Collecção ANTONIO MARIA PEREIRA O EXILADO ( ROMANCE HISTORICO ) POR Mauricia C. de Figueiredo LISBOA PARCERIA Antonio MARIA PEREIRA ( LIVRARIA-EDITORA ) 50 , 52 , Rua Augusta, 50, 52 1900 PRIMEIRA PARTE Seu pae semeiára os ventos , elle colheu as tempestades . O reinado de Sancho II é o desenvolvimento logico do ultimo periodo do reinado de Affonso II . O clero , ganha a sua primeira victoria sobre a realeza , aspirou a dominal-a ; mais do que a dominal a , a ter um rei de sua mão , e Sancho não se prestou a ser vassallo de Roma e servo de seus subditos . D ' aqui a sua desgraça , mas tambem a sua Gloria Historia de Portugal , por A. Ennes . L.° v , pag. 235.. . . PRIMEIRA PARTE O GUERREIRO DESCONHECIDO Infancia DE D. Sancho II No anno de 1208 D. Affonso II , terceiro rei -- Portugal , contrahiu matrimonio com D. Urraca , filha de Affonso IX de Castella . D ' esse consorcio com aquella senhora , da qual se contam singulares virtudes , e que morreu com fama de santa , houve quatro filhos : Sancho , o primogenito , nasceu em 1209 ; -- a esse estava destinada a coroa . O segundo filho foi Affonso , o terceiro Fernando , o quarto e ultimo uma filha a quem pozeram o nome de Leonor . Foi das mais attribuladas a infancia de D. Sancho . Este principe , que mais tarde seria uma victima da familia e do clero , que se veria abandonado pela nobreza , e que seria deposto , estava predestinado pela fatalidade a soffrer desde o berço . Logo ao alvorecer da vida teve o principe uma doença tão grave , que a rainha , vendo a vida do filho estremecido ameaçada , -- fez uma promessa , que consistia em vestir ao principe um habito monastico da ordem de S. Francisco , -- e que elle ficaria usando até certa edade . D ' aqui ficou chamarem a D. Sancho o Capello . A virtuosa senhora , entregando o doente á protecção do céo , esperava de Deus o que não obtivera dos medicos , -- isto é , a saude do filho querido , em que depositava todas as suas melhores esperanças . Quantas vezes , o proprio sceptico , vendo um ente querido condemnado pela sciencia , não faz o mesmo que aquella mãe ! ... Oh ! quantas vezes o descrente de tudo , perdidas as esperanças , não volve um olhar de supplica para a Divindade , esperando um lenitivo ás suas máguasl ... Ouviu Deus as preces da mãe afflicta , e a creança , ainda que um tanto debil , melhorou , e sempre rodeado de amor e carinhos , o joven principe ia resistindo , e assim chegou sem maior novidade aos 10 annos . N ' esta edade , porém , a sorte que lhe era adversa feriu o ainda mais cruelmente . D. Urraca não tinha de vêr o que o destino reservava , no futuro , a seu filho . Em 3 de novembro de 1220 , esta rainha , que fora um modelo de virtudes , de piedade e amor maternal , -- muito joven e de rara formosura , fallecia prematuramente . Pouco antes , a desditosa senhora havia ido com seu esposo esperar os restos dos Martyres de Marrocos , que alli tinham ido como missionarios e a Sevilha , sendo mortos pelos mouros no meio das maiores torturas . D. Pedro , irmão de Affonso II , que estava em Marrocos , -- a esse tempo ao serviço do émir , -- mas que , apesar de viver cem os mouros , conservava as suas crenças religiosas , reuniu os ossos das victimas tão horrivelmente trucidadas pela estupida crueldade dos mouros , e com alguns fieis amigos os acompanhou até Astorga , " e d' ahi enviou-os para o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra , por Affonso Pires de Arganil , rico homem e pessoa de grande credito " . Se o infante não acompanhou as santas reliquias até Coimbra , foi porque andava em desintelligencia com seu irmão Affonso , desde a morte de seu pae||_D._Sancho_I D.|_D._Sancho_I Sancho|_D._Sancho_I I|_D._Sancho_I , tendo-se expatriado por tal motivo . Pouco depois d' esse encontro com os Martyres , e logo que a estas santas reliquias foi dada sepultura , é que a rainha||_D._Urraca D.|_D._Urraca Urraca|_D._Urraca falleceu , deixando seu esposo e filhos inconsolaveis . Diz a lenda que , quando a rainha morreu , os Martyres de Marrocos e um côro de bemaventurados santos rodearam o seu esquife , celebrando ahi exequias . E volvidos seculos , depois do seu fallecimento , um frade de Alcobaça querendo confirmar essa opinião , diz o seguinte : " Estando eu presente a tudo isto -- diz elle -- vi esta rainha , a qual jaz só em um grande monumento : jaz inteira como n ' aquella hora em que a sepultaram ; jaz mirrada como tambem estão outros reis e seus filhos . E tem esta rainha cara , que mostra ser em seu tempo mui formosa . Está enfeitada ao modo antigo , seus cabellos enastrados , compridos , ainda agora parecem fios de ouro , e para testemunha d' isto , eu lhe cortei uma formosa guedelha d' elles de juncto d' uma orelha , a qual tenho em muita estima . Tem debaixo de si uma colcha pintada com cousa de negros , e sobre a colcha um lençol de linho , e tudo isto está como á hora em que ali a sepultaram , ao menos o lençol que é muito para ver . E o que mais me espantou e a alguns que com sua alteza estavam , foi que ella jaz calçada com umas botinas vermelhas apantufadas ; e tem no peito do pé , em partes , as armas antigas 1 1 Chronica de Affonso Henriques , por Duarte Galvão . de Portugal douradas , que parecem ouropel , e as botinas ou sapatos estão tão frescas como se fossem agora calçadas , das quaes trabalhei de tomar uma por memoria , e não me foi concedido . " 1 Eis o que disse o frade de Alcobaça , no tempo de D. Sebastião , quando este monarcha fez abrir aquelle tumulo , e que transcrevemos fielmente da historia . Ora parece nos que d' uma rainha , que por suas virtudes foi santa , deviam os padres , em respeito pela sua memoria , venerar tambem a familia d' ella . Mas , não succedeu assim ... O alto e poderoso clero perseguiu , e affrontosamente humilhou D. Sancho , o filho querido de D. Urraca . E ' notavel o odio da theocracia contra o Estado . Por morte de sua mãe , o principe D Sancho ficou , póde-se dizer , entregue apenas aos aios e vaidos , que não trataram de o educar como convinha fortificando-lhe o animo e preparando o para que de futuro podesse governar , em vez de ser governado . Affonso II andava n ' essa occasião muito occupado com as celebres inquirições que elle e o seu chanceller , Gonçalo Mendes , haviam emprehendido , para desapossar muitos nobres e corporações religiosas de bens adquiridos do patrimonio publico , e que datavam já do reinado dos seus antecessores . O rei tratou de eliminar essas usurpações , e para isso lançou os tributos , espalhando assim o descontentamento em todo o paiz . Esta lucta com o clero e a nobreza datava de longe , mas agora ia chegando ao seu auge e tomava lodo o tempo ao soberano , não lhe permittindo que podesse dedicar-se á educação do principe . Além d' isso , como era muito doente , podia-se 1 1 Historia de Portugal , vol. 1 , pag. 171 . talvez attribuir essa falta ao excessivo cuidado , que tinham com a sua saude . Todavia isso não obstou a que D. Sancho viesse a ser um rei muito illustrado , e quanto a coragem , tambem lhe não faltava , pois o principe , tendo uma indole guerreira , devia dar provas de valor nas gloriosas batalhas que sustentou contra os mouros . D. Affonso ia , pois , proseguindo n ' essas contendas , motivadas pelas inquirições , que eram resultantes das confirmações geraes , e que lhe valeram ser ameaçado pelo papa||_Honorio Honorio|_Honorio III com excommunhão e deposição do throno ! Indifferente a tudo isto , o rei continuou resistindo sempre a todas as suggestões , ameaças e excommunhões ; e , não obstante ver se humilhado , luctou até final . Os prelados queixavam-se a todo o momento de aggravos que tinham do rei e o odio que lhe votaram era o prenuncio de uma guerra sem treguas . A essas represalias é que seu filho deveu depois todas as suas desventuras . E se D. Affonso não foi deposto do throno , foi porque a morte o prostrou n ' esta occasião . De contrario soffreria a sorte , que estava reservada a seu filho . O monarcha succumbiu rodeado pela nobreza descontente e pelo clero enraivecido , que lhe manifestava todo o seu rancor . Quiz ainda firmar pazes com Roma ; o rei fraquejava nos ultimos momentos ! ... Talvez porque a morte lhe deixava antever , que seu filho seria a victima expiatoria ? E ' possivel . A25 de março -- 1223 D. Affonso II fallecia com annos de edade , tendo reinado 12 . A hora era solemne , Affonso soltava o derradeiro suspiro , vendo em volta do seu leito de agonia os innocentes filhinhos , todos de tenra edade , cujos soluços se misturavam com as orações de um velho e bom padre , que lhe assistia ao fim . Como devia de ser dolorosa a ultima hora do pobre rei , vendo que deixava essa querida prole de infantes entregues sem defesa aos seus terriveis inimigos ! ... Se houvesse sido um bom irmão , teria visto a seu lado suas irmãs e irmãos ; mas Affonso insurgira-se contra as ultimas vontades de D. Sancho I , seu pae , e desapossou suas irmãs das doações que este lhes deixou para prover ao seu futuro . Os irmãos tambem se expatriaram , receiando o seu caracter um tanto despota e vingativo . Aquelle que não respeitara nem cumprira as supplicas do pae moribundo , não podia terminar a vida muito tranquilla . Affonso , nos ultimos momentos , conheceu os seus erros ; e , não os podendo já remediar , levou para o tumulo a triste e amarga certeza de que o seu primogenito expiaria as suas faltas . Effectivamente assim aconteceu : -- e ainda d' esta vez se não desmentiu a sentença moral , de que " os crimes de nossos paes e avós , fizeram-n* ' os elles e pagamolos nós . " Isto é um absurdo ! Pois que culpa teem os innocentes filhos dos crimes paternos ? Nenhuma ! ... Mas infelizmente as mais das vezes assim succede ; as faltas dos paes recahirem nos filhos . D. Sancho estava n ' este caso ; devia pagar os erros de seu pae ! Morto Affonso , ainda uma vez o respeitável clero deu provas da sua incomparavel generosidade de perdão e tolerancia , não consentindo que o rei fosse sepultado em sagrado . Mesquinha vingança , na verdade : -- e só propria d' um rancor digno d' essas almas negras . Negavam uma sepultura sagrada a Affonso II ! ... É impossivel conceber odio egual ! ... Acclamação DE D. Sancho II D. Sancho succedeu a seu pae . Em abril de 1223 era acclamado rei -- Portugal , e subia ao thorono cingindo a juvenil fronte com a coroa , que de espinhos se lhe devia tornar . Tendo apenas 13 annos , foram os ministros que durante a sua menoridade sustentaram as redeas do governo . E foi sob a tutella d' esses ministros a quem Affonso II confiou a sua infancia , -- que o moço principe empunhou o sceptro , tendo antes assignado todas as condições de paz , -- que os inimigos de seu pae lhe imposeram . Póde-se fazer ideia de como o Paiz seria governado por esses ambiciosos ; nobreza e prelados , que disputavam entre si a pósse de governar o principe a seu bello praser . Pois já no tempo de Affonso se queriam impôr , como senhores absolutos , e submetter o rei ao seu arbitrio , o que todavia não conseguiram devido ao caracter resoluto d' aquelle monarcha . Agora , porém , que viam sobre o throno " já tão abalado " , um rei menino , os dois partidos ( clero e nobreza ) iam tratar de recuperar o perdido . Aconselharam , portanto , o rei a que indemnisasse a egreja ( este era o ponto mais importante ) e fizesse concessões aos seus ministros , conferindo lhes assim o privilegio para fazerem o que quizessem . Ao mesmo tempo promettiam esquecer quaesquer aggravos passados , e accrescentavam com hypócrita uncção : que dariam sepultura sagrada a Affonso II . Com estas piedosas allusões , que occultavam uma ameaça , é claro que os inimigos triumphavam e conseguiam tudo de D. Sancho . Qual seria o filho , que vendo seu pae excommungado e privado de sepultura sagrada , não fizesse tudo , mesmo reparações humilhantes , para que lhe fosse levantada a excommunhão e dessem uma sepultura digna ? ! O joven principe , pois , annuiu a tudo o que d' elle exigiram , e o clero ficou satisfeito por então ! ... Alem d' isso , o principe indemnisou tambem suas tias , que haviam sido despojadas do dóte paterno por Affonso . Até aqui , muito bem ; -- foi justo que assim procedesse e de todas as reparações , que d' elle exigiram e obtiveram , é esta a unica que não póde ser considerada humilhante nem merece censura . Todavia a criança , debil agora , devia mais tarde dar provas de coragem , e revoltar-se contra a auctoridade um tanto oppressora da seita negra . D. Sancho possuia uma indole muito diversa da de seu pae ; mas esta differença era toda a seu favor . Não só era um caracter mais generoso , e desinteressado , de pensamentos altruistas e nobres , mas era tambem mais animoso com respeito a combates em que se revelou sempre um brilhante guerreiro . D. Affonso , onde mostrou verdadeira energia , foi nas luctas , que sustentou contra o clero e nobreza . Apenas se distinguiu como guerreiro na tomada de Alcacer do Sal em 1217 . D. Sancho , ao contrario , nunca soube haver-se com os negocios politicos . No emtanto , logo que completou 16 annos , começou a impôr um pouco a sua auctoridade , e combinou com alguns fidalgos uma expedição militar , que devia partir para Eivas , e na qual elle tomaria parte . Felizmente , D. Sancho não estava unicamente rodeado de inimigos e indifferentes ; alguns fidalgos havia ( não muitos ) , que se lhe conservaram sempre leaes e dedicados servidores , e o amavam sinceramente . Estes mereciam-lhe toda a confiança , e ficarão eternamente lembrados , atravez os seculos , como symbolos de bondade e justiça . Foi , pois , a esses fidalgos , nos quaes o principe depositava uma fé absoluta -- que primeiro deu a saber a sua resolução . Vendo elles que essa ideia , a realisar-se , seria o melhor meio de dar algum prestigio á realeza , que tanto ia decahindo pela incuria da maior parte dos governantes -- , approvaram-n* ' a e aconselharam o rei a que devia partir o mais breve possivel contra os mouros , que a esse tempo invadiam o Alemtejo . O intento dos fidalgos era irem assim preparando o principe para governar . O principe com o enthusiasmo tão proprio da mocidade , e tambem porque lhe pesava a especie de submissão , a que na côrte estava sujeito , ficou transportado do maior jubilo e fez propagar a nova em Coimbra , que era então Séde da sua côrte e Capital do reino . Em seguida organisaram um pequeno exercito , no qual figurariam muitos nobres , e assentaram em que esse projecto seria posto em pratica no anno seguinte , quando D. Sancho completasse 17 annos . A EXPEDIÇÃO AO ALEMTEJO Estamos em abril de 1226 . Na occasião , em que apresentamos D. Sancho aos nossos leitores , está elle na sua camara , conversando com Estevão Soares , arcebispo de Braga , representante do clero , e um dos principaes conselheiros . O arcebispo era um dos que muito haviam guerreado Affonso II . Mas , tivera artes para agora se introduzir na côrte , vivendo sempre ao lado do principe , gosando do favor real e preponderando em tudo . Homem intelligente , espirito fino e perspicaz , comprehendia perfeitamente bem o lado vulneravel do rei ; e , conhecendo-lhe o animo aguerrido , foi elle quem primeiro o aconselhou a que devia ir combater os mouros . E ' , pois , sobre este plano que a conversação versava . D. Sancho já não é a criança fraca e doente , que foi na sua infancia . Livre da primeira enfermidade , desfructa presentemente saude --O seu rosto é formoso ; a fronte elevada denota intelligencia e energia ; mas , o seu olhar muito suave e os longos cabellos louros soltos em madeixas sobre os hombros á moda d' aquelle tempo , dão-lhe uma dôce semelhança com sua mãe . Sentado numa cadeira de couro com espaldar lavrado e incrustações douradas , o cotovello apoiado sobre a mesa de escrever , onde se veem diversos pergaminhos , entre elles uma bulia do papa||_Honorio Honorio|_Honorio III e uma carta de Affonso de Leão , D. Sancho presta a maxima attenção ao prelado . -- Senhor ! dizia o arcebispo : isto vai mal , muito mal ; os mouros tomaram Badajoz , Elvas e Jerumenha ; -- em pouco tempo terão invadido todo o Alemtejo , e outros pontos do paiz ; -- ouso , por tanto , lembrar a vós , meu Senhor , que é urgente que a expedição parta no mais breve espaço de tempo , afim de os expulsar . O exercito é pequeno , mas são valentes e denodados cavalleiros , os que fazem parte d' elle . Dizei , Senhor de vossa justiça . -- vos-hei , senhor arcebispo , o que ainda ha poucos dias vos disse , -- respondeu o principe : -- " Que pela minha parte não será a duvida , nem a demora ; e , assim que as tropas estejam reunidas , partiremos . " -- Sabeis dizer me quem commanda a expedição ? -- Tenho a honra de participar a vossa magestade , que é o alferes Martim Annes . -- Felicito-vos , senhor arcebispo , pela escolha que fizestes , -- pois não podia ser mais acertada . -- E o serenissimo infante||_senhor senhor|_senhor D. Fernando , vosso augusto irmão , tambem quer tomar parte n ' essa batalha , e espera as ordens de vossa magestade . -- Meu irmão , disse el rei , sorrindo com bondade , e um paladino de primeira força Mandai-o chamar . -- Eu proprio vou , meu Senhor . Estevão Soares sahiu a cumprir a ordem do principe . Ficando só , D. Sancho murmurou : -- Meu irmão Fernando é um pouco arrebatado , mas possue um excellente coração : -- emquanto que Affonso ... já assim não é ; tem um caracter reservado , e conheço que me não estima . O principe foi interrompido , em suas amargas reflexões , pela entrada do arcebispo e do infante . O gentil Fernando entrou com desembaraço no quarto real , e muito risonho inclinou-se deante de D. Sancho a quem beijou a mão , dizendo : -- Senhor meu ! aqui venho ao vosso mandado ; poderei ser-vos util em alguma coisa ? -- Levantai-vos , meu querido irmão , e ouvi , -- respondeu o monarcha . -- Tenho resolvido , -- porque sei ser esse o vosso desejo , -- que me acompanheis na cruzada contra os mouros . O infante , ouvindo estas simples palavras , não poude calar a alegria , que sentiu , e o seu bello rosto illuminou-se de um meigo sorriso . -- Graças vos dou por tão grande mercê , respondeu elle , enthusiasticamente ; -- e accrescentou : -- Será licito perguntar-vos quando partiremos ? -- Amanhã sem falta , volveu D. Sancho . Acabáva el-rei de responder ao infante , quando um pagem veiu dizer que o alferes Martim Armes aguardava o momento de ser recebido pela magestade , -- Dizei-lhe que estou prompto para o ouvir , -- respondeu o rei . O pagem sahiu , e d' ahi a pouco apparecia o alferes . -- Olá Martim Annes ! o que ha de novo ? perguntou D. Sancho , dirigindo-se familiarmente ao alferes . -- Venho participar a Vossa Magestade que o exercito póde partir ao primeiro signal de vosso real mando . -- Já resolvi que a partida será amanhã , -- respondeu o monarcha . -- Contai pois de certeza com isso , que d' esta vez não será retardada . O alferes inclinou-se , e tornou : -- Senhor ! cumpre-me tambem dizer a Vossa Magestade , -- que nas salas do paço aguardam as vossas ordens fidalgos que compõem a expedição . Esses nobres sollicitam uma audiencia . -- Está bem ! vamos já ! D. Affonso Volvido pouco tempo , D. Sancho sahia da sua camara , acompanhado pelo arcebispo , por Martim Annes , e o infante . Em um dos corredores do palacio , encontrou-se com seu irmão Affonso , o qual fingindo não o ter visto , se afastou propositadamente para lhe não falar . D. Sancho percebeu o que se passava no intimo do infante . -- pois não era a primeira vez que isto succedia , -- e uma cólera surda se apoderou d' elle . Mas , contendo se , aproximou se do irmão e disse-lhe dissimulando o seu desgosto : -- Desejo saber , principe , se quereis tomar parte nas nossas hostes ? Affonso , ouvindo esta pergunta , deteve se ; olhou sombriamente para o rei , mas não respondeu . Este continuou affectuosamente : -- Conheço a vossa coragem , meu irmão , e estou certo que estimareis ter esta occasião para nos dares provas do vosso valor , na guerra contra os infieis Estas palavras , dietas com bondade , não influiram de modo algum no espirito do principe . -- Senhor ! respondeu elle emfim , com esforço , -- se me dispensasseis ... muito grato vos ficaria . -- Recusaes , pois , perguntou el rei : -- e o seu rosto energico avincou-se : e o olhar , de ordinario suave , despedia agora chammas . -- Talvez ! -- respondeu Affonso altivamente e com o rosto não menos contrahido . D. Sancho era brando e violento ao mesmo tempo , mas estas qualidades contradictorias tornavam-no ainda mais sympathico e attrahente , pois não lhe alteravam nunca a dignidade de caracter . N ' esta occasião , porém , elle , que era meigo e brando para todos , ia exaltar se , pois via que seu irmão acintosamente lhe desobedecia , e quasi o provocava . As constantes hostilidades de Affanso deviam acabar por offender Sancho . Os fidalgos no emtanto , calculando o que poderia resultar d' uma discussão entre os principes ( ainda ha pouco sob a sua tutella ) que seria um escandalo desagradavel , e que só contribuiria para mais desprestigiar a corôa , -- trataram de aplacar os animos . Pois bem bastava as repetidas contendas , que havia entre os nobres e o clero , que andavam sempre envolvidos em desordens . Estevão Soares , o arcebispo , era o que melhor sabia convencer os principes , com a sua palavra auctorisada . Interveiu , pois . -- Senhor ! peço licença a vossa magestade , para lhe ponderar que o senhor||_infante infante|_infante D. Affonso tem passado os ultimos dias um tanto indisposto , por motivo de saude , -- ... e será ... esta a razão , porque pediu a vossa alteza para ficar ... D. Sancho , ouvindo a desculpa exposta pelo arcebispo , socegou como por encanto . E , voltando se para seu irmão , disse-lhe com uma brandura , que contrastava singularmente com a pergunta violenta , que antes lhe fizera , -- mas n ' esta brandura havia agora , o que quer que fosse , de fina ironia : -- -- Meu irmão : quando agora vos falei em tomardes parte nas nossas fileiras , ... ignorava que estivesseis doente , mesmo . . por que o vosso parecer saudavel o não indicava ... -- Mas , em vista do que disse sua reverendissima , o senhor arcebispo , de cujas palavras não posso duvidar , cumpre-me não insistir mais comvôsco . Ficai em paz , Affonso , e desejo que Deus vos melhore depressa . Eis os meus ardentes votos . E el-rei , tendo assim falado , afastou-se com os que o acompanhavam . Affonso ficou como que pregado ao pavimento e , mordendo os labios de raiva intensa , pensava : -- Meu irmão não acreditou a desculpa , que lhe dei ; e , se não fosse a intervenção do arcebispo , me-hia obrigado a ir . Ao prelado devo , pois , não supportar tal affronta . -- E hei de eu -- murmurou ainda o principe -- estar toda a minha vida sujeito ao dominio de meu irmão ! e porque ? simplesmente por que , por um absurdo privilegio do nascimento , é o meu rei e tem direito a exigir de mim obediencia ? ! E , assim como eu , estão os povos sujeitos ao dominio de um só homem , as mais das vezes um imbecil e inépto ? Oh ! é demais ! E Affonso , vendo-se impotente para luctar , chorou de raiva . O principe , para se desculpar perante a sua consciencia . já invocava o povo , não por que a sorte d' aquelle lhe inspirasse qualquer interesse , mas para assim justificar os seus actos de rebeldia contra o monarcha . Este joven , tendo apenas 15 annos . já estava contaminado da peior peste , que pode haver . A inveja e a ambição dominavam o principe , cuja indole não era das melhores . D. Sancho dava audiencia aos seus ministros , e a alguns fidalgos , que se haviam alistado para a proxima expedição . Em volta do throno do moço rei estão : -- o arcebispo de Braga Estevão Soares , Gonçalo Mendes de Sousa chanceller mór , filho do conde de Mendo de Souza , Abril Peres , Martim Gil valido , e outros muitos , que se disputavam a cada passo o governo . O alferes Martim Annes , Martim Gil e alguns outros nobres , de que a tempo falaremos , eram os unicos que apenas cuidavam em dar provas de valor militar , mas sem que se envolvessem nunca em politica , nem em intrigas palacianas , pois não tinham outras ambições que não fosse combater galhardamente . Ficou definitivamente resolvido que pattiriam todos no dia seguinte . Estevão Soares ficaria na côrte governando e dirigindo os negocios politicos e internos , ao que o seu talento lhe dava direito . D. Sancho ia , emfim , trocar os seus trajos monásticos pela brilhante armadura do guerreiro Pela tarde , o rei dirigiu-se ao castello e passou em revista as suas tropas , mostrando-se satisfeito . OS GUERREIROS DE+A CRUZ O tempo estava magnifico , os campos verdes e as arvores cobertas de flores como é proprio dos bellos dias de abril ; as aves cantavam , voando no espaço . O exercito , commandado por Martim Annes , approximava-se da fronteira de Elvas . A ' frente via-se D. Sancho , que levava o estandarte com a cruz vermelha , symbolo da redempçao . Seguiam-no os fidalgos , dos quaes já citámos alguns nomes , e que eram os chefes do batalhão . Estes eram os mesmos que , depois de haverem pleiteado o dominio supremo para governar na côrte do rei menor , se armavam agora e reuniam em boa camaradagem para irem combater os sarracenos . Estes fidalgos , d' uma ambição que não conhecia limites , estavam presentemente dispostos a dar largas ao seu valor contra os mouros . Ao lado de D. Sancho ia seu irmão , o infante||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando , muito contente por tomar parte n ' esta empreza . Affonso é que não se via alli ... Mas alguem o substituia que suppria admiravelmente o seu logar , e que reunia em si todas as boas qualidades , dignas de serem imitadas pelo melhor dos principes , e que infelizmente áquelle faltavam . Dos fidalgos , que acompanhavam o rei , destacava-se um , que , se era certo poder assimilhar-se aos outros em garbo , gentileza e denodada valentia , não se parecia no emtanto em ambições e egoismo . Era um homem de elevada estatura , rosto bondoso , de fronte espaçosa e nobre porte , e a quem o armamento que usava dava ainda mais prestigio e distincção . Este nobre guerreiro , um dos mais dedicados e fieis amigos do adolescente Sancho , chamava-se Fernando de Aragão , e havia pouco tempo que se enfileirára nas suas hostes . No exercito tratavam-no pelo guerreiro desconhecido . Ninguem o conhecia senão pelo nome que havia dado ; a sua origem todos a ignoravam . Muitos julgavam-no natural de Hespanha , mas tanto podia ser hespanhol , como portuguez , ou mesmo arabe ; -- pois é certo que falava admiravelmente qualquer d' estes idiomas . Apenas o que se sabia era , que volvidos dois annos depois da morte de Affonso II , este individuo apparecera na côrte , acompanhado por um padre , que , depois de o apresentar ao rei , seguira para Hespanha , não tornando a ser visto em Coimbra . Em toda a parte viam este fidalgo ao lado de D. Sancho , que muito se lhe affeiçoára e com elle desabafava os seus pesares , porque D. Sancho , a despeito dos seus verdes annos , já tinha numerosos desgostos . Aquelle que está destinado ao infortunio , começa cedo a ser flagellado pela fatalidade . Mas , voltemos ao desconhecido . O mysterio , que o envolvia , ainda mais lhe attraía as sympathias . Longe de ser repellido , por não dar francamente a conhecer o seu passado , -- via-se rodeado de amigos . Todavia apresentára se bem simplesmente ; não trouxera ao rei nem a qualquer outra potencia , cartas de recommendação . Effectivamente crêmos que o melhor empenho de que qualquer pessoa se deve fazer acompanhar é de simplicidade e actos que a façam valer por si só , e não pelos outros . O guerreiro , pois , assim o entendeu : apresentou-se só , sem empenhos , e singelamente se offereceu para alistar-se no exercito . Pediu a el-rei para conservar o incognito , affiirmando ter feito uma promessa , que lhe não permittia que por emquanto se désse+esse a conhecer . Toda a sua pessoa indicava tanta dignidade e distincção , as suas palavras eram repassadas de tanta tristeza e sinceridade , que todos o acreditaram , e ninguem pensou em aconselhar o rei a banil- o da côrte . Mas , ainda que de tal se houvessem lembrado , não o conseguiriam , pois é certo que D. Sancho foi attrahido pelo guerreiro desde que o viu , e nada faria com que d' elle se separasse . Muito novo ainda , -- talvez não tivesse vinte e um annos , -- no emtanto , apesar de tão juvenil , o seu rosto era grave e triste , e as suas palavras sempre circumspectas , mas sem affectação . Este homem devia ser um ente superior ; pois que , numa côrte , em que só predominava o odio , a intriga e a inveja , não havia uma só pessoa , fosse qual fosse o seu partido ou jerarchia , que lhe fizesse guerra . Todos sem excepção o amavam . O instincto advertia os nobres da sua superioridade . Todos comprehendiam que o guerreiro desconhecido era digno da maior estima e respeito . Tal era o homem , que acompanhava el-rei , a quem se havia dedicado para sempre . Este fidalgo leal , de singular bondade e dedicação , estava destinado a seguir sempre D. Sancho , por quem sentia uma affeição fraternal . OS PRIMEIROS LOUROS DE+A VICTORIA Entretanto o exercito aproximava-se de Elvas , e poz-lhe cêrco . Os mouros , advertidos da aproximação do inimigo , -- mas não tanto a tempo , que podessem fugir , -- resolveram defender-se valentemente . A investida contra os infieis foi terrivel , e estes que no principio julgaram sahir vencedores , em breve se convenceram do contrario . Causava lhes extranhesa e ao mesmo tempo desdem verem á frente de tão diminuto exercito aquelle adolescente , formoso e debil , que era o rei , e perguntavam entre si , -- se era com crianças que tinham de se bater , -- ou se os christãos teriam endoidecido . Mas , ao verem a coragem e sangue frio de que esse adolescente deu provas , e a facilidade com que empunhava a lança , que quando menos o esperavam cahia sobre o inimigo , -- pasmavam de assombro , e duvidaram de triumphar . O infante||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando , seguindo este exemplo , dava tambem largas ao seu genio aventureiro e fogoso . O seu braço juvenil brandia a espada com desembaraço quasi egual ao de el-rei . Emfim : os portuguezes deram boa conta de si n ' esta batalha , a primeira e a mais brilhante do reinado de D. Sancho II . Não nos deteremos pormenorisando minuciosamente todos os detalhes d' esta lucta que os leitores , por certo , avaliam o que seria . Todavia devemos dizer : que entre todos os fidalgos , quem mais se distinguiu foi o guerreiro desconhecido . Este sim ; era bem digno de combater ao lado do rei ! e o valor , de que deu provas , só com o d' aquelle podia ser comparado . Dando o mais frisante exemplo de coragem e agilidade , -- tão depressa estava em um lado como se voltava para outro , correndo sobre o inimigo , que procurava algumas vezes atraiçoal- o com falsas investidas . Dir-se ia ser o Archanjo S.||_Miguel Miguel|_Miguel expulsando Satanaz . Mil vezes arriscou a vida para salvar a do soberano ; e , tal era o seu valor e indifferença pelo perigo que corria , que todas julgaram querer elle desafiar a morte . Os mouros estavam quasi vencidos , e pouca resistencia oppunham já . A maior parte havia fugido . N ' esta altura , os valentes portuguezes estavam dispostos a descançar um pouco . D. Sancho felicitou os pelos seus feitos d' armas , e elogiou sinceramente o guerreiro . Os fidalgos imitaram n ' o . Mas o guerreiro desconhecido , não se desvaneceu com isso , pois o seu caracter era indifferente a adulações e elogios . Tudo o que fazia era espontaneamente ; e os seus actos de heroismo julgava-os a coisa mais simples do mundo . Todavia , as felicitações de D. Sancho commoviam n ' o ao mais intimo d' alma , não por serem dirigidas pelo rei , mas porque eram sinceras e destituidas de lisonja . -- Cavalleiro ! -- exclamou o infante||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando , -- dirigindo-se n ' este momento ao guerreiro desconhecido , num transporte de enthusiasmo , -- que lhe era tão natural ... Estou encantado com os resultados d' esta guerra , e com a paisagem d' esta bella cidade ... Se todo o Alemtejo assim é , prometto vos que hei de ainda voltar cá ! -- Hei de escolher uma das mais bonitas villas , e n ' ella irei residir , pois quero estar perto dos mouros , que apesar de crueis e fanaticos , me interessam pela sua coragem e valor . -- Se é essa a vossa inclinação , fazeis bem , -- volveu gravemente D. Fernando de Aragão . -- Mas , -- accrescentou elle -- abandonaes assim a corte ... e o vosso rei e irmão ? ... -- Oh ! não , -- respondeu o infante . -- Não abandono meu irmão nem a côrte ; de vez em quando irei lá ; porém , a maior parte do tempo hei de passalo aqui . De cá , melhor ainda , vigiarei o inimigo , e estarei prompto sempre para combater pelo meu rei e a favor da minha patria e religião . D. Sancho ouviu estas ultimas palavras e disse : -- Estou certo que seguireis sempre as leis da honra e do dever , e que vos não afastareis dos bons principios de coragem a par da humanidade . -- Todavia ... olhai , meu irmão , não vos arrependais de trocar o luxo e commodidades da côrte , a que estaes habituado , pela simples armadura de soldado ... -- Ficae certo que jámais me arrependerei ... Acabava o infante de dizer estas ultimas palavras , quando succedeu um acontecimento inesperado e de interesse . Um arabe , sem que se soubesse d' onde vinha -- ( pois não fôra visto no combate ) -- ricamente vestido , -- moço bello e de elegante porte , -- montando um cavallo vistosamente ajaezado , se precipitou sobre o rei e arremetteu violentamente para elle com o seu alfange , prompto a ferir sem piedade . Todos soltaram um grito de terror , vendo o perigo que D Sancho corria . Felizmente , porém , o movimento que o arabe fizera para attingir o rei , havia sido ião arrebatado , que perdeu o equilibrio e cahiu . A lucta , que então se travou , foi tão renhida que o desgraçado ficou sob o seu cavallo . Primeiro o espanto havia sido geral , e deixara os christãos immoveis e gelados de susto . Apenas D. Fernando de Aragão , o guerreiro desconhecido , que nunca perdia o sangue frio , correu direito ao musulmano , para o impedir de commetter o attentado contra o monarcha . Mas , passado esse momento de surpreza bem natural , pelo inesperado do ataque , dispozeram-se para fazer justiça . O infante , desesperado e esbaforido , correu tambem , e , levantando a espada , ia castigar a ousadia do arabe . Os soldados imitaram n ' o e todos á uma cahiram sobre o adversario . O guerreiro desconhecido , a quem repugnava ferir um homem que se não podia defender , fazia esforços inauditos para affastar aquella turba , sem o poder conseguir . Se não fosse o rei , que até então assistira a tudo distrahidamente e quasi sem comprehender que estivera em risco de ser victima , pois que , n ' essa occasião estava conversando com o infante , -- se não fosse o rei , repetimos , o arabe estava irremediavelmente perdido . D. Sancho , sempre bom e generoso contra o inimigo , tratou de intervir com a sua auctoridade . -- Que ninguem se atreva a tocar n ' esse homem ! -- exclamou elle com voz imperiosa . -- Esse homem deve ser sagrado para nós , pois seria da mais revoltante cobardia atacar o inimigo indefezo ! ... E dizendo isto , el rei desenrolou o estandarte e cobriu com elle o arabe em signal de paz . Os guerreiros suspenderam-se ! A ordem era formal e não admittia replica . Comprehenderam n ' essa occasião que , se aquelle joven na côrte era governado , não o era alli , no campo da batalha , pois desempenhava bem o seu logar . Com esta impressão , affastaram se todos respeitosamente . O guerreiro desconhecido volveu um olhar de agradecimento a el-rei . Era evidente que ficara satisfeito por aquella nobre acção . -- Senhor ! -- disse elle : -- permitta me vossa majestade que eu lhe manifeste quanto foi grande e nobre o vosso procedimento em ter perdoado . -- Nem outra coisa era de esperar da vossa bondade . -- Estou recompensado , -- respondeu D. Sancho -- pois que mereço a approvação d' um homem justo como vós . Dizendo isto , el-rei sorriu affavelmente para o guerreiro . Comprehendiam-se ; porque pensavam do mesmo modo . Ambos eram justos e dignos . AS PROPHECIAS DE+O ARABE Devido á generosidade de D. Sancho , o arabe , que jazia vencido e cahido por terra , conseguiu levantar-se auxiliado pelo guerreiro . Então , dirigindo-se ao monarcha , falou-lhe assim : -- Oh ! joven rei dos christãos ! a coragem e generosidade , de que acabas de dar provas , encontrará echo no meu coração . -- Sabe , pois , que eu não sou um ingrato e estou prompto a provar-t ' o . -- O meu alfange não mais se levantará contra ti ou teus amigos . Conheço quanto mal avisado andei em tentar contra a tua vida . -- Era um desforço que eu queria tirar , ao vêr mouros e musulmanos dizimados por ti e pelos teus . -- Mas , agora comprehendo que a razão está do vosso lado ; luctaes para defender a vossa religião , assim como nós defendemos a nossa ; a uns e outros assiste egual direito . -- Isso , porém , não obsta a que eu te manifeste a minha admiração e amizade futura . -- Ouve , pois , a expressão da verdade . E o arabe continuou com aquella voz oriental , tão cheia de encantos : -- Se alguma vez o destino te fôr adverso , e se a fatalidade , que eu adivinho e presinto te acompanha -- ( porque a tua nobre fronte tem o signal indelevel das desgraças que te hão de ferir ) -- te conduzirem ao exilio ... lembra te de que ha alguem que te ama e sente os teus infortunios . -- Se assim te falo , é para te prevenir contra inimigos desconhecidos . O teu olhar triste e suave , a tua fronte , que às vezes se contráe quando algum pensamento triste te invade o cerebro , são o indicio , para mim infallivel , de que estas destinado desde o nascimento para soffrer . -- Acautela te , -- continuou o arabe , -- acautela-te ! ... Lembra-te das minhas palavras que são um aviso ! " Ainda fica muito por dizer com respeito á funesta estrella que te persegue " -- E agora dir-te hei : se alguma vez precisares de mim , não tens mais do que enviar um mensageiro a Abdá , e eu estarei a teu lado . Alli todos saberão dizer quem é o arabe Abd-Allah . 1 -- Sois então o actual amir de Marrocos , de que tanto se fala exaltando o seu valor ? -- perguntou D. Sancho . -- Sou eu , -- disse simplesmente o arabe . -- E 1 Significa entre os orientaes : Servo de Deus . ( N. da A. ) sabe que não só me salvaste a mim , mas tambem a esposa e uma filha bem amadas , as quaes , se cu lhes faltasse , succumbiam de dôr . Já vedes que vos sou devedor de mais do que da minha vida : -- devo vos tambem a felicidade d' aquellas que adoro . O guerreiro desconhecido , que havia algum tempo não deixava de fitar o amir com singular attenção , ouvindo o referir-se á esposa e á filha , estremeceu , e volveu-lhe um olhar que parecia uma confidencia . Abd-AIlah , que distrahidamente se havia voltado para o lado de Fernando de Aragão , viu-o ; e os seus olhares intelligentes cruzaram-se fixamente . N ' esse olhar , o guerreiro leu uma resposta . Queria dizer : -- Conheci-te logo de principio , mas descança , que eu não o direi ; porque sei que só o bem te inspira . Ha olhares mais expressivos e eloquentes do que os mais brilhantes discursos . Fernando e o amir comprehenderam-se . Antes de se despedir , o arabe voltou-se tambem para o infante||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando e disse lhe , fitando o com persistencia : -- E vós , infante , sêde menos arrebatado ; lembrae-vos que a colera é má conselheira , e os arrebatamentos conduzem-nos muitas vezes a um mau caminho e arrastam tambem ao perigo e á ruina os nossos amigos . Com o vosso genio violento e leveza de pulso sois temivel . Mas , tende sempre presente o que vos digo ; pois tenho o exemplo em mim . -- " Com os vossos arrebatamentos não fazeis mais do que abreviar a queda de vosso irmão , conduzindo o á vergonha , ao mesmo tempo que sereis vilmente humilhado . Depois ... não vale de nada o arrependimento . " O infante ouviu esta tirada sem soltar uma phrase , e teve o bom senso de se conservar serio e attento emquanto o islamita falou . Comprehendia , apesar da sua pouca edade e indole desenvolta , que o arabe tinha razão . Por este motivo , o infame ficou um tanto apprehensivo . O arabe , tendo assim falado ao rei e ao infante , despediu-se em seguida . -- E agora ... até outra vez , que tarde será ! Que o vosso Deus vos proteja , como eu desejo ser protegido pelo grande e incomparavel Mahomet ! ... E o amir , dizendo isto , inclinou-se ao uso oriental . D. Sancho , que se havia apeado do seu cavallo desde o começo d' aquella scena , estendeu lhe a mão , que elle tomou com transporte nas suas , volvendo : -- O nosso uso é beijar a fronte d' aquelle a quem juramos dedicação . Este beijo significa alliança perpetua e fidelidade eterna . Os dois reis trocaram o osculo sagrado , segundo o uso oriental . E o arabe , inclinando-se de novo , montou no seu cavallo , trocou ainda um olhar expressivo com o guerreiro e desappareceu . As palavras propheticas do mahometano pareciam inspiradas pelo céu . Todos ficaram tristemente impressionados , e o proprio infante , que raras vezes se commovia , não poude conter duas lagrimas . -- Serei eu culpado das desgraças que elle diz que hão de ferir meu irmão ? -- murmurou o principe . -- O arabe , emquanto falava , parecia fitar-me com desconfiança ! ... Oh ! antes morrer , meu Deus , do que causar damno a meu irmão ! ... D. Sancho tambem ficára um pouco commovido : , mas , pondo de parte quaesquer apprehensões , não soltou uma palavra que a tal alludisse . Pela sua parte o guerreiro desconhecido , se ficou preoccupado por alguma idéa , que lhe acudisse ao espirito , guardou-a para si , seguindo o exemplo de el-rei . O combate , que havia sido interrompido quando se deu aquella breve scena , continuou . Em pouco tempo os valentes portuguezes , apesar de serem em muito menor numero do que o inimigo , ficaram vencedores . Os mouros sobreviventes tiveram de fugir da cidade -- Elvas . Muitos cadaveres juncavam o campo da batalha , mouros e christãos ; uns mortos , outros feridos e moribundos jaziam por terra n ' um mar de sangue . Era horrivel ! ... Tendo emfim terminado o combate , os guerreiro ; da cruz voltaram á capital , levando comsigo os feridos . Outro tanto haviam feito os infieis . O primeiro passo para reinar estava dado . D. Sancho estreiou-se n ' esta batalha como guerreiro . Começava a emancipar-se da oppressão dos tutores . Eram os primeiros louros da victoria . Tomou gosto pelas guerras , onde se sabia mais rei , do que na côrte ; e tambem porque preferiu antes luctar com os mouros , do que com a ambição da nobreza , e dos ministros mitrados . O MYSTERIO Alguns dias depois da batalha aos sarracenos , o guerreiro desconhecido , sosinho no seu quarto , que era na morada regia ( D. Sancho assim o quizera ) , passava pela mente os acontecimentos da guerra e a scena em que o arabe fôra o protagonista . -- O amir conheceu-me , -- murmurou elle : mas , como prometteu guardar segredo , nada tenho a receiar . Antes de continuar devemos explicar aos nossos leitores alguns pontos mais escuros d' este romance , e que se referem ao guerreiro . Digamos de passagem quem era este individuo , e como viera para a côrte , onde gosava de muitas sympathias e era geralmente estimado . Para isso temos de retroceder um anno , o que faremos procurando não massar muito o leitor . Um mez depois de se propagar no paiz que el-rei iria com uma expedição ao Alemtejo , seguiam caminho da Beira Alta , em direcção a Coimbra , dois cavalleiros . O primeiro era um mancebo de vinte annos , vestindo a armadura de guerreiro , -- o segundo era um ecclesiastico . Este volvia a miudo um olhar de paternal amor ao seu companheiro , o qual , curvado sobre o seu cavallo , e com a vizeira do elmo cahida , não deixava antever as feições . Estes homens pareciam extrangeiros . De subito o mancebo abandonou aquella attitude de desalento , levantou a cabeça e perguntou : -- Meu amigo : sabeis dizer-me se ainda falta muito para chegarmos ao termo da nossa jornada ? -- Espero , -- respondeu o padre , -- que pela noite teremos chegado a Coimbra . -- Estaes cançado meu filho ? -- perguntou o ancião , com solicitude : -- Pareceis-me abatido ! ... -- Oh ! não ! -- nunca sinto fadiga por viajar , -- pensava em minha mãe ... é este o motivo do meu desanimo . Dizendo isto , o guerreiro suspirou e , se não fora o elmo , talvez se visse uma lagrima de infinda saudade em seu rosto . -- Meu filho , -- lhe tornou o padre , -- tende coragem ! ... pois não é esta a primeira vez que vos separaes , -- e lembrae-vos que foi vossa mãe , que exigiu que viesseis . -- Sim , tendes razão . -- respondeu o mancebo : -- e eu de bom grado accedi , pois o motivo que a inspirou a mandar-me a Portugal é dos mais justos . -- Sois um filho bom e obediente ; Deus vos recompensará . -- Mas , -- proseguiu o guerreiro : -- serei eu recebido na corte ? el rei consentirá ao seu lado um extrangeiro ? -- um homem desconhecido ; por que eu não posso de forma alguma dar a saber o meu nascimento ! ! ... -- Quanto a isso , não vos afilijaes a pensar mais , Affirmo vos que sereis bem recebido ; -- principalmente n ' esta occasião ... Diz-se que o rei , -- que é muito animoso , -- tomará parte na expedição , que brevemente irá ao Alemtejo a fim de expulsar os mouros . -- Nada mais simples , portanto , do que offerecerdes os teus serviços ao monarcha , como guerreiro christão , e D. Sancho acceital- os ha ; e , em vista da vossa coragem e desinteresse , e por que elle é um rei magnanimo , ha de querer-vós sempre na côrte . -- Alem d isso , devo dizer-vos que não é preciso , para combater , conhecer o nascimento de cada um . O que se aprecia é o valor e boas qualidades . Podeis crer que ninguem vos perguntará pelo passado . -- É que vós meu filho tendes uma alma , excessivamente delicada , e repugna-vos o mysterio . Este curto dialogo foi trocado em bom portuguez Os dois cavalleiros , assim conversando , chegaram perto d' uma fonte cercada por espesso arvoredo . Eram cinco horas da tarde ; e o sol ardentissimo do mez de maio não lhes permittia que podessem continuar a sua jornada sem descançar um pouco . Apearam-se os viajantes , e dirigiram-se para a fonte , afim de beberem e darem de beber aos seus cavallos . Tendo mitigado a sede , que os devorava , os dois amigos deixaram os animaes afastar-se , e disposeram-se a descançar alguns momentos á sombra do frondoso arvoredo . NOVOS PERSONAGENS Não estiveram , porém , assim muito tempo . Pois , na mesma occasião , em que se deitavam sobre a fresca relva , que atapetava o solo , avistaram ao longe uma numerosa cavalgada . A ' frente via-se uma amazona joven e formosissima , vestindo com elegante simplicidade ; e a seu lado um arabe , que segurava em seus braços uma menina de cinco annos sublimemente linda e encantadora . A creança fazia ouvir as suas alegres risadas , que muito deleitavam aquelle ; e , pelas caricias que lhe prodigalisava , era facil de conjecturar que era sua filha . Os restantes cavalleiros -- mais de tresentos , -- fazendo ála cm volta d' elles , eram mouros e musulmanos d' ambos os sexos , ricamente vestidos , usando pannos de vistosas côres e turbantes guarnecidos de pedrarias . Eram servos do arabe , que para toda a parte o seguiam , e o amavam muito , assim como a sua esposa e filha . Os cavalleiros chegaram perto dos dois extrangeiros , -- em quem não repararam , -- e fizeram alto . O arabe ajudou a dama a descer do cavallo , e encaminharam-se para a fonte , levando a creança pela mão . Então o guerreiro ficou deslumbrado : -- não só pela formosura e natural distincção da desconhecida ; -- pela graça e encanto da menina ; -- mas tambem pelo porte imponente e digno do arabe . Este representava ter trinta e tres annos . Era alto e elegante com o seu trajo á oriental . Usava um manto de seda de Damasco recamado de pedras preciosas das mais finas e raras . E cingindo lhe o manto um cinto d' ouro e rubis , onde escondia o alfange . Na cabeça , que se erguia altiva , ostentava um lindo turbante constellado , assim como o cinto . Era bello e magestoso . Formava , porem , um extranho contraste com a sua linda companheira , vestida á europêa . O que os assimilava era o ar de distineção e belleza que possuiam . A dama devia ter vinte e cinco annos . -- É realmente um grupo encantador , -- pensava o moço guerreiro , que apesar de pouco expansivo não foi indifferente a esta apparição . Mas , o que sobretudo o attrahia , era a pequenina , com o seu rostosinho meigo e risonho , no meio dos dois , que quasi a não deixavam pôr os pésitos no chão . A creança , assim levada e com o seu vestidinho azul pallido , parecia uma visão celestial . E o guerreiro voltando-se para o seu companheiro cuja attenção egualmente fôra distrahida á vista d' aquelles , disse-lhe : -- Já vistes , meu padre , uma creança tão gentil ? -- Sim , volveu o ancião com voz tremula : -- e , dizendo isto , uma lagrima lhe rolou pela face rugosa . -- Já vi , continuou elle no mesmo tom , -- uma creancinha tão linda e meiga como essa , que estaes admirando . A commoção do padre era visivel ao proferir estas simples palavras . O guerreiro comprehendeu que despertara ao seu amigo tristes recordações d' um passado talvez remoto , -- e mudou de assumpto . -- Como está bello o tempo , e quanto eu gosto d' estes sitios ! que lindos que são os arrabaldes -- Coimbra ! -- Se minha mãe aqui estivesse , -- accrescentou elle melancholicamente : -- a felicidade seria completa ! ... -- Pobre Dulce -- volveu o padre -- o muito que soffreu fez lhe perder de todo o gosto pela vida ... Morreu para o mundo ! ... -- Cumpra se a vontade de Deus , murmurou o mancebo resignadamente . Durante algum tempo conservaram-se em silencio os dois homens , -- pensando na pobre mulher , a quem um dava simplesmente o nome de Dulce , -- e o outro o dôze nome de mãe ! ... Beatriz DE MENEZES Entretanto , o arabe , sua esposa e filha , tendo descançado ao pé da fonte , resolveram pôr-se de novo a caminho , seguidos pelos servos , que se approximavam . Tendo reparado nos dois extrangeiros , que discretamente se haviam affastado á sua chegada , cumprimentaram n ' os com affabilidade . N ' esta occasião o moço guerreiro levantou a viseira do seu elmo , para corresponder a tão amavel saudação . Então se poude vêr o seu rosto de uma belleza varonil e pouco vulgar . A fronte elevada , o olhar triste e suave como uma caricia , a tez pallida e os cabellos negros , compridos e soltos , fluctuando ao vento . O rosto d' este homem conservava um ar de natural e rara distincção ; e a despeito da tristeza que n ' elle se divisava , -- pois seus labios jamais sorriram , -- transparecia a bondade e a nobreza de sentimentos . Logo á primeira vista o seu todo inspirava confiança . Os nossos leitores já de certo comprehenderam que este individuo era D. Fernando de Aragão , o guerreiro desconhecido . O arabe soltou uma exclamação de surpreza . Conhecia o joven guerreiro ; este , porém , não o conhecia a elle . -- Vós por aqui ? -- exclamou o amir , trocados os cumprimentos -- Suppunha-vos em Aragão ! ... Fernando , admirado , interrogou : -- Que quereis dizer ? -- Que já não é a primeira vez que vos vejo , principe . Vós é que talvez nunca reparasseis em mim ! O que não admira , dada a abundancia de musulmanos que andam espalhados em terra christã . -- De certo me confundis com outro , -- volveu Fernando , disfarçando a commoção que sentia . -- É impossivel a confusão , -- tornou o arabe -- sois o mesmo que eu vi em Badajoz combater ao lado de Affonso IX , e outras vezes ao lado de Fernando III de Castella , que muito vos estimava . Sim , sois vós ! Apenas vos noto uma differença : pareceis-me mais triste . O padre havia-se chegado para junto dos dois mancebos , pensando no meio de convencer o arabe de que elaborava n ' um erro , motivado por qualquer similhança , mas depressa se convenceu da inutilidade de intervir , pois que o outro continuou : -- Oh ! quem não vos conhece ! ... Vós , o principe aragonez , o " Heroe dos Combates " , como vos chamavam em toda a Hespanha ! Quem não conhece e admira o vosso valor para fazer recuar o inimigo , e a vossa generosidade para com os vencidos ? ! -- Sim ! sois o principe ! ... -- Por Deus ! ... senhor , calai-vos ; -- interrompeu o guerreiro -- não desejo mais ser tratado por esse titulo ! D ' ora avante sou Fernando de Aragão . Esse titulo de principe , que vos ouvi em tão pouco tempo repetir tres vezes , e que em Hespanha me davam , não tenho direito a elle . -- Estaes-me parecendo um tanto mysterioso , o que é admiravel n ' um moço como vós . -- Talvez , -- respondeu Fernando -- mas vou expor-vos o motivo em poucas palavras . Antes , porém , promettei-me que guardareis sigillo . -- Por Mahomet o juro ! -- respondeu solemnemente o arabe , estendendo o braço . -- Acceito o vosso juramento . Sabei que eu sou portuguez , e emquanto ignorei qualquer particularidade do meu nascimento , combati ao lado dos nobres hespanhoes , não me importando nunca com o tal titulo que teimavam em me dar ; mas agora tudo se desvendou ante os meus olhos , e desejo apenas , como simples soldado , combater pela minha patria ... Mais não digo , porque me não atrevo ... -- Segundo o que deprehendo das vossas eni- gmaticas palavras , quereis viver ignorado e obscuro no futuro ? -- Sim . -- Algum desgosto tendes , que vos amargura ! ... -- E vós o que dizeis a isto , meu bom padre ? -- perguntou o arabe , voltando-se para aquelle . -- Senhor ! sabei que Fernando tem uma missão sagrada a cumprir , mas por emquanto não a póde divulgar . É um sigillo ! -- Basta ! -- disse o arabe -- comprehendo que nem tudo se deve dizer , e eu respeito o vosso segredo . -- Desculpae me se fui inconveniente nas minhas perguntas mas peço-vos que acrediteis que foram feitas na melhor intenção , e apenas fundadas no interesse que me mereceis . E , mudando de conversa , o arabe disse , apresentando sua familia : -- Minha mulher D. Beatriz de Menezes , e minha filha Amarinda . O guerreiro e o padre inclinaram-se cumprimentando novamente , e este ultimo disse : -- Eu tive a honra de conhecer n ' outro tempo um fidalgo d' esse nome ; tinha elle uma filha , que se bem me recordo , deve ter hoje a nossa edade ! Sereis vós , senhora minha , a filha do conde de Menezes ? -- Sim ! sou eu disse a joven ! -- Muito estimo ter tido esta occasião de vos vêr . -- E eu egualmente , disse a dama . -- Ides para a côrte ? -- perguntou ella em seguida com a sua vós suavissima , -- ao guerreiro . -- Sim , senhora minha . -- Tambem nós lá temos estado . -- Agora , vamos residir por algum tempo em Hespanha . Emquanto conversavam , Fernando não deixava de contemplar a creança ; e , acercando se d' ella , pegou-lhe ao collo e depol-a nos braços da mãe , que a esse tempo subia para sobre o seu cavallo . -- Permittis , senhora minha , que eu beije a vossa encantadora filha ? -- disse elle : -- Pois não , senhor ! ... -- Amarinda , disse o arabe , -- então o que se faz ? A menina sorriu para o pae e respondeu com muita meiguice : -- Devo agradecer ! ... E voltando se graciosamente para Fernando que estava enlevado , volveu : -- Obrigada , cavalleiro ; gostava muito que nos acompanhaseis ; mas , como ides para a côrte , é impossivel . -- Em todo o caso póde ser que nos tornemos a encontrar alguma vez ; e eu muito estimarei ver-vos . -- Minha filha ( interveiu o amir ) manifestou em poucas palavras o nosso sentir ; sim ! -- Minha esposa e eu faremos votos para tornarmos a encontrar-vos . -- Adivinho em vós um nobre caracter . -- Estimarei que a vossa missão se cumpra e possaes ainda reconquistar o logar a que tendes direito pelas vossas excellentes qualidades . O mancebo inclinou-se em silencio . Era-lhe impossivel responder qualquer coisa pela fórte commoção , que d' elle se havia apoderado . Em seguida disposeram se a partir . -- Boa viagem , cavalleiros , disse a dama despedindo se : e estendeu a mão a Fernando , o qual depoz n ' ella um beijo respeitoso . Em seguida despediram se tambem do padre muito affectuosamente ; e este beijou paternalmente Amarinda A brilhante cavalgada pouco depois desapparecia ao fim da ladeira , circumdada por espesso arvoredo . Heitor DE CARVALHO O mancebo seguiu-os com a vista até desapparecerem de todo , e disse tristemente para o seu amigo : -- Eis um encontro , que nunca mais se me apagará da memoria ! -- Por toda a parte verei sempre na minha imaginação este árabe , sua esposa e filha ... O padre respondeu , muito commovido : -- Tambem eu fiquei impressionado , meu filho ! -- Esta familia fez-me recordar outra , que eu conheci ha muitos annos ... -- Meu bom amigo ! ... interrompeu Fernando , -- permittis que vos faça uma pergunta ? ! -- Dizei ! ... -- Vós dissestes que havieis conhecido um fidalgo christão de nome Menezes ? -- Sim , era o pae de Beatriz ! ... -- Sabeis se ainda vive ? -- Morreu , ha muitos annos , e a esposa tambem , ficando sua filha orphã muito creança ainda . -- Eram de Coimbra ? -- Sim ! O guerreiro ficou por algum tempo pensativo , e por fim disse : -- Em todo o caso não comprehendo bem , como essa menina casou com o musulmano ! Não haveria na côrte um homem digno tambem , a quem ella unisse o seu destino ? -- É possivel que houvesse , Fernando ; -- mas meu filho ... devemos attender que o amor não distingue nacionalidades , nem religião , -- quando inspirado por dois corações novos e amantes . -- Além d' isso , não é a primeira vez que se vê um árabe casado com uma christâ , n ' uma epocha . em que mouros , musulmanos e christãos andam quasi confundidos por todo o Portugal e Hespanha ! ... -- Parece-me que tendes razão ! -- Olha , meu filho , talvez te pareça estranha esta linguagem num pobre frade como eu ... mas é que nem sempre fui o homem simples d' agora . Nunca fui de preconceitos ridiculos ; e , agora mesmo , ainda estou convencido do que te disse a esse respeito . -- Vou me convencendo das vossas palavras , e sou da vossa opinião . Volveu o guerreiro . -- Agora outra pergunta , e peço-vos me desculpeis . Dissestes que esta familia vos fez lembrar de outra que conhecestes ? ... -- Sim ; e vos-hei esse triste caso ... Serei breve ! ... Ouvi-me , pois ! Fernando prestou a maior attenção . -- " Apesar de já ir muito longe esse tempo -- começou o padre -- comtudo recordo-me bem ... -- " Uma mulher joven e formosa , uma creancinha sua filha , e um homem , que as adorava . -- Já vês , que é quasi a copia fiel do quadro , que , ha pouco , tanto nos impressionou . -- " Eram felizes ; mas , como a felicidade completa é impossivel , este bem não durou sempre ! ... -- " N ' um dia ! Ah ! como é triste recordal- o ! A fatal morte , que a ninguem poupa , e que traiçoeiramente se approxima quando menos se espera , tudo separou ! ... -- " A mãe e a innocente filhinha são subitamente arrebatadas aos carinhos do esposo e pae ! E este , inconsolavel , triste , mas resignado , veste o habito de religioso , e deixa o mundo , para viver só de saudades ! -- A quem se refere essa triste historia , meu padre ? -- perguntou Fernando muito commovido . -- " A mim ! ... -- A vós ? ! -- " Sim ! eu me explico . -- " Sabei , que eu n ' essa epocha me chamava Heitor de Carvalho ; vivia na côrte de ... Affonso II , em Coimbra ; era rico e considerado ; e o monarcha fazia-me a honra de me dispensar estima . -- " Algumas vezes me abriu o seu coração , fazendo-me as suas confidencias ... -- " Pois bem ! n ' esse tempo , eu tive uma esposa que amava ternamente e uma filha a quem adorava como aos anjos . E o respeitavel e infeliz ancião balbuciou por entre lagrimas : -- " E como as não havia eu de amar assim ! se eram tão boas e meigas ! ... -- " Hoje , possuo a vossa amisade , meu filho , -- continuou elle , para Fernando , -- e a ella devo a resignação pelas desgraças soffridas . -- Quando perdi " Candida e Gabriella " ( assim se chamavam esses dois entes queridos ) , abandonei os cargos que exercia no paço , apesar de el-rei quasi me prohibir que o fizesse ; e retirei-me a um convento . Tinha eu então trinta annos , e isto passou-se ha vinte e tres . -- Pobre amigo , murmurou Fernando , com sincero pesar ; bastante tendes soffrido ! ... -- " Depois d' isso , proseguiu o frade : -- passei a usar na ordem o nome de " frei||_Thomaz Thomaz|_Thomaz . -- " Todavia , devo dizer-vos que , apesar de me afastar da sociedade , el-rei continnuou a ser meu amigo , e algumas vezes me foi visitar ao convento ... Outras ia eu ao palacio . -- " Um dia , volvidos cinco annos , o acaso conduziu ao meu retiro uma mulher , que dizia querer confessar se . -- " Era nobre , joven de rara formosura , e de origem hespanhola . Era aragoneza . Tambem como eu despresou riquezas , e do mesmo modo era infeliz : -- " Apenas havia uma differença ; eu pranteava os entes amados , que a morte me roubou ; e ella , ainda mais desditosa , chorava o seu amor perdido e o abandono a que a votara e ao filhinho ( pois era mãe ! ) o homem a quem se havia dedicado ! -- " Esse amor fatal , digno de melhor sorte , e retribuido com ingratidão ou esquecimento , por pouco a não conduziu ao desespero . -- " E , se não fosse tão temente a Deus , teria procurado na morte o esquecimento para os seus pesares . -- Mas , a pobre Dulce , era muito religiosa , e foi isso o que a salvou . -- Minha santa mãe ! -- murmurou Fernando . Durante tanto tempo escondeu de mim as suas lagrimas , deixando-me ignorar esse passado ! ... -- " Dulce julgava que vós deixarieis de a amar por esse motivo , e bastante me custou a persuadil- a do contrario . -- " Ainda assim , nada vos quiz dar a saber antes de completardes os vinte annos . -- E vós tambem , meu amigo , sempre me occultastes a verdade ! ... -- " Eu cumpria as suas ordens , meu filho ; além d' isso era um segredo de confissão , que eu não devia divulgar . -- " Sim ! eu fui o seu confidente , e guardo a lembrança de todas as suas desventuras . -- " Não sei que sympathia é esta , que todos os infelizes sentem uns pelos outros ; é uma attracção por tal modo irresistivel , que os approxima e une reciprocamente n ' uma affeição simples e fraternal . -- " Vós ereis então muito pequenino , tinheis tres annos ; -- ha portanto dezesete que isso foi , -- e eu amei-vos como a um filho , e a vossa mãe como a uma irmã muito querida . -- " O resto já vós o sabeis , tão bem como eu . -- " A pobre Dulce nunca poude esquecer ; sahiu de Coimbra e foi para a sua patria , o reino -- Aragão . D ' ahi derivou chamarem-vos o príncipe aragonez . Eu , a quem coisa nenhuma aqui prendia , a não ser as tristes recordações do passado , acompanhei-a á sua terra . -- " Em seguida recolhi-me a uma ermida . -- " Agora , vossa mãe , a quem o soffrimento fez tomar tedio pelo mundo , foi encerrar-se em triste clausura . -- " Antes d' isso , porém , pediu-me para vos acompanhar até junto do rei . Estamos prestes a chegar ao termo da nossa viagem ; cumprida a minha missão , voltarei para o meu isolamento . -- Espero , meu filho , que lá irás algumas vezes . -- Oh ! sim , meu bom amigo ; nunca eu esquecerei o que vos devo , vós tendes sido para mim o melhor dos paes ! ... E Fernando , enternecido , continuou : -- Hei de ir algumas vezes , quantos possa , para abraçar minha mãe no seu convento , e a vós na vossa ermida . Este padre era um homem de aspecto venerando ; tendo apenas cincoenta e tres annos , parecia ter setenta , de tal maneira o soffrimento envelhece as creaturas ! Era de mediana estatura e o seu rosto exprimia bondade . Espirito illustrado , admittia a religião espontanea : e , sem hypocrisias , a tolerancia era uma das suas inumeraveis virtudes . Desculpava as fraquezas do proximo , e costumava elle dizer : " Perfeito só Deus ! ... Vestira o habito de religioso , não para fazer penitencia , pois que não tinha de que penitenciar se , mas por que , desgostoso pela perda dos que amava tão ternameme , se dedicava ao isolamento , consolando muitas vezes os que soffriam . Vivia emfim longe da sociedade ; porque a sociedade madrasta sempre foi indifferente , egoista e má para os males alheios . Era noute , quando os nossos amigos chegaram a Coimbra . Recolheram-se em uma hospedaria , e no dia seguinte apresentavam-se a el-rei . Isto passava-se um anno antes da batalha d' Elvas . Já sabemos que foram bem recebidos por D. Sancho , a quem o aspecto veneravel do padre inspirava confiança . O guerreiro ficou na côrte ; e frei||_Thomaz Thomaz|_Thomaz , depois de o abraçar terna e paternalmente , e tendo-se despedido do monarcha , regressou a Hespanha . Agora já os nossos leitores sabem o necessario , para poderem avaliar do caracter de Fernando , o guerreiro desconhecido . Voltemos ao ponto onde ficámos , quando elle , sósinho no seu quarto , passava pela mente os acontecimentos da guerra e a scena com o arabe . HISTORIA D ' um RAPTO D. Fernando de Aragão estava assentado perto d' uma janella . Com a cabeça inclinada sobre a mão direita , em attitude de meditação , recordava o seu novo encontro com o amir ; pois era o mesmo , que , um anno antes , encontrara no caminho de Coimbra , e agora por ultimo viu em Elvas . Pensando n ' isto o mancebo murmurou : -- " O arabe conheceu-me , mas como prometteu guardar sigillo nada tenho a receiar . " E Fernando accrescentou em ar de supplica : Oh ! meu Deus ! permitti que tal se não saiba nunca ! Era evidente que elle não queria por ILEGIVEL alguma , que o seu nascimento fosse divulgado ILEGIVEL côrte , e era n ' isto que se resumiam os seus ILEGIVEL e apprehensões , no presente momento . Este mysterio a seu tempo se desvendará . O guerreiro estava , pois , como dissémos , ILEGIVEL VIDO em penosas recordações , quando entrou no seu quarto o infante||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando , com a sua habitual e interessante desenvoltura . O infante era muitissimo amigo do guerreiro este tambem amava sinceramente o infante , e o caracter , apesar de tão differente do seu , lhe parecia bom . -- Meu bom amigo , -- disse aquelle com ILEGIVEL , -- ainda não deixei de pensar no nosso extraordinario encontro com o arabe . O guerreiro , ouvindo estas palavras , estremceu e levantou a cabeça . Alli estava um , a quem tambem não era indifferente esse acontecimento . Que coincidencia ! ... Mas , quantas vezes succede , ao pensarmos coisa que nos inspira cuidado , chegar outra ILEGIVEL e dizer que os mesmos pensamentos ILEGIVEL sem saber , é claro , dos ILEGIVEL Foi o que se deu com o aragonez ! ... Todavia , não dizendo o que sentia , perguntou : -- Por que motivo não deixaste ainda de ILEGIVEL BRAR do amir ? -- Eu vos explico , respondeu o infante : -- Aquelle sujeito ILEGIVEL se uma historia muito interessante , passada ha alguns annos na côrte , e elle que figurou um sobrinho do ILEGIVEL Mendes de Sousa . E o infante murmurou , como se ILEGIVEL mesmo : -- Sim , tenho a certeza ILEGIVEL da formosa Beatriz . -- o que dizeis , principe ? -- perguntou Fernando surprehendido . -- Nunca ouviste falar em um rapto audaciosamente commettido por um poderoso arabe , aqui haverá seis annos ? ... -- Nunca ! o que não admira , por que não estava então cá . -- Tendes rasão ; todavia correu por toda a parte . A noticia espalhou-se depressa , porque se tratava de personagens de alta importancia . -- Repito , que não soube de tal . -- Pois vou contar-vos como se deu o caso , o qual realmente teve graça . -- Prestae-me attenção : sim ? -- Estou ouvindo , meu amigo , respondeu o guerreiro , prestando a attenção que lhe ' era implorada . O joven infante , tendo tomado logar n ' uma cadeira em frente do mancebo , começou a sua narrativa com aquelle modo ironico e engraçado que lhe era tão peculiar e um dos seus maiores attractivos . -- " Reinava n ' esse tempo meu pae , o senhor||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso II , que Deus guarde . -- Havia na côrte dois fidalgos , que vós conheceis muito bem ... são os sobrinhos de Gonçalo Mendes de Sousa . Sabeis quanto esses homens são insolentes e presumidos ? -- Não tenho reparado n ' isso , -- volveu o guerreiro ; -- mas continuae a vossa narração . -- Já me ia esquecendo de que achaes todos bons , porque julgaes os outros por vós ; mas deixemos isso e vamos á historia . -- Estes dois fidalgos eram irmãos . Chamavam-se : o mais velho Gregorio , e o mais novo Theodosio . Dois bonitos nomes , como vedes . -- Eram moços distinctos , muito bem parecidos , e julgavam-se queridos de todas as damas . -- Aqui é que elles elaboravam n ' um erro , pois que tanto n ' aquelle tempo , como agora , ainda não houve mulher que se inclinasse para qualquer dos dois . -- O motivo era este : -- Esses fidalgos , então como hoje não tinham tempo senão para provocar contendas , começando por se envolverem em todas as desordens , promovendo escandalos ; e , quando não tinham com quem se bater , porque todos fugiam do seu convivio , os dois irmãos bulhavam um com o outro ... Quantas vezes tiveram de os separar , para evitar que se matassem ? -- Outras vezes implicavam com os padres , a quem faziam encolerisar com os seus ditos atrevidos . -- E outras ainda , isto é , n ' algum boccado de tempo que lhes sobrava de arreliar e insultar o proximo , applicavam no a fazer a côrte ás damas . -- Entre as damas cortejadas pelos dois irmãos , havia uma principalmente que elles perseguiam com os seus galanteios grosseiros . -- E para notar que estes fidalgos não eram muito polidos . -- Habituados a insultar constantemente os seus adversarios em politica , seguiam quasi egual systema com as senhoras . Ora não é este o melhor processo de lhes agradar . -- D. Beatriz , a fidalga em questão , era descendente de nobre estirpe , e seus paes os condes -- Menezes eram muito estimados na côrte . Infelizmente morreram prematuramente , e Beatriz ficou , póde-se dizer , só no mundo . -- Além d' isso , não possuia bens de fortuna , por que o conde , seu pae , fôra sempre amigo de viver á grande , e destruiu a sua fortuna em prodigalidades . -- Em compensação , porém , da sua pobreza , esta menina era de peregrina formosura e muito bem educada . -- Os dois irmãos Souzas ( era o seu appellido passavam , pois , algumas horas em frente das janellas da joven castellã . -- O mais novo , o Theodosio , era o que mais insistia n ' esta muda contemplação . E , temendo que o irmão podésse vir a ser o preferido , prohibiu lhe que o acompanhasse mais até alli . -- O Gregorio , que não estava disposto a ter questões por tão pouco , deixou lhe o campo livre . -- Esse homem mostrava ser um cobarde , -- interrompeu o guerreiro . -- Esperai amigo , -- respondeu o infante : -- ides ver que o outro lhe não ficava atraz em poltroneria . -- No emtanto , a Beatriz eram completamente indifferentes os manejos do fidalgote que lhe parecia por demais ridiculo com os seus áres de conquistador indinheirado . -- Não sentia por qualquer d' elles senão enfado , e despresava-os . -- Vendo , pois , Theodosio que Beatriz lhe não correspondia , resolveu , para se vingar do seu despreso , raptal-a . -- Em bello dia reuniu muitos amigos de sentimentos eguaes aos seus , e altas horas da noute dirigiram-se para a residencia da formosa castellã . -- Mas , oh ! decepção ! ... A praça estava tomada ! ... -- O castello de Beatriz havia sido assaltado por uma leva d' homens , á frente dos quaes se via um arabe , joven e bello , vestido de seda brilhante de pedrarias , -- que entrando no palacio , -- sobraçara a formosa dama e fugira com o sou precioso fardo . -- Chegados ao parque , onde os seus homens , -- mouros muito bem armados os aguardavam , reuniu-se-lhes , e estes soltaram gritos de alegria , exclamando : O amir ! O amir ! e a sua princeza ! ... -- E , inclinando-se todos ao uso oriental , fizeram grandes mesuras á dama e ao árabe , e seguiram nos . -- Imagine-se como ficaria Theodosio ! -- A sua cara , se n ' este momento a podesseis ver , -- apesar da vossa bondade e reserva nas palavras , -- applicar-lhe ieis o epitheto de asno . -- Talvez ... disse distrahidamente o guerreiro : -- Mas o que mais desesperou o fidalgo , -- continuou o infante , -- foi quando viu que a joven , em vez de soltar gritos afflictivos contra os seus raptores , ... ao contrario os acompanhava da melhor vontade ... trocando ao mesmo tempo sorrisos e phrases muito ternas com o bello arabe ... -- Beatriz e o amir haviam saltado rapidamente sobre os seus cavallos , ricamente ajaezadas ; e seguidos dos restantes mouros e arabes , em breve desappareceram . -- Pareceu ao pobre Theodosio , que tudo isto era um sonho , ou obra de duendes , que se queriam divertir a sua custa . -- Nunca viu um caso similhante . -- E os seus companheiros , julgando assistir a um caso sobrenatural . -- por que áquella hora os mouros extranhamente vestidos davam a essa scena uma nota fatidica , -- poseram-se em fuga . -- Tudo isto acabou por mais o desesperar ; e , se bem que não tinha por Beatriz um amor sincero , -- pois apenas a cortejava por capricho , -- jurou vingar se . -- Mas , sempre poltrão , o Theodosio , que é incapaz de luctar frente a frente com o inimigo , reservava-se para o atacar pelas costas traiçoeiramente . É este o forte dos covardes . Assim pensando , voltou para sua casa , fazendo protestos e planeando o meio de tirar a desforra pela affronta recebida . -- Se elle conhecesse o raptador de Beatriz , mudaria de ideias , pois o arabe não era homem com quem Theodosio podesse luctar . -- Porem , não foi preciso muito tempo , para elle se convencer d' isto mesmo , e desistir do seu intento , pondo de parte todos os projectos mal elaborados para a sua segurança . -- Volvidos poucos mezes sobre o rapto , corria na Capital de Coimbra a grata nova de que a formosa Beatriz de Menezes partira para o Oriente com um rei arabe , e que este , apaixonado pela castellã , havia casado com ella . -- E assim era verdade . -- Eis aqui , meu amigo , a historia d' um rapto , que me foi recordada pelo singular encontro que tivemos com o arabe , o qual , a meu ver , é um homem digno de toda a sympathia . -- É bem interessante a vossa historia , disse o guerreiro : e razão tivestes em affirmar que era engraçada . -- Já vedes , ... que vos não enganei . -- Mas , como sabeis essas coisas , sendo ainda tão joven ? N ' esse tempo tereis quando muito dez annos . -- Sim , e verdade ; não tinha mais , e el-rei meu irmão teria treze ; isto passou-se no ultimo anno do reinado de meu pae ; mas durante muito tempo não se falou em outra coisa , e eu como creança nunca pude esquecer o que ouvi ; e , -- apesar do arabe no outro dia estar só , logo me lembrei que devia ser o mesmo pelos signaes que o Theodosio me deu d' elle , -- porque devo dizer-vos , meu amigo , que o pobre moço fixou bem na memoria o retrato do seu rival . -- Mas vós dissestes no principio que esse caso se passou altas horas da noute , -- tornou o guerreiro ! ... Como poude então o fidalgo ver as feições do amir ? O infante soltou uma gargalhada e respondeu : -- D ' accordo , mas os mouros levavam archotes que alumiavam bem aquella scena , e o parque e o palacio também estavam muito bem illuminados . Isto é o que disse o Theodosio ; -- e elle deve saber melhor do que eu . Fernando de Aragão ouvia attentamente esta narração , não só por compraser com o infante , mas porque tudo o que se relacionava com o amir o interessava sobremaneira . Ainda conversaram mais algum tempo , e depois os dois mancebos dirigiram-se para a galeria do paço esperando que fossem horas de assistir a uma audiencia , que el-rei marcara para as 3 horas d' a- quelle dia . O guerreiro desconhecido conseguira affastar da imaginação as ideias que se referiam ao passado e o intristeciam . APPREHENSÕES Eram 5 horas da tarde . D. Sancho depois de attender aos seus ministros , retirou-se á sua camara aonde o acompanharam o guerreiro e o infante . O monarcha considerava como os seus melhores momentos o tempo que passava junto d' aquelle homem simples e bom . Era tão differente dos cortezãos aduladores que o cercavam , com servil fingimento ! ... Tendo-se el-rei assentado junto da mesa de escrever chamou o guerreiro e lhe disse : -- D. Fernando : eu muito desejaria fazer-vos mercê do titulo de conde , que mereceis em vista los rasgos de heroismo de que destes provas na batalha d' Elvas . Senhor -- respondeu o guerreiro -- não tenho uma ambição que não seja servir-vos lealmente e embater sempre pelos portuguezes . -- Assim , proseguiu elle , espero dever-vos o favor ele eu continuar ao vosso lado , sem outra recompensa que não seja a bondade de vossa mercê para commigo . Então recusaes o titulo de conde que vos offereço ? exclamou o monarcha . Peço vos meu senhor a graça de não insistirdes . Não desejo outro titulo que não seja o de guerreiro . Em verdade , meu amigo , volveu o rei , -- sois um homem excepcionalmente extraordinario ; cada vez vos admiro mais ; e , como comprehendo o vosso desinteresse por todas as honras e fausto , não insistirei mais para não melindrar a vossa delicadeza . -- Permitti , senhor , que vos agradeça reconhecido . El-rei voltou-se em seguida para o infante a quem disse : -- Quanto a vós , principe , tambem devo felicitar-vos . Estou muito satisfeito , pois mostrastes ILEGIVEL e tendes o pulso bastante forte e a mão bem livre para brandir a espada . O infante sorriu de prazer . Era o melhor elogio que lhe podiam dirigir pelo seu valor ; e , aproximmando se do monarcha , curvou o joelho e beijou-me solomnemente a mão . D. Sancho sorriu com bondade e acariciou o ILEGIVEL do rosto do joven principe . El rei tinha poucos amigos dedicados e sinceros . Como e sabido , Affonso , o seu segundo irmão , não se dava com elle ; e sua irmã , a princeza Leonor , estava entregue aos cuidados das aias , que ILEGIVEL da sua educação . Restava-lhe , porem , o infante||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando , que , apesar de contar apenas quatorze annos , tinha uma intelligencia muito superior para a sua pouca edade , e comprehendia bem as atribulações de Sancho a quem amava ternamente . Assim era com o irmão e com o guerreiro que el-rei passava algumas horas em agradavel colloquio , e lhes fazia as suas confidencias . Mas , que podiam Fernando de Aragão e o infante||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando fazer a favor do rei ... n ' uma côrte composta de ambiciosos e egoistas ? ! ... D. Sancho conversava com os seus amigos e expunha-lhes as suas apprehensões pelo futuro O rei andava descontente por vêr o odio que se ia manifestando na côrte , e que lavrava entre nobreza e clero . Soffria cruelmente por não poder pôr termo a este estado de coisas . Via-se coacto . E como não havia de ser assim ? Como poderia um rei . de 17 annos , haver-se com os intrigantes politicos , que eram os mesmos , sob cuja tutela esteve até esta edade e que em tudo preponderavam ? Bem queria D. Sancho impôr a sua auctoridade ; mas era impossivel . A sua voz debil perdia-se no meio da vozearia dos ministros . Era um verdadeiro caos . A REACÇÃO São passados tres annos depois da conquista de Elvas , em que D. Sancho se iniciou como guerreiro e como rei . Estamos em 1229 . Em 1228 falleceu Estevão Soares , arcebispo de Braga . Livre da tutela do arcebispo ( que lhe assombrava a auctoridade ) D. Sancho , agora verdadeiro rei , tratou de organisar a côrte e os negocios publicos , conseguindo ter mão durante algum tempo nos desmandos da nobreza . A realeza voltava a ter algum prestigio . O clero , porém , é que que nunca estava contente ; e , se os nobres ainda respeitavam o rei , a quem admiravam o caracter nobre e animo forte a par de um espirito bastante illustrado , os prelados ao contrario cada vez se insurgiam mais , tornando-se ao mesmo tempo insuportaveis com pedidos e exigencias A reacção ia-se fazendo sentir d' um modo assustador . Quando morreu o arcebispo Estevão , o novo prelado bracharense foi Silvestre Godinho . Se podia comparar-se ao primeiro em ambições , ficava comtudo a perder muito , sob o ponto de vista do talento . Além d' isso , Estevão Soares , apesar da preponderancia que exercia na côrte , era affeiçoado a D. Sancho ; -- emquanto que este novo prelado , Silvestre Godinho , começou logo por mostrar-se hostil ao monarcha , -- queixando-se constantemente ao papa . Já em 1227 o bispo do Porto e o seu cabido faziam outro tanto . O papa||_Honorio Honorio|_Honorio III reprehendia o soberano , mas não poupava tambem os bispos , a quem comprehendia as artimanhas . Era o prenuncio da guerra . Entretanto , tendo morrido Honorio III , succedeu-lhe Gregorio IX , homem de espirito moderno ao sabor da epocha , e prudente . O que mais desesperava o alto clero , era que D. Sancho pozéra em vigor a lei de Affonso II , que prohibia á Egreja a acquisição , por compra , de bens de raiz ; prohibindo tambem o acceitarem doações de mosteiros e egrejas , entre vivos ou por testamento de bens immoveis . Eram estes , pois , os aggravos de que se queixáva o clero , e accrescentava " que não só os padres eram offendidos e acintosamente affrontados pelo soberano , mas tambem a sociedade civil tinha diariamente aggravos . " O paiz estava infestado de salteadores , que impunemente commettiam os mais graves delictos contra as pessoas e propriedades ecclesiasticas , sem que el-rei desse providencias contra taes abusos . Finalmente , era um sudario , que aquelles santos padres desdobravam de vez em quando deante do papa para condemnar e abater o infeliz monarcha . Todavia D. Sancho , honra lhe seja feita , seguindo n ' este ponto o nobre exemplo de seu pae||_Affonso Affonso|_Affonso II , ia luctando corajosamente e sem temor algum com a theocracia . Como sabemos , o monarcha , se algumas vezes era brando , não era por cobardia , mas por ser excessivamente bom e lhe repugnarem os meios violentos . Mas em ultimo caso sabia-se impôr . Durante este tempo não houve noticias do arabe . Todavia não fôra esquecido . D. Sancho , o guerreiro e até o infante , a miudo pensavam no amir . Algumas vezes o monarcha , ao lembrar as prophecias do arabe , estremecia e perguntava a si mesmo , se ellas se realisariam algum dia . O infante tambem não esquecia aquellas palavras , que pareciam uma sentença . " -- Com os vossos arrebatamentos não fazeis mais do que abreviar a quéda de nosso irmão . Depois não vale de nada o arrependimento . " As recordações do guerreiro cm respeito ao arabe eram comtudo bem differentes . O mancebo recordava o seu primeiro encontro com o amir , quando seguindo a caminho de Coimbra com frei||_Thomaz Thomaz|_Thomaz o avistara com sua esposa e filha cm companhia dos mouros . D. Fernando de Aragão nunca poude esquecer a gentil senhora e a creancinha tão linda , que se chamava Amarinda . E todas as vezes que passava por aquelle caminho , julgava que os veria de novo .