . A Conceição veio alegre e risonha , como de costume , entregue sem reserva á alegria de vêr o seu Claudio ; elle opprimido . Com um miraculoso poder de sympathia que tudo adivinha , a Conceição perguntou-lhe immediatamente : -- o que tem ? Vem hoje tão triste ! -- Tenho a dizer-te uma cousa que te vae fazer chorar , mas é preciso que t ' a diga . Isto não póde continuar , disse Claudio brutalmente . Olha , Conceição , meu pae nunca consentiria que nos casassemos e então para que hei-de enganar-te ? Hei-de ser sempre teu amigo , mas por isso mesmo não quero prejudicar a tua felicidade . Não te faltam bons casamentos , pódes ser ainda muito feliz . O mal é para mim que vou perder-te . A Conceição chorava de dôr e de surpreza ; nada sabia dizer . Se era por ella ter feito algum mal , que lh'o dissesse , que não podia ser senão intriga ; que só pelo amor que lhe tinha lhe custava deixal- o ... Claudio porém insistiu no proposito de terminarem as suas relações e apartaram-se , ella banhada em lagrimas , elle cruelmente alliviado por se libertar d' uma situação que começava a pesar-lhe . No fim d' um anno a Conceição casava com um carpinteiro . Passa às vezes na villa , o cesto á cabeça , quando leva o jantar ao marido , o farto collo a entrevêr-se pelo chambre desabotoado no pescoço para respirar na pesada atmosphera do estio . Claudio via-a , contente por se convencer de que os amores idyllicos não tinham sido estorvo á sua felicidade . Um dia a veria com saudades da ventura que perdera ! N ' estes errores do espirito se consumiram os cinco annos que Claudio passou em Coimbra ; ao fim d' elles era necessario voltar a Villalva . O problema da sua existencia apresentava-se-lhe cada vez mais urgente , cada vez mais confuso , a alma dilacerada entre os impulsos mysticos que vinham da sua primeira infancia , as instigações do espirito inquieto por uma sciencia estreita e incompleta e vagos ardores de mocidade que o aconselhavam a calcar sciencia e mysticismo e entregar-se sem reserva ás expansões do instincto . Que fazer ? Poucos mezes depois de regressar a casa , vieram o administrador do concelho , o reitor do Ervedal , o prior de Villar , o regedor do Sabugal e o Rodrigues , grande influente nas freguezias da serra , convidal- o para a presidencia da camara . Diziam-lhe que a eleição era segura , por esse lado nada tinha a receiar , ninguem lh'a disputava , mas , quando a disputassem , estava alli força sufficiente para a vencer , pois que os homens que alli via representavam mais de dois terços da votação de todo o concelho . Tambem não faziam questão de lista , elle escolheria os collegas que quizesse ; o que desejavam era um homem sério e capaz , porque não imaginava o que ia na camara . Uma ladroeira ! Traziam toda a sorte de vadios a receber por conta do cofre municipal e até se dizia que o presidente estava alcançado . -- Dizia ! Era certo , accrescentava o reitor do Ervedal . Ainda ha pouco , quando foi obrigado a entrar com a receita da viação , teve de pedir oitocentos mil reis ao José Maria , das Aranhas , e hypothecou-lhe a terra da Preza . Claudio defendia-se ; que estava muito novo , queria estudar e não se mettia em politica . Tudo intrigas , tudo dissabores ! -- Não era politica , replicavam-lhe , era um serviço que prestava ao concelho . Visse o que o pae tinha feito na junta de parochia . Nas obras do cemiterio deixava tudo para estar ao romper do dia ao pé dos trabalhadores . Poupou muito dinheiro á freguezia com o seu zelo e a sua economia , e prejudicando-se porque para isso tinha de deixar a sua vida . Agora elle que era um rapaz formado e rico ! ... Até o entretinha ! Que fazia alli , sempre agarrado aos livros ? ... Depois ... precisava pensar , em tres dias responderia definitivamente , -- foi a evasiva com que Claudio se libertou dos seus interlocutores que começavam a fatigal- o com rogos e instancias . Ao fechar a porta , recolheu murmurando : -- Pois sim ! Contem com isso , não me faltava mais nada do que metter-me n ' essa vinagreira . O seu proposito de recusa era formal , mas temia o desgosto do pae que adivinhava de opinião differente . Só perante este queria desculpar-se , porque para os outros a resposta estava feita . Consultou-o . Com grande surpreza sua viu que não o animava . Que não se illudisse , dizia-lhe , já sabia muito bem o que era tudo aquilo . Todos os que alli vieram tinham as suas pretensões ; não o queriam na camara senão para as satisfazer . Bem se importavam elles com as cousas do concelho ! Cada um cuidava de si , da sua fonte e da sua estrada . Quando esteve na junta , o Mattos , da Azenha , ficou de mal com elle porque não lhe mandou compôr o caminho do Freixial . Queria que lhe fizessem estradas para as suas quintas e não se importavam de mais nada ! Tambem lhe não aconselhava que recusasse ; um homem precisa servir para alguma cousa . Mas se imaginava que nos cargos publicos havia só honra e gloria , estava muito enganado ; trabalhos e desgostos é que lá encontraria . No fundo desejava que o filho acceitasse , considerava como um triumpho para a sua vida a situação de Claudio ; mas já velho , conhecendo o mundo e amando o filho , invadia-o o desprendimento das vaidades e o egoismo do repouso , não se atrevia a aconselhar uma vida de inquietações . Claudio , percebendo a hesitação do pae , recusou , e este , quando mais tarde foi prevenido pela mulher da resolução do filho , respondeu : -- Não está para os aturar . Faz muito bem . Tem que comer e quer viver descansado . Não passavam porém sem deixar vestigios estes incidentes . Que fazer ? que fazer ? Não era a vida qualquer cousa que elle tinha obrigação de aproveitar em beneficio dos outros ? Toda a hypothese de solução , ainda que ephemera , fazia reviver o problema . Bastava uma proposta dos politicos da villa para que comsigo trouxesse longas meditações sobre a escolha entre uma vida d' acção e uma vida de estudo e meditação . Os dias corriam longos entre o fastio dos livros , por uns vagos desejos da acção , e o desgosto da acção , por uma interior necessidade de recolhimento . Amores não os havia profundos , que este estado tudo turvava e embaraçava , só a duvida imperava dissolvendo e quebrando toda a energia e todo o movimento salutar e espontaneo . Necessariamente haveria remedio para esta situação . Era preciso procural- o no estudo , deveria estar n ' esses montões de livros que se lhe accumulavam sobre a mesa . O melhor era estudar , mas d' esta vez com methodo e conforme os bons principios , que nem os padres nem os lentes da Universidade lhe tinham dado instrucção aproveitavel . Começava-se pela mathematica e seguia-se pela physica , pela chimica , pelas sciencias naturaes , a terminar na historia , nas sciencias sociaes , nas bellas artes e na litteratura . Quando tivesse levado a cabo esta empreza , então poderia fazer alguma cousa com plena consciencia . E a pequena sala de Villalva encheu se de estantes de livros , de retortas e de apparelhos estranhos que a rude gente da aldeia olhava com curiosidade e desconfiança . Não podiam porém varrer-se n ' um dia os velhos habitos , mórmente no proprio local em que se tinham creado ; não podia supportar o estudo aturado aquelle que fôra educado na liberdade dos campos e nos prazeres da vida rustica . Claudio sentia-se fraco , incapaz de levar a cabo a sua empreza com a tenacidade que ella , no seu entender , reclamava ; aborrecia-se do estudo , a cada passo trocava a leitura dos livros de chimica por um romance ou por um trecho poetico , vinha á botica saber dos namoros das raparigas e dispendia longas horas em um novo jardim que fizera no cerrado , á entrada da aldeia , onde o pae cavára uma cisterna e tinha a eira e os abrunheiros . Era quasi um escandalo . Que rapaz aquelle ! Não fazia nada , ninguem sabia o que elle queria , alli mettido com os livros . O regedor passou uma tarde de maio em que Claudio com uma thesoura limpava as roseiras dos pedunculos das flores desfolhadas . -- Tenha v. ex.ª muito boa tarde , disse-lhe . -- Ora viva o sr. regedor ! Então como vae ? -- Obrigado , como velho . -- Por aqui está a passar um bocado de tempo ? -- É verdade . -- Tambem não sei que gosto é este . Ainda se fossem cousas que déssem fructo ... mas a modo que não vejo por aqui senão estas ameixieiras . -- Eu gosto d' isto , respondeu Claudio já com certo fastio da conversa . O regedor fez uma pausa e , bem ruminado o pensamento , exclamou : -- E a respeito de advogar , nada ? ! ... Foi a voz do povo , toda a aldeia assim pensava ; não comprehendia aquelle viver mysterioso , aquella inercia , aquella ausencia de vulgares ambições mundanas . O pae de Claudio tambem não estava contente , sonhára o filho dominador e poderoso , e via-o recolhido , calado , indifferente . -- Elle lá sabe ! pensava comsigo . Os camaradas de Claudio que tinha conhecido quando ia a Coimbra levar-lhe a mezada , diziam que elle era muito intelligente . E depois era rico , podia fazer o que quizesse ... Não queria metter-se em politica ? Talvez fizesse bem . Para que ? Para lhe gastarem dinheiro e no fim dizerem mal d' elle . Lembrava-se do que passára na junta de parochia , das ingratidões e desgostos que soffrêra . -- Elle lá sabe , elle lá sabe ... Era assim que concluia sempre as suas reflexões , continuando no trabalho como se não fosse rico , tal qual nos tempos em que todas as suas ambições se limitavam a ter mais uma junta de gado . Demais , sentia-se muito cansado para vêr sem indifferença as cousas d' este mundo . A cada instante , nas palestras em que ficava ao domingo depois da missa , no adro da egreja , com os magnates da freguezia que o ouviam como a homem de muito juizo , dizia : -- Estou com os pés para a cóva . -- Ora deixe lá , está novo ainda para gosar esta vida . Os filhos ricos , agora é que é viver ! -- Eu cá me sinto , respondia . E ficava a scismar n ' um abatimento , n ' uma fadiga que o opprimia e que tinha como prenuncio de curta duração . Não se enganava . No mesmo anno em que Claudio viera de Coimbra , o pae soffreu um ataque de " grippe " . Tinha ficado muito fraco ; durante muitos dias arrastou-se pela lareira e pela sala , quasi sempre sentado , somnolento , caindo bastas vezes em prostração . O medico vinha vel- o , desconfiando d' aquella moleza , e um dia em que elle se queixou de que os pés lhe inchavam , auscultou-o . -- Ha alguma novidade ? perguntou-lhe Claudio que o acompanhou até á porta do pateo . -- Parece haver ali qualquer embaraço de circulação , respondeu o medico com um gesto de descontentamento . O velho ao fim d' um mez parecia restabelecido , sómente um pouco mais lento no trabalho . Esta fraqueza , esta fraqueza ... Isto vae mal , dizia às vezes . Mas a continuação dos seus lamentos sem symptoma de molestia notavel acabou por convencer a familia de que não havia perigo imminente . Assim se passaram cerca de dois annos depois do ataque de " grippe " em que o medico confessára as primeiras suspeitas . Uma tarde , ao recolher a casa , disse á mulher : -- Andei a podar as pereiras e vi geitos de lá ficar . Deu-me uma tontura que , se não me encosto a uma arvore , caia . Isto vae mal ! ... Mas a mulher não deu grande importancia ao succedido . Seria fraqueza . Elle tambem não comia nada ... disse-lhe . Sempre aquelle fastio ... Era preciso chamar o medico a ver se lhe receitava alguma coisa que lhe désse+esse apetite . Alguns dias depois , já quasi esquecido aquelle breve incidente , o pae de Claudio deitou-se á hora habitual e adormeceu . O filho estava ainda para a villa , a mulher ficára a costurar e o creado preparava as estacas para a vinha . Estavam em fevereiro , as noites eram longas , ainda se fazia serão . De repente , da alcova em que o velho dormia , veio esta voz angustiada : -- Carmo , Carmo , acode-me , estou muito afflicto . Ella correu ao quarto . -- Olha , disse elle , vê se me ajudas , quero levantar-me , falta-me o ar . Lançou-lhe o braço pelas costas , a mão apoiada no hombro , e , quando procurava erguer-se , tombou sobre élla , com todo o seu peso , morto , a cabeça pendida sobre o peito . Para Claudio a comoção foi extraordinaria . Agora , perante os restos inanimados que tinham sido d' aquelle que mais respeitára , via em toda a luz o que significava uma vida de honestidade e de trabalhos , a riqueza e a ordem que em volta de si derramara durante tão longos annos . Para aquelle não tinha havido hesitações e o triumpho fôra completo ; augmentou os bens , serviu os seus e os estranhos , toda a existencia foi um combate com a natureza , com os homens , com os acasos do destino . Os braços cairam de fadiga , mas o animo não esmoreceu até ao derradeiro alento . Quem lhe déra ser assim ! ... Para isto , para estas reflexões , não precisava dos livros , nem leituras nem sabios o inspiravam ; o pensamento vinha-lhe do coração , espontaneo , brotando da alma como a agua do rochedo . Quem sabe ? ! Talvez fosse vão todo o caminho andado , tempo perdido o que gastára á procura da verdade , folheando com avidez os tratados de philosophia d' esses homens que diziam serem os mestres da humanidade ! O problema da sua existencia voltava-lhe ao espirito , cada vez mais instante , aggravado pelas muito particulares circumstancias que a morte do pae trouxera . Que fazer ? que fazer ? ! Era essa a voz interior que a toda a hora lhe eccoava no peito . Emquanto o pae vivia , a sua vida accommodára- se a um modo de cousas transitorio . Considerara a herança do tio como fortuna do pae e não consentiu que ella saisse da posse d' este . Ia vivendo tranquillamente com as flores e os livros , ora no seu jardim , ora na sala alumiada e silenciosa do modesto casal de Villalva , ora nas palestras da villa , ora em solitarios passeios pelos montes e pelas varzeas , herborisando e estudando , quando não se quedava a fallar com a gente do campo , interrogando-a sobre os seus rebanhos e as suas lavouras . Estudava agora , depois decidiria o que havia de fazer . Não o satisfaziam os livros ? Era certo . Por vezes sentia um fastio invencivel de tudo aquillo e advinhava em si , sem as poder definir , outras ambições , outras esperanças , outros desejos . Depois , depois resolveria ; emquanto o pae vivesse , não sairia d' ali nem queria saber dos seus bens . Hoje as circumstancias são differentes . Passados os primeiros dias de mais pungente saudade , começa a pensar , com um firme proposito de resolução , no caminho que lhe convém seguir . Estava rico , com vinte e quatro annos , que iria fazer da mocidade e da fortuna ? Ficar ali ? Era um convento , uma vida estreita , e os livros com que se tinha aconselhado diziam-lhe que a existencia era uma lucta , o ascetismo uma doença , e a expansão de todas as forças , de todos os apetites e de todas as paixões uma lei natural , porventura a condição do vigor e da saude . O luxo e todos os seus prazeres eram bons . Havia desgraçados a quem isso offendia ? Illusão , não era offensa , era a lei do mundo ; eram vencidos , seres inferiores que o progresso da especie exigia que se consumissem na miseria . Não era isso o que a mãe lhe ensinára e intimamente sentia-se inclinado á piedade , á modestia , á doçura e á tranquillidade ? Vicios hereditarios , casos atavicos , que a regra era luctar , o signal de superioridade vencer . Ouviu a mãe . Disse-lhe que estavam ali muito mal , sem commodidades e sem conforto , que queria frequentar mais assiduamente algumas relações que deixára em Coimbra , e por isso pensava em se estabelecer em Albergaria , d' onde mais facilmente poderia sair . Demais , pensava em fazer uma longa viagem que era necessaria para se instruir ; custava-lhe deixar a mãe em Villalva , entre uma gente estupida , sem recursos , sem medico , sem ter quasi quem lhe accudisse n ' uma doença ou n ' um desastre . Lembrava se do que acontecera com a morte do pae ; por pouco deixou de se vêr sósinho nos seus ultimos instantes . A mãe ouviu com grande pasmo e surpreza . Na sua simplicidade , tinha imaginado que tudo estava muito bem , o celleiro farto e a arca cheia de boas teias de linho . Não era aquillo toda a riqueza do mundo , não o considerava ella como supremo favôr de Deus e premio do ardor com que lhe orava ? Isolamento não o sentia , que as horas eram poucas para o trabalho e corriam ligeiras no labutar constante . Tambem não comprehendia a falta de recursos ; a doença e a morte vêm quando Deus quer , não temos mais que acceitar a sua santa vontade . Mas , se a Claudio convinha sair d' ali , fizesse como melhor fosse para elle . Vivera sempre para os outros e agora que já não tinha marido nada lhe custava obedecer ao filho . A paciencia e a resignação não conheciam limites n ' aquella alma . Claudio começou pois a cuidar com impaciencia da sua nova installação . Arrendou um palacio , á entrada da villa , do lado do poente , com pateo nobre , escadaria de pedra , grandes salas cortadas de largas janellas saccadas sobre basta cantaria , vasto jardim e pomares . Tinha sido , segundo se dizia , dos duques -- Aveiro , e agora pertencia a um avarento rico de Coimbra que o arrendava barato porque não o queria improductivo , não queria , na sua expressão , cavallos d' estado . Vieram moveis caros , louças da India , quadros , bronzes e damascos , comprados nos bazares de Lisboa por onde Claudio andou em companhia d' um antigo amigo e condiscipulo que era de gente fina e muito entendido em " bric- Ã brac " . Veiu tambem um " landau " e dois grandes cavallos francezes que tinham pertencido a um negociante que se arruinára em fundos hespanhoes . -- Pechincha ! dizia-lhe o amigo . Isto que aqui vês por um conto e duzentos , custou mais do dobro . A carruagem é de Binder , os cavallos estão novos e os arreios são magnificos ! O pobre homem vendeu a medo , envergonhado ; se os tivesse annunciado e esperasse , era impossivel que não encontrasse quem lhe desse mais . Gastaram-se n ' esta primeira installação uns oito contos de réis dos doze que o José Portugal tinha deixado em Coimbra , á ordem do filho , em casa d' um commerciante da Praça Velha , que lhe cobrava os juros das inscripções e recebia as rendas que vinham do Minho . O velho , na sua escrupulosa honradez , pensava sempre em não prejudicar o filho em proveito proprio ou em proveito da filha casada . Por isso punha de parte aquillo que em sua consciencia entendia sobrar dos rendimentos da herança . -- Lá lh'o deixo , pensava , elle lhe dará a applicação que quizer . Não lhe hão-de faltar terras para comprar . Está ahi a casa do fidalgo que , por morte d' elle , se vem a vender toda . Já não podem com dividas . Foi o amigo de Claudio , Jorge de Castro , quem veiu mobilar-lhe a casa . Não havia que fiar em estofadores . Um dinheirão e tudo sem gosto ! Ainda ha pouco vira na Avenida a casa do Antonio Ferreira , um negociante da praça que enriqueceu com a alta da borracha . Pagou mais de trinta contos ao Gaspar e não tinha um cantinho que se diga : benza-te Deus . Muita seda , muitos dourados , uma caixa de amendoas ! Emquanto o José de Menezes , que se casou ha pouco , com um conto e quinhentos poz a casa como um brinco . A sala de jantar pouco mais tinha que a meza , uma credencia , velha baixela de estanho , meia duzia de cadeiras , suspensa do tecto uma lampada de bronze e nas paredes quatro prateleiras com pratos de Wedgwood , brancos , na sua brancura leitosa , de leite a desnatar n ' um fundo escuro e mate . -- Original ! concluia Jorge . Aquelles objectos pareciam que tinham acabado de servir e que a todos os instantes estavam em movimento . Davam uma expressão de vida que os armadores de profissão desconheciam . Que barbaridades iam por essas casas de Lisboa ! Havia-as armadas em capellas , com muitos pannos , papeis dourados , jarras de porcelana , flores artificiaes e castiçaes de prata ; havia as armadas em tumulo , todas em estuque brilhante e frio ; e havia-as tambem , de amadores improvisados , armadas em museu onde os moveis , aliás ricos e às vezes de grande valor , se accumulavam sem relação , sem parentesco que os ligasse . Se lhes pozessem rotulos e preços , a loja era completa . O Menezes não ; tinha muitissimo gosto . E sabia comprar : aquella sala de jantar não lhe custou talvez duzentos mil réis . Claudio comprehendia mal a lição do amigo e estranhava o calor com que lhe era dada ; no collegio nunca ouvira fallar de estofos e mobilias , em Coimbra vivera retirado de elegancias e em Villalva trabalhava-se de sol a sol ; a mais brilhante peça da casa era a enxada polida entre os seixos da serra . Soubera pelos livros que a arte era a corôa da educação d' um bello espirito e queria-a tambem como tudo o que aos olhos da propria consciencia podesse engrandecel- o ; mas outras eram as suas preoccupações interiores . Havia de aprender com tempo e paciencia , quando tivesse a sua vida mais assente . Não tardaria , pensava ; tinha uma casa commoda e de bom gosto , o estudo havia de aproveitar-lhe melhor sob impressões deliciosas , os progressos seriam rapidos . Não o pensava egualmente a mãe , abatida com tamanho encargo , a casa , as salas e os creados . Suspirava pela paz laboriosa de Villalva , baixinho , em silencio , não fosse o filho ouvil-a e desgostar-se com as suas saudades . Estabeleceram-se novos costumes em conformidade com a nova vida , almoço ao meio dia , jantar ás seis horas , as manhãs para o estudo , as tardes para os negocios da casa , visita ás propriedades e passeios de carruagem , as noites ... oh ! as noites eram realmente um grave embaraço . A botica enfadava , era mesquinha com a sua baixa e insalubre curiosidade ; o jogo era para velhas , um estupido brinquedo ; em casa , o estomago pesado , frente a frente com a velhita , o tedio era extremo . De resto , ella gostava de fazer serão ao pé das creadas , na cosinha , com a sua velha rocca á cinta , fiando o linho de Villalva . Chegando áquella hora , Claudio não sabia onde se refugiasse . Valia-lhe às vezes Coimbra , alguma noite no theatro , onde por accaso encontrava quem lhe fallasse de Flaubert , de Zola , de Comte ou de Spenser , as grandes preoccupações de seus estudos . Mas isso mesmo era raro porque , nos cinco annos que lá tinha estado , levára uma vida bisonha , retrahida e poucas relações deixára . D ' esse tempo ficaram-lhe apenas dois amigos ; Jorge de Castro , que ha pouco encontramos em Lisboa , aconselhando-o na installação do palacio de Albergaria , e José d'Albuquerque que mais tarde nos vae apparecer intimamente ligado á vida de Claudio . Ambos esses amigos eram fidalgos de nascimento e de habitos . Fôra curiosa a maneira porque entre elles e Claudio se creára um profundo affecto , apezar das tendencias e da origem plebeia d' este ultimo . Claudio passeiava habitualmente só . Vinha porém todas as tardes a uma livraria da baixa , na Calçada , procurando com avidez as novidades litterarias chegadas de França e prescrutando , entre os livros alinhados nas prateleiras , o caminho a seguir na sua ancia de saber . Era ali que invariavelmente encontrava Jorge de Castro e o Albuquerque , propensos como Claudio a cousas litterarias . D ' este modo , por este unico laço , começou a constituir-se essa amisade que a uniformidade de sentimentos e de nobreza d' alma consolidou no futuro . Findo porém o tempo escolar , Jorge fôra viver para Lisboa e em Coimbra só ficára o Albuquerque , em casa de quem Claudio raro apparecia emquanto estudante , porque todo o apparato de luxo que encontrava brigava com os seus habitos e a sua educação . Agora que mudára de ideias e de aspirações , aproveitava a hospitalidade do amigo , para desenferrujar a lingua , dizia , que era uma necessidade permutar ideias . Nem assim , com todo este complicado artificio , podia conformar-se com a vida de estudo que architectara . Ás vezes possuia-se d' um invencivel fastio dos livros e corria ao jardim , plantando , regando , limpando as arvores e as flôres , voltando instinctivamente aos bons habitos da sua educação . O jardineiro , que contractára em Lisboa , corria logo , que não se enxovalhasse s . ex.ª , elle faria o que quizesse . Claudio desculpava-se ; era para se entreter , que lhe fazia bem á saude . -- Ora essa ! dizia o saloio com espanto e admirando a pericia do senhor . Já tinha tido um patrão que tambem fazia o mesmo , o seu gosto era andar a tratar do jardim , mais era um grande fidalgo , empregado no paço da Ajuda , muito amigo do sr.||_D._Luiz D.|_D._Luiz Luiz|_D._Luiz ! O estudo não o satisfazia . Foi a conclusão a que Claudio chegou no fim d' um anno de residencia em Albergaria . Talvez questão de ambiente , falta de incitamento pela ausencia de camaradagem adequada ... O melhor era a experiencia , o conhecimento directo das cousas e dos homens , sair d' alli , vêr o mundo , os grandes espectaculos da vida , do trabalho , da arte humana e da natureza . Ainda sobrára alguma cousa do mealheiro que o pae lhe deixára , iria correr a Europa . Começaria pela Hespanha , pelas margens do Mediterraneo passaria a Italia , regressando iria á Suissa , d' ahi pela Allemanha a Moscow , voltaria pela Suecia , pela Dinamarca e pela Hollanda , iria a Pariz e a Inglaterra . Nem valia a pena fazer planos ! Dirigir-se-ia-a Pariz e faria alli quartel general , centro de todas as excursões . Escreveu a Jorge , communicando-lhe o seu plano , dando-lhe conta da morosidade com que o seu estudo proseguia e da maneira por que pensava em adeantal- o rapidamente com uma longa viagem . Veria agora a velha Europa , os paizes de mais antiga civilisação , e ficariam para successivas jornadas o Oriente e a Grecia , a India , o Japão e a America do Norte . O amigo applaudia . Quem lhe déra poder fazer o mesmo ! Mas tinha casado cedo , não podia levar a mulher e os filhos , custava-lhe deixal-os , era contentar com a sua sorte . Passava o verão com a mãe em Loures , o inverno em Lisboa , e as suas viagens duravam habitualmente um dia , dois ou tres em casos muito excepcionaes . Em Santarem , onde fôra com o Antonio de Mello e o Carlos d'Azevedo , gastára um dia , a jornada a Evora durou tres dias mas já não parava com saudades de casa , como quando veio a Albergaria , onde recebia cartas da mulher que eram um sermão de lagrimas . Tudo tinha compensações , dizia afinal ; se elle , Claudio , tinha a inteira liberdade de dispender o seu tempo e o seu dinheiro , podia instruir-se e alcançar uma vasta instrucção , elle , Jorge , tinha os carinhos constantes d' um lar amado e alegre . Não era aquillo aconselhar-lhe o casamento . Que se instruisse agora , que aproveitasse , e a seu tempo lá chegaria . Claudio partiu em abril e jornadeou até ao fim de outubro com uma impaciencia desusada . Não parava em parte alguma , com sêde de impressões , uma embriaguez de aspectos desconhecidos propria de quem fôra creado em horisontes estreitos . Museus , monumentos , costumes , paysagens , tudo observava , registando na lembrança conhecimentos novos . Ás vezes deixava-se possuir d' um extremo cansanço , tinha saudades da sua terra , parecia-lhe que cousa alguma valia tanto como a paz de Villalva e até a imagem da sua Conceição d' outros tempos lhe passava meigamente pelos olhos . Fadiga ! Eram momentos passageiros ; com esforço e tenacidade juntaria larga copia de conhecimentos , em casa , no socego do seu canto , havia de digerir toda aquella massa informe , havia de dispol- a em theorias e systemas , e então o saber seria completo e o estudo deixaria de o enfadar . Uma tarde , na Flandres , teve uma visão que lhe ficou de lembrança . Saira de Gand , de manhã , a vêr uma propriedade modelo que tinha tido o primeiro premio no ultimo concurso e , já proximo do pôr do sol , esperava o comboio n ' uma estação de aldeia . A gare estava deserta e silenciosa ; em volta os campos verdes e planos , emoldurados em altas sebes de choupos que oscillavam ao vento brandamente ; raros casaes dispersos ; em frente a casa d' um lavrador , uma velha á porta , fiando na roda , á maneira do norte , e ao pé uma creança recolhendo as gallinhas ao poleiro . Que seria da familia ? Andava nos campos , certamente . Em casa ficaram os velhos e as creanças fazendo o pouco trabalho de que eram capazes . Talvez alli estivesse a suprema sabedoria . Que andava elle a fatigar-se com vãos estudos ? O mais sensato seria voltar a Villalva , casar-se e trabalhar ; fazer como aquelles que alli via . Uma pungente saude acompanhando o sentimento da inamidade de toda a sua vida lhe apertou o coração e os olhos humedeceram-se n ' um movimento de desalento profundo . Pariz apagava essas impressões fugitivas ; desfaziam-se rapidamente na sua atmosphera de luxo , de prazer , de epicurismo . As theorias materialistas aprendidas nos livros confirmavam as instigações dos sentidos . Claudio convencia-se de que a verdade era a riqueza e o progresso dos gozos e das commodidades . A lucta pela vida reduzia-se á expansão naturalista , á conquista dos regalos do corpo . Que mais poderia significar ?