BIBLIOTHECA PORTUGUEZA ILLUSTRADA  X  D. Thomaz -- MELLO  O Conde||_DE_S._Luiz DE|_DE_S._Luiz S.|_DE_S._Luiz Luiz|_DE_S._Luiz  ROMANCE ORIGINAL  SEGUNDA EDIÇÂO  LISBOA  EMPREZA DE+A HISTORIA DE PORTUGAL  Sociedade editora  LIVRARIA MODERNA | TYPOGRAPHIA  R. Augusta, 95 | 45 , R. Ivens, 47  1903  Era no anno de 18 N ' um palacete proximo á Calçada de Santo André , vivia , em companhia de seu filho e de duas creadas , D. Marianna de Mendonça , filha bastarda de Manuel Pires de Athayde , que fôra em tempos de pouco saudosa memoria alcaide-mór da cidade de * *  Poucos mezes antes de morrer , Manuel Pires de Athayde , entregára a sua filha dezeseis mil cruzados em dinheiro , afóra joias e outros objectos de valor , pedindo-lhe ao mesmo tempo que acceitasse por esposo a Alvaro de Mendonça seu primo co-irmão , moço serio e de bom porte , e , além d' isso , possuidor de riquezas quasi eguaes ás que o alcaide-mór lhe legava .  Recusando , a principio , o noivo que o pae lhe indicava , D. Marianna , por ultimo , não teve mais remedio senão acceder aos seus desejos .  Tres mezes depois , com grande alegria de todos os parentes , recebeu se com Alvaro de Mendonça na freguezia dos Anjos .  O pobre velho parecia apenas aguardar a realização d' este ultimo desejo para volver a alma ao Creador , entre as lagrimas da filha e dos amigos que o estremeciam .  Ao cabo de oito dias de casada , D. Marianna ficava sem pae .  Manuel Pires de Athayde não se havia enganado na escolha ;  Alvaro de Mendonça era o exemplo dos maridos .  A sua proverbial honestidade tornava-o estimado em todos os logares onde apparecia , acompanhado quasi sempre pela esposa , digna e respeitada como elle .  Ao fim d' um anno , a Providencia , prodiga em lhes proporcionar todas as venturas , concedeu-lhes a maior que póde dar aos que deveras se amam sobre a terra , e que medem o mundo todo , pelo curto espaço do seu domicilio :  um filho .  Manuel -- tal foi o nome do recemnascido -- de dia para dia se tornava mais robusto .  Era um gosto vel os á tarde por sobre os canteiros do seu pequeno jardim , correndo com o Manuelito , e disputando entre si , qual dos dois alegraria mais a creancinha .  Marianna , por esse tempo , teria uns dezoito a vinte annos , Alvaro trinta e quatro .  Amor , saude , mocidade , riquezas e um filho !  Que lhes faltava para serem felizes ?  Pelo espaço de doze annos , trabalhando mais do que as forças lh'o permittiam , afim de melhorar o futuro da creança , correu a vida de Alvaro de Mendonça , sem que uma só vez podesse D. Marianna deixar de levantar as mãos aos céus , para agradecer á Providencia o esposo que lhe havia concedido .  Uma circumstancia apenas lhes toldava de vez em quando o iris da sua felicidade ;  eram os continuos receios que um velho primo lhes infundia , sobre a precoce intelligencia do estremecido fructo dos seus amores patriarchaes .  " Não puchem pelo rapazola se o não querem ver no cemiterio , dizia-lhes elle muitas vezes .  Um talento como este deve ser muito poupado .  Se meu pae não me tem acudido a tempo , retirando-me do collegio , talvez lhes não estivesse agora dando este conselho .  Eu fui o mesmo que o Manuelito ;  aprendi a grammatica portugueza de " fio a pavio " em menos de um mez .  Não percebia bem o que dizia , é verdade , mas sabia tudo de cór , que era até um gosto ouvirem-me .  Sabem o que fez meu pae ?  Annuiu aos desejos do mestre , que era um doidinho por mim , e retirou-me do collegio para que não estudasse mais .  É certo que estou hoje sem saber coisa alguma , porquanto a grammatica esquece muito , mas pelo menos tenho vida e saude , que é o principal . "  A despeito d' estas e de outras judiciosas reflexões , Manuel continuou a frequentar a aula , onde era querido por todos os professores e condiscipulos .  Estes , longe de lhes causar inveja o seu inquestionavel merecimento , todos á uma se ufanavam em lh'o proclamar .  Aos quinze annos já tinha feito os exames de philosophia e latinidade .  Quando mais venturosa sorria a existencia de Alvaro de Mendonça , coroada pelos louros de seu filho , a Providencia , como se já estivesse fatigada de lhe sorrir , fez com que o anjo da morte , descendo lentamente sobre o seu leito , lhe cerrasse para sempre os olhos .  D. Marianna de Mendonça , ainda que dotada de intelligencia clara e reflexiva , faltava-lhe comtudo aquella experiencia do mundo impossivel de conseguir a qualquer senhora que , como ella , tivesse vivido apenas entregue aos cuidados de sua casa .  Abatida pelo golpe que acabava de soffrer , muito fazia a infeliz viuva em administrar a sua casa de portas a dentro , e bem assim seguir a educação de Manuel , que de mez a mez fazia mais rapidos progressos , continuando a disfructar uma irreprehensivel saude , apezar de todos os prognosticos de seu primo , o ex-grammatico , que se não cançava de lembrar á viuva o absurdo da sua insistencia em que o pequeno continuasse no collegio .  Entre as pessoas que ordinariamente frequentavam a casa da viuva , distinguia-se o commendador Felix Justino de Araujo , homem probo e honesto para todos que tinham a honra de lhe merecer a sua confiança , o que elle prodigamente espalhava afim de conquistar as geraes sympathias .  Corriam varias edições ácerca da sua mysteriosa individualidade , chegando algumas pessoas a levar o seu arrojo a ponto de dizerem que o commendador não passava de um refinado velhaco , e que , mais dia menos dia , as suas gentilezas teriam de ser desmascaradas em praça publica ;  isto tudo , já se vê , proferido em voz baixa , depois de com elle terem gasto os joelhos das calças , nas respeitosas zumbaias que diariamente lhe dispensavam .  É que já n ' essa epocha , a raça de commendadores que hoje invade a capital começava a manifestar-se com toda a força do seu prejudicial desenvolvimento .  Era muito de ver se como toda aquella gente o tractava no tocante a futeis banalidades .  Riam-se uns dos outros , e todos em sua presença disputavam entre si , qual deveria ser o seu primeiro thuribulario .  Uns diziam que era viuvo , outros que era casado com uma mulher de baixa esphera , de quem tinha duas filhas , porém que se não atrevia a apresental- a na sociedade , em virtude das suas maneiras pouco distinctas .  A sua riqueza ninguem ao certo a poderia saber ;  porém o faustuoso luxo com que se tractava levava a suppôr que enormes rendimentos havia herdado da sua nobre ascendencia , cujos brazões nobiliarios fariam estremecer de inveja qualquer puritano .  Uma noite em que D. Marianna de Mendonça se queixava amargamente de um certo procurador , lembrou-lhe uma das suas amigas que talvez lhe fosse conveniente entregar a administração da casa ao commendador , se elle porventura a isso estivesse resolvido , e que ella mesma lhe falaria a tal respeito .  A viuva acceitou de bom grado o que a sua intima lhe propozera , e falando esta com o commendador , ao cabo de oito dias Felix Justino de Araujo tinha geral procuração para arrendar , subrogar , ou alienar qualquer propriedade , se por ventura assim o julgasse conveniente para o futuro do seu Manuel que , segundo o dizer do administrador , era tanto para elle como se fosse seu proprio filho .  Não tardou muito tempo que o magnate fizesse uso de uma das condições da procuração .  Uma fazenda que Alvaro de Mendonça herdára por morte de uma tia , tres ou quatro annos depois de estar casado com a filha de Manuel Pires de Athayde , foi-lhe vendida em hasta publica .  A venda fôra de um excellente resultado para a viuva , segundo o commendador affirmava , porquanto o seu principal rendimento eram arvores de fructa , e essas mais anno menos anno cairiam todas ao pezo d' uma epidemia que , segundo as suas observações agronomicas , teria de grassar d' alli a tempo , assaltando todas as fazendas sem exceptuar uma unica .  Em face d' esta cruel prophecia , quem se negaria a separar-se de qualquer terreno , por mais dolosa que fosse a venda ?  O commendador empregou esse dinheiro n ' uma industria cujo dividendo deveria exceder dez por cento .  Quasi todos deram os parabens á viuva pelo bom negocio que vinha de fazer , attendendo não só á grande differença do rendimento , como tambem a ter-se livrado d' esse terrivel cataclysmo , a que estava exposta conservando uma só arvore .  Assim decorreram dezoito mezes sem que D. Marianna tivesse a mais pequena razão de se arrepender da plena confiança que tinha depositado no seu administrador .  Por este tempo , Manuel , que havia saído do collegio , chegou se a sua mãe , dizendo-lhe que desejava partir para o Rio de Janeiro , afim de se dedicar á vida commercial , para que se sentia com decidida vocação .  Recordando lhe ao principio a loucura do seu projecto , a pobre mãe ponderou-lhe a pouca necessidade de buscar em terra estranha o que já possuia na sua patria :  a riqueza .  Por essa epocha , os bens da casa montavam a uns trinta contos de réis , graças á herança que Alvaro de Mendonça havia recebido por morte de sua tia , e ás economias que a viuva fizera durante aquelle tempo .  -- Com o dinheiro que possuimos , dizia-lhe sua mãe , poderás dedicar-te ao commercio , mas aqui em Lisboa .  É verdade que não tens um unico parente que te proteja , mas , graças a Deus , temos meios .  Partires , e deixares-me , filho , acho que será uma grande loucura , ajuntou ella , arrazando-se-lhe os olhos de lagrimas .  Em todo o caso , farás o que te aprouver .  Não quero que um dia me lances em rosto que o muito amor que te consagro foi a causa de cortar a tua carreira .  N ' essa noite , quando appareceu o commendador , D. Marianna manifestou-lhe os desejos de Manuel .  -- Que vá , respondeu elle rapidamente .  Seu filho é activo , audaz , intelligente e emprehendedor .  Póde um dia , se Deus o ajudar , vir a ser um grande homem .  Não tenho filhos , acrescentou , porém se um dia os tiver , nunca os hei de contrariar nas suas resoluções , se ellas forem justas como as de Manuel .  -- Mas que precisão tem elle de expôr a sua saude n ' um clima tão perigoso ?  Trinta contos ou perto d' elles que possuimos não será o sufficiente para se viver em qualquer parte do mundo ?  -- Porém se seu filho é ambicioso , e capricha em adquirir um capital pelo seu trabalho , é justo que sua mãe lhe impeça a sua determinação ?  Faça o que quizer , mas tome o meu conselho , deixe-o partir .  Deus ha de guial- o , porque Manuel é bom , honesto , moral e , sobre todas estas coisas , muito trabalhador .  -- E que dinheiro se lhe deve entregar , sr.||_Felix Felix|_Felix ?  dez contos , quinze , vinte ... que lhe parece ?  -- Vossa excellencia está louca !  acudiu apressadamente o commendador .  Entregar contos de réis a um rapaz da edade de seu filho !  Lançar Manuel n ' um paiz como o Rio de Janeiro , proporcionando-lhe os meios de se perder !  Nem por sombras !  Quaes contos de réis !  Com seis moedas desembarquei eu em S.||_Paulo Paulo|_Paulo , e ao cabo de doze annos possuia uma fortuna para cima de dez mil libras !  Contos -- réis !  Só essa me faria rir !  A passagem paga , meia duzia de moedas , e as cartas de recommendação que para ahi lhe entregarei , são mais do que o sufficiente .  -- Mas não me disse v. ex.ª que meu filho era um rapaz de juizo , honesto e moral ?  Que receio teremos em lhe entregar o que realmente lhe pertence ?  Não é elle o meu unico herdeiro ?  -- Fará vossa excellencia o que entender , e se lhe quer entregar tudo quanto possue , faça-o ;  está no seu direito , e lavo d' ahi as minhas mãos .  Se quer que lhe preste as minhas contas , estou muito prompto a fazel- o .  Sabe que o unico interesse que tenho em tudo isto é apenas o seu bem estar , e o futuro de Manuel .  Se quer estragar tudo quanto tenho feito em seu proveito , é senhora das suas acções , póde fazel- o , que desde este momento me considero desligado de todos os meus encargos .  Esta linguagem , rude mas na apparencia sincera , produziu no animo debil de D. Marianna o resultado que o commendador desejava .  Affeita a obedecer-lhe em tudo , havia-se deixado dominar completamente por aquelle homem que , segundo a opinião de todas as pessoas que frequentavam a sua casa , havia sido um anjo salvador .  Dois annos depois da sua administração , os vinte contos de réis , que rendiam á viuva cem mil réis por mez , haviam subido a um rendimento de um conto e seiscentos por anno , graças á applicação que elle dera a esses capitaes .  Quanto ao producto da propriedade , era um segredo , que mais dia menos dia seria revelado como surpreza agradavel .  Que razão teria ella para o arguir de mau administrador ?  Estas e outras circumstancias faziam com que D. Marianna obedecesse cegamente a quanto elle lhe impunha .  No dia immediato , Manuel chegou-se a sua mãe , afim de saber o que se havia passado entre ella e o commendador .  -- Sinto deveras que me queiras abandonar , porém se essa é a tua vontade , vae , e que as minhas orações , acompanhando-te sempre , te possam salvar de todos os perigos .  Quanto a dinheiro ajuntou ella , esperançada em que o commendador se resolvesse a entregar-lhe maior quantia , dir me-has quanto necessitas .  -- Nunca pedi contas nem a minha mãe nem ao sr. commendador , mas supponho que não farão grande differença nos capitaes que devemos possuir quatro ou cinco contos de réis para me estabelecer , mas ainda assim , se minha mãe suppõe que essa quantia é muito avultada , contentar me-hei com menos , ou por ultimo , com aquillo que julgarem conveniente .  É tudo quanto tenho a dizer-lhe , accrescentou elle , pregando os olhos no olhar turvo e entristecido de D. Marianna .  No dia seguinte a viuva foi ao escriptorio do commendador e contou lhe o que passára com Manuel .  Felix de Araujo , depois de a ter escutado , insistiu serenamente em que seria uma grande loucura entregar a seu filho uma quantia superior a essa de que tinham falado na vespera , repetindo porém , que estava no seu direito de fazer o que lhe aprouvesse .  Todos os espiritos , por mais debeis que sejam , teem um momento na vida , em que uma circumstancia , ou um milagre providencial lhes dardeja um raio de valor .  A maneira , o gesto , o olhar , com que a viuva fitou o commendador , foram sufficientes para que elle comprehendesse que todos os esforços seriam inuteis .  D. Marianna estava resolvida a entregar a seu filho a quantia que elle lhe havia , senão pedido , pelo menos indicado .  Não havia remedio !  Era forçoso entregar esse dinheiro no momento em que lhe fosse exigido , para que se não realisassem certos boatos que lhe tinham chegado aos ouvidos , de que mais dia , menos dia , as suas gentilezas seriam desmascaradas !  -- Seja o que vossa excellencia quizer , disse elle , depois de alguns instantes de reflexão .  Que quantia quer ?  -- Quatro a cinco contos de réis .  Como tudo o que possuo é em dinheiro , não haverá duvida em os receber por estes oito dias .  -- Oito dias !  replicou o commendador , simulando grande tranquillidade de animo , hoje mesmo se vossa excellencia quizer ;  não tenho mais trabalho do que tiral- o d' aquelle cofre , ajuntou elle , apontando para um grande armario de ferro .  -- Posso portanto ficar tranquilla ?  -- Póde , mas lembre-se , minha senhora , que vae fazer a desgraça de seu filho .  Conheço o Rio de Janeiro , e sei o que póde succeder a um rapaz da edade de Manuel , achando-se possuidor de similhante quantia .  -- Será o que Deus quizer , respondeu a viuva despedindo se .  Quem , momentos depois , commettesse a indiscrição de o espreitar , no pequeno gabinete do escriptorio , conheceria immediatamente pela sua perturbação , que os trinta contos de réis em que consistia a fortuna d' aquella familia não estavam tão seguros quanto ella os julgava .  Oito dias depois , quando tudo estava preparado para a viagem de Manuel , sua mãe dirigiu-se a casa do commendador , afim de receber os cinco contos de réis , e encontrou-o sereno e bem disposto , mas insistindo ainda em que tão grande quantia seria prejudicial a um moço inexperiente como seu filho .  -- Já disse ao sr. commendador o que tinha a dizer-lhe , respondeu D. Marianna , sentando-se tranquilamente a seu lado .  -- Visto não haver meio algum de a convencer , queira vossa excellencia ter a bondade de me passar um recibo d' esse dinheiro .  Levantando-se serena e fleugmaticamente , o commendador dirigiu se ao armario de ferro , tirou de dentro d' elle um pequeno cofre e collocou-o sobre a secretaria de que D. Marianna se tinha approximado para passar o recibo .  O commendador , depois de contar os maços de notas de dez moedas , poz junto de D. Marianna os que prefaziam a quantia exigida .  N ' este momento a viuva acabava de assignar o recibo .  -- Se não fosse a profunda sympathia que vossa excellencia sempre tem sabido inspirar-me , creia que de hoje em deante , deixaria de lhe administrar os seus bens , e lhe-hia que mandasse buscar vinte e sete contos de réis que alli tenho n ' aquelle cofre ;  digo que os mandasse buscar , porque grande parte d' esse dinheiro está em ouro e em prata , com que vossa excellencia não poderia .  Não o faço , porque além de todas as outras circumstancias , affeiçoei-me ao Manuel , mais do que se elle fosse meu proprio filho , como já uma vez lh'o disse .  Se algumas desconfianças começassem a agitar o espirito da viuva , todas se desvaneceriam em presença d' esta scena .  Havia uma dupla intenção nas palavras do commendador :  a primeira inspirar á viuva profunda confiança no deposito dos seus capitaes ;  a segunda , evitar ainda a entrega dos cinco contos de réis .  A primeira saiu-lhe bem , a segunda não foi tão favoravel .  -- Então quando é a saida da galera ?  perguntou elle a D. Marianna .  -- Ámanhã , ás duas horas da tarde .  -- Não me comprometto a ir ao bota- fóra ;  me-penoso acompanhal- o ao começo da estrada da sua infelicidade .  -- Será o que Deus quizer , respondeu tristemente a pobre mãe , pegando nos maços de notas e mettendo-os dentro do seu sacco de veludo .  Cinco minutos depois , acompanhada pelo commendador , entrava D. Marianna para uma sege , e seguia caminho de casa .  No dia seguinte , ás duas horas da tarde , desprendendo se dos braços de sua mãe , entrava Manuel de Mendonça na galera " Boa Ventura " , e ao cair da tarde perdia de vista o que ha de mais caro na vida :  mãe e patria .  " Acautele-se do commendador " foram as ultimas palavras que Manuel dissera a sua mãe .  Ao cabo de tres mezes , a viuva recebeu uma carta de seu filho , em que lhe participava que tinha chegado depois de uma feliz viagem , e que esperava em pouco tempo estabelecer-se vantajosamente com uma casa commercial .  Assim passaram mais oito mezes .  As mezadas que D. Marianna recebia de Felix de Araujo continuavam a ser-lhe entregues com a mesma religiosa pontualidade , o que fazia com que todas as pessoas que chegaram a duvidar da honestidade do commendador começassem a proclamal- o homem de evidente credito .  Durou isto perto de um anno .  As cartas que Manuel escrevia a sua mãe eram cada vez mais consoladoras .  N ' algumas , mandava-lhe dizer que os seus maiores desejos seriam tel- a a seu lado .  Um dia , finalmente , escreveu lhe seu filho , mandando-lhe pedir encarecidamente que retirasse quanto antes os capitaes que tinha na mão do commendador , porque lhe tinham dado as peiores informações a seu respeito , sendo a primeira não se chamar Felix Justino de Araujo , mas simplesmente Domingos de Andrade .  Afflicta com esta carta , a infeliz senhora procurou um advogado , que fôra muito amigo de seu defunto marido , e communicou-lhe os seus receios .  N ' esse mesmo dia , o doutor acompanhou-a a casa do commendador .  Este , ao vel- a , comprehendeu immediatamente do que se tractava .  -- Tencionando retirar-me para o Rio de Janeiro , venho prevenir vossa excellencia de que desejo levantar da sua mão os capitaes que honestamente me tem administrado .  Se não fosse o desejo de ir ver meu filho , continuaria a aproveitar me da zelosa e desinteressada administração do sr. commendador .  -- E sabe vossa excellencia se n ' este momento lhe poderei entregar esse dinheiro ?  Não m ' o confiou para negociar , afim de que tivesse maiores lucros do que estando na sua mão ?  Na vespera de seu filho partir para o Brazil , quando dei a vossa excellencia os cinco contos de réis , que me exigiu , não me promptifiquei a entregar lhe quanto aqui tivesse ?  Vossa excellencia não comprehende a possibilidade de que esse dinheiro esteja empregado em qualquer negocio , e de que n ' esse caso me seja difficil devolver-lh ' o de um momento para o outro ?  Felizmente não succede assim , pelo que dou graças a Deus !  Quanto o estimo !  Vossa excellencia , por qualquer circumstancia , deseja retirar das minhas mãos os seus capitaes , e não tem o sufficiente valor de m ' o dizer de cara a cara !  Pois , minha senhora , continuou elle , simulando um gesto de profundo resentimento , e levantando um pouco a voz , eu , que tenho a coragem das minhas acções , escudado pelo meu nome e pela minha honestidade , declaro aqui , alto e bom som , que sou eu que exijo , que vossa excellencia retire d' aqui os seus fundos , e quanto antes .  Havia tanta dignidade nas palavras do commendador , a sua voz era tão firme , tão altivo e tão seguro o seu olhar , que D. Marianna chegou a convencer-se de que era uma ingratidão o que vinha de fazer .  -- Ha perto de quatro annos , continuou o commendador dirigindo se ao advogado , que eu administro os bens d' esta senhora .  O seu rendimento , que não chegava a um conto e duzentos por anno , subiu a um conto e seiscentos .  Uma propriedade que lhe valia o muito quatro contos de réis , vendi-lh ' a e appliquei o producto d' ella n ' um negocio , que rende para cima de doze por cento .  Que necessidade tenho eu d' isto tudo ?  Tenho empregado trabalho e tempo ;  e preciso eu por ventura de capitaes alheios para fazer as minhas transacções ?  Escusado será dizer que não .  Para que o fiz ?  Para o seu bem !  Boa paga , não haja duvida .  Que esta lição me sirva !  Pois , minha senhora , ajuntou elle , voltando-se para D. Marianna , rogo a vossa excellencia que ámanhã , sem falta , até ás onze horas da manhã , encarregue alguem de me tomar contas , e queira vossa excellencia vir tambem , afim de me passar recibo do dinheiro que tenho na minha mão .  Hoje mesmo , se lhe fosse possivel , apezar de ser tarde , muito prazer me daria .  -- Ámanhã aqui estarei , visto assim o exigir , respondeu D. Marianna , olhando ao mesmo tempo para o advogado , como que esperando a sua opinião .  -- Sendo onze horas aqui viremos , disse o jurisconsulto , despedindo se do commendador .  -- Que lhe pareceu ?  perguntou a viuva ao chegarem á porta da rua .  -- Um homem honesto , ferido pela ingratidão que acaba de receber , respondeu fleugmaticamente o doutor .  Em todo o caso , accrescentou elle , faça vossa excellencia o que quizer ;  sendo dez horas estarei em sua casa .  No dia immediato , conforme haviam combinado , apresentou se o advogado em casa de D. Marianna de Mendonça .  Ás onze horas metteram-se n ' uma traquitana , e dirigiram-se ao escriptorio do commendador .  Contra todos os usos da casa ainda estava fechado .  -- Que lhe parece isto ?  perguntou D. Marianna ao advogado , com mais receio do que na vespera ao perguntar-lhe como lhe havia parecido .  -- Que é um homem ferido pela ingratidão , e que anda a tratar de levantar dinheiro para a embolsar d' essa quantia , respondeu elle ingenuamente .  Momentos depois começaram a apparecer varios individuos .  O physionomista que de perto os observasse , veria em todos elles a mesma sombra de receio que se revelava no rosto pallido e transtornado de D. Marianna de Mendonça .  D ' alli a duas horas ainda Felix de Araujo não tinha apparecido .  -- Que lhe parece isto tudo doutor ?  dizia a viuva ás cinco horas da tarde , olhando para o advogado , que a contemplava com uma physionomia alvar .  Que é um refinado ladrão que nos deixa a todos desgraçados !  accudiu um individuo que ouvira a pergunta feita pela viuva .  O commendador Felix Justino de Araujo havia fechado o escriptorio .  Domingos de Andrade fugira , roubando dinheiro a todos aquelles que , como D. Marianna de Mendonça , o haviam depositado nas suas mãos .  Cinco dias depois D. Marianna , com a razão perdida , entrava para a casa dos doidos no hospital de S. José .  Pelos fins do anno de 1858 , vivia n ' uma pequena casa da Rua do Meio , freguezia de Nossa Senhora da Lapa , Jeronymo de Almeida , honrado mestre de obras , em companhia de sua mulher e de uma filha de dezeseis annos , chamada Martha .  A excentricidade de caracter do operario , fazia com que todos os visinhos o detestassem .  Para elle , não havia domingos nem dias santificados que o obrigassem a distrair-se do seu trabalho .  A sua janella encontrava-se sempre fechada .  O cultivo do microscopico jardim era a unica distracção que n ' esses dias se permittia .  Alli entre sua mulher e sua filha , Jeronymo mondava o pequeno canteiro de hortaliça , que duas horas depois tinha de fazer as delicias da refeição domingueira .  No armario da cozinha , esperava desde a vespera a garrafa do Cartaxo que figurava á sua meza , sobria sempre , porém honradamente disfructada com o suor do rosto .  Emquanto Jeronymo trabalhava no pequeno horto , Balbina , a esposa , assentada na cadeira de costura , largava apenas a agulha para agradecer a Deus o marido que a Providencia lhe havia destinado .  Martha , a preguiçosa Martha como Jeronymo n ' esses dias lhe chamava , escondia os ferros de engommar , para seguir seu pae , sorrindo-se e gracejando a cada passo que elle dava pelo jardim .  Toda a visinhança da rua do Meio se mordia de despeito ao contemplar a beatifica tranquillidade d' aquella pobre mas venturosa familia ;  até uma sobrinha do sr. regedor , que se finava de inveja ao contemplar os olhos verdes de Martha , chegou a dizer ao sr. padre prior que era impossivel que toda aquella gente não tivesse grande peccado na consciencia , attendendo á constante reclusão em que vivia .  O sacerdote , que conhecia o invejoso caracter da menina Gertrudes , passou de leve sobre o caso , e contentou-se apenas em responder-lhe que era tal a confiança que depositava na virtude d' aquella familia , que não teria duvida alguma , embora se sacrificasse a pôr fóra de casa a velha ama , a admittir Martha a viver em sua companhia , entregando-lhe nas mãos as chaves da dispensa , e tudo quanto possuia de mais valor .  Gertrudes desanimou na lucta , contentando se apenas em desacredital- a em voz baixa , quando por ventura alguma das amigas lhe falava a seu respeito .  Defronte da casa de Jeronymo morava uma pobre velhinha , que se tornava um mysterio para toda a visinhança , passando apenas despercebida da familia do operario , pouco affeita a importar-se com as vidas alheias .  A apparencia de sua casa , o seu trajar emfim , tudo revelava summa pobresa , porém nunca a sua mão se estendeu a pedir o obulo da caridade .  A velha costumava sair todas as manhãs a fazer as compras .  Um dia a porta conservou-se fechada , e a tia||_Marianna Marianna|_Marianna , segundo lhe chamavam , não apparecia .  Ou por curiosidade , ou por interesse , não faltou quem lhe batesse ao postigo .  Em resposta ouviram-se apenas uns gemidos .  O regedor chamou dois cabos de policia e mandou immediatamente arrombar a porta .  encontraram-n* ' a exanime sobre o leito .  A infeliz havia adoecido com a febre amarella ;  foi esse um dos primeiros casos que se dera na freguezia da Lapa .  Atterrados , não houve quem quizesse approximar se da enferma .  Não tardou muito que o facto transpirasse por toda a visinhança .  No momento em que o regedor , dois metros affastado da porta , dava as suas ordens para que fossem buscar a maca afim de conduzirem a velha ao hospital da rua do Sol , Martha , a loira Martha , saiu de casa e atravessou a rua , dirigindo-se ao logar do sinistro .  -- Onde vae a menina ?  perguntou o sr.||_Venancio_da_Conceição Venancio|_Venancio_da_Conceição da|_Venancio_da_Conceição Conceição|_Venancio_da_Conceição .  -- Levar esta gotta de caldo á visinha , respondeu Martha ao previdente regedor .  -- Não consinto similhante loucura !  disse elle ;  a velha foi atacada pela febre amarella , e vae immediatamente para o hospital .  -- O que vocemecê não me póde impedir , é que eu pratique uma obra de caridade ;  e demais , veja se está no seu direito de mandar para o hospital uma pessoa que se póde curar em sua casa .  -- Essa mulher não se póde tratar em sua casa , não tem familia .  -- E quem lhe disse ao sr. que não tem quem a trate ?  acudiu Martha , afastando o regedor e dirigindo se para o interior da casa da tia||_Marianna Marianna|_Marianna .  Ora essa !  ajuntou ella , e se eu a quizer tratar , ha de alguem oppôr- se ? !  Creio que não .  Com sua licença , sr. regedor ;  e entrando animosamente , dirigiu-se a uma alcova , onde a desgraçada , extorcendo-se em dolorosas agonias , cravava os olhos n ' um pequeno crucifixo , collocado sobre uma commoda .  Os cabos , regedor , e todos quantos alli se encontravam , olhavam-se mutuamente sem proferir uma só palavra .  -- Assim o quer , assim o tenha , disse a auctoridade , depois de alguns instantes de reflexão .  Se ella fosse minha filha ou coisa que me pertencesse , por certo que não havia de lá entrar .  Eu cá é que não tomo nada , acrescentou elle olhando com receio para dentro da casa .  Instantes depois , saía Martha de casa da velha .  -- Mandem chamar immediatamente um medico , disse ella voltando-se para o regedor .  Póde ser que ainda lhe possamos acudir .  Pelo facto de ser uma pobre mulher , bem vê que não a devemos deixar morrer ao desamparo .  E dizendo estas palavras , tornou a entrar para dentro da casa da tia||_Marianna Marianna|_Marianna .  -- Vá á botica pedir soccorros , disse o regedor , voltando se para o cabo geral , e que venham immediatamente ;  porquanto , esta mulher pelo facto de ser pobre , não devemos deixar morrer ao desamparo , ajuntou elle , secundando as palavras de Martha , e repetindo-as como se fossem suas proprias .  O cabo geral , sem mais hesitar , voltou as costas aos circumstantes , e resmungando subiu a rua do Meio , dirigindo-se aonde a auctoridade o havia mandado .  Não tardou muito que á porta da tia||_Marianna Marianna|_Marianna se ajuntasse um circulo de curiosos .  As visinhas a quem o terror da cruel epidemia havia infiltrado nos animos o mais terrivel desalento , debalde vociferavam contra a estulta caridade de Martha , e a pueril condescendencia do regedor , em annuir aos desejos da filha do mestre de obras .  Revestindo-se emfim de todo o seu poder , o sr.||_Venancio_da_Conceição Venancio|_Venancio_da_Conceição da|_Venancio_da_Conceição Conceição|_Venancio_da_Conceição convenceu o auditorio , repetindo-lhe pela segunda vez , que , pelo facto da tia||_Marianna Marianna|_Marianna ser uma pobre , não a deviam deixar morrer ao desamparo .  N ' este comenos , appareceu o mestre Jeronymo .  -- A sua filha está doida de todo !  diziam uns .  -- Já tres vezes que vamos avisar a sr.ª||_Balbina Balbina|_Balbina para que a retire d' aquella casa e ainda não houve meios , acudiu uma ajuntadeira de calçado , que nem por isso gozava de muitos bons creditos na visinhança .  -- Que loucura !  que loucura !  dizia a capellista .  -- Parece que está a zombar da cholera do Senhor !  acudiu respeitosamente a tia||_Monica Monica|_Monica , beata que vivia de resas por conta das fidalgas -- Buenos Ayres , quando os seus affazeres não lhe permitiam conversar com o Todo Poderoso por conta propria .  -- Se Deus a arrasta ao leito da moribunda , elle mesma a salvará , respondeu fleugmaticamente mestre Jeronymo , lendo-se-lhe , apezar de tudo , um certo receio pela vida da criança que estremecia .  -- Muito estimo que assim penses , acudiu Balbina , que saira n ' este momento de casa .  O mesmo pensei eu quando Martha me foi pedir uma gotta de caldo ;  entregando-lh ' o , entreguei a a Deus .  -- Pois olhe , sr.ª||_Balbina Balbina|_Balbina , disse a capellista , fosse ella minha filha , não lh'o consentia .  -- Cada qual tem o seu modo de pensar , sr.ª||_Margarida Margarida|_Margarida , e Deus fez-me assim ;  mas deixemo nos de mais dize tu , direi eu , e vamos a ver o que se poderá fazer por aquella infeliz .  E sem mais reflexionar , entrou n ' esse recinto mortuario , por onde momentos antes sua filha havia desapparecido .  -- " Avé Maria , cheia de graça , o senhor é comvosco , benta sois vós " , dizia a beata .  Forte impostora !  accrescentou ella ;  aquillo não é senão para se fazer valer na visinhança .  Meia hora depois d' esta veridica scena , que acabamos de descrever , appareceu o medico .  -- É alli , disse-lhe o regedor , apontando para a porta da tia||_Marianna Marianna|_Marianna .  -- Siga me , disse o doutor , voltando-se para a autoridade .  O lance era fatal , não havia que hesitar .  Amaldiçoando n ' esse momento a má estrella , que o conduzira áquella posição , com as faces lividas de susto e de terror , o sr.||_Venancio Venancio|_Venancio seguiu o medico .  Junto ao leito de Marianna , fazendo lhe uma fricção nos joelhos , Martha , a filha do operario , debalde tentava chamar á vida essa que , n ' um olhar turvo e desvairado , parecia contemplar lhe a angelica formosura .  Balbina , com um pequeno frasco chegado ao labio superior da enferma tentava fazel a aspirar o conteùdo do vidro .  De pé , contemplando este doloroso quadro , Jeronymo pedia a Deus se compadecesse de sua familia .  Approximando-se da enferma , o medico tomou-lhe brandamente o pulso , e voltando-se em seguida para Martha , pediu-lhe uma véla , afim de melhor analysar a vista da moribunda .  -- Encontro-a muito debil , disse o esculapio em voz baixa ;  é de suppôr que não a possamos salvar ;  comtudo , far-se-ha a diligencia , ajuntou elle cravando os olhos no rosto pallido e abatido de Martha .  Abrindo em seguida a caixa dos medicamentos , começou de applicar lhe os que o seu estado exigia .  -- Esta senhora pertence á sua familia ?  ajuntou o medico voltando se para Jeronymo .  -- Não , senhor ;  comtudo minha filha interessa se muito por esta desgraçada ;  e se não fosse Martha , talvez a tivessem mandado para o hospital .  -- Se a teem removido d' este leito , ao chegar lá seria um cadaver , retorquiu o doutor , palpando a fronte da enferma .  -- Parece lhe que poderemos ter esperanças ?  perguntou Martha , approximando se do leito .  -- Veremos á noite .  Sendo sete horas , se poder , voltarei ;  e , despedindo-se dos circumstantes , saiu d' aquella casa , levando impressa na memoria a imagem candida e celeste da filha do operario .  Os moveis da tia||_Marianna Marianna|_Marianna reduziam se ao pequeno leito de espinheiro onde jazia , uma enorme papelleira , um bahu , e quatro cadeiras de palhinha , completamente estragadas nos assentos .  Roupas , se as havia , estavam fechadas ;  e nem ella lh'o podera responder , nem era dado a Balbina o perguntar-lh ' o n ' esse momento .  Dirigindo se a casa , trouxe d' alli quanto necessario lhe pareceu afim de alliviar no que podesse os incommodos da enferma .  -- Sempre lhe gabo a pachorra , disse a sr.ª||_Margarida Margarida|_Margarida , ao ver os lençoes alvos como a neve , que a mulher do operario levava no braço .  Estar estragando assim as suas roupas brancas com quem pouco póde viver !  Não era eu , que Deus me livrasse !  E demais , sr.ª||_Balbina Balbina|_Balbina , uma pobre de Christo como a tia||_Marianna Marianna|_Marianna , mais lhe valera o ir para o hospital .  Supponha a senhora que fica para ahi entrevada , quem ha de sustental-a ?  -- Deus nunca faltou a pessoa alguma , sr.ª||_Margarida Margarida|_Margarida ;  e demais , cada qual que se metta com a sua vida , que eu pela minha parte nunca me intrometto com as alheias , respondeu Balbina , cortando pelo fio as palavras da capellista , e dirigindo-se para casa da tia||_Marianna Marianna|_Marianna , onde a esperavam Martha e seu marido .  A velha havia recobrado a razão , e sorria-se brandamente para a filha do operario , como se n ' aquelle olhar significativo estivesse agradecendo a Deus o anjo que a Providencia lhe havia deparado n ' esse momento de suprema angustia .  Jeronymo e Balbina , assentados n ' um bahu , olhavam para aquelle quadro enternecedor , pedindo ao mesmo tempo nas suas preces silenciosas que lhe livrassem sua pobre filha .  Meia hora depois de arranjada a cama , a velha sentiu-se mais alliviada .  As horriveis dôres por que passara , iam-lhe diminuindo a pouco e pouco , e á face , de pallidez mortal , subira-lhe de novo o calor e a vida .  Nem uma só das visinhas , approximando se á sua porta , foram pelo menos indagar o estado da sua doença .  Ás sete horas , como o havia promettido , voltou o doutor .  A enferma estava livre de perigo .  Oito dias depois , com grave assombro da visinhança , a tia||_Marianna Marianna|_Marianna , envolta n ' um capotezinho azul , apparecia de novo á janela da sua casa .  Os effeitos da febre amarella haviam-lhe passado desapercebidos pela sua organização de ferro .  Ao vel- a , ninguem poderia acreditar que essa mulher , aos sessenta e seis annos , podesse haver resistido aos golpes d' uma doença , que tanta gente nova e robusta ceifára n ' aquellas immediações .  Todos viam na sua convalescença , começando pela beata , um favor da Providencia ;  e nem uma só bocca se abriu para dizer , quanto a dedicação da pobre Martha ajudára aquelle verdadeiro milagre .  Almas vis e denegridas que não comprehendeis o bem , como poderieis soltar a voz para elogiardes a virtude , se nos vossos corações não existe mais do que a inveja e a podridão !  Sem valor de praticardes o bem , fere-vos o goso que experimenta o coração , que se entrega aos deleites da caridade .  A apotheose do proximista , echoando nos ouvidos do misanthropo , deve produzir-lhe um effeito atroador , como o som do ouro espalhado pela pobresa , no tympano do avarento .  Ninguem da visinhança se atrevera a soccorrer a pobre doente , ninguem repartira o seu jantar com a infeliz ;  porém , quando a viram de pé , salva , proclamando por toda a parte o quanto era devedora á familia do operario , todas as visinhas , consumindo-se de inveja , lhe voltavam as costas para não ouvirem os elogios que a velha do coração lhe prodigalizava .  Desde esse momento , a pouca affeição que todos consagravam á familia de Jeronymo , tornára- se em decidida aversão .  Começando pelo sr. regedor , e acabando na sr.ª||_Margarida_da_Silva Margarida|_Margarida_da_Silva da|_Margarida_da_Silva Silva|_Margarida_da_Silva , ninguem podia supportar aquella pobre gente , que , fechada quasi sempre em sua casa , de mais coisa alguma se importava a não ser dos seus arranjos domesticos .  Quanto mais a tia||_Marianna Marianna|_Marianna proclamava em alto e bom som as virtudes de Martha , maiores antipathias ia inspirando a filha do operario .  Quando , acompanhada por sua mãe , saía aos domingos para ir á missa da Lapa , as visinhas zombavam sempre ao vela passar .  Hoje , porque o seu lenço estava mal engommado , ámanhã porque o seu capote de panno azul já começava a mostrar o fio .  A pobre victima fazia que nada percebia dos continuos gracejos que contra ella dirigiam .  Chegou a pedir a sua mãe , por tudo quanto havia , que não a obrigasse a ir á missa das onze .  -- Que te importa o que diz toda essa gente ?  exclamava às vezes o sr.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo .  O que elles têem é inveja do teu comportamento .  Não tardará muito , se Deus quizer , que tenha ahi uns " ganchosinhos " que me devem render um par de moedas , verás então como lhes hei de fazer estalar a castanha na bocca , quando te virem o bom capote aos hombros , e o bom cordão de seis moedas ao pescoço .  -- Pouco me importa com o que elles dizem , respondia lhe Martha .  Não tenham de abocanhar no meu credito , o mais , tanto se me dá como se me deu .  O que eu queria era ajudar a pobre velhinha .  -- Pois tambem não tardará muito que lhe façamos algum bem , respondeu o mestre Jeronymo , como se um pensamento lhe acudisse ao espirito .  Ámanhã tenciono ir a casa de tua madrinha , para que ella lhe possa obter alguma esmola da senhora||_Condessa Condessa|_Condessa .  Que te parece , Martha ?  Continuou o mestre de obras , cravando os olhos no rosto candido de sua filha , e revelando no gesto o prazer que lhe ia n ' alma , ao comparal- a com todas as raparigas suas visinhas .  -- Muito estimarei que isso não fique no rol dos esquecimentos , respondeu a criança sorrindo-se ternamente para seu pae .  Salvamos a pobresinha da morte , é mister não a desampararmos , nem deixal a morrer de frio ou de fome .  -- De frio não morrerá ella por certo , acudiu Balbina , collocando o ferro de engommar sobre o descanço .  Ainda esta manhã lhe dei o capote que punhamos no leito .  -- Quer dizer , interrompeu Jeronymo , que de hoje em deante ... se tivermos frio ...  -- Que nos havemos de contentar com os cobertores , respondeu a caridosa Balbina , tornando a pegar no ferro , e approximando-o da face para lhe calcular o calor .  -- Seja o que vossês quizerem , que eu , pela minha parte nunca as reprehenderei por qualquer acção boa que praticarem ;  e já que tivemos a felicidade de salvar a vida d' essa infeliz , é justo não a deixarmos agora morrer ao desamparo .  Estou da opinião da Martha .  -- Ou eu me engano muito , ou a tia||_Marianna Marianna|_Marianna já teve melhores dias , disse Martha .  Ha na sua vida algum mysterio que ella nos encobre , mas que , apezar de tudo , adivinhamos , respondeu Martha , com aquella intuição particular que tantas vezes se encontra no coração da mulher .  -- O mesmo penso eu , ajuntou mestre Jeronymo .  Nunca fui homem que frequentasse estas casas , porém reconheço às vezes um não sei quê nas maneiras da tia||_Marianna Marianna|_Marianna , que me levam a crer que os seus principios não foram como os nossos ;  e tenho cá na mente , que mais dia menos dia tudo se ha de descobrir .  Quando vossês hontem foram levar aquellas camisas a casa da fregueza , e que fiquei aqui em sua companhia , ainda mais me convenci das minhas suspeitas .  " Sr.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo , disse me a tia||_Marianna Marianna|_Marianna , quem sabe se um dia a Providencia , lembrando se de uma desgraçada que abandonou sobre a terra , a tomará de novo debaixo da sua protecção .  Se tal acontecer , lembre-se do que lhe digo hoje , nunca serei ingrata para uma familia a quem tanto devo . "  Ora , além d' estas palavras serem proferidas , sim ... assim como o outro que diz , com uns certos modos finos e delicados , levam-me a pensar que a tia||_Marianna Marianna|_Marianna não é , nem nunca foi o que parece .  Em todo o caso , seja ella quem fôr , tem precisão , é necessario soccorrel-a , e hoje mais do que nunca , quando a inveja a começa a perseguir .  Vejam lá a capellista !  Até essa mesma , que eu suppunha tão virtuosa , como se uniu a todas as visinhas para lhe cortarem na pelle , mais a ti , minha filha !  Valha nos Deus , que mundo este !  ajuntou o mestre de obras , dirigindo-se para a cosinha , em cuja chaminé Balbina lhe havia posto a ceia a aquecer .  N ' este momento bateram apressadamente ao postigo .  -- Que teremos ?  disse Balbina .  Martha levantou-se , e ao reconhecer a voz que da rua lhe falava , abriu immediatamente a porta .  Era a tia||_Monica Monica|_Monica .  -- Deus seja comvosco n ' esta casa , e que o Senhor lançando sobre nós a sua divina benção , queira proteger a mais santa e a mais virtuosa de todas as familias , disse a beata .  Acaba de ser atacada pela febre amarella a nossa visinha Margarida , ajuntou ella .  No momento em que me estava vendendo um vintem de meio grosso , a colera de Deus desceu sobre a peccadora e alli jaz sem protecção nem abrigo , porquanto todas as visinhas receiam que tambem o Senhor as castigue pelos actos que teem praticado sobre a terra .  Venho pedir a vossemecê , sr.ª||_Balbina Balbina|_Balbina , que se compadeça d' essa desgraçada , e que me empreste esse milagroso frasquinho com que tornou á vida a tia||_Marianna Marianna|_Marianna .  -- Não foi o remedio que lhe deu minha mulher que fez com que a tia||_Marianna Marianna|_Marianna melhorasse , acudiu o mestre Jeronymo , que da porta da cosinha ouvira as exclamações da beata .  Façam o mesmo que fez minha filha .  Vão chamar o sr. regedor e peçam-lhe que mande immediatamente buscar-lhe os soccorros , ajuntou o mestre de obras com modo aspero e descontente .  Quanto ao frasco , continuou elle , voltando-se para sua mulher , podes emprestar-lh ' o se é da tua vontade , porém servir-lhe de enfermeira , maletas me dêem se em tal consinto .  Bem basta o que basta , sr.ª||_Monica Monica|_Monica .  Para outra qualquer pessoa talvez que nem fosse preciso que me pedisse por duas vezes , mas para a sr.ª||_Margarida Margarida|_Margarida !  Nem que me pezassem a ouro , ou que santo me fizesse o sr. padre prior .  Estou farto e mais que farto da ingratidão , sr.ª||_Monica Monica|_Monica .  Não foi a sr.ª||_Margarida Margarida|_Margarida a primeira a cortar na pelle de minha filha , por ella ter ido acudir á tia||_Marianna Marianna|_Marianna ?  E não foi só ella como tambem as outras visinhas !  Pois agora que se aguentem como melhor lhes parecer .  Que se ajudem umas ás outras , que eu pela minha parte , não consinto que lá ponham o pé , nem minha mulher nem minha filha .  [ Ilustração :  N ' este momento a viuva acabava de assignar ... ( " pag. 15 " ) ]  -- Cruzes !  Credo !  Mãe||_Santissima Santissima|_Santissima !  Que modos , sr.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo !  E eu que julgando-o um Santo , me atrevi a vir a sua casa .  Que a ira de Deus descendo sobre esta morada castigue o maior de todos os peccadores , resmungou a tia||_Monica Monica|_Monica á medida que se approximava da porta por onde momentos depois saía apressadamente , olhando ao mesmo tempo para Jeronymo , cujo olhar , incendiado pelo desespero que a praga lhe havia produzido , incutia certos receios no animo da corretora de orações .  -- Que lhes pareceu o traste ?  perguntou o mestre Jeronymo depois de alguns momentos de profunda reflexão .  -- Se meu pae me deixasse ao menos ver o estado em que se encontra essa pobre mulher ? ...  perguntou ingenuamente a caridosa Martha .  -- Nem por sombras , respondeu o operario .  Vamos pedir a Deus pela saude , e depois descançarmos o corpo para o trabalho de ámanhã .  Momentos depois , ouvia-se apenas em casa do operario o ciciar d' esta curta , mas eloquente oração :  Bom Jesus , todo Poderoso , Filho da Virgem Maria , Soccorrei- nos esta noite E ámanhã por todo o dia .  Se na terra não coubermos , Levae- nos Senhor aos céos , Rogae por nós peccadores , Virgem||_Santa Santa|_Santa , Mãe||_de|_Deus de||_de|_Deus Deus|_de|_Deus .  Havia dias que tinha chegado a Lisboa , vindo do Rio Grande do Sul , um abastado capitalista por nome Tristão de Almeida , segundo rezava o seu passaporte .  acompanhavam-n* ' o sua mulher e duas filhas .  Trazia apenas tres cartas de recommendação , uma para o visconde de Coruche , outra para o commendador Lopes de Miranda , e a terceira para a casa bancaria de Vaz Mendes e C.ª , extraordinariamente acreditada n ' esta capital , não só pela notavel amabilidade dos seus gerentes , como pelo facto de já ter fallido tres vezes .  O visconde , o commendador e o banqueiro abraçaram gostosamente o seu recommendado .  Como bons farejadores reflectiram que a caça era rara de mais para se abandonar por essas mattas de Lisboa , onde o genero tanto escasseia .  Disputada calorosamente entre todos tres a preza que promettia dar para succulenta refeição , transigiram , promettendo , como quaesquer jogadores da vermelhinha , que dividiriam entre todos os despojos da caçada .  Deixando-se de vogar na torrente de eternas adulações , Tristão de Almeida olhava para as facecias dos seus aduladores com aquelle olhar de experimentada velhacaria com que todo o homem do mundo se deixa levar , quando , porventura , no amago das lisonjas que lhe disparam , antolha , ou pelo menos fareja o mais leve indicio de estremado calculo .  Sem patentear a sua intelligencia ou , ainda mais , deixando-se passar por zote , Tristão ia cercando de lisongeiras esperanças o filão d' essa inexgotavel mina que os tres inseparaveis amigos julgavam descobrir na sua aurifera individualidade .  Mulher e filhas ainda não haviam entrado em scena .  Constava porém que uma das meninas era de formosura extrema , e d' uma superior intelligencia .  Não tardou uma semana que esse homem , ou para melhor dizer esse mysterio fosse discutido em todos os circulos .  Quem era ?  Qual o seu passado , ninguem o sabia ;  ao passo que elle conhecia a todos , e de todos sabia as chronicas .  Se este , antes de ser visconde de tal era apenas Manuel Pinto com barracas de fressureiro , se aquelle , antes de barão , empregava a casca de polvo para tirar em baixo relevo a vera effigie de qualquer monarcha , ensaiando por esta forma a sua industria até conseguir a tiragem por meio do balancé ;  se aquell ' outro , profundo amador do sexo fragil , tivera casa de alcouce no Brazil com o unico fim de matar o tempo .  Tristão de Almeida sabia o passado de todos , e todos ignoravam o seu preterito .  " É forçoso votar uma quantia para estes tres individuos , pensava elle , passeiando pela varanda do hotel e contemplando as aguas do Tejo que pareciam conhecel- o e sorrir-lhe .  Se com vinte ou trinta contos de réis se contentam , satisfarei os seus desejos e poderei conseguir os meus fins .  Graças a sir||_Francis_Strolopp Francis|_Francis_Strolopp Strolopp|_Francis_Strolopp , tornei-me desconhecido . [  1 ] Hoje pessoa alguma poderá descobrir que antes de ser Tristão de Almeida fui Felix Justino de Araujo como antes de ser Felix Justino de Araujo fôra " Domingos de Andrade .  " É forçoso que me arranjem um titulo pelo menos de visconde .  Quero ver minha mulher viscondessa , tenho n ' isso o maior de todos os meus caprichos .  Não que me seja preciso , para casar minhas filhas é-lhes sufficiente o seu dote de duzentos contos de réis .  Brevemente encontrarão algum fidalgo arruinado , que tenha por unicos restos de grandeza o seu titulo , e isso ... é genero que abunda muito em Portugal .  Está decidido , quero um titulo .  Começarei por ser apresentado em casa de alguma senhora protectora d' essas escolas de caridade , e lhe-hei uma avultada esmola , afim de a applicar aos seus protegidos .  Mas agora me recordo , ajuntava elle , desencostando-se do parapeito da varanda ;  o ensejo é favoravel .  A febre amarella , levando a desgraça a centenares de familias , enlucta-lhes as suas habitações .  Vou fundar um hospital .  Serei o anjo dos tristes !  Beatifica-te , Domingos de Andrade .  Eleva-te aos olhos de Deus , Felix de Araujo .  Derrama esse ouro que tanto te custou a adquirir , Tristão de Almeida , e serás um dia aquillo que te aprouver . "  N ' este momento , bateram á porta da sala .  Tristão mandou que abrissem , e entrou um criado annunciando o visconde de Coruche .  -- Que entre , disse lhe Tristão de Almeida retirando-se da varanda e dirigindo-se para o salão .  O visconde era um homem de cincoenta annos , mas que parecia ter quarenta quando muito .  Dotado d' uma inteligencia regular , já pelos dotes physicos de que Deus fôra prodigo para com ele , já pela riqueza de que por duas vezes havia disposto , era ainda , apezar da sua decadencia , o primeiro rapaz d' esta terra , onde se não envelhece antes dos setenta e seis a setenta e sete annos , graças á temperatura do seu clima .  Quando entrava no Marrare de Polimento , toda a moderna geração se curvava deante d' aquelle que havia sido o chefe da velha guarda .  Não havia rapaz que não escutasse avido de curiosidade as mil aventuras que se haviam dado n ' aquella existencia tumultuosa .  Havia sido o terror da banca portugueza no salão do theatro de S. Carlos , como na caixa do mesmo theatro fôra o invejado emulo de todos os seus contemporaneos , em resultado das innumeras conquistas que em cada epocha se permitia .  Ninguem montava como o visconde !  Os seus cavallos eram os primeiros de Lisboa .  Tivera por sotas da sua magnifica sege o Feliciano e o Bem Bom !  Aos vinte anos , casara-se com uma prima , a filha do conde de . Quinze dias depois , n ' um camarote de primeira ordem da Rua dos Condes , estava a viscondessa e defronte dela , noutro camarote da mesma ordem , miss||_Ellen_Barkshead Ellen|_Ellen_Barkshead Barkshead|_Ellen_Barkshead , voltando de vez em quando o rosto para a rectaguarda para melhor falar com o marido da viscondessa .  Como se vê , era um homem completo .  Dois anos depois entregou a viscondessa a sua meia alma a Deus deixando sobre a terra a outra metade , para ser previamente repartida por uma multidão de mulheres que disputavam entre si o voluvel coração do visconde .  Extravagante mais por indole do que por ostentação , o fidalgo deliciava-se nos encantos dos seus desvarios , saboreando as commoções que d' elles lhe resultavam , com o mesmo deleite com que o gastronomo delicia o palladar nos prazeres d' uma variada mastigação .  Era o verdadeiro sybarita da estroinice .  Senhor d' uma casa de vinte contos de renda , não tardou muito que a visse desbaratada em custosas viagens .  Aos trinta annos estava pobre !  Tinha por unico recurso a morte de um tio de quem era herdeiro forçado , porém a pertinaz saude do velho fazia com que o pobre visconde estivesse quasi a esmorecer no caminho da vida , onde se assentava desanimado , como o peregrino , a quem o desalento feriu no começo da sua jornada .  Um dia , finalmente , o velho aristocrata , mais talvez para acceder aos ardentes desejos do seu arruinado sobrinho do que para descer aos abysmos do inferno , que por direito de conquista lhe pertencia , cerrou brandamente as palpebras , e partiu d' esta para peior , segundo a opinião das suas victimas , deixando por seu universal herdeiro o visconde de Coruche .  As privações porque este passára foram completamente esquecidas desde que se encontrou novamente possuidor d' um vinculo cujo rendimento excedia seis contos de réis , e esquecidos tambem se julgaram os seus crédores , porquanto lhes foi necessario lançarem mão de meios pouco brandos para adquirirem , senão a totalidade do devido , pelo menos o capital confiado ao visconde , com juro modico e rasoavel .  O fogo d' aquella eterna juventude , amortecido durante cinco annos de amargura , reanimou-se então com todo o esplendor do seu brilho !  O visconde tornou a entregar-se a todos os prazeres , com o ardente desejo de quem apenas se recordava d' elles .  A sua vida era um mysterio .  Todos os dias se dizia que estava arruinado , porém tanto a casa como o trem conservavam-se como no tempo do apogeu da sua riqueza .  D ' onde lhe viria o dinheiro para tanto ?  Eis o misterio que a pessoa alguma era dado descortinar .  Ao cabo de alguns annos , o vinculo que herdára teve o mesmo resultado que havia tido o que seus pais lhe deixaram , porém desta vez a situação era mais difficil , não tinha parente algum para quem apellar .  Não podendo recorrer aos mortos , decidiu-se a explorar os vivos .  Escudado pela prestigiosa fama que o acompanhava , fez do seu nome uma industria .  Os rapazes que entravam na sociedade desejavam todos ser-lhe apresentados .  O visconde conhecia isto , e , esquivando-se a principio , anuia finalmente , não sem mostrar quanta honra ele lhes dispensava colocando-os no rol de seus intimos .  Todos á uma dariam metade do que possuiam para se tratarem por tu com o visconde , no que ele era assaz difficil ;  a sua intimidade era um genero de superior qualidade para que muitos se podessem ufanar de o possuir .  Ainda que as suas gentilezas eram por todos conhecidas , todos ou quasi todos lhe&lhes+as desculpavam .  Estimado nos principais circulos onde aparecia , nem uma só pessoa se atrevia a dar-lhe a mais pequena mostra de desconsideração .  Foi pois o visconde um dos tres individuos a quem Domingos de Andrade , ou o commendador Felix de Araujo , ou Tristão de Almeida , para maior exactidão desta veridica historia , foi apresentado .  -- Quanto estranhei não o ter encontrado hontem no theatro , meu caro amigo , disse o visconde , reclinando-se commodamente n ' uma poltrona .  Ha muito tempo que não vejo S. Carlos tão brilhante .  O tenor , como sempre , cantou admiravelmente .  E no que diz respeito ás toilettes , não póde calcular , e impossivel seria descrever-lh ' as .  Felizmente não se tem espalhado muito o panico em Lisboa .  O cholera de 1833 , de que eu tenho uma vaga reminiscencia , aterrorizou muito mais os habitantes do que esta innocente epidemia .  Ha um tempo a esta parte , tudo aqui em Lisboa é pobre e acanhado .  Da febre amarella , diz-se :  tem morrido muita gente ;  do cholera , dizia-se com espanto :  assim mesmo tem escapado alguem .  Isso é que foi uma epidemia , meu amigo .  -- Assim ouvi dizer .  N ' essa epocha estava eu em Buenos Ayres , respondeu o commendador , notando ao mesmo tempo a estudada desenvoltura com que o visconde o tentava seduzir .  Pois eu hontem não fui a S. Carlos , ajuntou elle , por ter tido minha filha alguma coisa indisposta .  -- N ' esse caso fez muito bem , sr.||_Tristão Tristão|_Tristão .  O tempo não está para brincadeiras .  Eu mesmo , que tenho uma saude de ferro , se n ' este momento sentisse a mais leve indisposição , começava por me tractar como estando realmente ameaçado pela epidemia .  Em primeiro logar está a nossa saude .  Prefiro-a a tudo , até á riqueza .  -- Porêm quando se reunem essas duas venturas ... acudiu Tristão de Almeida , simulando um gesto de pueril ingenuidade .  -- Então o mundo é um verdadeiro paraiso , pelo menos assim o julgo .  Muitos rapazes que por ahi conheço possuem , como eu , saude e dinheiro .  Encontro-os sempre curvados ao pezo de uma terrivel fatalidade .  Nunca se consideram felizes !  Fazem da melancolia a sua companheira inseparavel , e dando-se ares de Antonys , arranjam um farnel de desventuras , e vão com elle por essas ruas da capital armando á compaixão das suas Lesbias .  Eu sou o contrario ;  a minha alegria é chronica .  Se eu não tenho coisa alguma que me entristeça , para que demonio hei de dizer mal do mundo que tantos deleites me faz experimentar ?  -- Sou da sua opinião , sr. visconde .  O mundo é apenas mau para os tolos , ainda que ha muita gente que diz o contrario .  Quem dispozer de boa saude e tiver alguns meios , deve pedir a Deus que o conserve largos annos sobre a terra .  Mas voltando agora a outro assumpto , ajuntou Tristão de Almeida , que já começava a impacientar-se , como o leitor , do estirado dialogo do visconde ;  quanto estimo que me tenha dado a honra d' esta visitasinha , não só pelo prazer da sua companhia , como pela necessidade que tenho de lhe falar .  Preciso um conselho seu .  -- Um conselho meu !  exclamou o visconde profundamente admirado .  É a primeira pessoa que m ' o pede !  Todos me chamam um rapaz extravagante , continuou elle , olhando ao mesmo tempo para um espelho que lhe ficava fronteiro ;  vossa excellencia quer guiar-se pela minha opinião ?  Provavelmente trata-se da compra d' algum palacio , e alguem houve que teve o mau senso de lhe dizer que eu era um homem de gosto .  -- Nada , não se trata d' isso .  -- Então , provavelmente , quer me consultar ácerca da mobilia , ou das carruagens , ou dos cavallos ?  -- Tão pouco , respondeu serenamente Tristão de Almeida .  Isso ficará para mais tarde .  Por agora trata-se apenas de uma obra de misericordia ; --  fazer bem aos desgraçados .  -- Se tal fôr , acho muito justo , e desde já me offereço a ajudal- o em tudo quanto me seja possivel .  -- Sentemo nos , disse Tristão apontando lhe para o sophá .  Minha esposa , que tem o habito de empregar na pobreza a mezada que lhe dou para os seus alfinetes , lembrou-se ha dias de gastar uns contos de réis n ' um asylo de creanças desvalidas .  Que lhe parece a idéa ?  -- Não a póde haver melhor , respondeu o visconde , e se vossa excellencia m ' o permitte , desde já me comprometto a fazer com que minha tia , a sr.ª condessa de Villa Velha , venha immediatamente procural- o afim de o iniciar n ' essas associações .  Recordo me d' ella , porquanto é uma das mais assiduas obreiras do grande monumento da caridade .  Não ha asylo para que não seja consultada e é sempre a sua opinião a que prevalece sobre todas as outras .  Se vossa excellencia quer , o meio é muito simples , e torno a repetir-lhe , hoje mesmo me encarrego de tudo .  -- Pois meu caro amigo , acudiu fleugmaticamente Tristão de Almeida , não me associo á opinião de minha mulher nem á sua .  Tenho outra idéa , e creio que será muito mais razoavel .  -- Sim ? ...  -- É verdade .  Lembrava-me de fundar um hospital para os enfermos atacados de febre amarella .  Isso em primeiro logar ;  depois , quando este terrivel flagello tiver abandonado Lisboa , então sim , então adoptarei a idéa que teve minha mulher .  -- Approvo , e desde já devo confessar que tanto eu como sua excellentissima esposa ficamos completamente vencidos .  -- Approva ?  -- Applaudo .  -- E dispensa-me a sua protecção n ' esta pequena obra de caridade ?  -- Conte commigo , respondeu o visconde puxando pela charuteira e offerecendo um magnifico havano ao seu interlocutor .  -- Poderemos hoje mesmo começar os nossos trabalhos ?  perguntou Tristão de Almeida , acceitando o charuto que lhe fôra offerecido .  -- Quando queira , respondeu o visconde de Coruche , tirando da algibeira do collete uma caixa de phosphoros magnificamente cinzelada .  -- Vamos então procurar o commendador e seguiremos d' alli para casa de Vaz Mendes .  Tanto um como o outro é de suppôr que nos possam ajudar em muito .  -- Assim o creio , murmurou o visconde , accendendo o charuto e passando-o a Tristão de Almeida .  Momentos depois entrava este para dentro do trem do visconde .  Quando a carruagem saia o portão e voltava para a rua do Ferregial , espantou-se o cavallo da sella , e esbarrando no passeio , atropellou um individuo , deixando-o sem sentidos .  Sairam ambos e levantaram o desgraçado .  Pegando elles mesmos no corpo inerte da victima , transportaram n ' a para o hotel de Bragança .  Tristão de Almeida expediu logo dois creados em procura de medico .  Por excepção , o doutor não tardou meia hora ! ...  Das feridas que o atropellado recebera na cabeça nenhuma era de gravidade , comtudo não havia tornado a si .  Tristão de Almeida , com a mão do enfermo entre as suas , parecia com profundo interesse procurar-lhe a vida nas pulsações .  Seria calculo ou verdadeira caridade ?  Sabia o Deus !  Terminado o curativo , o homem descerrou as palpebras , fitando o que havia em torno de si com olhar turvo e desvairado .  É melhor deital- o immediatamente , não lhe sobrevenha alguma congestão , disse o doutor tomando o pulso do enfermo .  Depois de ordenarem ao criado de mesa que arranjasse um quarto , Tristão de Almeida e o visconde levaram em braços o ferido e deitaram-n* ' o sobre um leito , pedindo ambos ao medico que voltasse antes da noite .  -- Começa hoje a espalhar as joias da sua caridade , disse-lhe o visconde com falsa ingenuidade .  -- Quizera antes ter perdido dez ou doze contos de réis do que ter sido causa de similhante desgraça , respondeu-lhe Tristão .  Agora , sr. visconde , ajuntou elle , emquanto vamos tratar dos nossos negocios , será bom recommendar a minha mulher e a minhas filhas que venham para a cabeceira do ferido .  -- Será uma grande alma , pensava o visconde .  -- Foi um magnifico prologo , dizia comsigo Tristão .  Meia hora depois dirigiam-se ambos para casa do commendador .  [ Nota de rodapé 1 :  Tristão de Almeida lera a preclarissima obra de sir||_Francis_Strolopp Francis|_Francis_Strolopp Strolopp|_Francis_Strolopp , e procurando um celebre chimico allemão , conseguira que este lhe transformasse a physionomia a ponto de se tornar desconhecido de si mesmo . ]  -- E já lá vão as cinco , as seis , e as sete , e Jeronymo sem chegar !  Virgem||_Santissima Santissima|_Santissima que lhe terá acontecido ?  Isto dizia a infeliz Balbina , olhando ora para o relogio , ora para uma pequena imagem de Nossa Senhora da Conceição , defronte da qual ardia a luz frouxa e melancholica de uma lamparina de azeite .  -- Ha dezoito annos que somos casados , continuou ella voltando se para a tia||_Marianna Marianna|_Marianna , e nunca tal me aconteceu !  E sobretudo n ' este tempo !  Quem nos diz que elle foi atacado pela febre , e que o levaram ;  morto talvez ;  morto , o meu querido Jeronymo ?  Deus permitta que Martha se não demore .  Ella já tinha tempo e mais do que tempo para voltar .  -- Não se apoquente , sr.ª||_Balbina Balbina|_Balbina .  D ' aqui á rua de S. Francisco não é tão perto como julga , e demais ainda não ha uma hora que foi .  Coitadinha !  Desacostumada como está de andar por essas ruas !  Porque não havia de me ter deixado ir em sua companhia ?  Valha-nos Deus !  Não ha senão desgostos para os que são bons como vossemecê .  -- Isso é coisa sabida , tia||_Marianna Marianna|_Marianna ;  parece que quanto mais a gente quer -- como o outro que diz -- estar nas graças de Deus , mais o demo que as tece está puxando pelo fio da felicidade !  Eu estou como doida !  Se Martha se demora mais algum quarto de hora , sou eu quem os vae procurar a " ambos e dois " .  Vossemecê fica aqui para o que der e vier , ajuntou a pobre Balbina , passeiando desassocegadamente de um para o outro lado do quarto .  -- Ainda não tem razão para estar dizendo mal á sua vida .  Quem sabe se ambos se encontraram ? ...  -- Tenho na mente que não , sr.ª||_Marianna Marianna|_Marianna ;  e demais , não sei o que me diz o coração .  Parece que tudo se está preparando para que haja n ' esta casa uma grande desgraça .  Se a minha amiga visse a maneira por que hoje nos olhou a tia||_Monica Monica|_Monica !  Não lhe bastou ter-nos rogado a praga que nos rogou ...  -- Ora deixe-se d' isso , sr.ª||_Balbina Balbina|_Balbina !  Não creia em bruxarias .  Deus é bom de mais para conceder similhante poder aos mortaes .  -- Se ouvisse como hoje esteve a " ouviar " a minha cadella !  Diga-o ella !  Por mais que pozesse as cadeiras de pernas para o ar , e que voltasse um sapato de solla para cima , não houve meios de fazer com que se calasse o pobre animal !  Eu bem sei que tudo isto são coisas , como o outro que diz , que não vem nada ao caso , mas a gente cá tem os seus enguiços , e desgraçadamente a maior parte das vezes saem certos como dois e dois serem quatro .  -- Pois sim , pois sim , socegue a minha boa amiga , e verá que não tarda muito que os veja entrar por essa porta .  É preciso que a gente não seja tão desanimada .  De que nos serviria a religião se nos não desse conformidade ?  Estar agora duvidando da graça de Deus , porque seu marido se demora mais duas ou tres horas !  -- E como explica vossemecê o elle não ter vindo jantar ?  -- Quem sabe lá se encontrou o seu ganchosinho com que podesse ganhar algum vintem ?  Ignora vossemecê o seu genio ?  Aquillo é uma formiga para a familia .  Parece-me que se o dia tivesse quarenta e oito horas , quarenta e oito horas seria capaz de trabalhar por dia .  N ' este momento bateram á porta e a voz de Martha soou melancholicamente atravez das fendas do postigo .  Balbina ergueu-se rapidamente para lhe abrir a porta .  Martha vinha desfigurada .  -- O pae , disse ella entre soluços , saíu da obra ao meio dia para vir jantar a casa .  Ninguem me pôde dar noticias d' elle .  Pedi a um pedreiro para me ajudar a procural- o , mas o pobre sentia-se muito incommodado e esquivou-se a acompanhar-me .  Outro que lá encontrei começou a sorrir-se para mim de tal forma que não tive valor de lhe dizer quanto soffria , ajuntou Martha tornando-se vermelha como o lenço que lhe occultava os seus magnificos cabellos .  -- Infame !  exclamou Balbina approximando-se cada vez mais da filha .  -- Fugi desorientada , continuou Martha suffocada pelas lagrimas , e quando vinha pelo Chiado , encostei-me a uma esquina quasi sem saber de mim .  Então senti que me tocavam brandamente no hombro .  Despertei como de um sonho , e vi um senhor muito bem vestido , perguntando me o que tinha .  Disse-lhe que ia em busca de meu pae , pois receiava que tivesse sido atacado pela febre .  O tal individuo compadeceu-se da minha sorte .  Aquelle sim ;  nem siquer reparou se eu era bonita ou se era feia .  Teve apenas tempo de me ver as lagrimas e não a côr dos olhos .  " Não me atrevo a dizer-lhe que entre commigo n ' uma sege , disse-me elle ;  seria offendel-a ;  mas espere , que vou chamar dois trens . "  Esperei , chegaram duas traquitanas .  -- Entre , disse-me elle pegando-me na mão esquerda .  Do coração lhe affianço , que póde estar tão segura como se fosse ao lado de seu pae , que espero em Deus encontrará com vida , acrescentou o individuo mettendo-me no trem .  Entrei sem saber como .  Senti bater o guarda lama e os cavallos seguirem a trote .  De repente , a sua traquitana tomou a deanteira á minha .  Andámos , andámos até que chegou a um sitio onde havia um hospital .  Os cavallos pararam .  Elle então apeiou-se e perguntou-me os signaes do pae .  dei-lh ' os .  Entrou para dentro do edificio onde se demorou por alguns minutos , e voltou dizendo-me que não tinha entrado n ' aquella casa .  Os trens partiram a galope .  Fomos a dois hospitaes ;  o mesmo resultado .  Faltava apenas o da rua do Sol .  Esse , já eu conhecia de nome quando a tia||_Marianna Marianna|_Marianna adoeceu .  Ninguem alli tinha entrado desde as nove horas da manhã .  -- Vá tranquilla para sua casa , e diga-me onde mora .  Dei-lhe o nome da rua e o numero da porta .  Pagou ao bolieiro dizendo-lhe que me viesse pôr em casa , o que não acceitei por causa da visinhança .  -- E quem será esse individuo , para que lhe possamos beijar as mãos ?  exclamou Balbina , n ' um transporte de profundo reconhecimento .  -- Deus sabe !  Oh !  mas elle não me mentiu !  respondeu Martha .  Tenho tanta fé nas suas palavras !  Se a mãe visse como elle me disse :  " vá para casa , que ainda hoje hei de descobrir onde está seu pae . "  -- E é muito novo esse homem ?  interrompeu Marianna .  -- Uns trinta annos .  -- Felizmente , ainda se pode dizer que a mocidade não está perdida de todo .  N ' este momento , Balbina approximava-se da porta , preparando-se para sair .  -- Mas onde vae ?  exclamou Martha .  Pelo amor de Deus , minha mãe ... Tenha prudencia !  Onde pretende encontral- o ?  Na rua ?  Já vê que se lhe tivesse acontecido alguma desgraça , estaria infallivelmente em algum dos hospitaes , e graças a Deus , tal não succede .  -- Embora !  hei de encontral o , respondeu a pobre mulher tentando dar volta á chave para sair .  Marianna e Martha , ajoelhadas deante da pobre esposa , tentavam impedir-lhe a passagem .  E ella então , comprehendendo a inutilidade da sua saida , caiu de joelhos deante da imagem de Nossa Senhora .  Imitando-a , Martha e Marianna acompanharam-n* ' a na sua oração .  E o relogio , seguindo n ' um rumor compassado , continuava na sua material indifferença marcando os segundos e os minutos , ao som da chuva que , batendo de encontro aos vidros , ainda mais sombrio tornava aquelle quadro de amargura .  Mudando de rumo , o visconde e Tristão de Almeida dirigiram-se primeiramente a casa de Vaz Mendes .  Depois de os escutar , o banqueiro annuiu gostosamente aos desejos do seu recommendado , promettendo-lhe desde logo fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para animar uma idéa tão philantropica .  D ' alli partiram todos tres para casa do commendador Lopes de Miranda .  Egual acolhimento , como era de esperar , acrescentando que a mesma idéa exposta por Tristão de Almeida havia sido formulada por elle tres dias antes .  Tristão sorriu-se com a velhacaria que lhe era habitual , agradecendo á Providencia que os seus pensamentos se houvessem encontrado com os do excellentissimo commendador .  Historiando o atropellamento e matizando a historia dos mais lisongeiros epithetos para Tristão , o visconde de Coruche contou ao commendador o que se havia passado com o operario .  -- Se vossa excellencia não deu a morte a esse desgraçado , estou certissimo que fará a sua felicidade , disse o commendador , piscando ao mesmo tempo o olho para o visconde .  -- Ha males que vem por bens , acudiu este fazendo uma careta para Lopes de Miranda .  -- Mysterios de Deus , respondeu Tristão em voz alta .  Fortes nescios , ajuntou elle de si para comsigo .  Mal sabem que lhes percebo os signaes .  Momentos depois , entravam todos quatro no hotel de Bragança e dirigiam-se ao quarto do ferido .  O operario encontrava-se no mesmo estado de anemia .  Pessoa alguma havia podido arrancar-lhe uma só palavra .  A sr.ª||_D._Maria_Egypciaca D.|_D._Maria_Egypciaca Maria|_D._Maria_Egypciaca Egypciaca|_D._Maria_Egypciaca , segundo o havia ordenado o seu philanthropico esposo , não tinha abandonado o leito do enfermo .  Magdalena e Olympia , de vez em quando approximavam se do quarto .  Depois de cumprimentarem a esposa de Tristão , os tres amigos chegaram-se ao enfermo .  -- Faz pena !  disse o commendador , Deus sabe ajuntou elle , se este pobre homem terá alguma pessoa a quem esteja dando sérios cuidados .  É uma lastima que se lhe não possa saber o nome .  Se descobrissemos quem é a familia , mandar lhe-iamos dizer que estava sob a protecção de vossa excellencia .  N ' estas epochas de epidemia , a mais pequena demora faz com que todos estejam em cuidados .  -- Vejamos se é possivel fazel o falar , disse Vaz Mendes , debruçando se sobre o leito do operario .  O enfermo continuava no mesmo lethargo .  Eram perto de seis horas .  Como não houvesse meios de lhe arrancar uma palavra , D. Maria Egypciaca lembrou que seria mais prudente irem jantar emquanto durasse aquelle estado morbido , e deixando o doente entregue a um creado , convidou as visitas a dirigirem-se á casa de jantar .  Ao chegarem alli , já Olympia , a filha mais nova de Tristão de Almeida , aguardava que seus paes tivessem dado treguas á caridade para desfructarem o unico gozo da vida , o comer .  Minutos depois , appareceu Magdalena , a irmã mais velha .  O jantar correu animadissimo !  Formosas eram ambas as filhas de Tristão de Almeida ;  juntando-se á formosura e juventude um dote de duzentos contos de reis , que lhes poderia faltar ?  Ventilado pela vigessima vez o caso do atropellamento , bem como o valor do visconde de Coruche , que fizera convencer Tristão de Almeida do risco que havia corrido a sua existencia em se ter approximado , do cavallo da sella , discutiu-se a fundação do hospital .  D. Maria Egypciaca , que de antemão havia sido prevenida por seu esposo , falou eloquentemente sobre este assumpto , deixando assombrados os hospedes tanto pela sua verbosidade como pelas idéas philantropicas que defendia .  Olympia contentava se de atacar com vigor extraordinario cada prato de cosinha que o servente lhe apresentava pelo lado do coração , viscera que apenas lhe estremecia consoante o apimentado dos molhos onde o guizado se mergulhava !  Fitando o olhar na comida , Olympia manejava o talher com mais desembaraço do que qualquer malabar de feira , pegando depois n ' um oitavo de pão de meio arratel para limpar o prato com o artistico intuito de admirar o bom gosto do estampador .  Olympia tinha duas paixões :  a cosinha e a ceramica .  Se lhe dissessem que morrendo de uma indigestão de ninhos de andorinhas seria depositada n ' um sarcophago de Sévres , a filha de Tristão de Almeida apanharia a indigestão de bom grado .  Debalde o visconde de Coruche se desfazia em melifluas olhaduras , tudo era inutil ;  o estomago de Olympia concedía- lhe apenas que as suas vistas se dirigissem ora para o prato que limpava , ora para a porta por onde entrava o criado com o seguimento do " menu " .  E , apezar de tudo , essa creatura que tão desenvoltamente usava e abusava dos orgãos da mastigação , perguntando ao criado durante o jantar o que tencionava guardar-lhe para a ceia , tinha o poetico nome de Olympia , como o leitor não ignora , e era formosa , formosa a fazer enraivar de inveja todas as do seu sexo , menos a amavel leitora que sobre estas paginas se debruça .  Olympia era uma pomba .  Dizia sua mãe que até aos dezoito annos , o unico desgosto que lhe havia dado fôra ter atirado com uma travessa ao rosto pallido de Magdalena , por esta lhe ter comido duas queijadas de Reinholas , resto de tres duzias que seu pae lhe havia trazido de Cintra .  Magdalena era a sua antithese .  Afôra aquelles dois pasteis , poder-se-ia-julgar impolluta no que dizia respeito ao quinto peccado .  De uma formosura menos provocadora do que sua irmã , Magdalena sabia insinuar-se no coração de todos os que tinham a felicidade de lhe merecer sympathia .  Tinha na tristeza vaga e scismadora do seu olhar uns longes de melancolia que prendiam quem a contemplasse .  Sobretudo , o que mais espantava em Magdalena era a harmonia da voz .  Assombrava !  Os anjos deviam aprendel-a , para espalharem nos seus canticos a musica da palavra .  Falava pouco , porém a phrase era sempre correcta .  Reservada mais por calculo do que por organização , a irmã de Olympia atravessava a sociedade com a consciencia segura e mathematica dos mil escolhos de que ella se compõe !  Ferira-a a aza negra da tormenta ?  A ave da desgraça esvoaçára- lhe sobre os seus louros cabellos ?  Desfizera-se-lhe algum sonho luminoso ?  Sentira o seu coração immenso , golpeado pelo punhal do desengano ?  Todos o ignoravam , ou para melhor dizer , pessoa alguma se havia demorado a estudar aquella peregrina organização .  Magdalena nunca havia amado , porém o seu coração tinha necessidade de amar como os pulmões do ar que respiram .  Creando um dia na sua phantasiosa imaginação o typo que ambicionara , quiz-lhe dar vida , formas e animação .  Quando mais tarde se lhe sumiu o vago , o impalpavel , o ideal que concebêra e que tombára na tristissima realidade , esmoreceu e curvou-se resignada para chorar a sós as suas lagrimas .  Prophetisa da amargura , como veremos na continuação d' esta singela historia , Magdalena parecia adivinhar as supremas angustias que mais tarde lhe haviam de escruciar a pobre alma !  Debalde , repetimos , se esforçava o visconde para merecer um olhar de Olympia .  Era invulneravel !  -- Se o homem já terá dado accordo de si , disse o visconde para não estar calado .  -- Deus sabe !  murmurou o amphitrião defendendo uma perna de perdiz da insaciavel voracidade da filha !  -- Daria tudo para que esse infeliz tornasse á vida , disse D. Maria Egypciaca dirigindo-se ao commendador .  Como estará a sua pobre familia !  ajuntou ella despejando um copo de vinho do Rheno .  -- Feliz d' elle , tartamudeou o visconde , se podesse abrir os olhos no momento em que vossa excellencia estivesse á cabeceira do seu leito .  Pela minha parte , abençoaria fosse que circumstancia fosse que me trouxesse tal ventura , ajuntou elle , dirigindo-se a Olympia .  -- Passa me aquelle prato de carne de porco assada , disse Olympia tocando no hombro de sua irmã e sem se atrever a olhar para o visconde .  -- Não ouves o que te diz aquelle cavalheiro ?  perguntou D. Maria Egypciaca , voltando-se com modo agastado para sua filha .  -- Não repare , meu caro amigo , acudiu Tristão , Olympia é muito envergonhada , e demais está pouco acostumada á sociedade .  Não ouves o que te diz o sr. visconde ?  acrescentou elle dirigindo-se á gastronoma .  -- Ouço , sim senhor , mas não sei o que hei de responder .  Magdalena estremeceu de pejo ao ouvir a resposta de Olympia .  N ' este comenos , o criado que ficara junto do ferido entrou na casa de jantar para participar que elle havia tornado a si , dizendo poucos instantes depois o seu nome e a rua onde morava .  Ajuntou em seguida o criado que um sujeito muito bem vestido pedira ao guarda portão para vir reconhecer o doente .  -- E esse individuo ... ainda lá está ?  perguntou Tristão .  -- Não senhor .  Saiu logo que lhe soube o nome .  Disse que ia dar parte á familia que estava com muito cuidado julgando que tinha sido atacado pela febre .  -- E quem é o doente e como se chama ?  perguntou vivamente o visconde .  -- Chama-se Jeronymo e é mestre de obras .  -- E onde mora ?  interrompeu Vaz Mendes .  -- Na rua do Meio á Lapa , respondeu o criado .  -- Quanto estimo !  quanto estimo !  exclamou D. Maria Egypciaca .  Provavelmente foram chamar-lhe a familia .  Que venha , que venha .  Pobre gente !  Talvez ainda abençõem a fatalidade que lhes aconteceu !  Pódes retirar-te , Manuel , ajuntou ella , dirigindo-se ao criado .  -- Agora , disse Vaz Mendes , já temos por onde começar a nossa obra de caridade .  Principiaremos por esse pobre Jeronymo .  -- Apoiado !  bradou o commendador despejando o decimo copo de vinho do Porto , e olhando de soslaio para Olympia , cujos olhos pardos se fitavam ardentemente n ' uma torta de maçã .  -- Se m ' o permittem , vou ver o meu protegido disse Tristão , levantando se ao mesmo tempo da cadeira .  -- E se tambem m ' o permittem ? ...  accrescentou o visconde , imitando o movimento do seu amigo .  -- Mas com o maior prazer , respondeu D. Maria Egypciaca .  E não tardará muito que lá vamos , eu e minhas filhas .  -- Querem vel o ?  perguntou o visconde voltando-se para o banqueiro e para o commendador .  -- Da melhor vontade , responderam os dois a um tempo .  Levantando se rapidamente seguiram o seu amphitrião .  -- Ora ahi tem a mamã porque eu não gosto de comer á mesa quando temos visitas .  Levanto-me sempre com fome .  Só eu á minha parte seria capaz de comer toda aquella carne assada , disse Olympia entristecidamente voltando se para sua mãe .  -- Pois é possivel que ainda tivesses mais vontade ?  perguntou Magdalena .  -- Abençoado estomago !  disse D. Maria Egypciaca levantando-se da mesa .  Deixemos por algum tempo os preclaros bemfeitores do pobre Jeronymo ;  a inconsolavel esposa rezando á Virgem||_Santissima Santissima|_Santissima ;  D. Maria Egypciaca abençoando o fructo dos seus burocraticos amores , e volvamos a uma epocha vinte annos anterior a estes successos , quando , perdida a razão , a infeliz D. Marianna de Mendonça deu entrada no hospital de S. José .  Como o leitor deve estar lembrado , a viuva não tinha um unico parente sobre a terra .  As pessoas que frequentavam a sua casa havia muito que se tinham afastado , em virtude das intrigas urdidas pela sua amiga intima , que annos antes a aconselhára a depositar os capitaes nas mãos do commendador .  Até o advogado que fôra acompanhal- a ao escriptorio no dia da fuga de Felix Justino de Araujo , até esse a havia abandonado , para com o seu conselho salvar as victimas do fugitivo .  Maria Gertrudes , uma das creadas que lhe era mais affeiçoada , ao vela entrar n ' aquella situação , dirigiu-se immediatamente a casa da amiga da sua ama participando-lhe o estado em que D. Marianna se encontrava , perguntando-lhe o que queriam dizer aquellas palavras que proferira o commendador -- que lhe tinham roubado todos os seus bens .  -- Que a sua ama sempre propendeu para a loucura , ha muito que o suspeitava , mas que tivesse chegado a esse ponto , é que não podia crer .  Vejo-lhe apenas um remedio :  metterem-n* ' a no hospital dos doidos , e , quanto a isso , quem está nas melhores condições é o regedor .  E sem mais tir ' te nem guar ' te , voltou as costas á fiel criada , mostrando-lhe que o sitio por onde tinha de sair era o mesmo por onde minutos antes havia entrado .  Esperançada no restabelecimento de D. Maria , a pobre mulher voltou para casa .  -- Já não ha meios de a soffrer , disse-lhe uma sua companheira .  Tem quebrado tudo quanto encontra á mão , e se assim continúa , não temos ámanhã um copo por onde beber .  Pela minha parte , entendo que visto a senhora não ter amigos nem parentes , o melhor era dirigirmo-nos ao sr. regedor .  -- O mesmo disse a sr.ª||_D._Maria_Clara D.|_D._Maria_Clara Maria|_D._Maria_Clara Clara|_D._Maria_Clara .  Porém , entregar a nossa ama á justiça , nós que lhe queremos tanto !  Não seria mais razoavel supportal-a ainda alguns dias , como antes de hontem nos disse o medico ?  respondeu Maria Gertrudes .  -- Pois supporte-a vossemecê , que eu pela minha parte já estou farta .  E demais , nós as criadas não temos obrigação de aturar doidas .  Se a tal me quizesse sujeitar , ia para o hospital de S. José , onde tinha melhor ordenado do que n ' esta casa .  Vossemecê , que é mais antiga do que eu , se gosta , sopeteie , que quanto a mim , não tenho mais nada se não arranjar o bahu , pôr o capote e o lenço , e pés para que te quero .  É que não sei ;  não sei o que hei de fazer á minha vida .  Valha-me Deus , para que estava guardada .  -- Estivesse eu no seu caso ;  eu lh'o diria .  -- Então o que havia de fazer ?  -- Chamar o regedor e ferrar com ella no hospital .  -- E esta casa ?  Quem ha de ficar n ' esta casa ?  -- Ora essa sr.ª||_Maria_Gertrudes Maria|_Maria_Gertrudes Gertrudes|_Maria_Gertrudes !  Ficavamos nós emquanto o filho não viesse .  -- E sabemos por ventura aonde está o filho ?  -- Onde está !  Está no estrangeiro .  Bem se vê que a sr.ª||_Maria_Gertrudes Maria|_Maria_Gertrudes Gertrudes|_Maria_Gertrudes não é mulher d' este tempo .  Boa está .  Olha que grande difficuldade !  Pensa talvez que não sei como essas coisas se fazem .  Para que servem os correios ?  Não tem mais nada senão pôr :  ao sr.||_Manuel Manuel|_Manuel de tal , e em baixo :  pelo correio do Estrangeiro , em letras muito grandes .  -- Isso lá é verdade ;  e quanto tempo pode levar isso tudo ?  -- O tempo que leva uma carta ao estrangeiro .  Olhe , sr.ª||_Maria_Gertrudes Maria|_Maria_Gertrudes Gertrudes|_Maria_Gertrudes , se vossemecê quer , não diga nada ao criado , que eu " mesmo " me encarrego de a escrever .  Por agora o que devemos fazer é ir a casa do sr. regedor .  Já com este são cinco dias que estamos aturando aquella doida , e bem vê que isto não póde durar por muito tempo .  -- Lá n ' isso tem muita razão .  -- Ora ainda bem ;  então mãos á obra .  Maria Gertrudes resolveu-se a ir falar ao regedor .  N ' essa mesma tarde , a infeliz senhora , que cinco dias antes se considerava rica e cheia de ventura , entrava na enfermaria das alienadas como uma simples pedinte sem protecção e sem abrigo .  Quando dois mezes depois , informado pelos visinhos , soube o regedor o que se estava passando em casa de D. Marianna de Mendonça e como os seus creados de dia para dia iam roubando os haveres , entendeu-se com o juiz eleito , e entrando em casa , viram com effeito que não eram mal fundadas as suspeitas da visinhança .  A carta remettida para o estrangeiro ainda não tinha chegado ás mãos de Manuel de Mendonça , e a desgraçada continuava no hospital sem que nenhum dos creados fosse indagar o seu estado .  No dia seguinte , o juiz mandou tomar posse de tudo quanto existia , e depois de competentemente inventariado , collocou no meio da rua aquelles dedicados servos que tão tranquillamente habitavam a casa de sua ama sem ao menos saberem se ainda existia ou não .  Pelo espaço de sete annos , esteve D. Marianna nas enfermarias de S. José .  Finalmente , recobrou a razão e deram-lhe alta .  Antes da saida pediu para falar com o director .  Depois de lhe confiar todos os pormenores da sua vida , perguntou-lhe se durante a sua enfermidade alguem tinha vindo informar-se da sua saude .  Sympathizando com as maneiras da viuva e condoido pela sua desgraça , o director levou-a para casa da sua familia .  Finalmente , graças ás relações do seu protector , D. Marianna tomou posse do que lhe restava .  Entre louça , moveis e roupas brancas apurou dois contos e duzentos mil réis .  Alugou uma casa proxima á dos seus protectores , entregou-lhes o resto para lh'o empregarem no que melhor lhes parecesse , até que o destino , cançado de a torturar , lhe proporcionasse a maior de todas as felicidades :  devolver-lhe o filho querido da sua alma !  Debalde se passaram annos e annos , e o destino sem se compadecer da sua desventura .  Os dezeseis vintens que pouco mais ou menos lhe rendiam as inscripções , juntos aos ganhos que os seus bordados lhe produziam , eram mais do que sufficiente para o seu alimento .  Infeliz de todo não se considerava D. Marianna , e ingrata seria para com Deus se da sua sorte se queixasse .  Era já muito o amparo que lhe concedia a Providencia representada nas pessoas do director e de sua mulher ;  porém a desgraça que parecia ter-se aninhado no seu coração , não podia permittir-lhe que descesse á sepultura sem que primeiro a bafejasse uma vez ainda com o seu halito envenenador .  Levou-lhe em menos d' um anno as duas unicas pessoas que tinha sobre a terra :  o director e sua esposa !  Aterrada com esse golpe , julgou de novo enlouquecer !  Querendo mudar-se do bairro , que lhe recordava os seus protectores , á sombra de cuja amizade tanto tempo se abrigára , lembrou-se de ir viver para a Lapa .  Uma tarde saiu , e dirigindo-se para aquelles sitios encontrou na rua do Meio a casa que lhe convinha .  Dois dias depois , alugou e mudou para alli a sua pequena mobilia .  Foi onde oito annos depois a encontramos atacada pela febre amarella .  A pobre senhora , na doce esperança de ainda tornar a vêr seu filho , economizava , quanto cabia em suas forças , os poucos haveres que lhe restavam .  " Este dinheiro , dizia ella às vezes comsigo olhando para as inscripções , não me pertence , é de meu filho ;  cumpre-me fazer tudo quanto possivel me fôr para lh'o augmentar . "  Explicado está portanto o seu modo de viver .  A physionomia doce e melancholica de Martha impressionára de mais o desconhecido para que a sua promessa deixasse de ser cumprida .  Quando ao apear-se no Largo das Duas Egrejas se demorou alguns segundos para pagar ao bolieiro , olhou instinctivamente para um grupo composto de quatro individuos que estavam discutindo .  -- Se fosse algum de nós que tivesse atropellado o homem , provavelmente estava preso , dizia um d' elles .  -- Mas como foi o sr.||_Tristão_d'Almeida Tristão|_Tristão_d'Almeida d'Almeida|_Tristão_d'Almeida ... acudiu outro .  -- E o visconde de Coruche , accrescentou terceiro .  -- Mas elle morreu ou não morreu ?  -- Dizem que está melhor .  -- Veremos como se porta o brazileiro .  -- Até agora , não ha razão de queixa , segundo me disseram .  Lá ficou n ' um bello quarto do hotel , tendo por enfermeiras a mulher do magnata , e as duas filhas .  -- Tenho pena de não ter sido eu o atropellado , só para ter taes enfermeiras .  -- Vocês vão d' aqui para o Marrare de Polimento , ou ficam ainda a descobrir a mysteriosa individualidade do menino de ouro , como se diz na minha terra ?  -- Vamos para o Marrare , responderam os outros tres , dirigindo-se pela rua do Chiado .  Reflectindo em que o atropellado podia muito bem ser o pae de Martha , o mysterioso protector da infeliz criança seguiu os quatro individuos até á sua entrada no Marrare de Polimento .  Entrou tambem .  O que primeiro falára do acontecimento ficou á porta assobiando alegremente ;  os outros dirigiram-se para os bilhares .  -- Deve estranhar uma pergunta que lhe vou fazer , disse o desconhecido interrompendo o assobio do " dilettante " .  Ha tres horas que procuro um individuo que desappareceu de sua casa .  Quando me apeei de um trem no Largo das Duas Egrejas , percebi que falavam ácerca de uma pessoa que tinha sido atropellada , e confesso-lhe que commetti a indiscrição de os escutar .  Póde ser que seja esse o mesmo individuo que procuro .  -- Talvez , respondeu amavelmente a pessoa a quem estas palavras foram dirigidas .  O que sinto é não lhe poder dizer o seu nome .  Sei apenas que está no Hotel de Bragança .  Retribuindo n ' um aperto de mão a amabilidade com que fôra recebido , o protector de Martha correu immediatamente para o sitio que lhe haviam indicado .  Ao chegar perguntou ao guarda portão se ainda alli estava um sugeito que de manhã fôra pizado por um brazileiro .  -- E não só por um brazileiro como tambem por um visconde , respondeu o guarda portão , como se n ' estas palavras quizesse tornar mais illustre o atropellamento , ou diminuir a culpabilidade dos animaes dividindo-a por todos quatro .  -- É possivel falar lhe ?  -- É possivel vel- o ;  emquanto a falar-lhe isso fia mais fino , respondeu o guarda portão .  Ainda não tornou a si .  -- Pois obsequiava-me muito se me podesse conduzir ao seu quarto .  Minutos depois entrava no quarto do ferido .  Jeronymo ainda se encontrava no mesmo estado lethargico .  A dôr das feridas havia-lhe diminuído progressivamente , comtudo a perda de sangue tinha sido abundante , e ao pobre operario nem forças restavam para pedir que chamassem a sua familia , de quem n ' esse instante tão amargamente se recordava .  A imagem de Balbina e de sua filha passava-lhe por entre as visões da febre , como se as visse alli , pregadas á sua cabeceira .  Sentia na fronte a mão fina e delicada de Martha , e pousando lhe sobre o coração , que fortemente lhe palpitava , a face de sua mulher incendida pelo terror .  Jeronymo via tudo isto como atravez de um sonho .  Junto ao leito o desconhecido olhava-o caridosamente , levando-lhe de vez em quando a mão á fronte .  Momentos depois os olhos do operario , até alli brandamente cerrados , abriram-se como que para contemplar o desconhecido , que fitando-o parecia descobrir-lhe nas feições alguma similhança com as da pobre Martha .  N ' este comenos o enfermo fez um movimento como se tentasse falar .  Manuel , o creado que lhe servia de enfermeiro , approximando-se suavemente , perguntou-lhe se desejava alguma cousa .  -- Falar ... mas ... não posso , murmurou o infeliz Jeronymo , deixando cair sobre o colchão o braço direito que tentára levantar .  O desconhecido approximou-se ainda mais .  -- E ainda não houve meio de se saber quem é este homem ?  -- Ouviu aquellas palavras que elle disse ?  Foram as primeiras !  respondeu o creado .  -- Como se chama vossemecê , perguntou o desconhecido debruçando-se sobre o leito .  -- Jeronymo , balbuciou o pobre ;  e a minha familia mora na rua do Meio , á Lapa .  -- Basta !  bradou rapidamente o desconhecido , e saindo do quarto sem que o criado tivesse tido tempo de lhe perguntar aonde se dirigia , encaminhou-se para o Loreto , afim de procurar uma sege .  Martha havía- lhe dado o nome da rua e o numero da porta .  Dizendo ambas as cousas ao bolieiro , ordenou-lhe que trouxesse Martha e sua mãe ao Hotel de Bragança o mais depressa que lhe fosse possivel .  Foi n ' este momento que Manuel desceu á casa do jantar para dizer a Tristão de Almeida que o ferido estava no uso das suas faculdades .  Deixemos o mysterioso descobridor do pae de Martha esperando á porta do hotel a mulher e a filha de Jeronymo , e vejamos o que se está passando no quarto do ferido .  -- Ora graças a Deus que está livre de perigo , exclamou Tristão de Almeida approximando-se do leito de Jeronymo .  Não calcula o quanto me tem feito soffrer a sua prostração .  Quero que nos perdôe todo o mal que involuntariamente lhe causamos , eu e o meu amigo visconde .  -- Mas agora , felizmente , sente-se melhor !  perguntou o visconde approximando-se de Tristão .  -- Nem mesmo sei como me sinto , meus caros senhores , respondeu Jeronymo , como se ainda estivesse sendo victima de uma allucinação .  De quanto se passou , continuou elle , com uma voz muito enfraquecida , lembro-me apenas que fui atropellado por um trem , e de nada mais me recordo .  Sei que tenho tido umas dôres horríveis tanto na cabeça como em todo este lado direito , e nada mais posso responder a vossa senhoria .  O que apenas me mortifica é lembrar-me os cuidados em que deve estar minha pobre mulher e filha , o resto será o que Deus quizer .  Tratamento , graças aos senhores , vejo que me não tem faltado .  O que eu tambem agora desejava pedir-lhe eram dois favores ;  o primeiro , que me dissessem onde estou , e o segundo , que mandassem immediatamente a minha casa participar a Martha e a minha mulher que estou aqui , vivo e bem tractado .  As infelizes a esta hora cuidam que fui atacado pela febre amarella , e andam á minha procura por toda a parte .  -- Emquanto ao sitio aonde se encontra , respondeu Tristão , bastará dizer-lhe que está entre amigos , e que nada lhe faltará ;  emquanto a mandar chamar sua familia , queira dizer-me aonde mora .  -- Moramos na rua do Meio n.º 7, Lapa , respondeu Jeronymo , fazendo ao mesmo tempo uma dolorosa contracção .  -- Que é isso , meu amigo ?  acudiu rapidamente o commendador dirigindo-se ao mestre de obras .  -- É uma dôr muito grande que me toma a cabeça toda , respondeu elle , levando á fronte ambas as mãos .  -- Veja se póde socegar um momento , e tranquillize se porque vamos immediatamente chamar a sua familia .  -- Para que venham mais depressa vou mandar o meu trem , disse o visconde dirigindo-se para a porta .  -- Bom será , visconde , ajuntou o commendador , quanto mais depressa descançarmos aquella pobre gente tanto melhor para todos .  -- Se vossas senhorias fossem tão bons que tal fizessem , seria uma grande obra de caridade , disse Jeronymo , tentando sentar-se sobre o leito .  -- Não faça similhante loucura .  Conserve-se como está , e tenha a certeza que d' aqui a meia hora terá a seu lado as pessoas que tanto deseja .  N ' este momento entrou a sr.ª||_D._Maria_Egypciaca D.|_D._Maria_Egypciaca Maria|_D._Maria_Egypciaca Egypciaca|_D._Maria_Egypciaca , acompanhada por suas duas filhas .  -- Já sabemos , graças a Deus , quem é o nosso doente , e onde mora , disse a D. Maria Egypciaca o visconde , que n ' esse momento saía do quarto , com o fim de dar ordem ao cocheiro para trazer a familia do ferido .  -- Quanto estimo , meu Deus !  respondeu D. Maria , erguendo para o tecto os seus grandes olhos azues .  -- Em que sustos estará a sua pobre familia !  disse Magdalena olhando para Olympia .  -- Talvez que nem hoje tivessem que jantar .  -- Enfim !  disse D. Maria Egypciaca depois de ter contemplado o ferido por alguns instantes , Deus tudo quanto faz é para melhor .  É certo que teve esta pequena contrariedade , mas graças ao Senhor , está livre de perigo , e vae fazer a felicidade de sua familia .  Não é verdade , Tristão ?  ajuntou ella dirigindo-se ao esposo .  -- Quantos desejariam ter egual sorte !  disse o commendador intromettendo-se na conversação .