BIBLIOTHECA PORTUGUEZA ILLUSTRADA X D. Thomaz -- MELLO O Conde||_DE_S._Luiz DE|_DE_S._Luiz S.|_DE_S._Luiz Luiz|_DE_S._Luiz ROMANCE ORIGINAL SEGUNDA EDIÇÂO LISBOA EMPREZA DE+A HISTORIA DE PORTUGAL Sociedade editora LIVRARIA MODERNA | TYPOGRAPHIA R. Augusta, 95 | 45 , R. Ivens, 47 1903 Era no anno de 18 N ' um palacete proximo ГЎ CalГ§ada de Santo AndrГ© , vivia , em companhia de seu filho e de duas creadas , D. Marianna de MendonГ§a , filha bastarda de Manuel Pires de Athayde , que fГґra em tempos de pouco saudosa memoria alcaide-mГіr da cidade de * * Poucos mezes antes de morrer , Manuel Pires de Athayde , entregГЎra a sua filha dezeseis mil cruzados em dinheiro , afГіra joias e outros objectos de valor , pedindo-lhe ao mesmo tempo que acceitasse por esposo a Alvaro de MendonГ§a seu primo co-irmГЈo , moГ§o serio e de bom porte , e , alГ©m d' isso , possuidor de riquezas quasi eguaes ГЎs que o alcaide-mГіr lhe legava . Recusando , a principio , o noivo que o pae lhe indicava , D. Marianna , por ultimo , nГЈo teve mais remedio senГЈo acceder aos seus desejos . Tres mezes depois , com grande alegria de todos os parentes , recebeu se com Alvaro de MendonГ§a na freguezia dos Anjos . O pobre velho parecia apenas aguardar a realizaГ§ГЈo d' este ultimo desejo para volver a alma ao Creador , entre as lagrimas da filha e dos amigos que o estremeciam . Ao cabo de oito dias de casada , D. Marianna ficava sem pae . Manuel Pires de Athayde nГЈo se havia enganado na escolha ; Alvaro de MendonГ§a era o exemplo dos maridos . A sua proverbial honestidade tornava-o estimado em todos os logares onde apparecia , acompanhado quasi sempre pela esposa , digna e respeitada como elle . Ao fim d' um anno , a Providencia , prodiga em lhes proporcionar todas as venturas , concedeu-lhes a maior que pГіde dar aos que deveras se amam sobre a terra , e que medem o mundo todo , pelo curto espaГ§o do seu domicilio : um filho . Manuel -- tal foi o nome do recemnascido -- de dia para dia se tornava mais robusto . Era um gosto vel os ГЎ tarde por sobre os canteiros do seu pequeno jardim , correndo com o Manuelito , e disputando entre si , qual dos dois alegraria mais a creancinha . Marianna , por esse tempo , teria uns dezoito a vinte annos , Alvaro trinta e quatro . Amor , saude , mocidade , riquezas e um filho ! Que lhes faltava para serem felizes ? Pelo espaГ§o de doze annos , trabalhando mais do que as forГ§as lh'o permittiam , afim de melhorar o futuro da creanГ§a , correu a vida de Alvaro de MendonГ§a , sem que uma sГі vez podesse D. Marianna deixar de levantar as mГЈos aos cГ©us , para agradecer ГЎ Providencia o esposo que lhe havia concedido . Uma circumstancia apenas lhes toldava de vez em quando o iris da sua felicidade ; eram os continuos receios que um velho primo lhes infundia , sobre a precoce intelligencia do estremecido fructo dos seus amores patriarchaes . " NГЈo puchem pelo rapazola se o nГЈo querem ver no cemiterio , dizia-lhes elle muitas vezes . Um talento como este deve ser muito poupado . Se meu pae nГЈo me tem acudido a tempo , retirando-me do collegio , talvez lhes nГЈo estivesse agora dando este conselho . Eu fui o mesmo que o Manuelito ; aprendi a grammatica portugueza de " fio a pavio " em menos de um mez . NГЈo percebia bem o que dizia , Г© verdade , mas sabia tudo de cГіr , que era atГ© um gosto ouvirem-me . Sabem o que fez meu pae ? Annuiu aos desejos do mestre , que era um doidinho por mim , e retirou-me do collegio para que nГЈo estudasse mais . Г‰ certo que estou hoje sem saber coisa alguma , porquanto a grammatica esquece muito , mas pelo menos tenho vida e saude , que Г© o principal . " A despeito d' estas e de outras judiciosas reflexГµes , Manuel continuou a frequentar a aula , onde era querido por todos os professores e condiscipulos . Estes , longe de lhes causar inveja o seu inquestionavel merecimento , todos ГЎ uma se ufanavam em lh'o proclamar . Aos quinze annos jГЎ tinha feito os exames de philosophia e latinidade . Quando mais venturosa sorria a existencia de Alvaro de MendonГ§a , coroada pelos louros de seu filho , a Providencia , como se jГЎ estivesse fatigada de lhe sorrir , fez com que o anjo da morte , descendo lentamente sobre o seu leito , lhe cerrasse para sempre os olhos . D. Marianna de MendonГ§a , ainda que dotada de intelligencia clara e reflexiva , faltava-lhe comtudo aquella experiencia do mundo impossivel de conseguir a qualquer senhora que , como ella , tivesse vivido apenas entregue aos cuidados de sua casa . Abatida pelo golpe que acabava de soffrer , muito fazia a infeliz viuva em administrar a sua casa de portas a dentro , e bem assim seguir a educaГ§ГЈo de Manuel , que de mez a mez fazia mais rapidos progressos , continuando a disfructar uma irreprehensivel saude , apezar de todos os prognosticos de seu primo , o ex-grammatico , que se nГЈo canГ§ava de lembrar ГЎ viuva o absurdo da sua insistencia em que o pequeno continuasse no collegio . Entre as pessoas que ordinariamente frequentavam a casa da viuva , distinguia-se o commendador Felix Justino de Araujo , homem probo e honesto para todos que tinham a honra de lhe merecer a sua confianГ§a , o que elle prodigamente espalhava afim de conquistar as geraes sympathias . Corriam varias ediГ§Гµes ГЎcerca da sua mysteriosa individualidade , chegando algumas pessoas a levar o seu arrojo a ponto de dizerem que o commendador nГЈo passava de um refinado velhaco , e que , mais dia menos dia , as suas gentilezas teriam de ser desmascaradas em praГ§a publica ; isto tudo , jГЎ se vГЄ , proferido em voz baixa , depois de com elle terem gasto os joelhos das calГ§as , nas respeitosas zumbaias que diariamente lhe dispensavam . Г‰ que jГЎ n ' essa epocha , a raГ§a de commendadores que hoje invade a capital comeГ§ava a manifestar-se com toda a forГ§a do seu prejudicial desenvolvimento . Era muito de ver se como toda aquella gente o tractava no tocante a futeis banalidades . Riam-se uns dos outros , e todos em sua presenГ§a disputavam entre si , qual deveria ser o seu primeiro thuribulario . Uns diziam que era viuvo , outros que era casado com uma mulher de baixa esphera , de quem tinha duas filhas , porГ©m que se nГЈo atrevia a apresental- a na sociedade , em virtude das suas maneiras pouco distinctas . A sua riqueza ninguem ao certo a poderia saber ; porГ©m o faustuoso luxo com que se tractava levava a suppГґr que enormes rendimentos havia herdado da sua nobre ascendencia , cujos brazГµes nobiliarios fariam estremecer de inveja qualquer puritano . Uma noite em que D. Marianna de MendonГ§a se queixava amargamente de um certo procurador , lembrou-lhe uma das suas amigas que talvez lhe fosse conveniente entregar a administraГ§ГЈo da casa ao commendador , se elle porventura a isso estivesse resolvido , e que ella mesma lhe falaria a tal respeito . A viuva acceitou de bom grado o que a sua intima lhe propozera , e falando esta com o commendador , ao cabo de oito dias Felix Justino de Araujo tinha geral procuraГ§ГЈo para arrendar , subrogar , ou alienar qualquer propriedade , se por ventura assim o julgasse conveniente para o futuro do seu Manuel que , segundo o dizer do administrador , era tanto para elle como se fosse seu proprio filho . NГЈo tardou muito tempo que o magnate fizesse uso de uma das condiГ§Гµes da procuraГ§ГЈo . Uma fazenda que Alvaro de MendonГ§a herdГЎra por morte de uma tia , tres ou quatro annos depois de estar casado com a filha de Manuel Pires de Athayde , foi-lhe vendida em hasta publica . A venda fГґra de um excellente resultado para a viuva , segundo o commendador affirmava , porquanto o seu principal rendimento eram arvores de fructa , e essas mais anno menos anno cairiam todas ao pezo d' uma epidemia que , segundo as suas observaГ§Гµes agronomicas , teria de grassar d' alli a tempo , assaltando todas as fazendas sem exceptuar uma unica . Em face d' esta cruel prophecia , quem se negaria a separar-se de qualquer terreno , por mais dolosa que fosse a venda ? O commendador empregou esse dinheiro n ' uma industria cujo dividendo deveria exceder dez por cento . Quasi todos deram os parabens ГЎ viuva pelo bom negocio que vinha de fazer , attendendo nГЈo sГі ГЎ grande differenГ§a do rendimento , como tambem a ter-se livrado d' esse terrivel cataclysmo , a que estava exposta conservando uma sГі arvore . Assim decorreram dezoito mezes sem que D. Marianna tivesse a mais pequena razГЈo de se arrepender da plena confianГ§a que tinha depositado no seu administrador . Por este tempo , Manuel , que havia saГdo do collegio , chegou se a sua mГЈe , dizendo-lhe que desejava partir para o Rio de Janeiro , afim de se dedicar ГЎ vida commercial , para que se sentia com decidida vocaГ§ГЈo . Recordando lhe ao principio a loucura do seu projecto , a pobre mГЈe ponderou-lhe a pouca necessidade de buscar em terra estranha o que jГЎ possuia na sua patria : a riqueza . Por essa epocha , os bens da casa montavam a uns trinta contos de rГ©is , graГ§as ГЎ heranГ§a que Alvaro de MendonГ§a havia recebido por morte de sua tia , e ГЎs economias que a viuva fizera durante aquelle tempo . -- Com o dinheiro que possuimos , dizia-lhe sua mГЈe , poderГЎs dedicar-te ao commercio , mas aqui em Lisboa . Г‰ verdade que nГЈo tens um unico parente que te proteja , mas , graГ§as a Deus , temos meios . Partires , e deixares-me , filho , acho que serГЎ uma grande loucura , ajuntou ella , arrazando-se-lhe os olhos de lagrimas . Em todo o caso , farГЎs o que te aprouver . NГЈo quero que um dia me lances em rosto que o muito amor que te consagro foi a causa de cortar a tua carreira . N ' essa noite , quando appareceu o commendador , D. Marianna manifestou-lhe os desejos de Manuel . -- Que vГЎ , respondeu elle rapidamente . Seu filho Г© activo , audaz , intelligente e emprehendedor . PГіde um dia , se Deus o ajudar , vir a ser um grande homem . NГЈo tenho filhos , acrescentou , porГ©m se um dia os tiver , nunca os hei de contrariar nas suas resoluГ§Гµes , se ellas forem justas como as de Manuel . -- Mas que precisГЈo tem elle de expГґr a sua saude n ' um clima tГЈo perigoso ? Trinta contos ou perto d' elles que possuimos nГЈo serГЎ o sufficiente para se viver em qualquer parte do mundo ? -- PorГ©m se seu filho Г© ambicioso , e capricha em adquirir um capital pelo seu trabalho , Г© justo que sua mГЈe lhe impeГ§a a sua determinaГ§ГЈo ? FaГ§a o que quizer , mas tome o meu conselho , deixe-o partir . Deus ha de guial- o , porque Manuel Г© bom , honesto , moral e , sobre todas estas coisas , muito trabalhador . -- E que dinheiro se lhe deve entregar , sr.||_Felix Felix|_Felix ? dez contos , quinze , vinte ... que lhe parece ? -- Vossa excellencia estГЎ louca ! acudiu apressadamente o commendador . Entregar contos de rГ©is a um rapaz da edade de seu filho ! LanГ§ar Manuel n ' um paiz como o Rio de Janeiro , proporcionando-lhe os meios de se perder ! Nem por sombras ! Quaes contos de rГ©is ! Com seis moedas desembarquei eu em S.||_Paulo Paulo|_Paulo , e ao cabo de doze annos possuia uma fortuna para cima de dez mil libras ! Contos -- rГ©is ! SГі essa me faria rir ! A passagem paga , meia duzia de moedas , e as cartas de recommendaГ§ГЈo que para ahi lhe entregarei , sГЈo mais do que o sufficiente . -- Mas nГЈo me disse v. ex.ВЄ que meu filho era um rapaz de juizo , honesto e moral ? Que receio teremos em lhe entregar o que realmente lhe pertence ? NГЈo Г© elle o meu unico herdeiro ? -- FarГЎ vossa excellencia o que entender , e se lhe quer entregar tudo quanto possue , faГ§a-o ; estГЎ no seu direito , e lavo d' ahi as minhas mГЈos . Se quer que lhe preste as minhas contas , estou muito prompto a fazel- o . Sabe que o unico interesse que tenho em tudo isto Г© apenas o seu bem estar , e o futuro de Manuel . Se quer estragar tudo quanto tenho feito em seu proveito , Г© senhora das suas acГ§Гµes , pГіde fazel- o , que desde este momento me considero desligado de todos os meus encargos . Esta linguagem , rude mas na apparencia sincera , produziu no animo debil de D. Marianna o resultado que o commendador desejava . Affeita a obedecer-lhe em tudo , havia-se deixado dominar completamente por aquelle homem que , segundo a opiniГЈo de todas as pessoas que frequentavam a sua casa , havia sido um anjo salvador . Dois annos depois da sua administraГ§ГЈo , os vinte contos de rГ©is , que rendiam ГЎ viuva cem mil rГ©is por mez , haviam subido a um rendimento de um conto e seiscentos por anno , graГ§as ГЎ applicaГ§ГЈo que elle dera a esses capitaes . Quanto ao producto da propriedade , era um segredo , que mais dia menos dia seria revelado como surpreza agradavel . Que razГЈo teria ella para o arguir de mau administrador ? Estas e outras circumstancias faziam com que D. Marianna obedecesse cegamente a quanto elle lhe impunha . No dia immediato , Manuel chegou-se a sua mГЈe , afim de saber o que se havia passado entre ella e o commendador . -- Sinto deveras que me queiras abandonar , porГ©m se essa Г© a tua vontade , vae , e que as minhas oraГ§Гµes , acompanhando-te sempre , te possam salvar de todos os perigos . Quanto a dinheiro ajuntou ella , esperanГ§ada em que o commendador se resolvesse a entregar-lhe maior quantia , dir me-has quanto necessitas . -- Nunca pedi contas nem a minha mГЈe nem ao sr. commendador , mas supponho que nГЈo farГЈo grande differenГ§a nos capitaes que devemos possuir quatro ou cinco contos de rГ©is para me estabelecer , mas ainda assim , se minha mГЈe suppГµe que essa quantia Г© muito avultada , contentar me-hei com menos , ou por ultimo , com aquillo que julgarem conveniente . Г‰ tudo quanto tenho a dizer-lhe , accrescentou elle , pregando os olhos no olhar turvo e entristecido de D. Marianna . No dia seguinte a viuva foi ao escriptorio do commendador e contou lhe o que passГЎra com Manuel . Felix de Araujo , depois de a ter escutado , insistiu serenamente em que seria uma grande loucura entregar a seu filho uma quantia superior a essa de que tinham falado na vespera , repetindo porГ©m , que estava no seu direito de fazer o que lhe aprouvesse . Todos os espiritos , por mais debeis que sejam , teem um momento na vida , em que uma circumstancia , ou um milagre providencial lhes dardeja um raio de valor . A maneira , o gesto , o olhar , com que a viuva fitou o commendador , foram sufficientes para que elle comprehendesse que todos os esforГ§os seriam inuteis . D. Marianna estava resolvida a entregar a seu filho a quantia que elle lhe havia , senГЈo pedido , pelo menos indicado . NГЈo havia remedio ! Era forГ§oso entregar esse dinheiro no momento em que lhe fosse exigido , para que se nГЈo realisassem certos boatos que lhe tinham chegado aos ouvidos , de que mais dia , menos dia , as suas gentilezas seriam desmascaradas ! -- Seja o que vossa excellencia quizer , disse elle , depois de alguns instantes de reflexГЈo . Que quantia quer ? -- Quatro a cinco contos de rГ©is . Como tudo o que possuo Г© em dinheiro , nГЈo haverГЎ duvida em os receber por estes oito dias . -- Oito dias ! replicou o commendador , simulando grande tranquillidade de animo , hoje mesmo se vossa excellencia quizer ; nГЈo tenho mais trabalho do que tiral- o d' aquelle cofre , ajuntou elle , apontando para um grande armario de ferro . -- Posso portanto ficar tranquilla ? -- PГіde , mas lembre-se , minha senhora , que vae fazer a desgraГ§a de seu filho . ConheГ§o o Rio de Janeiro , e sei o que pГіde succeder a um rapaz da edade de Manuel , achando-se possuidor de similhante quantia . -- SerГЎ o que Deus quizer , respondeu a viuva despedindo se . Quem , momentos depois , commettesse a indiscriГ§ГЈo de o espreitar , no pequeno gabinete do escriptorio , conheceria immediatamente pela sua perturbaГ§ГЈo , que os trinta contos de rГ©is em que consistia a fortuna d' aquella familia nГЈo estavam tГЈo seguros quanto ella os julgava . Oito dias depois , quando tudo estava preparado para a viagem de Manuel , sua mГЈe dirigiu-se a casa do commendador , afim de receber os cinco contos de rГ©is , e encontrou-o sereno e bem disposto , mas insistindo ainda em que tГЈo grande quantia seria prejudicial a um moГ§o inexperiente como seu filho . -- JГЎ disse ao sr. commendador o que tinha a dizer-lhe , respondeu D. Marianna , sentando-se tranquilamente a seu lado . -- Visto nГЈo haver meio algum de a convencer , queira vossa excellencia ter a bondade de me passar um recibo d' esse dinheiro . Levantando-se serena e fleugmaticamente , o commendador dirigiu se ao armario de ferro , tirou de dentro d' elle um pequeno cofre e collocou-o sobre a secretaria de que D. Marianna se tinha approximado para passar o recibo . O commendador , depois de contar os maГ§os de notas de dez moedas , poz junto de D. Marianna os que prefaziam a quantia exigida . N ' este momento a viuva acabava de assignar o recibo . -- Se nГЈo fosse a profunda sympathia que vossa excellencia sempre tem sabido inspirar-me , creia que de hoje em deante , deixaria de lhe administrar os seus bens , e lhe-hia que mandasse buscar vinte e sete contos de rГ©is que alli tenho n ' aquelle cofre ; digo que os mandasse buscar , porque grande parte d' esse dinheiro estГЎ em ouro e em prata , com que vossa excellencia nГЈo poderia . NГЈo o faГ§o , porque alГ©m de todas as outras circumstancias , affeiГ§oei-me ao Manuel , mais do que se elle fosse meu proprio filho , como jГЎ uma vez lh'o disse . Se algumas desconfianГ§as comeГ§assem a agitar o espirito da viuva , todas se desvaneceriam em presenГ§a d' esta scena . Havia uma dupla intenГ§ГЈo nas palavras do commendador : a primeira inspirar ГЎ viuva profunda confianГ§a no deposito dos seus capitaes ; a segunda , evitar ainda a entrega dos cinco contos de rГ©is . A primeira saiu-lhe bem , a segunda nГЈo foi tГЈo favoravel . -- EntГЈo quando Г© a saida da galera ? perguntou elle a D. Marianna . -- ГЃmanhГЈ , ГЎs duas horas da tarde . -- NГЈo me comprometto a ir ao bota- fГіra ; me-penoso acompanhal- o ao comeГ§o da estrada da sua infelicidade . -- SerГЎ o que Deus quizer , respondeu tristemente a pobre mГЈe , pegando nos maГ§os de notas e mettendo-os dentro do seu sacco de veludo . Cinco minutos depois , acompanhada pelo commendador , entrava D. Marianna para uma sege , e seguia caminho de casa . No dia seguinte , ГЎs duas horas da tarde , desprendendo se dos braГ§os de sua mГЈe , entrava Manuel de MendonГ§a na galera " Boa Ventura " , e ao cair da tarde perdia de vista o que ha de mais caro na vida : mГЈe e patria . " Acautele-se do commendador " foram as ultimas palavras que Manuel dissera a sua mГЈe . Ao cabo de tres mezes , a viuva recebeu uma carta de seu filho , em que lhe participava que tinha chegado depois de uma feliz viagem , e que esperava em pouco tempo estabelecer-se vantajosamente com uma casa commercial . Assim passaram mais oito mezes . As mezadas que D. Marianna recebia de Felix de Araujo continuavam a ser-lhe entregues com a mesma religiosa pontualidade , o que fazia com que todas as pessoas que chegaram a duvidar da honestidade do commendador comeГ§assem a proclamal- o homem de evidente credito . Durou isto perto de um anno . As cartas que Manuel escrevia a sua mГЈe eram cada vez mais consoladoras . N ' algumas , mandava-lhe dizer que os seus maiores desejos seriam tel- a a seu lado . Um dia , finalmente , escreveu lhe seu filho , mandando-lhe pedir encarecidamente que retirasse quanto antes os capitaes que tinha na mГЈo do commendador , porque lhe tinham dado as peiores informaГ§Гµes a seu respeito , sendo a primeira nГЈo se chamar Felix Justino de Araujo , mas simplesmente Domingos de Andrade . Afflicta com esta carta , a infeliz senhora procurou um advogado , que fГґra muito amigo de seu defunto marido , e communicou-lhe os seus receios . N ' esse mesmo dia , o doutor acompanhou-a a casa do commendador . Este , ao vel- a , comprehendeu immediatamente do que se tractava . -- Tencionando retirar-me para o Rio de Janeiro , venho prevenir vossa excellencia de que desejo levantar da sua mГЈo os capitaes que honestamente me tem administrado . Se nГЈo fosse o desejo de ir ver meu filho , continuaria a aproveitar me da zelosa e desinteressada administraГ§ГЈo do sr. commendador . -- E sabe vossa excellencia se n ' este momento lhe poderei entregar esse dinheiro ? NГЈo m ' o confiou para negociar , afim de que tivesse maiores lucros do que estando na sua mГЈo ? Na vespera de seu filho partir para o Brazil , quando dei a vossa excellencia os cinco contos de rГ©is , que me exigiu , nГЈo me promptifiquei a entregar lhe quanto aqui tivesse ? Vossa excellencia nГЈo comprehende a possibilidade de que esse dinheiro esteja empregado em qualquer negocio , e de que n ' esse caso me seja difficil devolver-lh ' o de um momento para o outro ? Felizmente nГЈo succede assim , pelo que dou graГ§as a Deus ! Quanto o estimo ! Vossa excellencia , por qualquer circumstancia , deseja retirar das minhas mГЈos os seus capitaes , e nГЈo tem o sufficiente valor de m ' o dizer de cara a cara ! Pois , minha senhora , continuou elle , simulando um gesto de profundo resentimento , e levantando um pouco a voz , eu , que tenho a coragem das minhas acГ§Гµes , escudado pelo meu nome e pela minha honestidade , declaro aqui , alto e bom som , que sou eu que exijo , que vossa excellencia retire d' aqui os seus fundos , e quanto antes . Havia tanta dignidade nas palavras do commendador , a sua voz era tГЈo firme , tГЈo altivo e tГЈo seguro o seu olhar , que D. Marianna chegou a convencer-se de que era uma ingratidГЈo o que vinha de fazer . -- Ha perto de quatro annos , continuou o commendador dirigindo se ao advogado , que eu administro os bens d' esta senhora . O seu rendimento , que nГЈo chegava a um conto e duzentos por anno , subiu a um conto e seiscentos . Uma propriedade que lhe valia o muito quatro contos de rГ©is , vendi-lh ' a e appliquei o producto d' ella n ' um negocio , que rende para cima de doze por cento . Que necessidade tenho eu d' isto tudo ? Tenho empregado trabalho e tempo ; e preciso eu por ventura de capitaes alheios para fazer as minhas transacГ§Гµes ? Escusado serГЎ dizer que nГЈo . Para que o fiz ? Para o seu bem ! Boa paga , nГЈo haja duvida . Que esta liГ§ГЈo me sirva ! Pois , minha senhora , ajuntou elle , voltando-se para D. Marianna , rogo a vossa excellencia que ГЎmanhГЈ , sem falta , atГ© ГЎs onze horas da manhГЈ , encarregue alguem de me tomar contas , e queira vossa excellencia vir tambem , afim de me passar recibo do dinheiro que tenho na minha mГЈo . Hoje mesmo , se lhe fosse possivel , apezar de ser tarde , muito prazer me daria . -- ГЃmanhГЈ aqui estarei , visto assim o exigir , respondeu D. Marianna , olhando ao mesmo tempo para o advogado , como que esperando a sua opiniГЈo . -- Sendo onze horas aqui viremos , disse o jurisconsulto , despedindo se do commendador . -- Que lhe pareceu ? perguntou a viuva ao chegarem ГЎ porta da rua . -- Um homem honesto , ferido pela ingratidГЈo que acaba de receber , respondeu fleugmaticamente o doutor . Em todo o caso , accrescentou elle , faГ§a vossa excellencia o que quizer ; sendo dez horas estarei em sua casa . No dia immediato , conforme haviam combinado , apresentou se o advogado em casa de D. Marianna de MendonГ§a . ГЃs onze horas metteram-se n ' uma traquitana , e dirigiram-se ao escriptorio do commendador . Contra todos os usos da casa ainda estava fechado . -- Que lhe parece isto ? perguntou D. Marianna ao advogado , com mais receio do que na vespera ao perguntar-lhe como lhe havia parecido . -- Que Г© um homem ferido pela ingratidГЈo , e que anda a tratar de levantar dinheiro para a embolsar d' essa quantia , respondeu elle ingenuamente . Momentos depois comeГ§aram a apparecer varios individuos . O physionomista que de perto os observasse , veria em todos elles a mesma sombra de receio que se revelava no rosto pallido e transtornado de D. Marianna de MendonГ§a . D ' alli a duas horas ainda Felix de Araujo nГЈo tinha apparecido . -- Que lhe parece isto tudo doutor ? dizia a viuva ГЎs cinco horas da tarde , olhando para o advogado , que a contemplava com uma physionomia alvar . Que Г© um refinado ladrГЈo que nos deixa a todos desgraГ§ados ! accudiu um individuo que ouvira a pergunta feita pela viuva . O commendador Felix Justino de Araujo havia fechado o escriptorio . Domingos de Andrade fugira , roubando dinheiro a todos aquelles que , como D. Marianna de MendonГ§a , o haviam depositado nas suas mГЈos . Cinco dias depois D. Marianna , com a razГЈo perdida , entrava para a casa dos doidos no hospital de S. JosГ© . Pelos fins do anno de 1858 , vivia n ' uma pequena casa da Rua do Meio , freguezia de Nossa Senhora da Lapa , Jeronymo de Almeida , honrado mestre de obras , em companhia de sua mulher e de uma filha de dezeseis annos , chamada Martha . A excentricidade de caracter do operario , fazia com que todos os visinhos o detestassem . Para elle , nГЈo havia domingos nem dias santificados que o obrigassem a distrair-se do seu trabalho . A sua janella encontrava-se sempre fechada . O cultivo do microscopico jardim era a unica distracГ§ГЈo que n ' esses dias se permittia . Alli entre sua mulher e sua filha , Jeronymo mondava o pequeno canteiro de hortaliГ§a , que duas horas depois tinha de fazer as delicias da refeiГ§ГЈo domingueira . No armario da cozinha , esperava desde a vespera a garrafa do Cartaxo que figurava ГЎ sua meza , sobria sempre , porГ©m honradamente disfructada com o suor do rosto . Emquanto Jeronymo trabalhava no pequeno horto , Balbina , a esposa , assentada na cadeira de costura , largava apenas a agulha para agradecer a Deus o marido que a Providencia lhe havia destinado . Martha , a preguiГ§osa Martha como Jeronymo n ' esses dias lhe chamava , escondia os ferros de engommar , para seguir seu pae , sorrindo-se e gracejando a cada passo que elle dava pelo jardim . Toda a visinhanГ§a da rua do Meio se mordia de despeito ao contemplar a beatifica tranquillidade d' aquella pobre mas venturosa familia ; atГ© uma sobrinha do sr. regedor , que se finava de inveja ao contemplar os olhos verdes de Martha , chegou a dizer ao sr. padre prior que era impossivel que toda aquella gente nГЈo tivesse grande peccado na consciencia , attendendo ГЎ constante reclusГЈo em que vivia . O sacerdote , que conhecia o invejoso caracter da menina Gertrudes , passou de leve sobre o caso , e contentou-se apenas em responder-lhe que era tal a confianГ§a que depositava na virtude d' aquella familia , que nГЈo teria duvida alguma , embora se sacrificasse a pГґr fГіra de casa a velha ama , a admittir Martha a viver em sua companhia , entregando-lhe nas mГЈos as chaves da dispensa , e tudo quanto possuia de mais valor . Gertrudes desanimou na lucta , contentando se apenas em desacredital- a em voz baixa , quando por ventura alguma das amigas lhe falava a seu respeito . Defronte da casa de Jeronymo morava uma pobre velhinha , que se tornava um mysterio para toda a visinhanГ§a , passando apenas despercebida da familia do operario , pouco affeita a importar-se com as vidas alheias . A apparencia de sua casa , o seu trajar emfim , tudo revelava summa pobresa , porГ©m nunca a sua mГЈo se estendeu a pedir o obulo da caridade . A velha costumava sair todas as manhГЈs a fazer as compras . Um dia a porta conservou-se fechada , e a tia||_Marianna Marianna|_Marianna , segundo lhe chamavam , nГЈo apparecia . Ou por curiosidade , ou por interesse , nГЈo faltou quem lhe batesse ao postigo . Em resposta ouviram-se apenas uns gemidos . O regedor chamou dois cabos de policia e mandou immediatamente arrombar a porta . encontraram-n* ' a exanime sobre o leito . A infeliz havia adoecido com a febre amarella ; foi esse um dos primeiros casos que se dera na freguezia da Lapa . Atterrados , nГЈo houve quem quizesse approximar se da enferma . NГЈo tardou muito que o facto transpirasse por toda a visinhanГ§a . No momento em que o regedor , dois metros affastado da porta , dava as suas ordens para que fossem buscar a maca afim de conduzirem a velha ao hospital da rua do Sol , Martha , a loira Martha , saiu de casa e atravessou a rua , dirigindo-se ao logar do sinistro . -- Onde vae a menina ? perguntou o sr.||_Venancio_da_ConceiГ§ГЈo Venancio|_Venancio_da_ConceiГ§ГЈo da|_Venancio_da_ConceiГ§ГЈo ConceiГ§ГЈo|_Venancio_da_ConceiГ§ГЈo . -- Levar esta gotta de caldo ГЎ visinha , respondeu Martha ao previdente regedor . -- NГЈo consinto similhante loucura ! disse elle ; a velha foi atacada pela febre amarella , e vae immediatamente para o hospital . -- O que vocemecГЄ nГЈo me pГіde impedir , Г© que eu pratique uma obra de caridade ; e demais , veja se estГЎ no seu direito de mandar para o hospital uma pessoa que se pГіde curar em sua casa . -- Essa mulher nГЈo se pГіde tratar em sua casa , nГЈo tem familia . -- E quem lhe disse ao sr. que nГЈo tem quem a trate ? acudiu Martha , afastando o regedor e dirigindo se para o interior da casa da tia||_Marianna Marianna|_Marianna . Ora essa ! ajuntou ella , e se eu a quizer tratar , ha de alguem oppГґr- se ? ! Creio que nГЈo . Com sua licenГ§a , sr. regedor ; e entrando animosamente , dirigiu-se a uma alcova , onde a desgraГ§ada , extorcendo-se em dolorosas agonias , cravava os olhos n ' um pequeno crucifixo , collocado sobre uma commoda . Os cabos , regedor , e todos quantos alli se encontravam , olhavam-se mutuamente sem proferir uma sГі palavra . -- Assim o quer , assim o tenha , disse a auctoridade , depois de alguns instantes de reflexГЈo . Se ella fosse minha filha ou coisa que me pertencesse , por certo que nГЈo havia de lГЎ entrar . Eu cГЎ Г© que nГЈo tomo nada , acrescentou elle olhando com receio para dentro da casa . Instantes depois , saГa Martha de casa da velha . -- Mandem chamar immediatamente um medico , disse ella voltando-se para o regedor . PГіde ser que ainda lhe possamos acudir . Pelo facto de ser uma pobre mulher , bem vГЄ que nГЈo a devemos deixar morrer ao desamparo . E dizendo estas palavras , tornou a entrar para dentro da casa da tia||_Marianna Marianna|_Marianna . -- VГЎ ГЎ botica pedir soccorros , disse o regedor , voltando se para o cabo geral , e que venham immediatamente ; porquanto , esta mulher pelo facto de ser pobre , nГЈo devemos deixar morrer ao desamparo , ajuntou elle , secundando as palavras de Martha , e repetindo-as como se fossem suas proprias . O cabo geral , sem mais hesitar , voltou as costas aos circumstantes , e resmungando subiu a rua do Meio , dirigindo-se aonde a auctoridade o havia mandado . NГЈo tardou muito que ГЎ porta da tia||_Marianna Marianna|_Marianna se ajuntasse um circulo de curiosos . As visinhas a quem o terror da cruel epidemia havia infiltrado nos animos o mais terrivel desalento , debalde vociferavam contra a estulta caridade de Martha , e a pueril condescendencia do regedor , em annuir aos desejos da filha do mestre de obras . Revestindo-se emfim de todo o seu poder , o sr.||_Venancio_da_ConceiГ§ГЈo Venancio|_Venancio_da_ConceiГ§ГЈo da|_Venancio_da_ConceiГ§ГЈo ConceiГ§ГЈo|_Venancio_da_ConceiГ§ГЈo convenceu o auditorio , repetindo-lhe pela segunda vez , que , pelo facto da tia||_Marianna Marianna|_Marianna ser uma pobre , nГЈo a deviam deixar morrer ao desamparo . N ' este comenos , appareceu o mestre Jeronymo . -- A sua filha estГЎ doida de todo ! diziam uns . -- JГЎ tres vezes que vamos avisar a sr.ВЄ||_Balbina Balbina|_Balbina para que a retire d' aquella casa e ainda nГЈo houve meios , acudiu uma ajuntadeira de calГ§ado , que nem por isso gozava de muitos bons creditos na visinhanГ§a . -- Que loucura ! que loucura ! dizia a capellista . -- Parece que estГЎ a zombar da cholera do Senhor ! acudiu respeitosamente a tia||_Monica Monica|_Monica , beata que vivia de resas por conta das fidalgas -- Buenos Ayres , quando os seus affazeres nГЈo lhe permitiam conversar com o Todo Poderoso por conta propria . -- Se Deus a arrasta ao leito da moribunda , elle mesma a salvarГЎ , respondeu fleugmaticamente mestre Jeronymo , lendo-se-lhe , apezar de tudo , um certo receio pela vida da crianГ§a que estremecia . -- Muito estimo que assim penses , acudiu Balbina , que saira n ' este momento de casa . O mesmo pensei eu quando Martha me foi pedir uma gotta de caldo ; entregando-lh ' o , entreguei a a Deus . -- Pois olhe , sr.ВЄ||_Balbina Balbina|_Balbina , disse a capellista , fosse ella minha filha , nГЈo lh'o consentia . -- Cada qual tem o seu modo de pensar , sr.ВЄ||_Margarida Margarida|_Margarida , e Deus fez-me assim ; mas deixemo nos de mais dize tu , direi eu , e vamos a ver o que se poderГЎ fazer por aquella infeliz . E sem mais reflexionar , entrou n ' esse recinto mortuario , por onde momentos antes sua filha havia desapparecido . -- " AvГ© Maria , cheia de graГ§a , o senhor Г© comvosco , benta sois vГіs " , dizia a beata . Forte impostora ! accrescentou ella ; aquillo nГЈo Г© senГЈo para se fazer valer na visinhanГ§a . Meia hora depois d' esta veridica scena , que acabamos de descrever , appareceu o medico . -- Г‰ alli , disse-lhe o regedor , apontando para a porta da tia||_Marianna Marianna|_Marianna . -- Siga me , disse o doutor , voltando-se para a autoridade . O lance era fatal , nГЈo havia que hesitar . AmaldiГ§oando n ' esse momento a mГЎ estrella , que o conduzira ГЎquella posiГ§ГЈo , com as faces lividas de susto e de terror , o sr.||_Venancio Venancio|_Venancio seguiu o medico . Junto ao leito de Marianna , fazendo lhe uma fricГ§ГЈo nos joelhos , Martha , a filha do operario , debalde tentava chamar ГЎ vida essa que , n ' um olhar turvo e desvairado , parecia contemplar lhe a angelica formosura . Balbina , com um pequeno frasco chegado ao labio superior da enferma tentava fazel a aspirar o conteГ№do do vidro . De pГ© , contemplando este doloroso quadro , Jeronymo pedia a Deus se compadecesse de sua familia . Approximando-se da enferma , o medico tomou-lhe brandamente o pulso , e voltando-se em seguida para Martha , pediu-lhe uma vГ©la , afim de melhor analysar a vista da moribunda . -- Encontro-a muito debil , disse o esculapio em voz baixa ; Г© de suppГґr que nГЈo a possamos salvar ; comtudo , far-se-ha a diligencia , ajuntou elle cravando os olhos no rosto pallido e abatido de Martha . Abrindo em seguida a caixa dos medicamentos , comeГ§ou de applicar lhe os que o seu estado exigia . -- Esta senhora pertence ГЎ sua familia ? ajuntou o medico voltando se para Jeronymo . -- NГЈo , senhor ; comtudo minha filha interessa se muito por esta desgraГ§ada ; e se nГЈo fosse Martha , talvez a tivessem mandado para o hospital . -- Se a teem removido d' este leito , ao chegar lГЎ seria um cadaver , retorquiu o doutor , palpando a fronte da enferma . -- Parece lhe que poderemos ter esperanГ§as ? perguntou Martha , approximando se do leito . -- Veremos ГЎ noite . Sendo sete horas , se poder , voltarei ; e , despedindo-se dos circumstantes , saiu d' aquella casa , levando impressa na memoria a imagem candida e celeste da filha do operario . Os moveis da tia||_Marianna Marianna|_Marianna reduziam se ao pequeno leito de espinheiro onde jazia , uma enorme papelleira , um bahu , e quatro cadeiras de palhinha , completamente estragadas nos assentos . Roupas , se as havia , estavam fechadas ; e nem ella lh'o podera responder , nem era dado a Balbina o perguntar-lh ' o n ' esse momento . Dirigindo se a casa , trouxe d' alli quanto necessario lhe pareceu afim de alliviar no que podesse os incommodos da enferma . -- Sempre lhe gabo a pachorra , disse a sr.ВЄ||_Margarida Margarida|_Margarida , ao ver os lenГ§oes alvos como a neve , que a mulher do operario levava no braГ§o . Estar estragando assim as suas roupas brancas com quem pouco pГіde viver ! NГЈo era eu , que Deus me livrasse ! E demais , sr.ВЄ||_Balbina Balbina|_Balbina , uma pobre de Christo como a tia||_Marianna Marianna|_Marianna , mais lhe valera o ir para o hospital . Supponha a senhora que fica para ahi entrevada , quem ha de sustental-a ? -- Deus nunca faltou a pessoa alguma , sr.ВЄ||_Margarida Margarida|_Margarida ; e demais , cada qual que se metta com a sua vida , que eu pela minha parte nunca me intrometto com as alheias , respondeu Balbina , cortando pelo fio as palavras da capellista , e dirigindo-se para casa da tia||_Marianna Marianna|_Marianna , onde a esperavam Martha e seu marido . A velha havia recobrado a razГЈo , e sorria-se brandamente para a filha do operario , como se n ' aquelle olhar significativo estivesse agradecendo a Deus o anjo que a Providencia lhe havia deparado n ' esse momento de suprema angustia . Jeronymo e Balbina , assentados n ' um bahu , olhavam para aquelle quadro enternecedor , pedindo ao mesmo tempo nas suas preces silenciosas que lhe livrassem sua pobre filha . Meia hora depois de arranjada a cama , a velha sentiu-se mais alliviada . As horriveis dГґres por que passara , iam-lhe diminuindo a pouco e pouco , e ГЎ face , de pallidez mortal , subira-lhe de novo o calor e a vida . Nem uma sГі das visinhas , approximando se ГЎ sua porta , foram pelo menos indagar o estado da sua doenГ§a . ГЃs sete horas , como o havia promettido , voltou o doutor . A enferma estava livre de perigo . Oito dias depois , com grave assombro da visinhanГ§a , a tia||_Marianna Marianna|_Marianna , envolta n ' um capotezinho azul , apparecia de novo ГЎ janela da sua casa . Os effeitos da febre amarella haviam-lhe passado desapercebidos pela sua organizaГ§ГЈo de ferro . Ao vel- a , ninguem poderia acreditar que essa mulher , aos sessenta e seis annos , podesse haver resistido aos golpes d' uma doenГ§a , que tanta gente nova e robusta ceifГЎra n ' aquellas immediaГ§Гµes . Todos viam na sua convalescenГ§a , comeГ§ando pela beata , um favor da Providencia ; e nem uma sГі bocca se abriu para dizer , quanto a dedicaГ§ГЈo da pobre Martha ajudГЎra aquelle verdadeiro milagre . Almas vis e denegridas que nГЈo comprehendeis o bem , como poderieis soltar a voz para elogiardes a virtude , se nos vossos coraГ§Гµes nГЈo existe mais do que a inveja e a podridГЈo ! Sem valor de praticardes o bem , fere-vos o goso que experimenta o coraГ§ГЈo , que se entrega aos deleites da caridade . A apotheose do proximista , echoando nos ouvidos do misanthropo , deve produzir-lhe um effeito atroador , como o som do ouro espalhado pela pobresa , no tympano do avarento . Ninguem da visinhanГ§a se atrevera a soccorrer a pobre doente , ninguem repartira o seu jantar com a infeliz ; porГ©m , quando a viram de pГ© , salva , proclamando por toda a parte o quanto era devedora ГЎ familia do operario , todas as visinhas , consumindo-se de inveja , lhe voltavam as costas para nГЈo ouvirem os elogios que a velha do coraГ§ГЈo lhe prodigalizava . Desde esse momento , a pouca affeiГ§ГЈo que todos consagravam ГЎ familia de Jeronymo , tornГЎra- se em decidida aversГЈo . ComeГ§ando pelo sr. regedor , e acabando na sr.ВЄ||_Margarida_da_Silva Margarida|_Margarida_da_Silva da|_Margarida_da_Silva Silva|_Margarida_da_Silva , ninguem podia supportar aquella pobre gente , que , fechada quasi sempre em sua casa , de mais coisa alguma se importava a nГЈo ser dos seus arranjos domesticos . Quanto mais a tia||_Marianna Marianna|_Marianna proclamava em alto e bom som as virtudes de Martha , maiores antipathias ia inspirando a filha do operario . Quando , acompanhada por sua mГЈe , saГa aos domingos para ir ГЎ missa da Lapa , as visinhas zombavam sempre ao vela passar . Hoje , porque o seu lenГ§o estava mal engommado , ГЎmanhГЈ porque o seu capote de panno azul jГЎ comeГ§ava a mostrar o fio . A pobre victima fazia que nada percebia dos continuos gracejos que contra ella dirigiam . Chegou a pedir a sua mГЈe , por tudo quanto havia , que nГЈo a obrigasse a ir ГЎ missa das onze . -- Que te importa o que diz toda essa gente ? exclamava Г s vezes o sr.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo . O que elles tГЄem Г© inveja do teu comportamento . NГЈo tardarГЎ muito , se Deus quizer , que tenha ahi uns " ganchosinhos " que me devem render um par de moedas , verГЎs entГЈo como lhes hei de fazer estalar a castanha na bocca , quando te virem o bom capote aos hombros , e o bom cordГЈo de seis moedas ao pescoГ§o . -- Pouco me importa com o que elles dizem , respondia lhe Martha . NГЈo tenham de abocanhar no meu credito , o mais , tanto se me dГЎ como se me deu . O que eu queria era ajudar a pobre velhinha . -- Pois tambem nГЈo tardarГЎ muito que lhe faГ§amos algum bem , respondeu o mestre Jeronymo , como se um pensamento lhe acudisse ao espirito . ГЃmanhГЈ tenciono ir a casa de tua madrinha , para que ella lhe possa obter alguma esmola da senhora||_Condessa Condessa|_Condessa . Que te parece , Martha ? Continuou o mestre de obras , cravando os olhos no rosto candido de sua filha , e revelando no gesto o prazer que lhe ia n ' alma , ao comparal- a com todas as raparigas suas visinhas . -- Muito estimarei que isso nГЈo fique no rol dos esquecimentos , respondeu a crianГ§a sorrindo-se ternamente para seu pae . Salvamos a pobresinha da morte , Г© mister nГЈo a desampararmos , nem deixal a morrer de frio ou de fome . -- De frio nГЈo morrerГЎ ella por certo , acudiu Balbina , collocando o ferro de engommar sobre o descanГ§o . Ainda esta manhГЈ lhe dei o capote que punhamos no leito . -- Quer dizer , interrompeu Jeronymo , que de hoje em deante ... se tivermos frio ... -- Que nos havemos de contentar com os cobertores , respondeu a caridosa Balbina , tornando a pegar no ferro , e approximando-o da face para lhe calcular o calor . -- Seja o que vossГЄs quizerem , que eu , pela minha parte nunca as reprehenderei por qualquer acГ§ГЈo boa que praticarem ; e jГЎ que tivemos a felicidade de salvar a vida d' essa infeliz , Г© justo nГЈo a deixarmos agora morrer ao desamparo . Estou da opiniГЈo da Martha . -- Ou eu me engano muito , ou a tia||_Marianna Marianna|_Marianna jГЎ teve melhores dias , disse Martha . Ha na sua vida algum mysterio que ella nos encobre , mas que , apezar de tudo , adivinhamos , respondeu Martha , com aquella intuiГ§ГЈo particular que tantas vezes se encontra no coraГ§ГЈo da mulher . -- O mesmo penso eu , ajuntou mestre Jeronymo . Nunca fui homem que frequentasse estas casas , porГ©m reconheГ§o Г s vezes um nГЈo sei quГЄ nas maneiras da tia||_Marianna Marianna|_Marianna , que me levam a crer que os seus principios nГЈo foram como os nossos ; e tenho cГЎ na mente , que mais dia menos dia tudo se ha de descobrir . Quando vossГЄs hontem foram levar aquellas camisas a casa da fregueza , e que fiquei aqui em sua companhia , ainda mais me convenci das minhas suspeitas . " Sr.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo , disse me a tia||_Marianna Marianna|_Marianna , quem sabe se um dia a Providencia , lembrando se de uma desgraГ§ada que abandonou sobre a terra , a tomarГЎ de novo debaixo da sua protecГ§ГЈo . Se tal acontecer , lembre-se do que lhe digo hoje , nunca serei ingrata para uma familia a quem tanto devo . " Ora , alГ©m d' estas palavras serem proferidas , sim ... assim como o outro que diz , com uns certos modos finos e delicados , levam-me a pensar que a tia||_Marianna Marianna|_Marianna nГЈo Г© , nem nunca foi o que parece . Em todo o caso , seja ella quem fГґr , tem precisГЈo , Г© necessario soccorrel-a , e hoje mais do que nunca , quando a inveja a comeГ§a a perseguir . Vejam lГЎ a capellista ! AtГ© essa mesma , que eu suppunha tГЈo virtuosa , como se uniu a todas as visinhas para lhe cortarem na pelle , mais a ti , minha filha ! Valha nos Deus , que mundo este ! ajuntou o mestre de obras , dirigindo-se para a cosinha , em cuja chaminГ© Balbina lhe havia posto a ceia a aquecer . N ' este momento bateram apressadamente ao postigo . -- Que teremos ? disse Balbina . Martha levantou-se , e ao reconhecer a voz que da rua lhe falava , abriu immediatamente a porta . Era a tia||_Monica Monica|_Monica . -- Deus seja comvosco n ' esta casa , e que o Senhor lanГ§ando sobre nГіs a sua divina benГ§ГЈo , queira proteger a mais santa e a mais virtuosa de todas as familias , disse a beata . Acaba de ser atacada pela febre amarella a nossa visinha Margarida , ajuntou ella . No momento em que me estava vendendo um vintem de meio grosso , a colera de Deus desceu sobre a peccadora e alli jaz sem protecГ§ГЈo nem abrigo , porquanto todas as visinhas receiam que tambem o Senhor as castigue pelos actos que teem praticado sobre a terra . Venho pedir a vossemecГЄ , sr.ВЄ||_Balbina Balbina|_Balbina , que se compadeГ§a d' essa desgraГ§ada , e que me empreste esse milagroso frasquinho com que tornou ГЎ vida a tia||_Marianna Marianna|_Marianna . -- NГЈo foi o remedio que lhe deu minha mulher que fez com que a tia||_Marianna Marianna|_Marianna melhorasse , acudiu o mestre Jeronymo , que da porta da cosinha ouvira as exclamaГ§Гµes da beata . FaГ§am o mesmo que fez minha filha . VГЈo chamar o sr. regedor e peГ§am-lhe que mande immediatamente buscar-lhe os soccorros , ajuntou o mestre de obras com modo aspero e descontente . Quanto ao frasco , continuou elle , voltando-se para sua mulher , podes emprestar-lh ' o se Г© da tua vontade , porГ©m servir-lhe de enfermeira , maletas me dГЄem se em tal consinto . Bem basta o que basta , sr.ВЄ||_Monica Monica|_Monica . Para outra qualquer pessoa talvez que nem fosse preciso que me pedisse por duas vezes , mas para a sr.ВЄ||_Margarida Margarida|_Margarida ! Nem que me pezassem a ouro , ou que santo me fizesse o sr. padre prior . Estou farto e mais que farto da ingratidГЈo , sr.ВЄ||_Monica Monica|_Monica . NГЈo foi a sr.ВЄ||_Margarida Margarida|_Margarida a primeira a cortar na pelle de minha filha , por ella ter ido acudir ГЎ tia||_Marianna Marianna|_Marianna ? E nГЈo foi sГі ella como tambem as outras visinhas ! Pois agora que se aguentem como melhor lhes parecer . Que se ajudem umas ГЎs outras , que eu pela minha parte , nГЈo consinto que lГЎ ponham o pГ© , nem minha mulher nem minha filha . [ IlustraГ§ГЈo : N ' este momento a viuva acabava de assignar ... ( " pag. 15 " ) ] -- Cruzes ! Credo ! MГЈe||_Santissima Santissima|_Santissima ! Que modos , sr.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo ! E eu que julgando-o um Santo , me atrevi a vir a sua casa . Que a ira de Deus descendo sobre esta morada castigue o maior de todos os peccadores , resmungou a tia||_Monica Monica|_Monica ГЎ medida que se approximava da porta por onde momentos depois saГa apressadamente , olhando ao mesmo tempo para Jeronymo , cujo olhar , incendiado pelo desespero que a praga lhe havia produzido , incutia certos receios no animo da corretora de oraГ§Гµes . -- Que lhes pareceu o traste ? perguntou o mestre Jeronymo depois de alguns momentos de profunda reflexГЈo . -- Se meu pae me deixasse ao menos ver o estado em que se encontra essa pobre mulher ? ... perguntou ingenuamente a caridosa Martha . -- Nem por sombras , respondeu o operario . Vamos pedir a Deus pela saude , e depois descanГ§armos o corpo para o trabalho de ГЎmanhГЈ . Momentos depois , ouvia-se apenas em casa do operario o ciciar d' esta curta , mas eloquente oraГ§ГЈo : Bom Jesus , todo Poderoso , Filho da Virgem Maria , Soccorrei- nos esta noite E ГЎmanhГЈ por todo o dia . Se na terra nГЈo coubermos , Levae- nos Senhor aos cГ©os , Rogae por nГіs peccadores , Virgem||_Santa Santa|_Santa , MГЈe||_de|_Deus de||_de|_Deus Deus|_de|_Deus . Havia dias que tinha chegado a Lisboa , vindo do Rio Grande do Sul , um abastado capitalista por nome TristГЈo de Almeida , segundo rezava o seu passaporte . acompanhavam-n* ' o sua mulher e duas filhas . Trazia apenas tres cartas de recommendaГ§ГЈo , uma para o visconde de Coruche , outra para o commendador Lopes de Miranda , e a terceira para a casa bancaria de Vaz Mendes e C.ВЄ , extraordinariamente acreditada n ' esta capital , nГЈo sГі pela notavel amabilidade dos seus gerentes , como pelo facto de jГЎ ter fallido tres vezes . O visconde , o commendador e o banqueiro abraГ§aram gostosamente o seu recommendado . Como bons farejadores reflectiram que a caГ§a era rara de mais para se abandonar por essas mattas de Lisboa , onde o genero tanto escasseia . Disputada calorosamente entre todos tres a preza que promettia dar para succulenta refeiГ§ГЈo , transigiram , promettendo , como quaesquer jogadores da vermelhinha , que dividiriam entre todos os despojos da caГ§ada . Deixando-se de vogar na torrente de eternas adulaГ§Гµes , TristГЈo de Almeida olhava para as facecias dos seus aduladores com aquelle olhar de experimentada velhacaria com que todo o homem do mundo se deixa levar , quando , porventura , no amago das lisonjas que lhe disparam , antolha , ou pelo menos fareja o mais leve indicio de estremado calculo . Sem patentear a sua intelligencia ou , ainda mais , deixando-se passar por zote , TristГЈo ia cercando de lisongeiras esperanГ§as o filГЈo d' essa inexgotavel mina que os tres inseparaveis amigos julgavam descobrir na sua aurifera individualidade . Mulher e filhas ainda nГЈo haviam entrado em scena . Constava porГ©m que uma das meninas era de formosura extrema , e d' uma superior intelligencia . NГЈo tardou uma semana que esse homem , ou para melhor dizer esse mysterio fosse discutido em todos os circulos . Quem era ? Qual o seu passado , ninguem o sabia ; ao passo que elle conhecia a todos , e de todos sabia as chronicas . Se este , antes de ser visconde de tal era apenas Manuel Pinto com barracas de fressureiro , se aquelle , antes de barГЈo , empregava a casca de polvo para tirar em baixo relevo a vera effigie de qualquer monarcha , ensaiando por esta forma a sua industria atГ© conseguir a tiragem por meio do balancГ© ; se aquell ' outro , profundo amador do sexo fragil , tivera casa de alcouce no Brazil com o unico fim de matar o tempo . TristГЈo de Almeida sabia o passado de todos , e todos ignoravam o seu preterito . " Г‰ forГ§oso votar uma quantia para estes tres individuos , pensava elle , passeiando pela varanda do hotel e contemplando as aguas do Tejo que pareciam conhecel- o e sorrir-lhe . Se com vinte ou trinta contos de rГ©is se contentam , satisfarei os seus desejos e poderei conseguir os meus fins . GraГ§as a sir||_Francis_Strolopp Francis|_Francis_Strolopp Strolopp|_Francis_Strolopp , tornei-me desconhecido . [ 1 ] Hoje pessoa alguma poderГЎ descobrir que antes de ser TristГЈo de Almeida fui Felix Justino de Araujo como antes de ser Felix Justino de Araujo fГґra " Domingos de Andrade . " Г‰ forГ§oso que me arranjem um titulo pelo menos de visconde . Quero ver minha mulher viscondessa , tenho n ' isso o maior de todos os meus caprichos . NГЈo que me seja preciso , para casar minhas filhas Г©-lhes sufficiente o seu dote de duzentos contos de rГ©is . Brevemente encontrarГЈo algum fidalgo arruinado , que tenha por unicos restos de grandeza o seu titulo , e isso ... Г© genero que abunda muito em Portugal . EstГЎ decidido , quero um titulo . ComeГ§arei por ser apresentado em casa de alguma senhora protectora d' essas escolas de caridade , e lhe-hei uma avultada esmola , afim de a applicar aos seus protegidos . Mas agora me recordo , ajuntava elle , desencostando-se do parapeito da varanda ; o ensejo Г© favoravel . A febre amarella , levando a desgraГ§a a centenares de familias , enlucta-lhes as suas habitaГ§Гµes . Vou fundar um hospital . Serei o anjo dos tristes ! Beatifica-te , Domingos de Andrade . Eleva-te aos olhos de Deus , Felix de Araujo . Derrama esse ouro que tanto te custou a adquirir , TristГЈo de Almeida , e serГЎs um dia aquillo que te aprouver . " N ' este momento , bateram ГЎ porta da sala . TristГЈo mandou que abrissem , e entrou um criado annunciando o visconde de Coruche . -- Que entre , disse lhe TristГЈo de Almeida retirando-se da varanda e dirigindo-se para o salГЈo . O visconde era um homem de cincoenta annos , mas que parecia ter quarenta quando muito . Dotado d' uma inteligencia regular , jГЎ pelos dotes physicos de que Deus fГґra prodigo para com ele , jГЎ pela riqueza de que por duas vezes havia disposto , era ainda , apezar da sua decadencia , o primeiro rapaz d' esta terra , onde se nГЈo envelhece antes dos setenta e seis a setenta e sete annos , graГ§as ГЎ temperatura do seu clima . Quando entrava no Marrare de Polimento , toda a moderna geraГ§ГЈo se curvava deante d' aquelle que havia sido o chefe da velha guarda . NГЈo havia rapaz que nГЈo escutasse avido de curiosidade as mil aventuras que se haviam dado n ' aquella existencia tumultuosa . Havia sido o terror da banca portugueza no salГЈo do theatro de S. Carlos , como na caixa do mesmo theatro fГґra o invejado emulo de todos os seus contemporaneos , em resultado das innumeras conquistas que em cada epocha se permitia . Ninguem montava como o visconde ! Os seus cavallos eram os primeiros de Lisboa . Tivera por sotas da sua magnifica sege o Feliciano e o Bem Bom ! Aos vinte anos , casara-se com uma prima , a filha do conde de . Quinze dias depois , n ' um camarote de primeira ordem da Rua dos Condes , estava a viscondessa e defronte dela , noutro camarote da mesma ordem , miss||_Ellen_Barkshead Ellen|_Ellen_Barkshead Barkshead|_Ellen_Barkshead , voltando de vez em quando o rosto para a rectaguarda para melhor falar com o marido da viscondessa . Como se vГЄ , era um homem completo . Dois anos depois entregou a viscondessa a sua meia alma a Deus deixando sobre a terra a outra metade , para ser previamente repartida por uma multidГЈo de mulheres que disputavam entre si o voluvel coraГ§ГЈo do visconde . Extravagante mais por indole do que por ostentaГ§ГЈo , o fidalgo deliciava-se nos encantos dos seus desvarios , saboreando as commoГ§Гµes que d' elles lhe resultavam , com o mesmo deleite com que o gastronomo delicia o palladar nos prazeres d' uma variada mastigaГ§ГЈo . Era o verdadeiro sybarita da estroinice . Senhor d' uma casa de vinte contos de renda , nГЈo tardou muito que a visse desbaratada em custosas viagens . Aos trinta annos estava pobre ! Tinha por unico recurso a morte de um tio de quem era herdeiro forГ§ado , porГ©m a pertinaz saude do velho fazia com que o pobre visconde estivesse quasi a esmorecer no caminho da vida , onde se assentava desanimado , como o peregrino , a quem o desalento feriu no comeГ§o da sua jornada . Um dia , finalmente , o velho aristocrata , mais talvez para acceder aos ardentes desejos do seu arruinado sobrinho do que para descer aos abysmos do inferno , que por direito de conquista lhe pertencia , cerrou brandamente as palpebras , e partiu d' esta para peior , segundo a opiniГЈo das suas victimas , deixando por seu universal herdeiro o visconde de Coruche . As privaГ§Гµes porque este passГЎra foram completamente esquecidas desde que se encontrou novamente possuidor d' um vinculo cujo rendimento excedia seis contos de rГ©is , e esquecidos tambem se julgaram os seus crГ©dores , porquanto lhes foi necessario lanГ§arem mГЈo de meios pouco brandos para adquirirem , senГЈo a totalidade do devido , pelo menos o capital confiado ao visconde , com juro modico e rasoavel . O fogo d' aquella eterna juventude , amortecido durante cinco annos de amargura , reanimou-se entГЈo com todo o esplendor do seu brilho ! O visconde tornou a entregar-se a todos os prazeres , com o ardente desejo de quem apenas se recordava d' elles . A sua vida era um mysterio . Todos os dias se dizia que estava arruinado , porГ©m tanto a casa como o trem conservavam-se como no tempo do apogeu da sua riqueza . D ' onde lhe viria o dinheiro para tanto ? Eis o misterio que a pessoa alguma era dado descortinar . Ao cabo de alguns annos , o vinculo que herdГЎra teve o mesmo resultado que havia tido o que seus pais lhe deixaram , porГ©m desta vez a situaГ§ГЈo era mais difficil , nГЈo tinha parente algum para quem apellar . NГЈo podendo recorrer aos mortos , decidiu-se a explorar os vivos . Escudado pela prestigiosa fama que o acompanhava , fez do seu nome uma industria . Os rapazes que entravam na sociedade desejavam todos ser-lhe apresentados . O visconde conhecia isto , e , esquivando-se a principio , anuia finalmente , nГЈo sem mostrar quanta honra ele lhes dispensava colocando-os no rol de seus intimos . Todos ГЎ uma dariam metade do que possuiam para se tratarem por tu com o visconde , no que ele era assaz difficil ; a sua intimidade era um genero de superior qualidade para que muitos se podessem ufanar de o possuir . Ainda que as suas gentilezas eram por todos conhecidas , todos ou quasi todos lhe&lhes+as desculpavam . Estimado nos principais circulos onde aparecia , nem uma sГі pessoa se atrevia a dar-lhe a mais pequena mostra de desconsideraГ§ГЈo . Foi pois o visconde um dos tres individuos a quem Domingos de Andrade , ou o commendador Felix de Araujo , ou TristГЈo de Almeida , para maior exactidГЈo desta veridica historia , foi apresentado . -- Quanto estranhei nГЈo o ter encontrado hontem no theatro , meu caro amigo , disse o visconde , reclinando-se commodamente n ' uma poltrona . Ha muito tempo que nГЈo vejo S. Carlos tГЈo brilhante . O tenor , como sempre , cantou admiravelmente . E no que diz respeito ГЎs toilettes , nГЈo pГіde calcular , e impossivel seria descrever-lh ' as . Felizmente nГЈo se tem espalhado muito o panico em Lisboa . O cholera de 1833 , de que eu tenho uma vaga reminiscencia , aterrorizou muito mais os habitantes do que esta innocente epidemia . Ha um tempo a esta parte , tudo aqui em Lisboa Г© pobre e acanhado . Da febre amarella , diz-se : tem morrido muita gente ; do cholera , dizia-se com espanto : assim mesmo tem escapado alguem . Isso Г© que foi uma epidemia , meu amigo . -- Assim ouvi dizer . N ' essa epocha estava eu em Buenos Ayres , respondeu o commendador , notando ao mesmo tempo a estudada desenvoltura com que o visconde o tentava seduzir . Pois eu hontem nГЈo fui a S. Carlos , ajuntou elle , por ter tido minha filha alguma coisa indisposta . -- N ' esse caso fez muito bem , sr.||_TristГЈo TristГЈo|_TristГЈo . O tempo nГЈo estГЎ para brincadeiras . Eu mesmo , que tenho uma saude de ferro , se n ' este momento sentisse a mais leve indisposiГ§ГЈo , comeГ§ava por me tractar como estando realmente ameaГ§ado pela epidemia . Em primeiro logar estГЎ a nossa saude . Prefiro-a a tudo , atГ© ГЎ riqueza . -- PorГЄm quando se reunem essas duas venturas ... acudiu TristГЈo de Almeida , simulando um gesto de pueril ingenuidade . -- EntГЈo o mundo Г© um verdadeiro paraiso , pelo menos assim o julgo . Muitos rapazes que por ahi conheГ§o possuem , como eu , saude e dinheiro . Encontro-os sempre curvados ao pezo de uma terrivel fatalidade . Nunca se consideram felizes ! Fazem da melancolia a sua companheira inseparavel , e dando-se ares de Antonys , arranjam um farnel de desventuras , e vГЈo com elle por essas ruas da capital armando ГЎ compaixГЈo das suas Lesbias . Eu sou o contrario ; a minha alegria Г© chronica . Se eu nГЈo tenho coisa alguma que me entristeГ§a , para que demonio hei de dizer mal do mundo que tantos deleites me faz experimentar ? -- Sou da sua opiniГЈo , sr. visconde . O mundo Г© apenas mau para os tolos , ainda que ha muita gente que diz o contrario . Quem dispozer de boa saude e tiver alguns meios , deve pedir a Deus que o conserve largos annos sobre a terra . Mas voltando agora a outro assumpto , ajuntou TristГЈo de Almeida , que jГЎ comeГ§ava a impacientar-se , como o leitor , do estirado dialogo do visconde ; quanto estimo que me tenha dado a honra d' esta visitasinha , nГЈo sГі pelo prazer da sua companhia , como pela necessidade que tenho de lhe falar . Preciso um conselho seu . -- Um conselho meu ! exclamou o visconde profundamente admirado . Г‰ a primeira pessoa que m ' o pede ! Todos me chamam um rapaz extravagante , continuou elle , olhando ao mesmo tempo para um espelho que lhe ficava fronteiro ; vossa excellencia quer guiar-se pela minha opiniГЈo ? Provavelmente trata-se da compra d' algum palacio , e alguem houve que teve o mau senso de lhe dizer que eu era um homem de gosto . -- Nada , nГЈo se trata d' isso . -- EntГЈo , provavelmente , quer me consultar ГЎcerca da mobilia , ou das carruagens , ou dos cavallos ? -- TГЈo pouco , respondeu serenamente TristГЈo de Almeida . Isso ficarГЎ para mais tarde . Por agora trata-se apenas de uma obra de misericordia ; -- fazer bem aos desgraГ§ados . -- Se tal fГґr , acho muito justo , e desde jГЎ me offereГ§o a ajudal- o em tudo quanto me seja possivel . -- Sentemo nos , disse TristГЈo apontando lhe para o sophГЎ . Minha esposa , que tem o habito de empregar na pobreza a mezada que lhe dou para os seus alfinetes , lembrou-se ha dias de gastar uns contos de rГ©is n ' um asylo de creanГ§as desvalidas . Que lhe parece a idГ©a ? -- NГЈo a pГіde haver melhor , respondeu o visconde , e se vossa excellencia m ' o permitte , desde jГЎ me comprometto a fazer com que minha tia , a sr.ВЄ condessa de Villa Velha , venha immediatamente procural- o afim de o iniciar n ' essas associaГ§Гµes . Recordo me d' ella , porquanto Г© uma das mais assiduas obreiras do grande monumento da caridade . NГЈo ha asylo para que nГЈo seja consultada e Г© sempre a sua opiniГЈo a que prevalece sobre todas as outras . Se vossa excellencia quer , o meio Г© muito simples , e torno a repetir-lhe , hoje mesmo me encarrego de tudo . -- Pois meu caro amigo , acudiu fleugmaticamente TristГЈo de Almeida , nГЈo me associo ГЎ opiniГЈo de minha mulher nem ГЎ sua . Tenho outra idГ©a , e creio que serГЎ muito mais razoavel . -- Sim ? ... -- Г‰ verdade . Lembrava-me de fundar um hospital para os enfermos atacados de febre amarella . Isso em primeiro logar ; depois , quando este terrivel flagello tiver abandonado Lisboa , entГЈo sim , entГЈo adoptarei a idГ©a que teve minha mulher . -- Approvo , e desde jГЎ devo confessar que tanto eu como sua excellentissima esposa ficamos completamente vencidos . -- Approva ? -- Applaudo . -- E dispensa-me a sua protecГ§ГЈo n ' esta pequena obra de caridade ? -- Conte commigo , respondeu o visconde puxando pela charuteira e offerecendo um magnifico havano ao seu interlocutor . -- Poderemos hoje mesmo comeГ§ar os nossos trabalhos ? perguntou TristГЈo de Almeida , acceitando o charuto que lhe fГґra offerecido . -- Quando queira , respondeu o visconde de Coruche , tirando da algibeira do collete uma caixa de phosphoros magnificamente cinzelada . -- Vamos entГЈo procurar o commendador e seguiremos d' alli para casa de Vaz Mendes . Tanto um como o outro Г© de suppГґr que nos possam ajudar em muito . -- Assim o creio , murmurou o visconde , accendendo o charuto e passando-o a TristГЈo de Almeida . Momentos depois entrava este para dentro do trem do visconde . Quando a carruagem saia o portГЈo e voltava para a rua do Ferregial , espantou-se o cavallo da sella , e esbarrando no passeio , atropellou um individuo , deixando-o sem sentidos . Sairam ambos e levantaram o desgraГ§ado . Pegando elles mesmos no corpo inerte da victima , transportaram n ' a para o hotel de BraganГ§a . TristГЈo de Almeida expediu logo dois creados em procura de medico . Por excepГ§ГЈo , o doutor nГЈo tardou meia hora ! ... Das feridas que o atropellado recebera na cabeГ§a nenhuma era de gravidade , comtudo nГЈo havia tornado a si . TristГЈo de Almeida , com a mГЈo do enfermo entre as suas , parecia com profundo interesse procurar-lhe a vida nas pulsaГ§Гµes . Seria calculo ou verdadeira caridade ? Sabia o Deus ! Terminado o curativo , o homem descerrou as palpebras , fitando o que havia em torno de si com olhar turvo e desvairado . Г‰ melhor deital- o immediatamente , nГЈo lhe sobrevenha alguma congestГЈo , disse o doutor tomando o pulso do enfermo . Depois de ordenarem ao criado de mesa que arranjasse um quarto , TristГЈo de Almeida e o visconde levaram em braГ§os o ferido e deitaram-n* ' o sobre um leito , pedindo ambos ao medico que voltasse antes da noite . -- ComeГ§a hoje a espalhar as joias da sua caridade , disse-lhe o visconde com falsa ingenuidade . -- Quizera antes ter perdido dez ou doze contos de rГ©is do que ter sido causa de similhante desgraГ§a , respondeu-lhe TristГЈo . Agora , sr. visconde , ajuntou elle , emquanto vamos tratar dos nossos negocios , serГЎ bom recommendar a minha mulher e a minhas filhas que venham para a cabeceira do ferido . -- SerГЎ uma grande alma , pensava o visconde . -- Foi um magnifico prologo , dizia comsigo TristГЈo . Meia hora depois dirigiam-se ambos para casa do commendador . [ Nota de rodapГ© 1 : TristГЈo de Almeida lera a preclarissima obra de sir||_Francis_Strolopp Francis|_Francis_Strolopp Strolopp|_Francis_Strolopp , e procurando um celebre chimico allemГЈo , conseguira que este lhe transformasse a physionomia a ponto de se tornar desconhecido de si mesmo . ] -- E jГЎ lГЎ vГЈo as cinco , as seis , e as sete , e Jeronymo sem chegar ! Virgem||_Santissima Santissima|_Santissima que lhe terГЎ acontecido ? Isto dizia a infeliz Balbina , olhando ora para o relogio , ora para uma pequena imagem de Nossa Senhora da ConceiГ§ГЈo , defronte da qual ardia a luz frouxa e melancholica de uma lamparina de azeite . -- Ha dezoito annos que somos casados , continuou ella voltando se para a tia||_Marianna Marianna|_Marianna , e nunca tal me aconteceu ! E sobretudo n ' este tempo ! Quem nos diz que elle foi atacado pela febre , e que o levaram ; morto talvez ; morto , o meu querido Jeronymo ? Deus permitta que Martha se nГЈo demore . Ella jГЎ tinha tempo e mais do que tempo para voltar . -- NГЈo se apoquente , sr.ВЄ||_Balbina Balbina|_Balbina . D ' aqui ГЎ rua de S. Francisco nГЈo Г© tГЈo perto como julga , e demais ainda nГЈo ha uma hora que foi . Coitadinha ! Desacostumada como estГЎ de andar por essas ruas ! Porque nГЈo havia de me ter deixado ir em sua companhia ? Valha-nos Deus ! NГЈo ha senГЈo desgostos para os que sГЈo bons como vossemecГЄ . -- Isso Г© coisa sabida , tia||_Marianna Marianna|_Marianna ; parece que quanto mais a gente quer -- como o outro que diz -- estar nas graГ§as de Deus , mais o demo que as tece estГЎ puxando pelo fio da felicidade ! Eu estou como doida ! Se Martha se demora mais algum quarto de hora , sou eu quem os vae procurar a " ambos e dois " . VossemecГЄ fica aqui para o que der e vier , ajuntou a pobre Balbina , passeiando desassocegadamente de um para o outro lado do quarto . -- Ainda nГЈo tem razГЈo para estar dizendo mal ГЎ sua vida . Quem sabe se ambos se encontraram ? ... -- Tenho na mente que nГЈo , sr.ВЄ||_Marianna Marianna|_Marianna ; e demais , nГЈo sei o que me diz o coraГ§ГЈo . Parece que tudo se estГЎ preparando para que haja n ' esta casa uma grande desgraГ§a . Se a minha amiga visse a maneira por que hoje nos olhou a tia||_Monica Monica|_Monica ! NГЈo lhe bastou ter-nos rogado a praga que nos rogou ... -- Ora deixe-se d' isso , sr.ВЄ||_Balbina Balbina|_Balbina ! NГЈo creia em bruxarias . Deus Г© bom de mais para conceder similhante poder aos mortaes . -- Se ouvisse como hoje esteve a " ouviar " a minha cadella ! Diga-o ella ! Por mais que pozesse as cadeiras de pernas para o ar , e que voltasse um sapato de solla para cima , nГЈo houve meios de fazer com que se calasse o pobre animal ! Eu bem sei que tudo isto sГЈo coisas , como o outro que diz , que nГЈo vem nada ao caso , mas a gente cГЎ tem os seus enguiГ§os , e desgraГ§adamente a maior parte das vezes saem certos como dois e dois serem quatro . -- Pois sim , pois sim , socegue a minha boa amiga , e verГЎ que nГЈo tarda muito que os veja entrar por essa porta . Г‰ preciso que a gente nГЈo seja tГЈo desanimada . De que nos serviria a religiГЈo se nos nГЈo desse conformidade ? Estar agora duvidando da graГ§a de Deus , porque seu marido se demora mais duas ou tres horas ! -- E como explica vossemecГЄ o elle nГЈo ter vindo jantar ? -- Quem sabe lГЎ se encontrou o seu ganchosinho com que podesse ganhar algum vintem ? Ignora vossemecГЄ o seu genio ? Aquillo Г© uma formiga para a familia . Parece-me que se o dia tivesse quarenta e oito horas , quarenta e oito horas seria capaz de trabalhar por dia . N ' este momento bateram ГЎ porta e a voz de Martha soou melancholicamente atravez das fendas do postigo . Balbina ergueu-se rapidamente para lhe abrir a porta . Martha vinha desfigurada . -- O pae , disse ella entre soluГ§os , saГu da obra ao meio dia para vir jantar a casa . Ninguem me pГґde dar noticias d' elle . Pedi a um pedreiro para me ajudar a procural- o , mas o pobre sentia-se muito incommodado e esquivou-se a acompanhar-me . Outro que lГЎ encontrei comeГ§ou a sorrir-se para mim de tal forma que nГЈo tive valor de lhe dizer quanto soffria , ajuntou Martha tornando-se vermelha como o lenГ§o que lhe occultava os seus magnificos cabellos . -- Infame ! exclamou Balbina approximando-se cada vez mais da filha . -- Fugi desorientada , continuou Martha suffocada pelas lagrimas , e quando vinha pelo Chiado , encostei-me a uma esquina quasi sem saber de mim . EntГЈo senti que me tocavam brandamente no hombro . Despertei como de um sonho , e vi um senhor muito bem vestido , perguntando me o que tinha . Disse-lhe que ia em busca de meu pae , pois receiava que tivesse sido atacado pela febre . O tal individuo compadeceu-se da minha sorte . Aquelle sim ; nem siquer reparou se eu era bonita ou se era feia . Teve apenas tempo de me ver as lagrimas e nГЈo a cГґr dos olhos . " NГЈo me atrevo a dizer-lhe que entre commigo n ' uma sege , disse-me elle ; seria offendel-a ; mas espere , que vou chamar dois trens . " Esperei , chegaram duas traquitanas . -- Entre , disse-me elle pegando-me na mГЈo esquerda . Do coraГ§ГЈo lhe affianГ§o , que pГіde estar tГЈo segura como se fosse ao lado de seu pae , que espero em Deus encontrarГЎ com vida , acrescentou o individuo mettendo-me no trem . Entrei sem saber como . Senti bater o guarda lama e os cavallos seguirem a trote . De repente , a sua traquitana tomou a deanteira ГЎ minha . AndГЎmos , andГЎmos atГ© que chegou a um sitio onde havia um hospital . Os cavallos pararam . Elle entГЈo apeiou-se e perguntou-me os signaes do pae . dei-lh ' os . Entrou para dentro do edificio onde se demorou por alguns minutos , e voltou dizendo-me que nГЈo tinha entrado n ' aquella casa . Os trens partiram a galope . Fomos a dois hospitaes ; o mesmo resultado . Faltava apenas o da rua do Sol . Esse , jГЎ eu conhecia de nome quando a tia||_Marianna Marianna|_Marianna adoeceu . Ninguem alli tinha entrado desde as nove horas da manhГЈ . -- VГЎ tranquilla para sua casa , e diga-me onde mora . Dei-lhe o nome da rua e o numero da porta . Pagou ao bolieiro dizendo-lhe que me viesse pГґr em casa , o que nГЈo acceitei por causa da visinhanГ§a . -- E quem serГЎ esse individuo , para que lhe possamos beijar as mГЈos ? exclamou Balbina , n ' um transporte de profundo reconhecimento . -- Deus sabe ! Oh ! mas elle nГЈo me mentiu ! respondeu Martha . Tenho tanta fГ© nas suas palavras ! Se a mГЈe visse como elle me disse : " vГЎ para casa , que ainda hoje hei de descobrir onde estГЎ seu pae . " -- E Г© muito novo esse homem ? interrompeu Marianna . -- Uns trinta annos . -- Felizmente , ainda se pode dizer que a mocidade nГЈo estГЎ perdida de todo . N ' este momento , Balbina approximava-se da porta , preparando-se para sair . -- Mas onde vae ? exclamou Martha . Pelo amor de Deus , minha mГЈe ... Tenha prudencia ! Onde pretende encontral- o ? Na rua ? JГЎ vГЄ que se lhe tivesse acontecido alguma desgraГ§a , estaria infallivelmente em algum dos hospitaes , e graГ§as a Deus , tal nГЈo succede . -- Embora ! hei de encontral o , respondeu a pobre mulher tentando dar volta ГЎ chave para sair . Marianna e Martha , ajoelhadas deante da pobre esposa , tentavam impedir-lhe a passagem . E ella entГЈo , comprehendendo a inutilidade da sua saida , caiu de joelhos deante da imagem de Nossa Senhora . Imitando-a , Martha e Marianna acompanharam-n* ' a na sua oraГ§ГЈo . E o relogio , seguindo n ' um rumor compassado , continuava na sua material indifferenГ§a marcando os segundos e os minutos , ao som da chuva que , batendo de encontro aos vidros , ainda mais sombrio tornava aquelle quadro de amargura . Mudando de rumo , o visconde e TristГЈo de Almeida dirigiram-se primeiramente a casa de Vaz Mendes . Depois de os escutar , o banqueiro annuiu gostosamente aos desejos do seu recommendado , promettendo-lhe desde logo fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para animar uma idГ©a tГЈo philantropica . D ' alli partiram todos tres para casa do commendador Lopes de Miranda . Egual acolhimento , como era de esperar , acrescentando que a mesma idГ©a exposta por TristГЈo de Almeida havia sido formulada por elle tres dias antes . TristГЈo sorriu-se com a velhacaria que lhe era habitual , agradecendo ГЎ Providencia que os seus pensamentos se houvessem encontrado com os do excellentissimo commendador . Historiando o atropellamento e matizando a historia dos mais lisongeiros epithetos para TristГЈo , o visconde de Coruche contou ao commendador o que se havia passado com o operario . -- Se vossa excellencia nГЈo deu a morte a esse desgraГ§ado , estou certissimo que farГЎ a sua felicidade , disse o commendador , piscando ao mesmo tempo o olho para o visconde . -- Ha males que vem por bens , acudiu este fazendo uma careta para Lopes de Miranda . -- Mysterios de Deus , respondeu TristГЈo em voz alta . Fortes nescios , ajuntou elle de si para comsigo . Mal sabem que lhes percebo os signaes . Momentos depois , entravam todos quatro no hotel de BraganГ§a e dirigiam-se ao quarto do ferido . O operario encontrava-se no mesmo estado de anemia . Pessoa alguma havia podido arrancar-lhe uma sГі palavra . A sr.ВЄ||_D._Maria_Egypciaca D.|_D._Maria_Egypciaca Maria|_D._Maria_Egypciaca Egypciaca|_D._Maria_Egypciaca , segundo o havia ordenado o seu philanthropico esposo , nГЈo tinha abandonado o leito do enfermo . Magdalena e Olympia , de vez em quando approximavam se do quarto . Depois de cumprimentarem a esposa de TristГЈo , os tres amigos chegaram-se ao enfermo . -- Faz pena ! disse o commendador , Deus sabe ajuntou elle , se este pobre homem terГЎ alguma pessoa a quem esteja dando sГ©rios cuidados . Г‰ uma lastima que se lhe nГЈo possa saber o nome . Se descobrissemos quem Г© a familia , mandar lhe-iamos dizer que estava sob a protecГ§ГЈo de vossa excellencia . N ' estas epochas de epidemia , a mais pequena demora faz com que todos estejam em cuidados . -- Vejamos se Г© possivel fazel o falar , disse Vaz Mendes , debruГ§ando se sobre o leito do operario . O enfermo continuava no mesmo lethargo . Eram perto de seis horas . Como nГЈo houvesse meios de lhe arrancar uma palavra , D. Maria Egypciaca lembrou que seria mais prudente irem jantar emquanto durasse aquelle estado morbido , e deixando o doente entregue a um creado , convidou as visitas a dirigirem-se ГЎ casa de jantar . Ao chegarem alli , jГЎ Olympia , a filha mais nova de TristГЈo de Almeida , aguardava que seus paes tivessem dado treguas ГЎ caridade para desfructarem o unico gozo da vida , o comer . Minutos depois , appareceu Magdalena , a irmГЈ mais velha . O jantar correu animadissimo ! Formosas eram ambas as filhas de TristГЈo de Almeida ; juntando-se ГЎ formosura e juventude um dote de duzentos contos de reis , que lhes poderia faltar ? Ventilado pela vigessima vez o caso do atropellamento , bem como o valor do visconde de Coruche , que fizera convencer TristГЈo de Almeida do risco que havia corrido a sua existencia em se ter approximado , do cavallo da sella , discutiu-se a fundaГ§ГЈo do hospital . D. Maria Egypciaca , que de antemГЈo havia sido prevenida por seu esposo , falou eloquentemente sobre este assumpto , deixando assombrados os hospedes tanto pela sua verbosidade como pelas idГ©as philantropicas que defendia . Olympia contentava se de atacar com vigor extraordinario cada prato de cosinha que o servente lhe apresentava pelo lado do coraГ§ГЈo , viscera que apenas lhe estremecia consoante o apimentado dos molhos onde o guizado se mergulhava ! Fitando o olhar na comida , Olympia manejava o talher com mais desembaraГ§o do que qualquer malabar de feira , pegando depois n ' um oitavo de pГЈo de meio arratel para limpar o prato com o artistico intuito de admirar o bom gosto do estampador . Olympia tinha duas paixГµes : a cosinha e a ceramica . Se lhe dissessem que morrendo de uma indigestГЈo de ninhos de andorinhas seria depositada n ' um sarcophago de SГ©vres , a filha de TristГЈo de Almeida apanharia a indigestГЈo de bom grado . Debalde o visconde de Coruche se desfazia em melifluas olhaduras , tudo era inutil ; o estomago de Olympia concedГa- lhe apenas que as suas vistas se dirigissem ora para o prato que limpava , ora para a porta por onde entrava o criado com o seguimento do " menu " . E , apezar de tudo , essa creatura que tГЈo desenvoltamente usava e abusava dos orgГЈos da mastigaГ§ГЈo , perguntando ao criado durante o jantar o que tencionava guardar-lhe para a ceia , tinha o poetico nome de Olympia , como o leitor nГЈo ignora , e era formosa , formosa a fazer enraivar de inveja todas as do seu sexo , menos a amavel leitora que sobre estas paginas se debruГ§a . Olympia era uma pomba . Dizia sua mГЈe que atГ© aos dezoito annos , o unico desgosto que lhe havia dado fГґra ter atirado com uma travessa ao rosto pallido de Magdalena , por esta lhe ter comido duas queijadas de Reinholas , resto de tres duzias que seu pae lhe havia trazido de Cintra . Magdalena era a sua antithese . AfГґra aquelles dois pasteis , poder-se-ia-julgar impolluta no que dizia respeito ao quinto peccado . De uma formosura menos provocadora do que sua irmГЈ , Magdalena sabia insinuar-se no coraГ§ГЈo de todos os que tinham a felicidade de lhe merecer sympathia . Tinha na tristeza vaga e scismadora do seu olhar uns longes de melancolia que prendiam quem a contemplasse . Sobretudo , o que mais espantava em Magdalena era a harmonia da voz . Assombrava ! Os anjos deviam aprendel-a , para espalharem nos seus canticos a musica da palavra . Falava pouco , porГ©m a phrase era sempre correcta . Reservada mais por calculo do que por organizaГ§ГЈo , a irmГЈ de Olympia atravessava a sociedade com a consciencia segura e mathematica dos mil escolhos de que ella se compГµe ! Ferira-a a aza negra da tormenta ? A ave da desgraГ§a esvoaГ§ГЎra- lhe sobre os seus louros cabellos ? Desfizera-se-lhe algum sonho luminoso ? Sentira o seu coraГ§ГЈo immenso , golpeado pelo punhal do desengano ? Todos o ignoravam , ou para melhor dizer , pessoa alguma se havia demorado a estudar aquella peregrina organizaГ§ГЈo . Magdalena nunca havia amado , porГ©m o seu coraГ§ГЈo tinha necessidade de amar como os pulmГµes do ar que respiram . Creando um dia na sua phantasiosa imaginaГ§ГЈo o typo que ambicionara , quiz-lhe dar vida , formas e animaГ§ГЈo . Quando mais tarde se lhe sumiu o vago , o impalpavel , o ideal que concebГЄra e que tombГЎra na tristissima realidade , esmoreceu e curvou-se resignada para chorar a sГіs as suas lagrimas . Prophetisa da amargura , como veremos na continuaГ§ГЈo d' esta singela historia , Magdalena parecia adivinhar as supremas angustias que mais tarde lhe haviam de escruciar a pobre alma ! Debalde , repetimos , se esforГ§ava o visconde para merecer um olhar de Olympia . Era invulneravel ! -- Se o homem jГЎ terГЎ dado accordo de si , disse o visconde para nГЈo estar calado . -- Deus sabe ! murmurou o amphitriГЈo defendendo uma perna de perdiz da insaciavel voracidade da filha ! -- Daria tudo para que esse infeliz tornasse ГЎ vida , disse D. Maria Egypciaca dirigindo-se ao commendador . Como estarГЎ a sua pobre familia ! ajuntou ella despejando um copo de vinho do Rheno . -- Feliz d' elle , tartamudeou o visconde , se podesse abrir os olhos no momento em que vossa excellencia estivesse ГЎ cabeceira do seu leito . Pela minha parte , abenГ§oaria fosse que circumstancia fosse que me trouxesse tal ventura , ajuntou elle , dirigindo-se a Olympia . -- Passa me aquelle prato de carne de porco assada , disse Olympia tocando no hombro de sua irmГЈ e sem se atrever a olhar para o visconde . -- NГЈo ouves o que te diz aquelle cavalheiro ? perguntou D. Maria Egypciaca , voltando-se com modo agastado para sua filha . -- NГЈo repare , meu caro amigo , acudiu TristГЈo , Olympia Г© muito envergonhada , e demais estГЎ pouco acostumada ГЎ sociedade . NГЈo ouves o que te diz o sr. visconde ? acrescentou elle dirigindo-se ГЎ gastronoma . -- OuГ§o , sim senhor , mas nГЈo sei o que hei de responder . Magdalena estremeceu de pejo ao ouvir a resposta de Olympia . N ' este comenos , o criado que ficara junto do ferido entrou na casa de jantar para participar que elle havia tornado a si , dizendo poucos instantes depois o seu nome e a rua onde morava . Ajuntou em seguida o criado que um sujeito muito bem vestido pedira ao guarda portГЈo para vir reconhecer o doente . -- E esse individuo ... ainda lГЎ estГЎ ? perguntou TristГЈo . -- NГЈo senhor . Saiu logo que lhe soube o nome . Disse que ia dar parte ГЎ familia que estava com muito cuidado julgando que tinha sido atacado pela febre . -- E quem Г© o doente e como se chama ? perguntou vivamente o visconde . -- Chama-se Jeronymo e Г© mestre de obras . -- E onde mora ? interrompeu Vaz Mendes . -- Na rua do Meio ГЎ Lapa , respondeu o criado . -- Quanto estimo ! quanto estimo ! exclamou D. Maria Egypciaca . Provavelmente foram chamar-lhe a familia . Que venha , que venha . Pobre gente ! Talvez ainda abenГ§Гµem a fatalidade que lhes aconteceu ! PГіdes retirar-te , Manuel , ajuntou ella , dirigindo-se ao criado . -- Agora , disse Vaz Mendes , jГЎ temos por onde comeГ§ar a nossa obra de caridade . Principiaremos por esse pobre Jeronymo . -- Apoiado ! bradou o commendador despejando o decimo copo de vinho do Porto , e olhando de soslaio para Olympia , cujos olhos pardos se fitavam ardentemente n ' uma torta de maГ§ГЈ . -- Se m ' o permittem , vou ver o meu protegido disse TristГЈo , levantando se ao mesmo tempo da cadeira . -- E se tambem m ' o permittem ? ... accrescentou o visconde , imitando o movimento do seu amigo . -- Mas com o maior prazer , respondeu D. Maria Egypciaca . E nГЈo tardarГЎ muito que lГЎ vamos , eu e minhas filhas . -- Querem vel o ? perguntou o visconde voltando-se para o banqueiro e para o commendador . -- Da melhor vontade , responderam os dois a um tempo . Levantando se rapidamente seguiram o seu amphitriГЈo . -- Ora ahi tem a mamГЈ porque eu nГЈo gosto de comer ГЎ mesa quando temos visitas . Levanto-me sempre com fome . SГі eu ГЎ minha parte seria capaz de comer toda aquella carne assada , disse Olympia entristecidamente voltando se para sua mГЈe . -- Pois Г© possivel que ainda tivesses mais vontade ? perguntou Magdalena . -- AbenГ§oado estomago ! disse D. Maria Egypciaca levantando-se da mesa . Deixemos por algum tempo os preclaros bemfeitores do pobre Jeronymo ; a inconsolavel esposa rezando ГЎ Virgem||_Santissima Santissima|_Santissima ; D. Maria Egypciaca abenГ§oando o fructo dos seus burocraticos amores , e volvamos a uma epocha vinte annos anterior a estes successos , quando , perdida a razГЈo , a infeliz D. Marianna de MendonГ§a deu entrada no hospital de S. JosГ© . Como o leitor deve estar lembrado , a viuva nГЈo tinha um unico parente sobre a terra . As pessoas que frequentavam a sua casa havia muito que se tinham afastado , em virtude das intrigas urdidas pela sua amiga intima , que annos antes a aconselhГЎra a depositar os capitaes nas mГЈos do commendador . AtГ© o advogado que fГґra acompanhal- a ao escriptorio no dia da fuga de Felix Justino de Araujo , atГ© esse a havia abandonado , para com o seu conselho salvar as victimas do fugitivo . Maria Gertrudes , uma das creadas que lhe era mais affeiГ§oada , ao vela entrar n ' aquella situaГ§ГЈo , dirigiu-se immediatamente a casa da amiga da sua ama participando-lhe o estado em que D. Marianna se encontrava , perguntando-lhe o que queriam dizer aquellas palavras que proferira o commendador -- que lhe tinham roubado todos os seus bens . -- Que a sua ama sempre propendeu para a loucura , ha muito que o suspeitava , mas que tivesse chegado a esse ponto , Г© que nГЈo podia crer . Vejo-lhe apenas um remedio : metterem-n* ' a no hospital dos doidos , e , quanto a isso , quem estГЎ nas melhores condiГ§Гµes Г© o regedor . E sem mais tir ' te nem guar ' te , voltou as costas ГЎ fiel criada , mostrando-lhe que o sitio por onde tinha de sair era o mesmo por onde minutos antes havia entrado . EsperanГ§ada no restabelecimento de D. Maria , a pobre mulher voltou para casa . -- JГЎ nГЈo ha meios de a soffrer , disse-lhe uma sua companheira . Tem quebrado tudo quanto encontra ГЎ mГЈo , e se assim continГєa , nГЈo temos ГЎmanhГЈ um copo por onde beber . Pela minha parte , entendo que visto a senhora nГЈo ter amigos nem parentes , o melhor era dirigirmo-nos ao sr. regedor . -- O mesmo disse a sr.ВЄ||_D._Maria_Clara D.|_D._Maria_Clara Maria|_D._Maria_Clara Clara|_D._Maria_Clara . PorГ©m , entregar a nossa ama ГЎ justiГ§a , nГіs que lhe queremos tanto ! NГЈo seria mais razoavel supportal-a ainda alguns dias , como antes de hontem nos disse o medico ? respondeu Maria Gertrudes . -- Pois supporte-a vossemecГЄ , que eu pela minha parte jГЎ estou farta . E demais , nГіs as criadas nГЈo temos obrigaГ§ГЈo de aturar doidas . Se a tal me quizesse sujeitar , ia para o hospital de S. JosГ© , onde tinha melhor ordenado do que n ' esta casa . VossemecГЄ , que Г© mais antiga do que eu , se gosta , sopeteie , que quanto a mim , nГЈo tenho mais nada se nГЈo arranjar o bahu , pГґr o capote e o lenГ§o , e pГ©s para que te quero . Г‰ que nГЈo sei ; nГЈo sei o que hei de fazer ГЎ minha vida . Valha-me Deus , para que estava guardada . -- Estivesse eu no seu caso ; eu lh'o diria . -- EntГЈo o que havia de fazer ? -- Chamar o regedor e ferrar com ella no hospital . -- E esta casa ? Quem ha de ficar n ' esta casa ? -- Ora essa sr.ВЄ||_Maria_Gertrudes Maria|_Maria_Gertrudes Gertrudes|_Maria_Gertrudes ! Ficavamos nГіs emquanto o filho nГЈo viesse . -- E sabemos por ventura aonde estГЎ o filho ? -- Onde estГЎ ! EstГЎ no estrangeiro . Bem se vГЄ que a sr.ВЄ||_Maria_Gertrudes Maria|_Maria_Gertrudes Gertrudes|_Maria_Gertrudes nГЈo Г© mulher d' este tempo . Boa estГЎ . Olha que grande difficuldade ! Pensa talvez que nГЈo sei como essas coisas se fazem . Para que servem os correios ? NГЈo tem mais nada senГЈo pГґr : ao sr.||_Manuel Manuel|_Manuel de tal , e em baixo : pelo correio do Estrangeiro , em letras muito grandes . -- Isso lГЎ Г© verdade ; e quanto tempo pode levar isso tudo ? -- O tempo que leva uma carta ao estrangeiro . Olhe , sr.ВЄ||_Maria_Gertrudes Maria|_Maria_Gertrudes Gertrudes|_Maria_Gertrudes , se vossemecГЄ quer , nГЈo diga nada ao criado , que eu " mesmo " me encarrego de a escrever . Por agora o que devemos fazer Г© ir a casa do sr. regedor . JГЎ com este sГЈo cinco dias que estamos aturando aquella doida , e bem vГЄ que isto nГЈo pГіde durar por muito tempo . -- LГЎ n ' isso tem muita razГЈo . -- Ora ainda bem ; entГЈo mГЈos ГЎ obra . Maria Gertrudes resolveu-se a ir falar ao regedor . N ' essa mesma tarde , a infeliz senhora , que cinco dias antes se considerava rica e cheia de ventura , entrava na enfermaria das alienadas como uma simples pedinte sem protecГ§ГЈo e sem abrigo . Quando dois mezes depois , informado pelos visinhos , soube o regedor o que se estava passando em casa de D. Marianna de MendonГ§a e como os seus creados de dia para dia iam roubando os haveres , entendeu-se com o juiz eleito , e entrando em casa , viram com effeito que nГЈo eram mal fundadas as suspeitas da visinhanГ§a . A carta remettida para o estrangeiro ainda nГЈo tinha chegado ГЎs mГЈos de Manuel de MendonГ§a , e a desgraГ§ada continuava no hospital sem que nenhum dos creados fosse indagar o seu estado . No dia seguinte , o juiz mandou tomar posse de tudo quanto existia , e depois de competentemente inventariado , collocou no meio da rua aquelles dedicados servos que tГЈo tranquillamente habitavam a casa de sua ama sem ao menos saberem se ainda existia ou nГЈo . Pelo espaГ§o de sete annos , esteve D. Marianna nas enfermarias de S. JosГ© . Finalmente , recobrou a razГЈo e deram-lhe alta . Antes da saida pediu para falar com o director . Depois de lhe confiar todos os pormenores da sua vida , perguntou-lhe se durante a sua enfermidade alguem tinha vindo informar-se da sua saude . Sympathizando com as maneiras da viuva e condoido pela sua desgraГ§a , o director levou-a para casa da sua familia . Finalmente , graГ§as ГЎs relaГ§Гµes do seu protector , D. Marianna tomou posse do que lhe restava . Entre louГ§a , moveis e roupas brancas apurou dois contos e duzentos mil rГ©is . Alugou uma casa proxima ГЎ dos seus protectores , entregou-lhes o resto para lh'o empregarem no que melhor lhes parecesse , atГ© que o destino , canГ§ado de a torturar , lhe proporcionasse a maior de todas as felicidades : devolver-lhe o filho querido da sua alma ! Debalde se passaram annos e annos , e o destino sem se compadecer da sua desventura . Os dezeseis vintens que pouco mais ou menos lhe rendiam as inscripГ§Гµes , juntos aos ganhos que os seus bordados lhe produziam , eram mais do que sufficiente para o seu alimento . Infeliz de todo nГЈo se considerava D. Marianna , e ingrata seria para com Deus se da sua sorte se queixasse . Era jГЎ muito o amparo que lhe concedia a Providencia representada nas pessoas do director e de sua mulher ; porГ©m a desgraГ§a que parecia ter-se aninhado no seu coraГ§ГЈo , nГЈo podia permittir-lhe que descesse ГЎ sepultura sem que primeiro a bafejasse uma vez ainda com o seu halito envenenador . Levou-lhe em menos d' um anno as duas unicas pessoas que tinha sobre a terra : o director e sua esposa ! Aterrada com esse golpe , julgou de novo enlouquecer ! Querendo mudar-se do bairro , que lhe recordava os seus protectores , ГЎ sombra de cuja amizade tanto tempo se abrigГЎra , lembrou-se de ir viver para a Lapa . Uma tarde saiu , e dirigindo-se para aquelles sitios encontrou na rua do Meio a casa que lhe convinha . Dois dias depois , alugou e mudou para alli a sua pequena mobilia . Foi onde oito annos depois a encontramos atacada pela febre amarella . A pobre senhora , na doce esperanГ§a de ainda tornar a vГЄr seu filho , economizava , quanto cabia em suas forГ§as , os poucos haveres que lhe restavam . " Este dinheiro , dizia ella Г s vezes comsigo olhando para as inscripГ§Гµes , nГЈo me pertence , Г© de meu filho ; cumpre-me fazer tudo quanto possivel me fГґr para lh'o augmentar . " Explicado estГЎ portanto o seu modo de viver . A physionomia doce e melancholica de Martha impressionГЎra de mais o desconhecido para que a sua promessa deixasse de ser cumprida . Quando ao apear-se no Largo das Duas Egrejas se demorou alguns segundos para pagar ao bolieiro , olhou instinctivamente para um grupo composto de quatro individuos que estavam discutindo . -- Se fosse algum de nГіs que tivesse atropellado o homem , provavelmente estava preso , dizia um d' elles . -- Mas como foi o sr.||_TristГЈo_d'Almeida TristГЈo|_TristГЈo_d'Almeida d'Almeida|_TristГЈo_d'Almeida ... acudiu outro . -- E o visconde de Coruche , accrescentou terceiro . -- Mas elle morreu ou nГЈo morreu ? -- Dizem que estГЎ melhor . -- Veremos como se porta o brazileiro . -- AtГ© agora , nГЈo ha razГЈo de queixa , segundo me disseram . LГЎ ficou n ' um bello quarto do hotel , tendo por enfermeiras a mulher do magnata , e as duas filhas . -- Tenho pena de nГЈo ter sido eu o atropellado , sГі para ter taes enfermeiras . -- VocГЄs vГЈo d' aqui para o Marrare de Polimento , ou ficam ainda a descobrir a mysteriosa individualidade do menino de ouro , como se diz na minha terra ? -- Vamos para o Marrare , responderam os outros tres , dirigindo-se pela rua do Chiado . Reflectindo em que o atropellado podia muito bem ser o pae de Martha , o mysterioso protector da infeliz crianГ§a seguiu os quatro individuos atГ© ГЎ sua entrada no Marrare de Polimento . Entrou tambem . O que primeiro falГЎra do acontecimento ficou ГЎ porta assobiando alegremente ; os outros dirigiram-se para os bilhares . -- Deve estranhar uma pergunta que lhe vou fazer , disse o desconhecido interrompendo o assobio do " dilettante " . Ha tres horas que procuro um individuo que desappareceu de sua casa . Quando me apeei de um trem no Largo das Duas Egrejas , percebi que falavam ГЎcerca de uma pessoa que tinha sido atropellada , e confesso-lhe que commetti a indiscriГ§ГЈo de os escutar . PГіde ser que seja esse o mesmo individuo que procuro . -- Talvez , respondeu amavelmente a pessoa a quem estas palavras foram dirigidas . O que sinto Г© nГЈo lhe poder dizer o seu nome . Sei apenas que estГЎ no Hotel de BraganГ§a . Retribuindo n ' um aperto de mГЈo a amabilidade com que fГґra recebido , o protector de Martha correu immediatamente para o sitio que lhe haviam indicado . Ao chegar perguntou ao guarda portГЈo se ainda alli estava um sugeito que de manhГЈ fГґra pizado por um brazileiro . -- E nГЈo sГі por um brazileiro como tambem por um visconde , respondeu o guarda portГЈo , como se n ' estas palavras quizesse tornar mais illustre o atropellamento , ou diminuir a culpabilidade dos animaes dividindo-a por todos quatro . -- Г‰ possivel falar lhe ? -- Г‰ possivel vel- o ; emquanto a falar-lhe isso fia mais fino , respondeu o guarda portГЈo . Ainda nГЈo tornou a si . -- Pois obsequiava-me muito se me podesse conduzir ao seu quarto . Minutos depois entrava no quarto do ferido . Jeronymo ainda se encontrava no mesmo estado lethargico . A dГґr das feridas havia-lhe diminuГdo progressivamente , comtudo a perda de sangue tinha sido abundante , e ao pobre operario nem forГ§as restavam para pedir que chamassem a sua familia , de quem n ' esse instante tГЈo amargamente se recordava . A imagem de Balbina e de sua filha passava-lhe por entre as visГµes da febre , como se as visse alli , pregadas ГЎ sua cabeceira . Sentia na fronte a mГЈo fina e delicada de Martha , e pousando lhe sobre o coraГ§ГЈo , que fortemente lhe palpitava , a face de sua mulher incendida pelo terror . Jeronymo via tudo isto como atravez de um sonho . Junto ao leito o desconhecido olhava-o caridosamente , levando-lhe de vez em quando a mГЈo ГЎ fronte . Momentos depois os olhos do operario , atГ© alli brandamente cerrados , abriram-se como que para contemplar o desconhecido , que fitando-o parecia descobrir-lhe nas feiГ§Гµes alguma similhanГ§a com as da pobre Martha . N ' este comenos o enfermo fez um movimento como se tentasse falar . Manuel , o creado que lhe servia de enfermeiro , approximando-se suavemente , perguntou-lhe se desejava alguma cousa . -- Falar ... mas ... nГЈo posso , murmurou o infeliz Jeronymo , deixando cair sobre o colchГЈo o braГ§o direito que tentГЎra levantar . O desconhecido approximou-se ainda mais . -- E ainda nГЈo houve meio de se saber quem Г© este homem ? -- Ouviu aquellas palavras que elle disse ? Foram as primeiras ! respondeu o creado . -- Como se chama vossemecГЄ , perguntou o desconhecido debruГ§ando-se sobre o leito . -- Jeronymo , balbuciou o pobre ; e a minha familia mora na rua do Meio , ГЎ Lapa . -- Basta ! bradou rapidamente o desconhecido , e saindo do quarto sem que o criado tivesse tido tempo de lhe perguntar aonde se dirigia , encaminhou-se para o Loreto , afim de procurar uma sege . Martha havГa- lhe dado o nome da rua e o numero da porta . Dizendo ambas as cousas ao bolieiro , ordenou-lhe que trouxesse Martha e sua mГЈe ao Hotel de BraganГ§a o mais depressa que lhe fosse possivel . Foi n ' este momento que Manuel desceu ГЎ casa do jantar para dizer a TristГЈo de Almeida que o ferido estava no uso das suas faculdades . Deixemos o mysterioso descobridor do pae de Martha esperando ГЎ porta do hotel a mulher e a filha de Jeronymo , e vejamos o que se estГЎ passando no quarto do ferido . -- Ora graГ§as a Deus que estГЎ livre de perigo , exclamou TristГЈo de Almeida approximando-se do leito de Jeronymo . NГЈo calcula o quanto me tem feito soffrer a sua prostraГ§ГЈo . Quero que nos perdГґe todo o mal que involuntariamente lhe causamos , eu e o meu amigo visconde . -- Mas agora , felizmente , sente-se melhor ! perguntou o visconde approximando-se de TristГЈo . -- Nem mesmo sei como me sinto , meus caros senhores , respondeu Jeronymo , como se ainda estivesse sendo victima de uma allucinaГ§ГЈo . De quanto se passou , continuou elle , com uma voz muito enfraquecida , lembro-me apenas que fui atropellado por um trem , e de nada mais me recordo . Sei que tenho tido umas dГґres horrГveis tanto na cabeГ§a como em todo este lado direito , e nada mais posso responder a vossa senhoria . O que apenas me mortifica Г© lembrar-me os cuidados em que deve estar minha pobre mulher e filha , o resto serГЎ o que Deus quizer . Tratamento , graГ§as aos senhores , vejo que me nГЈo tem faltado . O que eu tambem agora desejava pedir-lhe eram dois favores ; o primeiro , que me dissessem onde estou , e o segundo , que mandassem immediatamente a minha casa participar a Martha e a minha mulher que estou aqui , vivo e bem tractado . As infelizes a esta hora cuidam que fui atacado pela febre amarella , e andam ГЎ minha procura por toda a parte . -- Emquanto ao sitio aonde se encontra , respondeu TristГЈo , bastarГЎ dizer-lhe que estГЎ entre amigos , e que nada lhe faltarГЎ ; emquanto a mandar chamar sua familia , queira dizer-me aonde mora . -- Moramos na rua do Meio n.Вє 7, Lapa , respondeu Jeronymo , fazendo ao mesmo tempo uma dolorosa contracГ§ГЈo . -- Que Г© isso , meu amigo ? acudiu rapidamente o commendador dirigindo-se ao mestre de obras . -- Г‰ uma dГґr muito grande que me toma a cabeГ§a toda , respondeu elle , levando ГЎ fronte ambas as mГЈos . -- Veja se pГіde socegar um momento , e tranquillize se porque vamos immediatamente chamar a sua familia . -- Para que venham mais depressa vou mandar o meu trem , disse o visconde dirigindo-se para a porta . -- Bom serГЎ , visconde , ajuntou o commendador , quanto mais depressa descanГ§armos aquella pobre gente tanto melhor para todos . -- Se vossas senhorias fossem tГЈo bons que tal fizessem , seria uma grande obra de caridade , disse Jeronymo , tentando sentar-se sobre o leito . -- NГЈo faГ§a similhante loucura . Conserve-se como estГЎ , e tenha a certeza que d' aqui a meia hora terГЎ a seu lado as pessoas que tanto deseja . N ' este momento entrou a sr.ВЄ||_D._Maria_Egypciaca D.|_D._Maria_Egypciaca Maria|_D._Maria_Egypciaca Egypciaca|_D._Maria_Egypciaca , acompanhada por suas duas filhas . -- JГЎ sabemos , graГ§as a Deus , quem Г© o nosso doente , e onde mora , disse a D. Maria Egypciaca o visconde , que n ' esse momento saГa do quarto , com o fim de dar ordem ao cocheiro para trazer a familia do ferido . -- Quanto estimo , meu Deus ! respondeu D. Maria , erguendo para o tecto os seus grandes olhos azues . -- Em que sustos estarГЎ a sua pobre familia ! disse Magdalena olhando para Olympia . -- Talvez que nem hoje tivessem que jantar . -- Enfim ! disse D. Maria Egypciaca depois de ter contemplado o ferido por alguns instantes , Deus tudo quanto faz Г© para melhor . Г‰ certo que teve esta pequena contrariedade , mas graГ§as ao Senhor , estГЎ livre de perigo , e vae fazer a felicidade de sua familia . NГЈo Г© verdade , TristГЈo ? ajuntou ella dirigindo-se ao esposo . -- Quantos desejariam ter egual sorte ! disse o commendador intromettendo-se na conversaГ§ГЈo .