JOÃO GRAVE DE+A Academia DE AS SCIÊNCIAS DE LISBOA A MORTE VENCE ROMANCE " leal a ti mesmo_$. mesmo_$. . . " SHAKESPEARE . SEGUNDA EDIÇÃO , EMENDADA PORTO Livraria Chardron , de Lélo & Irmão , L . da editores -- Rua das Carmelitas, 144 Aillaud e Bertrand -- Lisboa-Paris 1922 A criança dormia tranqùilamente , deitada no seu pequenino berço vaporoso de rendas e resplandecendo de brancura , por êsse glorioso meio-dia de calor e de luz , no grande e benéfico silêncio que envolvia a vivenda feliz . A sua carne viriginal e transparente , ainda mal formada , parecia exalar claridade e tinha a coloração suave de certas rosas pálidas e orvalhadas . A cabeleira anelada e loura espalhava-se , como uma ligeira nuvem de ouro , na alvura da almofada , macia e fôfa , que servia de travesseiro ; e sôbre essa fronte angélica não profanada por impuros , venenosos pensamentos , baixava um halo de inocência luminosa e de graça imaterial . Havia no quarto uma penumbra sedosa e frouxa que refrescava o ambiente inefável e que tornava mais imprecisas , mais vagas , as linhas e as formas do mobiliário . Na pacificação deleitosa tudo repousava docemente . Em cima do mármore do toucador , em frente dum largo espêlho em que se reflectiam imagens baças e indecisas , floriam perfumados ramos de cravos brancos em jarras de cristal cheias de água límpida ; e da parede alta pendia , como a protecção celeste da infância adormecida , uma cópia a óleo da Virgem , de Murillo , que , entre anjos alados , extasiava os puros olhos nos fulgores siderais . Cá fóra , o sol -- um ardente sol de junho -- rutilava e ardia na atmosfera pesada e abafadiça . Brandamente , na ponta dos pés para não fazer barulho , Júlia entrou no compartimento solitário , aproximou-se do casto leito do filho , que tinha apenas meses de vida , contemplando-o com enlêvo e ternura . Ela contava então vinte e quatro anos , estava em pleno esplendor da sua beleza e do seu encanto de mulher , a alegria reflectia-se-lhe no rosto e a ventura iluminava-se-lhe na alma . Duma elegância natural e sóbria , vestia um amplo roupão de cassa creme apertado na cinta por laços de veludo preto . O curto decote deixava a descoberto a pele do colo que era setinosa , dourada e sem o mais ligeiro vinco . Um pente de tartaruga com embutidos de ouro segurava a massa dos seus cabelos castanhos enrolados no alto da nuca . Os seios direitos e rijos formavam uma delicada curva sob os tecidos flexíveis , ao arfarem . Dois anos antes , em Vizela , apaixonara-se sériamente por Nuno Aragão , para quem fôra levada por um forte impulso de sentimento ; e com êle casara ao fim dum romântino idílio em que os seus sonhos de felicidade deram flor . Essa união íntima que a fizera espôsa e mãe e a que se devotou com um admirável espírito de abnegação , completou-a . Os dias do seu noivado tam doce fugiram de leve sem que deles ficassem resíduos de tédio ... Absorvida na visão do frágil sêr que lhe trouxera , com a sua pureza e a sua formosura , uma revelação à inteligência e à subtileza emotiva , Júlia ajoelhou junto do berço , compondo a roupa à volta da cabecinha ideal , que a virgindade aureolava , com dedos mais ágeis do que asas -- e nem sequer notava a presença de Nuno que a seguira de perto e que , por detrás dela , sorria comovido . Houve um momento em que Júlia se curvou sôbre a face gorda e picada de còvinhas do filho , roçando-a com os lábios . -- Cautela , não vás acordá-lo ! -- murmurou o marido em voz de segrêdo . Ela voltou a cabeça , sorridente : e , fitando-o com uma emoção que o olhar traía , interrogou : -- Estavas aí ? -- Quis acompanhar-te na tua amorável visita -- respondeu . -- Olha , vem cá ! ... -- pediu Júlia . Não é verdade que é lindo ? Nuno aninhou-se tam perto dela que lhe sentia o sussurro brando da respiração , passou-lhe um braço à volta do pescoço , puxou-a tôda para o peito e ambos se embeberam na adoração da criança que continuava dormindo com a gracilidade e a poesia dum botão de rosa , fazendo um pequeno volume sob as lãs quentes e as cambraias ténues . -- Não é lindo ? -- insistiu Júlia . Fala ! ... -- Como não havia de ser lindo , se veio de ti , da tua purificação , do teu amor ! ... -- Do nosso amor ! -- emendou ela , com palavras de mimo e de queixume , beijando-o demoradamente na bôca . -- Do nosso amor , dizes bem ! -- confirmou Nuno , enleado . -- E é curioso como já na sua carinha se desenham as tuas feições . Vê ... O nariz , a testa , o queixo ... -- São os teus ... -- Não ! São os teus ! -- atalhou Júlia , indicando com o dedo os traços fisionómicos do filho . Ora observa com atenção ... -- Não lhe toques , que podes magoá-lo , coitadinho ! -- exclamou êle . A sua carninha é tam tenra , que até tenho mêdo de amolgá-la , quando a beijo . -- Que tolice ! ... -- exclamou Júlia , rindo . Por um instante , as cabeças de ambos , unidas , fizeram um docel animado sôbre o berço inocente que agasalhava , embalava , um destino misterioso para o qual aspiravam tôda a grandeza , todo o génio , tôda a bondade , todos os favores generosos da sorte enigmática , nessa hora bemdita e profética em que os seus corações palpitavam com o mesmo ritmo e a mesma ânsia , as suas vontades se fundiam numa só vontade e as suas ambições se irmanavam . Depois , com os olhos humedecidos de lágrimas de gôzo interior , ergueram-se , sempre estreitados num apertado abraço , fitaram-se com enternecimento , emmudecidos , penetrados por idêntico júbilo , com a imaginação perdida no encanto das mesmas idealizações . -- Abençoada sejas ! -- disse Nuno . -- E tu tambêm , por esta paz , esta certeza , esta confiança , esta bôa fortuna que comunicaste à minha vida -- atalhou Júlia com convicção , afagando-o no rosto . Saíram do quarto , mirando ainda o filho -- que fôra como que a visitação duma divindade propícia à adoração que nunca deixara de aproximá-los mais desde o instante admirável em que pela primeira vez se conheceram e que , entre os ternos cuidados dos dois , cresceria , se faria homem , prolongaria as suas existências , iria para as éras vindouras , cantando um hino de esperança . Êle representava a expressão definitiva e tangível do amor que os identificara , do desejo puro que os fizera vibrar e que alvoroçara a sua carne , da simpatia física que os juntou . Nas suas veias corria um sangue que era de ambos ; no seu corpo latejava uma carne que lhes pertencia ; e , mais tarde , quando fôsse grande , teria a mesma fé , as mesmas crenças , as mesmas ideias , as mesmas piedades , as mesmas finuras de sentir , a mesma nobreza de aspirações . -- Estou hoje tam contente ! -- afirmou Júlia já na sala , dispondo um " bibelot " sôbre a mesa do centro , coberta com um largo pano pintado , enquanto Nuno acendia um charuto . E êste contentamento vem-me de ti , da tua fidelidade , da tua delicadeza , e vem tambêm do nosso filho . A luz e a ventura que esta criancinha veio trazer à nossa casa , Nuno ! Pois não é assim ? -- É , querida ! -- Parece um milagre ! Às vezes , nem quero acreditar ! ... -- Um milagre que merecíamos . -- Antes dele nascer , tudo em mim eram sustos , receios , hesitações . Em certos momentos , tinha dúvidas que me faziam chorar ! ... -- Dúvidas ? -- Sim , dúvidas ! Que queres ? Aterrava-me o pensamento da morte , do abandôno em que ficavas ... Não era de ti que eu duvidava , isso não ; mas não sei que tristeza me pungia , ennegrecendo , obscurecendo o meu cérebro ... Agora , porêm , tudo se apaziguou , serenaram as inquietações , tranqùilizaram-se os sobressaltos ... Foi para o marido , que a esperava no meio da sala , com um sorriso de fadiga que a tornava mais graciosa e mais bela , as pálpebras meio cerradas , os braços caídos e sem acção , e , encostando-se-lhe ao ombro forte , acrescentou : -- E sempre te direi que o nosso filho me inspira uma veneração maior por ti e me fez melhor , mais compadecida por todo o infortúnio , por tôda a humana desgraça , por todo o vasto sofrimento . -- Se tu és uma santa ! -- disse Nuno , abraçando-a novamente e com uma comoção imperceptível na voz . -- Não ! Sou apenas mulher e mãe . E é por isso que me lembro constantemente da desdita das outras mulheres e das outras mães . Ainda ontem , por exemplo , não pude reter o pranto -- oh ! um pranto que me desoprimiu ! -- ao ver brincar na quinta os filhos do caseiro , descalços e tam rotinhos , com as faces chupadas e macilentas e uma funda melancolia no olhar ... Antigamente , êstes espectáculos lamentáveis passavam-me despercebidos , Nuno ... -- O mundo está cheio de desigualdades , com efeito . -- Mas é doloroso que haja fome ao lado da nossa abundância ! ... -- Há de fazer-se alguma coisa , sossega ... -- Porque a verdade é que o nosso filho , se fôssemos pobres , andaria por aí tambêm faminto e nú como os outros , os que nada teem ! ... É êle que me pede pelos deserdados ... -- Não digas isso ! -- acudiu Nuno , de repente , muito perturbado ... O nosso filho esfomeado e rôto ! ... Bem sei que não pretendes acusar-me de injustiças que não pratiquei ... Eu mal conhecia esta quinta e a gente que a habita ; ainda hoje não conheço o caseiro e ignoro as suas misérias . Antes do nosso casamento , só uma vez vim aqui , porque a existência tumultuosa das cidades solicitava-me , reclamava-me e aturdia-me . Há uma semana apenas que nos encontrâmos neste sitio e nestas terras , que são nossas . Não tive tempo para familiarizar-me com a sua população , para tudo saber minuciosamente ... -- Oh ! meu amor , quantas palavras inúteis ! -- Não ! ... É que me fizeste vislumbrar , de repente , possíveis castigos , terríveis calamidades , abatendo-se sôbre criaturas sem culpa ! ... -- Eu não queria ... -- atalhou Júlia , perturbada . -- Certamente , certamente ! -- disse Nuno , beijando-a na fronte e nos olhos . É escusado defenderes-te ... Mas é que as palavras das mulheres que amam como tu amas e que no seu amor abrangem tôda a vida consciente , teem uma profundidade , uma vastidão e uma inflexão que conturba ... De resto , tu só foste justa : -- e esta noção exacta da justiça significa a superioridade das almas femininas sôbre os homens , duros , sêcos , implacáveis . Com efeito , para sermos absolutamente felizes , é necessário que à nossa volta só haja felicidade ... -- Então , bem vês ! ... -- Pois está claro , querida ... Obrigado pela tua lição tam digna e tam eloqùente . A tua elevação moral sublima o que em mim ainda existe de grosseiro e de egoista . Sem o teu aviso , continuaria a haver , perto de nós , privações e amarguras . Eu nada via ; tu , com a subtileza dum amor materno incomparável , viste tudo , num relance . Ensina-me sempre . Não sou mau , com certeza , mas incompleto : felizmente , tu completas-me e por isso a minha gratidão subirá perpétuamente para ti como o perdão dos crentes sóbe para o céu ... Tinham-se sentado num amplo sofá de molas flácidas que , a um canto , convidava ao repouso . O sol vivo que se filtrava pela vidraça da janela respirando para o jardim , batia , já atenuado pelo " store " de linho cru e pelo tule dos cortinados , sôbre as rosas que morríam nos solitários , faùlhava sôbre os móveis , dourava fugidiamente o papel verde que forrava as paredes . De longe chegava o som duma nora rangendo no meio dum imenso campo de milho e produzindo um ruído especial e ritmado de tear . Júlia , encolhida perto de Nuno , com as mãos esquecidas no regaço , tornava-se mais pequenina , mais humilde , como se temesse pesar demasiadamente sôbre aquele amor que pressentia isento de tôda a mácula , perfeito de dedicação e de constância -- um amor que era a razão do seu sêr e o seu maior orgulho . As expressões carinhosas de Nuno faziam-na còrar , causavam-lhe uma sensação de inexprimível bem-estar e de pacificação interior . No seu sobressalto , nem sabia que responder , não encontrava os termos precisos com que manifestar a sua gratidão . -- Que maravilhosa manhã eu passei hoje na tua companhia , minha preguiçosa ! -- exclamou Nuno , quebrando a monotonia dum silêncio que se ia prolongando . -- Estou tam cansada ! -- afirmou Júlia , pousando-lhe a cabeça no ombro . E olha que não tenho feito nada . -- Anunciará êsse cansaço alguma doença ? -- Não , que ideia ! Nunca me senti com tanta saúde . Êstes ares campestres teem-me feito muito bem . Por mim , não saíria mais daqui ! -- Então , encontramo-nos na mesma ambição , o que não me surpreende , porque já nos havíamos encontrado no mesmo sentimento . -- Pois queres , na verdade ? ... -- perguntou ela , fitando-o com infinita meiguice . Que prazer me dás com isso ! ... Arrependendo-se , porêm , dum contentamento que não soubera esconder e que lhe parecia impuro , atalhou prontamente : -- Não , não ! ... Que loucura ! Na cidade , tens os teus amigos , os teus passatempos , as tuas conversas , as tuas distracções . Aqui não há nada disso . Terminarias por aborrecer-te , por enfadar-te ... -- É necessário que saibas que não há coisa que me cative , longe de ti , fóra do nosso lar , para alêm do berço do nosso filho . Nem sequer tenho pensamentos que não sejam os teus . Júlia , no entanto , teimava na certeza de que a permanência constante na quinta seria o sacrifício de Nuno , segura de que se não pode romper sem violência com hábitos contraídos e fundamente enraízados : e , para que a sua teimosia encontrasse vibração no marido , asseverava : -- Eu mesma viria a sofrer neste êrmo , mais tarde . Enquanto durar o verão , isto será , realmente , bonito . Há luz , há horizonte , podemos dar largos passeios , admirar tôda essa paisagem deliciosa , sentir tôda a poesia rural ... Mas depois , quando aparecer o inverno , com os seus dias e as suas noites de chuva , a sua desolação , os seus frios , as suas tempestades , a cidade , que é o movimento , a variedade , a sociabilidade , voltaria a apetecer-nos ... Falando assim , Júlia estava intimamente convencida de que defendia a continuidade da adoração de Nuno , a sua felicidade permanente , a inalterável placidez de relações conjugais que um mal entendido seria capaz de comprometer irremediávelmente . A ternura que sentia pelo marido e que se lhe apoderara do sangue , da substância nervosa , de todo o seu organismo psíquico e material , afinava-lhe a inteligência , tornava mais arguta a sua capacidade de analisar e de compreender . Não aspirava , únicamente , ao amor de Nuno , mas tambêm à sua gratidão e ao seu respeito . Residir para sempre na quinta , distante dum bulício que a desgostava e de episódios sociais que a não interessavam , sería o seu supremo desejo -- um desejo a que Nuno acederia alegremente : mas considerava que o isolamento , a ausência de convivências e de amizades , a falta de ocupações recreativas , viriam fatalmente a deprimir e entristecer aquele homem que era o mais fiel dos homens e que , para a amar mais puramente e mais intensamente , renunciara a tudo o que fôsse estranho à sua paixão . -- Ah ! se é por isso ! ... -- disse Nuno . Na verdade , não te habituarias a êste deserto , minha filha ... Eu sim , porque gosto da solidão , porque as multidões fazem-me mal . Mas , o que eu não permito é que te sacrifiques ... Uma criada entrou , trazendo o correio que acabava de chegar . Eram jornais e cartas que Nuno começou a abrir distraídamente , enquanto Júlia continuava a arrumar com mais ordem e mais elegância as peças do mobiliário , a deitar água nas jarras das flores , a espanejar o pó leve que maculava o verniz das " étagères " . -- Tu não tens quem faça êsse serviço ? -- perguntou Nuno , parando um momento de lêr a sua correspondência . -- Oh ! filho ! Deixa-me ocupar em alguma coisa ... Depois , é uma séca . Por mais que recomende e que ralhe , nunca me atendem , não fazem nenhum caso do que digo . Isto de criadas ... -- Procuram-se outras melhores . -- Ora ! São tôdas piores ! ... -- exclamou Júlia , rindo . -- Mandam-se fabricar por um modêlo que tu escolherás à tua vontade , com molas vindas das oficinas de Londres , movendo-se por um sistema de relojoaria ... E tu verás então como obedecem , como são atenciosas e pacientes ... -- respondeu êle , rindo tambêm e reencetando a leitura interrompida . A vélha habitação , onde outrora tinham vivido os avós de Nuno , que eram abastados proprietários rurais , parecia cabecear de sono sob o dourado , faíscante banho do sol , sem que o menor ruído perturbasse a sua sonolência . Altas roseiras de trepar subiam pelas paredes cobrindo-as de vermelhas e míudinhas rosas de toucar . No pombal , que ficava ao lado , perto da capoeira , arrulhavam as pombas aos pares . Errava no ar um dormente zumbido de moscas . -- E esta ? -- bradou Nuno , de súbito , pousando sôbre uma cadeira a carta que tinha entre as mãos . -- Que é ? -- inquiriu Júlia , aproximando-se . Alguma novidade ? -- Uma novidade estupenda . Nem tu calculas . Sabes quem vem aí , fazer-nos uma visita ? -- Não sei , não posso adivinhar ... -- Pois devias , para seres absolutamente perfeita , dispor dêsse+esse dom ... Quem vem aí visitar-nos é Frederico , aquele rapaz que foi meu camarada e que é o meu , o nosso melhor amigo ! ... -- Tinha-lo convidado ? ... E não me dizias nada ! ... -- Escrevi-lhe , antes de partirmos para aqui , como me obrigava o meu afecto . Ofereci-lhe , na nossa casa , uma enxêrga e uma tigela de caldo , à severa moda de Esparta ... E êle aceitou . Bom , excelente Frederico ! ... -- Quando chega êle ? -- Estará , entre nós , àmanhã ao romper do dia . Já almoça . Dá as tuas ordens para que se arrange um quarto a êste vagabundo que tam amávelmente se lembra do nosso exílio ... Será uma companhia . De dentro , da alcova , veio um débil vagido que deteve repentinamente a conversa de Nuno e de Júlia . -- Sua_ex._^ Sua_ex._^ Sua_ex._^ a despertou e reclama , naturalmente , o " lunch " -- disse êle , levantando-se . Onde está a ama ? -- Lá em baixo , a brunir . Vai chamá-la , enquanto eu entretenho a criança -- murmurou Júlia , dirigindo-se ao quarto . Nuno pegou nos jornais e nas cartas apressadamente lidas e desceu ao pavimento inferior , gritando pela ama do filho , que acudiu tôda afogueada do calor do ferro . Era uma rapariga na fôrça da vida , saùdavel , bem constituída , de fortes seios estalando de seiva sob o pano do colete , braços gordos e estriados de rija musculatura . -- Corra lá acima à senhora . O menino acordou agora mesmo . Ela galgou logo as escadas ágilmente , num rumor de saias engomadas , exclamando jovialmente : -- Aí vou , meu amorsinho , aí vou ! ... Nuno , satisfeito com as suaves emoções daquela clara e plácida manhã familiar , saíu para o jardim que , à roda da vivenda tranqùila , rescendia e refrigerava , com os seus canteiros coloridos onde desabrochavam os cravos rajados e as derradeiras rosas do estio . Estava um tempo maravilhoso . O céu luzente e translúcido arqueava-se sôbre a quinta como um enorme pálio de sêda azul sem uma ruga . Os negrilhos , as tílias , os amieiros e os plátanos deixavam caír das suas espêssas folhagens a consolação afável das sombras . Pelas ramagens que sussurravam à brisa adejante , cantavam as aves . A cada passo , amplos bancos de cortiça , que as copas dos vetustos arvoredos amenizavam de fresquidão , solicitavam ao descanso e Ãs séstas aprazíveis . Nuno , passeando vagarosamente , ia pensando que por ali se teriam sentado outrora , nas tardes de calor , as senhoras da sua casa com os livros dos poetas esquecidos no regaço , sempre que de verão vinham procurar ao campo a saúde e as bôas côres que a cidade lhes roubava . Aquele retiro estava cheio de recordações , de saùdosas memórias dos antepassados . Sua mãe , que havia falecido dois anos antes de êle se casar com Júlia , passara no doce refúgio -- em que agora se encontrava com a família que constituira e que era todo o seu enlêvo -- a primeira infância , saltando pelos arruamentos que o Jacinto jardineiro trazia sempre bem areados , regados e varridos . Evocando piedosamente a figura de mamã , que fôra tam gentil e que uma doença cruel bem cedo arrebatara , Nuno concentrava-se , recolhia-se para com mais intensidade sentir . Pobre , pobre mãe precocemente morta e que com tanto fervor lhe queria ! Revivia-a na imaginação , reconstituia-a com nitidez . Parecia-se ainda um pouco com Júlia na bondade , na afabilidade , nas maneiras , no timbre da voz , na candura e na meiguice materna . Existiam nelas mesmo determinadas semelhanças exteriores que o surpreendiam -- nos olhos que , em ambas , eram negros , profundos e húmidos , na finura das linhas plásticas , na brancura da pele , na nobreza da expressão fisionómica que reflectia conjuntamente a paixão , a gravidade e a graça . Sobretudo , quando observava o sorriso de Júlia -- um sorriso em que havia qualquer coisa de castidade infantil , de seriedade ponderada e de ternura ingénua , Nuno assistia , deslumbrado , a uma verdadeira ressurreição . E foi por isto , de-certo , que amou desvairadamente a espôsa desde a primeira noite em que a viu , no salão dum hotel de Vizela onde se dançava , e que ainda a amava e amaria sempre com o mesmo transporte e a mesma firmeza . A mãe , que não fôra feliz no casamento -- porque o marido desertava do lar conjugal para correr atrás doutros amores , para atirar ouro aos punhados sôbre as bancas do jôgo , para dissipar uma existência que nunca encontrou sossêgo senão na sepultura -- ressurgia na mulher admirável que era a sua doce companheira e que , com geito divino , devotando-se-lhe , lhe fizera a revelação da felicidade ! ... Continuando o passeio e embebendo-se em lembranças , que aviventava para seu gôzo espiritual , Nuno chegou , insensivelmente , a meio da propriedade , que era de vastas dimensões . Para lá do parque frondoso , com uma rica decoração de troncos nodosos e recobertos de musgos parasitários , ficava o pomar que vergava de frutas pelos outonos elegíacos , quando as fôlhas amarelas caíam como asas que cessassem de bater : e mais abaixo , espraiavam-se as terras de cultura , as pastagens para o gado , abundantemente regadas por águas espertas e vivas que desciam , cantando , das bôcas negras das minas , frias e saborosas : o casebre dos caseiros pegado aos currais : a eira todo o dia batida de sol . Ao fundo , um pinheiral cerrado de rama verde-negra , que dava a lenha para o lume , fechava à vista a linha do horizonte . Das bandas do norte , elevavam-se espinhaços de serranias escarpadas , correndo dum extremo a outro e azulando-se , no crepúsculo , com os nevoeiros que , como um fumo ligeiro e branco , ascendiam das profundidades do vale , afogado em vegetações exuberantes . A quinta , situada nos arredores de Guimarães , pertencia já a Nuno ainda em vida dos pais . Legara-lhe&lhes+a seu avô materno , aterrado certamente com as dissipações do genro que fundia em orgias , em viagens que não tinham fim , em ligações ilicitas , o dote da mulher legítima e que ameaçava deixar na miséria , aos acasos incertos do destino , o filho único . Ah ! êsse pai ! Nuno não queria mal à sua memória , que venerava , recordava-o com saùdade e com mágoa , não invejava o dinheiro que êle espalhara estérilmente com mãos perdulárias . Desculpava-o . Era fogoso , irreflectido , embrenhava-se em aventuras arriscadas , perseguindo uma ilusão dos sentidos que jàmais alcançou , tinha um irónico desdêm por tôdas as convenções , caracterizava-se por uma rebeldia de temperamento que nenhum conselho prudente e fecundo conseguia apaziguar ; o seu egoísmo de " jouisseur " não admitia restrições naquilo que julgava essencial ao seu gôzo próprio ; fôra , talvez , um doente , uma organização enfêrma expiando sucessivas acumulações de hereditariedade mórbida que vinham de longe , prolongando-se em gerações taradas e denunciando um doloroso fim de raça . Obedecera passivamente , por ausência de vontade , aos secretos e vertiginosos impulsos do seu mal interior -- do mal que insaciávelmente o roía , lhe debilitava o carácter , o esgotava de energia para tôdas as reacções nobilitantes ... O amor tornava Nuno generoso . Só lamentava que sua mãe tanto tivesse sofrido sem se queixar , transida , conformada com o infortúnio , agarrando-se ainda nervosamente ao seu verdugo como as heras se agarram a uma árvore carcomida , negando-se com obstinação a separar-se dele e a voltar para o lar paterno , onde seria recebida em festa e onde a sua existência atribulada encontraria suavidade e consôlo -- porque , a- pesar-de tudo , continuava a amá-lo com ansiedade , com loucura , com uma constância que nunca afrouxou . Pensando neste caso singular de devoção e de sacrifício , Nuno julgava que havia herdado da mãe as virtudes afectivas , a rectidão , a lealdade , a sensibilidade aguda -- e considerava-se feliz por isso ... Meteu-se resolutamente por um fechado milheiral , onde amadurecia ao sol de Deus o pão sagrado que daria alento e fartura Ãs bôcas famintas e pálidas . Largas fôlhas compridas como espadas roçavam-lhe o rosto , açoutavam-lhe as mãos ; as suas botas atolavam-se no terreno remexido de fresco e humedecido das regas que levavam o alimento Ãs raízes ; um cheiro acre de seivas e de ervas esmagadas impregnava a aragem . Nuno aspirava-o a fundos haustos , murmurando , regalado : -- Ah ! isto vigoriza , tonifica ! Da banda do nascente , uma poeira de luz flutuava sôbre os píncaros das montanhas escalvadas que , por vezes , na sua imobilidade , tinham atitudes quáse humanas , sugerindo formas gigantescas e animadas , curvando-se sôbre a sombra , o vazio dos abismos . Enquanto caminhava e admirava êste maravilhoso trecho de paisagem , Nuno ia recebendo uma lição de coisas ignoradas . Com efeito , era aquela a primeira vez que visitava tam minuciosamente a quinta , que fôra a morada pacífica e venturosa dos seus avós , da sua gente . Só ali tinha vindo uma vez , de fugida , para conhecer uma parte dos domínios territoriais de que era senhor , mas não passara do jardim , onde por sinal havia colhido um cravo branco com que floriu a lapela do seu casaco de casimira inglesa . Ao cabo duma curta hora , logo abalou para o Pôrto , onde nascera e onde vivia , alarmado com tanta solitude , penetrado de melancolia e de desalento , sem compreender como certas criaturas podiam permanecer longe das cidades , do seu movimento , das suas seduções , dos seus aliciantes espectáculos . Nesse tempo , estava ainda solteiro , completava na Academia Politécnica o curso de engenharia , era revolucionário como todos os seus camaradas , freqùentava com assiduidade as reùniões políticas em que se conspirava contra a Monarquia , tinha rixas com a polícia e namorava as costureiras . Agora , porêm , via com olhos diferentes dos dessa época , possuía uma compreensão mais lúcida , tudo nele se havia modificado , existia na sua alma um sentimento mais equilibrado e mais justo . A inquietação antiga apenas servira para transmitir um grato sabor á paz actual : a reflexão e o estudo tinham-lhe revelado o mundo e as sociedades por um outro aspecto . Para êle , as " urbs " onde se agitam os densos formigueiros de seres conscientes , gritando os seus desesperos e as suas cóleras , representavam a tentação corruptora , a deliqùescência , eram as sinistras geradoras da dor e dos pessimismos modernos : e o campo , a aldeia , constituíam os reservatórios da vida salubre , os últimos santuários da crença religiosa e da felicidade onde os réprobos deviam retemperar-se anualmente . Como a sua mocidade fôra inconsiderada ! Em compensação , como os seus trinta e cinco anos eram sábios e estavam na verdade ! ... Ao romper do milheiral em que se perdera , encontrou uma clareira bucólica de terra que andava a horta , onde cresciam e enconchavam as couves tronchudas , verdejavam as tiras das alfaces e os talhões de feijoal ondulavam ao vento brando . Um homem , em mangas de camisa , magro , esguio , de rosto queimado pelos ardentes bafos das soalheiras , cavava , com uma grande tristeza na face , em que se emmaranhava a barba crespa e negra , e nos olhos que fulguravam . Nuno foi direito a êle , saùdando-o amigávelmente . O cavador , tirando o chapeú esburacado e sujo , murmurou com humildade : -- Salve-o Deus , meu senhor . Durante um momento Nuno entregou-se à contemplação do pobre trabalhador , de cara macilenta e mãos calejadas e nodosas , em que os dedos deformados lembravam negras raízes . A camisa aberta no peito deixava a descoberto uma pele macerada , repuxando sôbre os ossos salientes : e uma grande piedade comoveu Nuno por tanta miséria . -- Vocemecê -- perguntou êle -- é que é o caseiro ? -- Saiba vossa senhoria que sim . Já lá vai um ror de anos depois que para aqui entrei , e tenho pago honradamente as rendas . -- Bem sei , bem sei ! Eu sou o dono da quinta ... -- Pois vossa senhoria é que é o netinho do snr. Vicente , que Deus haja ? -- Sou eu mesmo ... -- Oh ! meu senhor ! Desculpe , que eu não o conhecia . -- Mas , desculpar o que , bom homem ? ... -- É que eu nem sequer fui vê-lo lá acima , ao palácio ... Não podia adivinhar ... Tinha-me dito o snr. José , procurador , que vinham viver na casa grande por algum tempo uns senhores , mas eu não contava ... Sempre uma assim ! A gente anda cá nas nossas apoquentações , não tem vagar para nada ... E imediatamente , vergado ao hábito da obediência , submetido ao jugo da escravidão que sempre , no decurso duma vida trabalhosa e amarga , o coagia a rojar-se , a fazer-se mais pequeno diante dos poderosos , atirando a enxada para a leiva revolvida , aproximou-se de Nuno , baixando a cabeça descoberta como para receber o justo castigo duma grande falta . -- O senhor perdôe ... Eu não sabia ... -- Homem , já lhe disse ! ... Não tenho que perdoar . Está claro que a sua visita era-me agradável : -- mas como amigo e não como dependente . É boa ... Ponha o chapéu . -- Como amigo , como amigo ! ... -- mastigou o caseiro , com a língua embrulhada na bôca e os olhos rasos de água , conservando o chapéu nas mãos . -- Como amigo , certamente ... E ponha o chapéu . Agora , mando eu . Ponha o chapéu , avie-se . -- Isso é que não ... O respeito não fica mal a ninguêm . É um dever ... -- Se não pôe o chapéu , zango-me e vou-me embora ... -- Ora essa ! ... Pois ! ... -- Afirmo-lhe&lhes+o ! Ou faz o que lhe peço ou retiro-me ... -- Então , com sua licença , fidalgo ... -- E vamos conversar à bôa paz ... Está contente com os terrenos que traz arrendados ? -- Eu não me queixo ... Vão dando para viver , com a ninhada dos filhos e a mulher entrevada , melhor ou pior , como Deus é servido . -- Pois , não tira lucros ? -- Umas vezes pelas outras tiro , sim , senhor , que a terra anda bem tratada . Não lhe roubo ao sustento preciso ... Mas lá vem um ano mau em que parte das colheitas se perde , lá morre um boi , e vão-se as economias escassas , para uma pessoa não ficar envergonhada ... Adeus , minhas encomendas ! Percam-se os aneis , mas conservam-se os dedos , como o outro que diz ... -- Ah ! eu julgava que a lavoura era remuneradora . -- A terra é quáse sempre ingrata para os que dela vivem , senhor ... Alêm disso , para recolher é necessário semear e o dinheiro não me sobra ... Mas isto não é chorar-me . Não quero aborrecê-lo . Vive-se com o muito e vive-se tambêm com o pouquinho ... -- E a mulher entrevada , disse ? -- É verdade , coitada ! Fiquei dum dia para o outro sem o braço que me ajudava , e ando consumido , cá por dentro , de vê-la sofrer . Depois que teve o último filho , nunca mais se ergueu ... -- Infeliz ! ... E os médicos ? ! ... -- Os médicos ... São muito caros . Veio aí um algumas vezes , para me dizer que o mal não era de morte mas que não tinha cura ! ... E o que mais me custa , meu senhor , é que a pobre de Cristo está sempre a pensar na labuta , na canseira do trabalho , e quando vou para comer a migalha , costuma dizer : -- " Oh ! meu homem , que te matas ... Oh ! criatura que não tens um momento de descanso e eu para aqui a curtir a minha doença , sem poder auxiliar-te ... Que Deus me leve ! " ... Enfim , corta o coração , coitadinha ... E foi sempre tam minha amiga , Senhor||_do|_céu do||_do|_céu céu|_do|_céu ! Estamos casados há anos e damo-nos como Deus com os anjos ... Enquanto falava , o cavador limpava as lágrimas , que lhe corriam em fio dos olhos , às costas da mão negra e cheia de terra . Nuno , condoído , desviara a vista . -- Quantos filhos tem ? -- Em casa tenho seis . Quatro , três raparigas e um rapaz , já casaram . -- São grandes , os que vivem consigo ? -- Dois lá me vão ajudando a levar a cruz ao Calvário . Os outros são pequeninos ... Teem a fatia do pão , mas falta-lhes a mãe para olhar por êles ... -- Pois , está bem ! Creio que a renda anda um pouco elevada ... Hei de falar com o meu procurador ... E ouça ... -- Oh ! meu fidalgo , eu não pedi que me baixasse a renda ... -- acudiu o caseiro , de fronte erguida por uns restos dêsse+esse orgulho que existe tambêm no coração dos desgraçados . -- E ouça -- continuou Nuno -- disse há pouco que , se tivesse dinheiro , faria com que a terra produzisse mais . Terá êsse dinheiro . Sou eu que lhe&lhes+o empresto ... Nada de agradecimentos . Pagar-mo há quando o tiver ... Quanto à entrevada , é preciso tratar dela . Minha mulher há de ir vê-la -- porque as mulheres entendem-se umas Ãs outras . E adeus ! -- concluiu , estendendo-lhe a mão . O caseiro olhou com espanto a mão aberta , franca e leal de Nuno , cravou depois no rosto do seu senhorio os olhos atónitos e fulgurantes como carvões acesos , muito enleado , sem nada compreender , sem fazer um movimento , sem murmurar uma palavra . -- Adeus , bom homem ! -- insistiu Nuno . Não se acanhe . Tenho apertado a mão a criaturas muito menos dignas do que vocemecê é ! Então , o caseiro , entalado de soluços , rendido de admiração diante de tanta grandeza de alma , apoderou-se daquela mão purificada que se baixava bondosamente para levantar os que sofriam e que eram humildes , gaguejando , com a voz entaramelada : -- Ah ! meu amo , que isto é o fim do mundo ! Um fidalgo como vossa senhoria a tratar assim um ninguêm como eu ! ... Bemdito seja o Senhor , que ainda há tanta gente bôa ! E , na sua exaltada gratidão , queria beijar a mão que Nuno lhe dava . -- Não , isso não ! Há maneiras de reconhecimento que se não aceitam , porque melindram quem as pratica e quem as recebe ... -- Deixe-me , meu senhor ! ... Ainda há pouco disse : " meu amigo ! " Um lagalhé , como eu , amigo de vossa senhoria ! ... Nuno , por fim , desembaraçando-se do cavador , despediu-se e afastou-se dele , enternecido e murmurando entre dentes : -- Creio que realizei hoje a melhor acção de tôda a minha vida ... E devo a sua inspiração a Júlia ... Que horror ! Tanta miséria , mulher entrevada , criancinhas com fome e eu a alimentar a minha opulência com o esfôrço desta penúria ! ... Dirigindo-se novamente para o jardim , meditava que , para as almas sensíveis , as transfiguradoras alegrias de bem pouco dependem . Bastava para conquistá-las , um gesto mais espontâneo de bondade ... Como o seu dia fôra proveitoso , efectivamente ! Vivera momentos inolvidáveis junto do berço do filho , que dormia como uma doce flor por desabrochar com tôda a alma inocente reflectindo-se-lhe na face , que era inconsciente , que mal reparava ainda nas coisas que o cercavam e que , no entanto , enchia tôda a casa , tôda a sua vida , todo o seu amor de encanto , de esperança e de perfume ! Depois , a adoração da espôsa dera-lhe uma lição de magnanimidade e fizera-lhe sentir a branda promessa duma ternura eterna , duma inalterável dedicação que o iluminaria pelos anos fóra . Em seguida , recordara a memória venerável da mãe , no seu passeio pelo parque -- essa mãe que tanto o tinha amado e que , mesmo morta , era uma radiante luz de que lhe vinha claridade e beleza moral , e corrigira nobremente desigualdades sociais , decidido a conceder um pouco mais de bem estar a sêres desditosos que activamente lidavam , acrescentando a sua riqueza . Para que nada faltasse à formosura dêste+este dia magnífico , até o seu único amigo e seu companheiro de estudos e de boémias românticas , acabava de anunciar-lhe que viria passar junto dele uma semana , um mês ! Levantara-se com sorte , certamente . Há horas predestinadas para a ventura , como há outras predestinadas para a desgraça ... Entrou em casa , trazendo debaixo do braço jornais que não abrira e cartas a que não ligara atenção , exceptuando a de Frederico , que era sumamente grata à sua amizade . Subindo ao primeiro andar , foi encontrar Júlia com o filho , gordo , robusto , de cabelo muito louro e uns olhos muito azúis , nos braços amorosos . Nuno beijou a criança com mais devoção do que beijaria uma imagem religiosa , beijou tambêm a espôsa longamente na testa e na bôca , para agradecer-lhe a felicidade de que transbordava . -- Que é isso , que é isso ? -- perguntou ela , sorrindo com aquele sorriso que lhe fazia evocar a mãe . -- É que te amo , que te amo , e que não sei dizer-te por outra forma o meu amor ! Frederico chegou , com efeito , na manhã seguinte e foi efusivo o abraço que trocou com Nuno , ao saltar do automóvel , diante do portão do jardim que um grande ramo de jasmineiro em flor cobria de sombra , de frescura e de aroma . Enquanto os criados conduziam as malas de viagem , do carro para casa , êle , compondo a roupa desmanchada e alisando , com a mão , os cabelos despenteados , dizia para o amigo : -- Menino , o que eu agora mais desejo , antes do almôço , que ficarei devendo à tua generosidade , é um banho frio que me restitua a elasticidade aos membros entorpecidos e me purifique da poeira da jornada -- uma poeira corrosiva que me morde a pele . -- Pois terás êsse banho purificador , homem ! -- prometeu Nuno , alegremente . Foram andando pelos arruamentos que corriam junto dos canteiros rescendentes , no inspirador silêncio matinal . -- Tu tens isto lindíssimo , na verdade . Sente-se a ventura , o encanto de viver à volta desta habitação que eu creio bem que seja a morada da Fortuna ! ... E como vai a saúde da família ? Próspera , não é assim ? ... Desculpa . Tinha-me esquecido de cumprir êste elementar dever de cortesia . Do lado que dava para o parque havia uma escada de pedra com grade de ferro pintada de verde , subindo , entre redouças de trepadeiras que a bucolizavam , até ao primeiro andar , sob a folhagem fechada duma acácia . Tinham êles galgado o primeiro lanço , quando Júlia apareceu no alto , vestida com simplicidade e gôsto . Frederico , tirando o chapéu , exclamou logo , ao avistá-la : -- Oh ! minha senhora ! ... E avançou , mais apressado , de mão estendida , acrescentando : -- Venho pedir um pouco de repouso , de tranqùilidade espiritual , Ãs divindades protectoras dêste+este lar , que é o Palácio da Ventura ... -- Seja então bemvindo -- acudiu ela , tôda risonha . -- Não o acredites , Júlia ! É um réprobo e tem o sentimento derrancado -- gritou Nuno . Ainda agora me dizia da aldeia coisas pavorosas . Não te admires se êle , logo à tarde , bocejando o seu aborrecimento e renunciando a uma conversão de alma , nos fugir para a cidade ... Frederico , voltando-se para o amigo , murmurou com ar cómico e forçadamente constrangido : -- É , então , assim que o afecto fraternal compreende e pratica as obrigações sagradas da hospitalidade , mentindo para me comprometer ? Com franqueza ! Isso não é leal ... Júlia , còrada e encantadora no seu pudor e no seu recato de espôsa e de mãe , ria enlevada . -- Deixe-o falar ! -- Pois se eu , só de atravessar a pacificação campestre , embebendo-me , impregnando-me da sua doçura , até já me sinto outro e me parece que dentro de mim um outro coração renasce ! ... -- disse Frederico . -- É que o Espírito Santo estava à tua espera para baixar-te sôbre a cabeça em língua de lume e iluminar-te -- zombou Nuno . Entraram na sala que as flores das jarras incensavam . Por tôda a parte se notava logo o cuidado e a subtileza duma diligente " ménagère " , tal era a ordem , a elegância , o claro aceio daquele atraente lugar de repouso . Sentaram-se um momento , conversando . -- Quis , então , dar-nos por algum tempo o prazer da sua companhia , abandonando as alegrias da vida citadina ? -- perguntou Júlia . -- Nuno assim mo impôs . E creia V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a que nunca imposição alguma foi mais brandamente acatada por um rebelde como eu sou -- afirmou Frederico . Um relógio de bronze dourado , montado em colunas de alabastro côr de rosa , marcava as horas sôbre o mármore do fogão , quebrando com o ritmo do seu " tic-tac " a paz do compartimento : e evolava-se de tudo o que os cercava essa serenidade , êsse divino mistério inspirador , essa graça imaterial que só existem nos ambientes calmos em que as almas de " élite " fazem a troca mútua das suas afeições puras , das suas emoções delicadas , das suas aspirações nobres . -- De-certo que não encontrará aqui as distracções que um grande centro de população pode oferecer -- exclamou Júlia . No entanto , haverá para o snr. uma sincera amizade . -- Eis tudo de quanto eu preciso , minha senhora , porque a amizade é o que ainda vale no egoísmo e na tristeza da nossa época . -- Mas , não terias perdido a virtude , o dom e motivo de senti-la ? -- interrogou Nuno , com ironia afável . Êste homem é um perdido , Júlia . Vamos a ver se conseguimos levá-lo de novo para a luminosa vereda da verdade ... E vai-te arranjar , criatura , que aqui , na aldeia , almoça-se cedo , janta-se cedo e deita-se a gente ao anoitecer ... -- Bem ! Começa a minha regeneração -- murmurou Frederico , erguendo-se . Se me concede licença , minha senhora , vou tratar da " toilette " . Vejo que Nuno , antes de me servir o alimento , pretende servir-me um método . É justo . Quem dá o pão , dá o pau ... -- Se precisas dele ! ... -- Do pau ? -- Não , desgraçado , do método ! ... Nuno acompanhou-o ao quarto , enquanto Júlia descia à cozinha . A tranqùilidade envolvente era tam profunda que os menores ruídos adquiriam uma prolongada vibração . Ouvia-se a voz dos carreteiros ao longe , excitando os bois nas subidas e as cantigas dos ranchos de mulheres que trabalhavam nas terras de cultivo , sob o banho fluido e louro da luz . Nuno , deixando Frederico , veio um instante para a varanda envidraçada exposta ao sol , sentando-se numa cadeira de encôsto , perto dos vasos com avenca e com begónias de estufa , de largas fôlhas espalmadas e ferruginosas , onde costumava passar as tardes com Júlia , contemplando a ondulação dos milheirais que se estendiam por todo o vale , a ramaria dos pinheiros vasta como um mar de verdura , a mancha azulada das montanhas de perfil irregular e que formavam , das bandas do nascente , uma rica , prodigiosa scenografia natural . Estava contente , a vida tinha para êle um grato sabor , nesse momento . Por mais absorvido que andasse na sua feliz , plácida existência conjugal , não podia subtrair-se a determinadas influências que certos factos produziam . A vinda de Frederico tinha acordado , para seu regalo , um mundo de sensações longínquas , de recordações adormecidas . Com a presença do amigo , ressuscitavam tambêm a sua mocidade distante , os anos consagrados ao estudo , à conquista duma posição social que lhe imprimisse maior relêvo à personalidade , as ilusões que fôra tecendo , as esperanças sonhadas em prometedoras horas de confiança . Relembravam-lhe episódios há muito olvidados , uma tumultuosa onda de saùdade e de indecifrável ternura invadia-o . Ah ! êsse bom Frederico ! Havia perto de dois anos -- desde o seu casamento , a que êle assistira -- que não tornara a vê-lo . Nos primeiros meses de casado , como o seu forte amor por Júlia reclamasse um absoluto recolhimento , isolou-se inteiramente das suas relações , duma sociabilidade que o não interessava . Fizera , com ela , uma longa viagem de núpcias por países que nunca visitara e que muito desejava conhecer , encantado pelo anonimato da sua individualidade no meio das ruidosas multidões . Estiveram em Itália , em França , na Suíça , observando uma civilização que se denunciava radiosamente em tôdas as manifestações da actividade humana , na sumptuosidade de capitais que são resumos lúcidos do mundo consciente , passando as manhãs nos Museus , indo à noite aos teatros , aparecendo nos sítios preferidos pelo mundanismo para a exibição maravilhosa da esplêndida flor do luxo e da beleza , ofertando à adoração que os estreitava a surprêsa de espectáculos constantemente novos e cativando pela sua variedade infindável . Depois , quando regressaram ao Pôrto , amando-se mais porque entre os dois se tinha feito uma perfeita unidade moral e afectiva , Frederico havia partido igualmente " para uma confortável vadiagem por êsse bemdito Portugal " como dizia numa carta a Nuno , porque , mesmo separados , nunca deixaram de estar juntos em espírito , correspondendo-se com regularidade , comunicando-se as impressões recebidas , as opiniões , os pensamentos , os pontos de vista , por uma necessidade imperiosa , que provinha de identidades de inteligência e simpatias de temperamento . Frederico nada ocultava ao amigo e ao camarada , confessava-se-lhe sinceramente . Uma casualidade singular os aproximava ainda mais : -- eram ambos ricos , sem família , fizeram o mesmo curso , manifestavam as mesmas predilecções . Nuno conhecia-o minuciosamente no seu carácter , na sua psicologia , nas suas tendências , nos seus hábitos . Um pouco leviano e volúvel , por certo . Não havia em Frederico estabilidade de sentimentos , fixidez , reflexão . Os seus actos quáse nunca estavam em concordância com as suas ideias . Abandonava inconsideradamente , como futilidades sem raízes na realidade universal , projectos no dia anterior aceitos com entusiasmo e fervor , como se representassem a verdade irredutível . Era um dêsses+esses homens estranhos que , possuindo um grande orgulho de si próprios , ou pela superioridade mental ou por dons puramente exteriores , são incapazes de contrariarem a sua espontânea vontade , de se sacrificarem na satisfação do seu sonho , muito embora sigam por caminhos errados , de renunciarem ao que , para êles , encerra um efémero minuto de prazer . Foi por isso mesmo que não quis jàmais reduzir ou comprometer a sua liberdade , conservando-se solteiro com mêdo Ãs responsabilidades duma família , ao jugo dos deveres contraídos . Nuno lembrava-se , enquanto reavivava um passado ainda recente , do desgôsto que em Frederico provocara a sua decisão de casar-se com Júlia . Êle ouvira-o friamente , com uma expressão de sarcasmo na bôca -- um sarcasmo em que havia compaixão e desdêm . -- E tu devias fazer o mesmo . Arranjavas , assim , uma ocupação séria ! -- dissera-lhe Nuno . -- Ah ! obrigado pela intenção -- respondera Frederico , sêcamente e encolhendo os ombros . -- Homem , parece que estou a aconselhar-te uma acção má ! ... -- Não ! Apenas me aconselhas a loucura , o absurdo ... Êle , casar-se , efectivamente ! Nunca sentira vocação para a vida conjugal , sempre que se consultava sôbre êsse complicado e perigoso problema . Julgava que o casamento destruiria tôda a sua paz , tôda a sua felicidade -- se é que essa felicidade significa mais alguma coisa do que uma rima frívola em poesia ou do que uma imagem literária . -- Tu bem sabes , Nuno , que não sou um inexperiente em amor -- asseverou Frederico . Não era um inexperiente , na realidade . Nuno conheceu-lhe , durante muitos meses , uma ligação sentimental íntima com uma linda rapariga que êle seduzira e de quem mais tarde , saciado , fatigado , desiludido , se afastou , oferecendo-lhe um forte punhado de oiro . E , nessa ligação , que foi mais do que um capricho , a princípio , porque a sua alma nela teve interferência , encontrou Frederico a certeza de que , para o seu organismo , para a sua individualidade psíquica , as venerações eternas e conservando perpétuamente a mesma intensidade , as afinidades da carne e da emoção que estabelecem para sempre uma estreita comunidade física e ideológica entre dois seres de sexos diferentes , pelo laço do desejo insaciável , que incessantemente se renova , e das semelhanças espirituais , representam uma engenhosa mentira . -- A não ser -- concluiu êle -- que para além da minha experiência haja um mundo por mim ignorado . -- Porque não hás de tentar a sua descoberta ? -- insinuava Nuno . -- Porque não quero enliçar-me em aventuras arriscadas ... Se falhasse , o mal seria irremediável . Nuno casou , entregou-se Ãs meigas preocupações do seu amor , não tornou a falar com Frederico , a não ser por cartas : mas êste facto nunca mais lhe esqueceu . Permaneceria ainda o amigo dentro dos apertados limites das mesmas ideias , prevaleceria no seu espírito o terror ao casamento ? Era provável que assim fôsse : mas Frederico seria uma testemunha da sua felicidade , que era imperturbável e perene : e podia muito bem acontecer que modificasse raciocínios falsos . Felicitava-se por êle haver aceitado o seu convite , porque talvez a permanência naquela casa o convertesse -- o que seria sumamente grato ao afecto que lhe consagrava . -- Porque não ? Porque não ? -- monologava Nuno . A aridez da existência de Frederico entristecia-o , porque o estimava profundamente . A-pesar da sua leviandade , duma ponta de cinismo que a vida lhe transmitira , do pessimismo que tornava estéreis os seus anos alacres e improdutiva a sua actividade , êle era um excelente moço duma lealdade firme , afável , encantador por mais dum traço da sua personalidade : e só por isto , lhe abrira alegremente a porta da sua vivenda onde com sobressalto , quáse com ciúme , guardava quanto possuía de mais querido e de mais puro ... Um berro súbito interrompeu o fio do scismar de Nuno . Frederico , já lavado do pó da viagem , já perfumado , já mudado de roupa , entrou inesperadamente na varanda , exclamando : -- Tenho andado a procurar-te por tôda a parte inutilmente . -- Estava aqui a reviver coisas extintas que a tua chegada me sugeriu . E sabes o que evoquei ? Não sabes ? Pois foi a última conversa que tivemos nas vésperas do meu casamento . Lembras-te ? -- Perfeitamente ... -- E ainda pensas da mesma forma ? -- Pois que razão havia de desviar-me dêsse+esse pensamento ? -- Vejo que és um convicto no êrro . -- Como tu o és na verdade ... -- Bem , bem . Não falemos mais nisso ! ... Ocupemo-nos de coisas proveitosas . Nem sequer viste o meu morgado ... Vou mostrar-to . Anda comigo . Enquanto se dirigiam ao quarto da ama , que comunicava com o de Nuno por uma ampla porta , êle ia-lhe fornecendo esclarecimentos sôbre o filho : -- Oh ! é um respeitável senhor com as pernas e os braços Ãs roscas de carne , uma cara rabugenta e uns olhos negros como contas de vidro que , a- pesar-de ser ainda pequenino , é já um déspota . Manda em mim , manda na mãe , que o adora , e , como os príncipes , tem servos atentos à volta da sua importante pessoa . Todos nós somos seus escravos . Atravessavam um corredor quando Júlia apareceu com a criança ao colo , entre rendas , cambraias , laçarias de sêda . -- Aqui o tens . Vê que figurão ! Frederico curvou-se para uma carinha rosada , emergindo da brancura imaculada das roupagens , tocou-lhe levemente com a mão na face , esteve um momento a contemplá-lo . -- Hein ? Que te parece ? -- perguntou Nuno , beijando , com ternura , o pequenino . -- Admirável ! ... Com certeza que a estas horas , já elegeste , para êle , um destino incomparável , já meditaste na situação que mais lhe convêm . É o primeiro dever dos pais . -- Coitadinho ! -- murmurou Júlia , enlevada . -- E V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a tambêm , minha senhora . Ah ! as mães ! Se elas forem tôdas como a minha , que era uma santa , nunca se sentarão à beira dum berço sem sonharem quimeras para os seres que lá dormem . -- Não , não ! Eu apenas quero que êle viva , para o meu amor , para o amor de Nuno . -- Cá por mim -- atalhou Nuno -- decidi . -- Sim ? Então , conta lá ... -- Resolvi fazê-lo rei , dar-lhe um trono ... -- Oh ! Nuno , que disparate ! ... -- interrompeu Júlia . -- Disparate ? Ora essa ! ... Que dizes tu , Frederico ? -- Eu digo que , na verdade , um trono é uma grande comodidade para os mortais , mesmo por êstes ásperos dias de democracia , de revoluções , de indisciplinados movimentos políticos e religiosos . Sim , minha senhora . Nuno está na sapiência . Uma corôa , uma rialeza , milhões de vassalos vergados e sem vontade sob o poderio dum scetro é , entre tôdas as vaidades humanas , a mais invejável vaidade . Resta saber ... Júlia ouvia saborosamente as palavras de Frederico , afagando o filho , aconchegando-o mais nos braços , encostando-o ao seio com infinitas cautelas . -- Resta saber o quê ? -- interrogou Nuno . -- Resta saber se o pequerrucho terá uma decidida vocação para tirano ... Riram com alarido , dando alguns passos no corredor que a meia-tinta da luz refrescava . -- Se sair à mãe , será um tirano de primeira ordem ! -- concluiu Nuno , rindo ainda . -- Não creia , Frederico -- replicou Júlia , jovialmente . Quem aqui sofre um domínio tirânico , sou eu ! ... Nem pode calcular ... -- Imagino , imagino , minha senhora . E lamento-a . Em outras épocas , nos séculos mortos da cavalaria , eu ofereceria a V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a uma espada libertadora . Mas , desde D. Quichote que os cavaleiros andantes não são bem vistos pela polícia . Tudo quanto posso fazer é recomendar-lhe resignação ... -- Sou já uma resignada -- disse ela , envolvendo Nuno num inexprimível olhar de afecto . A ama veio pegar na criança , que agitava os bracinhos , que levava os punhos fechados à bôca e galrava , quando em baixo , no rés-do-chão , uma sineta de estridente timbre , tocou para o almôço , assustando as pombas no pombal . -- Ora , graças a Deus ! Pensava que nos querias hoje matar à fome , Júlia -- disse Nuno . -- Que horas são ? -- Meio-dia . E Frederico deve estar com um apetite igual ao de Ugolino na sua prisão . Desde alta madrugada que rolou , através de estradas poeirentas , para nossa casa , animado na sua tortura pela única esperança duma farta mesa ... -- Nem só de pão vive o homem -- exclamou Frederico . Mas lá apetite há , bemdito seja o Senhor que nos fez assim glutões e terrestres . Foram caminhando pelo corredor , ao lado de Júlia muito elegante no seu vestido de sedinha branca -- um vestido que lhe modelava nítidamente as linhas corpóreas , ondulantes e flexíveis , e em que havia harmonia , graça e ritmo -- entrando , por fim , na sala de jantar , que era espaçosa , clara , aprazível , com o seu mobiliário de nogueira americana , as suas três janelas abrindo para o jardim , os seus cortinados de renda inglesa , os seus " brise-bise " de tule bordado . Nos aparadores , as pratas resplandeciam , iluminando-se de súbitas claridades ; o esmalte das porcelanas pintadas faíscava de brilhos metálicos ; os cristais dardejavam a um raio de sol que incidia nas vidraças e se prolongava como um delgado fio de ouro , ardendo , fulgurando , tremendo sôbre o verniz dos móveis . Uma perturbante fragrância vinha de fora , exalando-se das corolas , subindo na aragem . -- É agradável , esta sala ! -- louvou Frederico . -- Como situação ... -- alvitrou Nuno . -- Por tudo : -- pela situação , pelo aspecto ornamental , pela simplicidade , que logo revela o solícito cuidado e o bom gôsto feminino ... Os meus cumprimentos , minha senhora . -- Ora ! Amabilidades de hóspede amável ! -- disse Júlia . -- Mas não , mas não ! Digo a verdade , digo o que sinto . A larga toalha da mesa , do linho mais puro e mais fino , alvejava entre os solitários com cravos e avencas e espalhava frescura ; largas cadeiras de couro lavrado , de alto espaldar e pregarias de metal amarelo , ofereciam repouso ; dos pratos cheios de fruta evolavam-se vivos aromas ; os morangos , colhidos de manhã , no morangal , por Nuno , perfumavam o ambiente . Sentaram-se : e Frederico , desdobrando o guardanapo vagarosamente , afirmou : -- Pois , senhores , adorável retiro para uma doce convalescença de espíritos doentes , para um perfeito exame de consciência ! Aqui é o El-Dorado que o dr.||_Pangloss Pangloss|_Pangloss em vão procurou na terra . -- Tu o dirás ! -- retorquiu Nuno . Mas mais tarde . Por enquanto , é cedo para julgamentos ousados . Não te precipites , não arrisques opiniões temerárias que podem ser erradas ... Chegaste há três horas apenas . -- Há três horas já ? Nunca , para mim , o tempo fugiu tam ligeiro ... Júlia sorria sempre , muito rosada , muito animada , diante de tôda aquela efusão do amigo da casa , que viera trazer com o seu afecto por Nuno mais movimento e mais vida à tranqùilidade inefável da vivenda rural . Os cabelos abundantes , enrolados no alto da cabeça e apenas presos por travessas guarnecidas a ouro em que fulguravam pequenos brilhantes talhados em rosa , caíam-lhe em madeixas até ao lóbulo das orelhas , onde duas pérolas dum belo íris reluziam em fogos surdos . Na sua testa ebúrnea havia toques de luz . Frederico olhou-a um momento , assim envolvida de claridade , satisfeita na sua ventura de mulher , numa atitude que dava a tôda a sua pessoa um extraordinário poder de sedução . -- Quem tem feito uma grande diferença , para melhor , é a snr. ^ a D. Júlia -- disse . -- Sinto-me bem , com efeito ! -- respondeu ela . -- Eu , de resto , apenas a vi no dia do casamento , e já lá vão dois longos , fastidiosos anos . Mas parece-me que tem mais côr e mais saúde , que está um pouco mais nutrida . -- Pois , olha que veio para aqui adoentada , muito fraca -- esclareceu Nuno . Meses depois do nascimento do filho , chegou a inspirar-me cuidados . Os médicos mandaram-na sair da cidade a tôda a pressa : e , com efeito , na aldeia , curou-se . Não há como o campo , para êstes milagres . -- Visto isso , minha senhora , por gratidão , deve ficar aqui , esquecer as grandes aglomerações , que são o veneno , a indigência orgânica , a morte ... -- comentou Frederico . -- Por mim , ficava . Mas Nuno não se acostumaria à solidão , à tristeza , ao isolamento ... E , como êle protestasse , acudiu logo : -- E nem eu , tambêm . Já outro dia falamos nisso ... O inverno , neste destêrro , deve ser medonho ... O almôço decorreu alegre , no calor constante das palestras a que Frederico imprimia vivacidade e graça , com a sua " verve " faíscante . À sobremesa , a conversação derivou para as questões sensacionais do dia , motivadas pela guerra que , dum extremo ao outro , pegava fogo à Europa , sepultando em ruínas uma civilização que levara tantos séculos a construir . Nuno achava-a necessária , pois só por ela seria possível restituir a liberdade aos povos e a independência Ãs nacionalidades débeis . Júlia , pensando no filho , na desdita das outras mães , nas torrentes de sangue e de lágrimas que corriam nos campos de batalha e nos lares lutuosos , horrorizava-se com uma carnificina que imolava à morte as primaveras humanas . Não compreendia a ferocidade dos homens e das nações , despedaçando-se por ambições de domínio , de hegemonias políticas , de conquistas de territórios e de mercados comerciais , quando para todos havia um lugar ao sol e um direito à existencia . Falava com uma verbosidade que Nuno não lhe conhecia e que encantava Frederico . -- V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a , minha senhora , é uma das poucas mulheres que assim pensam e eu creio que , como mulher , está na lógica e na verdade . Mas quer saber o que faz o gentil mundo feminino das potências envolvidas no conflito ? Não pensa nas modas , no luxo , o que até agora parecia impossível . Trabalha nas fábricas de munições , faz granadas , engenhos de destruìção ! ... -- Por isso mesmo , essas mulheres são admiráveis ! -- atalhou Nuno , com entusiasmo . -- Admiráveis ? Oh ! Nuno , que heresia ! -- contrariou Júlia . No seu critério simplista , ela compreendia que as mulheres , seres de abnegação e de sacrifício , destacando-se mais intensamente pela emoção do que pela inteligência , mais pelo espírito do que pelo cérebro , amassem as suas pátrias ; mas era-lhe doloroso pensar que mãos de afago e de carícia , feitas para apaziguarem o sofrimento , para enxugarem com infinita doçura os olhos que choram , para sararem feridas , se ennegrecessem na pólvora , destinada a devastar homens que vão para os combates , passivamente , como as rêses para um matadouro . A sua colaboração nas pendências guerreiras nunca devia ir alêm dos hospitais de sangue , onde acalmariam dores e tranqùilizariam delírios . -- Pois , não é assim , Frederico ? Diga ! Seja imparcial . -- Na realidade , minha senhora , através de tôda a história , nunca vi as mulheres associadas Ãs lúgubres matanças . Pelo contrário , tenho-as visto sempre dispostas a lutar para conseguirem tudo o que signifique elevação , nobreza , bondade , amor . Elas foram , positivamente , os melhores arautos de Jesus para a vitória do Cristianismo , que redimiu o mundo ; elas impuzeram , com as religiões , a arte e a poesia . -- Então , aí está ! -- disse Júlia , com um sorriso triste . -- Vejo que tu não eras capaz de dar o teu filho , se ele fôsse grande e pudesse manejar uma arma , para a defesa do país -- exclamou Nuno . -- Com certeza que não ! -- asseverou ela resolutamente e com uma grande convicção na voz . E digo-to : -- para o defender da morte , eu era capaz de tudo , de tudo , mesmo dum crime . -- Pensa , portanto , no heroísmo das outras mães ... -- Nenhuma delas os dará de bôa vontade ... Arrancam-lhe&lhes+os à fôrça , cruelmente ! -- Repara , Frederico ! Aqui tens uma compatriota de Brites de Almeida , a padeira de Aljubarrota , de D. Filipa de Vilhena , doutras criaturas heróicas ! -- zombou Nuno . -- Ela está na razão , pensa como mulher -- e as mulheres , verdadeiramente , só vencem pelo sentimento . Acenderam os charutos e continuaram a discussão , enquanto Júlia , levantando-se , dava ordens á criada para que o café e os licores fôssem servidos no jardim . Nuno , que a guerra apaixonara , ia agitando ideias , condenava o pacifismo que estava fóra da sua acção eficaz : -- Positivamente , por melhor intencionado que seja , o pacifista é um produto nocivo do nosso estado de perturbações e de ameaças . Até hoje , imaginou erradamente que a maneira mais prática de realizar-se a paz seria odiar e condenar todos os movimentos armados dos povos , sem distinguir lúcidamente entre o justo e o injusto , entre a honra e a cobardia . Quando a tranqùilidade do mundo entrava numa fase precária , êsse pacifista aconselhava a transigência dos menos poderosos , o que era uma vileza . -- Mas que outra coisa poderia êle fazer ? -- inquiriu Frederico , interessado e soprando baforadas de fumo . -- Que outra coisa poderia fazer ? Homem , desconheço-te , perdeste a sagacidade antiga ! No domínio espiritual , a felicidade resulta da filosofia e da religião ; e no domínio material , da sciência e do trabalho . Igualmente , e nesta ordem de raciocínios , a paz deriva do equilíbrio das potências e das precauções a tomar contra aqueles que pretenderem destruir êsse mesmo equilíbrio . A missão útil e nobre do pacifismo , se êle não andasse transviado , seria esta , portanto . -- É ainda impotente para isso -- opinou Frederico . -- Porque lhe falta organização -- respondeu Nuno . Júlia reentrou na sala para dizer que o café já fumegava sob as árvores e entre as flores , à espera . -- Já lá vamos , minha senhora ! -- informou Frederico . Estávamos aqui a desenvolver coisas muito sérias de sociologia e de política . Nuno é terrível . Tem uma argumentação , uma dialéctica ! ... -- É porque estou na verdade . Depois , debaixo dos arvoredos , o diálogo sôbre o mesmo assunto ainda continuou , caloroso , vivo , na tarde serena como a doçura e a melancolia duma rosa de luz e de sêda que se desfolhasse lentamente . A sombra , caíndo , despregando-se molemente das ramarias , espalhava na areia das ruas movediças manchas rôxas . Um ar esperto e vitalizador circulava . O sol , descendo para o poente , refulgia e dourava tudo aquilo em que tocava . Nuno surpreendia uma beleza nova nas vastas massas de homens que avançavam para as batalhas altivamente , sem o temor no coração , sem a palidez nas frontes -- nesses soldados que conheciam a embriaguez do sacrifício total a um pensamento grande e nobre e que , no " élan " supremo das cargas , por entre o ciclone fulgurante da metralha , tinham a visão nítida e simples das coisas , sentindo a divina claridade das almas heróicas , a alegria prodigiosa da única verdade , que é a de lutar até à morte por uma liberdade mais ampla , por uma vida melhor , pelo esplendor das nacionalidades a que pertencem . -- Porque , não tenhas dúvidas ! Desta convulsão saírá uma liberdade luminosa . -- Isto é -- explicou Frederico -- maior extensão do privilégio . Eu não sei , realmente , em que consiste essa liberdade que tam calorosos hinos te merece ... -- Não sabes ? Pois é fácil sabê-lo . A liberdade perfeita consiste na absoluta adaptação dos interêsses , das actividades e das energias humanas . No nosso tempo , a adaptação de que falo é essencial entre os indivíduos ; entre a colectividade e as instituições ; entre as instituições e os governos . Quando isto se conseguir , a existência será mais suave e mais bela ... Na espessura dum caramanchão de madre-silvas e clematites , um melro assobiava a sua canção em louvor do claro dia ; no parque , a solidão tornava-se mais profunda ; perto da varanda da casa , sob a acácia , um gordo gato rebolava-se ao sol . -- Não creio que esta guerra nos dê uma liberdade mais dilatada . Quando muito , fará apenas com que a tirania empregue uma subtileza maior -- contestou Frederico . -- Não crês em nada . Perdeste a fé -- replicou Nuno , bebendo o seu café a pequenos , espaçados goles . -- Penso , porêm -- continuou Frederico sem o ouvir -- que dela saírá alguma coisa de inédito . Com efeito , uma parte do culto ocidente sossobra e afunda-se com a hecatombe . Tombaram , sucessivamente , como as messes diante da fouce do segador , as mocidades da Europa , que era a renovadora do mundo consciente pelo génio artístico e scientífico . Essas mocidades haviam sido educadas pelos antigos , pelos vélhos , pelas personalidades formadas em ideias já conhecidas , semente de que germinariam as searas futuras . Deu-se , portanto , com êste salto brusco para o mistério , uma solução de continuìdade . Do saber guardado e arquivado nos livros , pouco subsistirá . A Europa nova tem de educar-se por si , de refazer uma consciência e uma sensibilidade , um espírito e uma razão , em bases tambêm novas ... -- Há talvez alguma verdade nas tuas palavras -- atalhou Nuno , surpreendido . -- Quem me diz que a Europa de àmanhã não terá de ir outra vez , como na Renascença , Ãs civilizações extintas a procurar as suas inspirações ? -- Não se anda para trás . A vida evolute numa progressão ascendente ... -- exclamou Nuno . -- Não falo em retrocesso : falo na busca duma fonte geradora de outros ideais . No entanto , se esta peregrinação dos povos doloridos ao passado se fizer , muitas coisas hoje decadentes reconquistarão o seu prestígio . -- Por exemplo ... -- O Catolicismo que , depurado das suas imperfeições e das mentiras com que os homens o desfiguram , terá belos e gloriosos dias . -- Que fantasia ! -- Homem , contempla a febre , a ansiedade , com que as nações que o tinham repelido , novamente se voltam para êle , procurando uma consolação , uma alegria interior que o racionalismo não lhes oferecia . Em França os templos transbordam de fiéis . Nas trincheiras , os padres combatentes pousam as espingardas para dizerem a missa aos seus camaradas que vivem debaixo da tempestade das granadas e da fuzilaria . Não será isto uma profecia ? Nas terríveis calamidades , Deus é preciso para que o sofrimento seja menor ... Júlia voltou a aparecer com o filho ao colo . O seu perfil , de linhas tam delicadas , recortava-se límpidamente no disco , na auréola luminosa de que a claridade lhe envolvia a fronte . -- Santo nome de Maria ! Pois ainda discutem a guerra ? ! ... -- interrogou ela . -- Sim ! Temos feito , à volta de duas chávenas de café e de dois cálices de " cognac " , uma enorme quantidade de filosofia , minha senhora ! -- disse Frederico , levantando-se e indo ao seu encontro . Nuno tem sido duma eloqùência notável ... Nem V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a calcula . -- Eu sei , eu sei ! Quando êle se apaixona por uma questão , é um falador incorrigível . Nuno , que tambêm se aproximara do grupo , todo afogueado do calor da controvérsia , acrescentou : -- Demos à língua , efectivamente . Desforrei-me da minha mudez consecutiva de meses . Frederico estava interessante ... Parou , um momento , absorvido na adoração do pequenino , que mostrava os olhos espantados e que incessantemente abria e fechava as mãosinhas rosadas . Todo êle cheirava a perfumes , como uma flor humana . -- Oh ! lá , ó seu fidalgo ! ... Pst ! ... -- acariciava Nuno , pousando-lhe um dedo na còvinha do queixo . Bem disposto , hein ? -- Tomou agora o seu banho , sente-se feliz -- disso Júlia , baixando os olhos pensativos sôbre a fronte do filho . Ouvindo-a falar naturalmente , Frederico notava nas suas palavras uma vibração , um timbre , um enlêvo que não podia definir e que o perturbavam . Na história da sua alma fazia-se uma página de poesia e de ternura , que lhe comunicava gôzo , pacificação interior . Como Nuno era feliz ! E bem merecia êle essa felicidade , pelos puros dons do seu carácter , pela sua bondade , pelas suas virtudes de homem . Encontrara a mulher ideal que o completou e que , à sua volta , fazia a graça , a serenidade , a confiança , o repouso . -- E aqui tens tu , Frederico -- disse Nuno -- a minha pátria grande . -- Não ! A tua família ... A família é apenas a unidade da pátria , como o individuo é a unidade da família . -- Bem ! Que seja então a minha pequenina pátria . Não quero outra . E tu , homem , porque não procuras uma ? Frederico olhou o amigo demoradamente , fitou depois Júlia , agitado por sentimentos , por inenarráveis sensações que lhe pareciam incompreensíveis porque , na sua perturbação , não conseguia explicá-los , determinar-lhes a génese e o carácter . Por uma revelação fulminante , via nessa doce mulher uma imagem venerável e quási religiosa para que o seu respeito e o seu reconhecimento subiam . Reconhecimento de quê ? Não o sabia . -- Tenho a certeza de que a não encontrava -- respondeu êle . Não possuo o génio das descobertas . -- Não será isso egoísmo , Frederico ? -- interrogou Júlia . -- Egoísmo ? V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a é injusta com um homem que resolveu sacrificar-se só a êle para não sacrificar os outros ... -- Temos S. Francisco de Assis em nossa casa , Júlia ! -- afirmou Nuno , afagando distraídamente o rosto do filho ... Mas , se déssemos uma volta pelo parque ? A sombra , a amenidade do dia são convidativas . E temos palrado tanto , justos céus ! Entraram vagarosamente na solitude dos troncos e das folhagens onde corria uma fresquidão vitalizante , na tarde pesada e quente . Através dos ramos entrelaçados , num azul muito alto , flutuavam farrapos esparsos de nuvens . Por tôda a parte , sob a imensa abóbada de verdura , floriam cheirosos arbustos que punham na suavidade da penumbra uma atenuada e bela nota colorida . Por vezes , roseiras , bracejando junto das árvores , trepavam Ãs ramagens , enroscavam-se nelas , rompendo depois para o espaço livre em festões , em grinaldas , desenhando originais movimentos decorativos . Os seus aromas harmonizavam-se , fundiam-se num só aroma , que era excitante . No grande silêncio vespertino , apenas se ouvia o canto medroso das aves que fugiam , assustadas , da torreira do sol . Frederico e Nuno caminhavam ao lado de Júlia , emmudecidos para melhor sentirem e compreenderem a beleza envolvente . A criança palrava entre as rendas e as cambraias vaporosas ; e uma bica de água , correndo perto dum maciço de cedros e plátanos enlaçando , casando os seus ramos , cantava e brilhava na fina paz vesperal . -- Isto é a delícia das delícias -- disse , por fim , Frederico . Há muito tempo já que não me reconciliava tanto com a vida . Enquanto êles se detinham numa clareira , reencetando a conversa , Júlia adiantou-se alguns passos , indo sentar-se num banco rústico de cortiça que ficava por baixo dum docel formado por mosqueteiras ainda em flor . Ao vento brando que passava , arripiando as fôlhas , um colorido e perfumado orvalho de pétalas desprendia-se do alto , tremendo como asas de borboletas , caindo sôbre Júlia e o filho . Ela ria , com um riso mais contente , ditosa pela idílica oferta que as trepadeiras faziam à sua gracilidade , á sua pureza feminina , ao seu amor de espôsa , à sua divina maternidade , e Nuno e Frederico admiravam êste espectáculo imprevisto . -- As flores , para serem justas , deviam-lhe essa homenagem , minha senhora -- declarou o hóspede . O chuveiro das pétalas continuava sempre , cobria duma geada aromática os cabelos de Júlia , o rosto da criança . -- As bôas fadas saùdam a princesa , sua afilhada , e o principe dilecto ! -- observou Nuno , enternecido . É como nos contos de Perrault , nas lendas doutras idades . Por fim , Júlia levantou-se , tôda florida , com as faces rosadas por uma ponta de sangue mais vivo , enquanto Frederico a considerava , deslumbrado . Como era encantadora e linda , na verdade ! ... E outra vez louvou a felicidade de Nuno , do amigo fraterno , para quem o destino tinha sido propício e generoso , pondo no seu caminho , bem junto do seu coração , aquela mulher incomparável . -- Vou-me embora . Faz aqui frio . Tenho mêdo de que a criança se constipe -- disse Júlia . -- Vai . Nós ainda por aqui nos conservaremos , filosofando . Quero iniciar Frederico na formosura da solidão ! ... -- exclamou Nuno . Os dias deslizavam serenos , para Frederico , no encanto da simplicidade campestre , no íntimo convívio de Júlia e de Nuno . Nenhuma imperfeição da vida dolorosa e amarga alterava a pacificação dum ambiente que se fazia mais doce à volta de tanta ventura humana . Ao contacto permanente das coisas e dos sentimentos puros , o coração de Frederico purificava-se tambêm , como se fôsse um pouco sua a felicidade dos outros . Vivia numa espécie de esquecimento , não se lembrava de ter sofrido moralmente , parecia-lhe que , na sua existência árida , no seu sentimento estéril , desabrochava , por fim , uma rara e ditosa flor . As faculdades emotivas subtilizavam-se nele ; as tristezas , os desesperos que o haviam atormentado em horas inquietas e febris , dissipavam-se na sua alma . Passava por uma funda renovação , penetrava-o uma fôrça estranha , formava-se-lhe na inteligência e na moral um novo princípio : e uma prodigiosa multidão de sensações espontâneas , que não sabia interpretar , convertiam-se , para êle , num intenso fenómeno psicológico . -- Parece-me que vou renascendo , Nuno ! -- dizia Frederico ao antigo companheiro de estudos . A alegria que existe em tua casa comunica-se-me tambêm aos nervos , à sensibilidade . E é curioso ! A minha confiança no futuro , uma confiança que nunca foi grande , aumenta agora sucessivamente . Porquê ? Porquê ? Que elemento operou êste milagre estupendo ? -- É porque só agora desperta em ti a capacidade mental para a compreensão das coisas belas -- afirmava Nuno , zombando . O sêr pensante anda inconscientemente perdido no turbilhão do mundo , até ao momento singular em que acorda para a verdade . Tu nunca leste o drama de Ibsen : -- " " Quando dentre os mortos nós ressuscitarmos " ? -- Nunca li êsse nebuloso escandinavo , na realidade ... -- Fizeste mal , porque Ibsen ensina-nos a analisarmo-nos** com lucidez ... Eras um morto . Começas a ressuscitar . E olha que é dêstes+estes bons ares , desta claridade puríssima , da paz rústica , da singeleza que nos rodeia . Frederico , em momentos de solitude , concentrava-se , para melhor observar o seu caso , que era bizarro : e tinha a impressão de que convalescia duma doença de espírito e de corpo . Nesta convalescença , surpreendia-o um facto enigmático . Com efeito , alvorecia nele um encanto desconhecido que o absorvia todo , que o exaltava e lhe perturbava os sentidos . Levantava-se cedo , quando ainda a casa dormia na frescura da luz , na ternura matinal , tomava o seu banho bem frio , que o tonificava , descia ao jardim que o orvalho nocturno tornava mais viçoso , passeava nas ruas , fumando , entregando-se ao prazer contemplativo , parando ingénuamente junto dos arbustos floridos . Depois , Nuno levantava-se tambêm , vinha ao seu encontro , ambos encetavam uma animada palestra , que se demorava pelos inefáveis recantos de sombra -- por onde circulava um ar estimulante e ligeiro -- até ao almôço . Perto de Júlia Frederico principiava a sobressaltar-se , experimentava uma ansiedade confusa que o angustiava . Nem sequer pretendia investigar a origem dêsse+esse sobressalto , por temer que dentro dele se fizesse uma revelação assustadora e terrível ... Via-a andar dum lado para o outro , nas ocupações caseiras , tôda sorridente e natural . A luz difusa imprimia-lhe mais nitidez e destaque Ãs linhas plásticas , dava uma irradiação maior à sua beleza de mulher completamente formada . À mesa , sentada em frente dele , perto de Nuno , os seus olhos pensativos , iluminando-lhe o rosto , pousavam , por vezes , sôbre Frederico , que se sentia feliz sob aquela muda carícia em que nada de impuro existia : e o tempo ia fugindo , leve e animado , sem deixar resíduos de fadiga . Nas horas de solidão e de calor , Nuno , cansado , recolhia-se ao quarto para dormir a sésta : e Frederico , pegando num livro , que escolhia na pequena biblioteca do amigo , ou num jornal , dirigia-se ao parque , indo sentar-se no banco de cortiça , sob a mosqueteira que , na tarde da sua chegada , peneirara uma chuva colorida de florações sôbre Júlia e sôbre o filho : e ali , fazendo esforços para recordar-se , evocava com saùdade um passado que já ia muito longe , quando a sua existência era inconsiderada e o seu pensamento não tinha inquietações . Na solidão , no isolamento , estudava-se . Fôra sempre um afectivo , por necessidades de temperamento , talvez por vícios de educação : e , justamente , essa afectividade levara-o outrora para as aventuras de amor , em que procurava o infinito para a sêde ardente que o devorava e em que sempre encontrou o desengano , a desilusão , o aborrecimento , o desgôsto . Certas imagens femininas que mais forte impressão lhe tinham produzido , despertavam um momento nas suas recordações . Lembrava-se , sobretudo , de Adelaide , uma pobre e linda costureira por quem se apaixonara e com quem fez um idílio saboroso que durou seis meses . O alvorôço com que para ela fôra impelido , como se essa mulher pudesse oferecer-lhe a verdade nos seus beijos ! ... Mas , sossegada a animalidade dum sensualismo grosseiro , apaziguada a febre carnal , viu que se havia iludido , mais uma vez , e que a crédula rapariga que nele confiara , entregando-se-lhe , nenhum gôzo emotivo e intelectual lhe daria para assim prolongar uma voluptuosidade que a posse arrefeceu . Nuno reconhecera êste seu romance , tinha-o mesmo reprovado , dizendo-lhe que êle andava a gastar , em caprichos banais da fantasia e da luxúria , e em desvairamentos românticos , a reserva de energia sensitiva de que precisaria mais tarde para uma adoração séria que lhe enchesse tôda a vida , que o transfigurasse . Só depois , quando o desalento surgiu -- e com êle o cansaço , o enfado , a saciedade -- Frederico verificara que Nuno estava na razão ... Que seria feito de Adelaide ? Em que lamaçais profundos teria caído ? Por que despenhadeiros a iria conduzindo a mão implacável do destino ? Frederico , na noite em que decidiu separar-se dela -- uma noite tempestuosa que decorreu entre lágrimas e lamentações -- deixara-lhe sôbre a roupa desfeita do leito uma carteira com dinheiro . Fôra a sua primeira acção vil , porque nenhum ouro pagaria a felicidade para sempre destruida duma alma que era virginal quando o seu egoísmo a encontrou ; mas , nesse procedimento , reprovável de-certo , guiara-o ainda a generosidade . Parecia-lhe que um punhado de notas de Banco atenuaria o seu abominável feito -- e só agora reconhecia o seu êrro e a sua ignomínia ... Com o livro ou o jornal , que não lia , abertos sôbre o joelho , scismando ininterruptamente , seguindo com os olhos vagos as espirais de fumo do charuto , que se esgarçavam e ascendiam na atmosfera luminosa , Frederico , durante longas horas , revivia os seus fantasmas inertes e experimentava a sensação dum pêso contínuo que o esmagava , que esmagava tôda a sua vida . Oh ! a bela quimera dum amor eterno , conservando sempre a mesma intensidade , a mesma fôrça superior de atracção , uma fonte inexaurível de sentimento , uma novidade que jàmais , jàmais , se banalizasse para os corações que fizesse palpitar ! Existia êle , na verdade ? Ou não seria mais do que uma mentira entre o acervo de mentiras de que o mundo estava cheio e que os homens criavam conscientemente para se iludirem a si próprios ? ... Mas , quando o seu scepticismo era mais devastador , o exemplo da união feliz de Júlia e de Nuno surgia-lhe como a imagem tangível dêsse+esse amor de que duvidava . Então , para explicar a contradição que lhe exacerbava o sofrimento , construía teorias originais . -- O que há é almas completas e almas incompletas . Umas , possuem uma finura sensível que as torna perfeitamente aptas para a vida amorosa . Outras não teem uma receptividade que as faça vibrar sob as influências dessa vida , e daí deriva todo o mal , que vai espalhando nas sociedades a funda melancolia contemporânea . A alma de Nuno pertence Ãs primeiras ... De resto , Frederico entendia que as verdadeiras mulheres são as admiráveis educadoras do sentimento , as inspiradoras sublimes de tudo o que pode fazer os homens grandes dentro do lar . Júlia era uma dessas mulheres excelsas , pelas graças do corpo e pelas graças mais puras e elevadas do espírito : e a ventura de Nuno provinha de êle a ter encontrado no seu caminho . Por sua parte , em vão buscaria uma criatura assim , que fôsse a companheira ideal e perpétuamente desejada , a amante incomparável , a espôsa atenta , a mãe solícita ! Com ela , a sua existência improdutiva entraria numa fase diversa e activa , numa realidade que nunca se extinguisse ... Lembrando-se insistentemente de Júlia , Frederico era assaltado por um sentimento curioso . Tinha a sensação especial de estar encerrado num círculo muito estreito , em que nada havia de claro , de definido , de preciso . Tôdas as impressões da natureza exterior passavam por êle , velozmente , sem lhe provocarem uma simpatia mais demorada . Apenas lhe ficava , na intimidade moral , a noção profunda do seu próprio isolamento , entre a vastidão e o tumulto das aspirações indecifráveis . Sofria essa fascinação estranha que um desejo veemente -- que se não abandona , porque o abandôno excitaria o padecimento , e se não procura realizar tambêm , porque a realização teria conseqùências funestas -- produz nas almas ! ... Por cima da sua cabeça , a mosqueteira , ramalhando ao vento , sacudia os seus cachos aromáticos que se desfolhavam numa nuvem loura ; ao seu lado , a fonte , correndo no jôrro faíscante da água entre musgos verdes e veludosos , cantava sempre , exalando-se em frescura e murmúrio . Frederico , extenuado de imaginação pelas suas infindáveis " rêveries " , erguia-se , fechava o livro inútil , o jornal mais inútil ainda , e recomeçava o passeio por entre os arvoredos , por entre os canteiros de flores , onde umas abelhas , tam douradas como as do Hymeto , procuravam o mel . Nuno , às vezes com os olhos inchados de sono , uma preguiça que lhe comunicava lassidão , um pouco còrado , descia ao jardim , perguntava-lhe : -- Em que passaste o tempo ? -- Meditando , sentado num banco do parque -- respondia Frederico . -- Procuras , como S. Bruno , os logares solitários para pensares nas felicidades do céu ? -- Homem , ando a tratar da minha conversão e S. Bruno , efectivamente , é um modêlo desejável . -- E se fizéssemos uma jornada mais larga , por êsses campos , por essas amplidões ? Júlia podia ir tambêm ... -- Acho o teu alvitre muito digno de ser aceito . Iam acima chamar Júlia , calçar luvas que lhes resguardassem as mãos dos bafos da soalheira e do pó cáustico dos caminhos , e na suavidade maravilhosa da tarde , rindo , conversando , sensíveis ao mais fugidio eflúvio do ar ambiente , metiam pelos atalhos escorregando por entre sébes que as madre-silvas perfumavam , por azinhagas onde havia repouso e penumbra , por congostas que os ervaçais reverdeciam . A essa hora do dia , no delíquio da luz que principiava , tudo era gracioso , jovial . Dos casais disseminados pelas terras cultivadas , subiam colunas delgadas e direitas dum fumo branco , que algodoava o espaço . Nas eiras secava o milho , que lembrava pequeninas bolhas de sol cristalizado . Errantes , nas pastagens , os bois erguiam um instante a cabeça , para os ver passar , fitando-os com uns grandes olhos de infinita melancolia . Júlia que marchava à frente , na elegância dum vestido de tecidos leves que lhe modelava puramente as formas corpóreas , assustava-se , tinha mêdo , soltava pequeninos gritos , acolhia-se à protecção de ambos . A palha do seu chapéu em que , entre laços de veludo negro , destacava a côr sugestiva de pálidas rosas de toucar , fazia-lhe uma sombra doce no rosto adorável . Nuno animava-a : -- Que mulher ! Que criança ! Tem mêdo dos bois , que são tam mansos . Oh ! tôla ! Olha que não fazem mal ! ... Frederico ria-se e achava-a encantadora . Cortavam através das pradarias , das lezírias , das veigas , ao acaso , sem fim . Às roupas de Júlia prendiam-se os perfumes dos fenos atravessados , que as suas saias roçavam , as seivas vitalizadoras das ervas esmagadas . Sentiam uma grande e nobre pacificação interior . O gôzo íntimo emmudecia-os . -- Hein , Frederico ? Como isto é diferente da cidade ! Era preciso que conhecesses a aldeia , homem . A aldeia é a verdade -- dizia Nuno , entusiasmado . Frederico não conhecia a aldeia , com efeito , e nunca imaginara , vendo-a através das janelas de combóios lançados a tôda a velocidade , que pudesse seduzir sêres civilizados ; mas , eis que ela se lhe revelava , totalmente , por uma feição atraente , que o cativava . Louvava , com sinceras palavras , a fertilidade dos extensos domínios , que são o Calvário da gente humilde e que a sua dor , o seu suor , a sua miséria , fecundam ; as casas dos camponeses , duma arquitectura rudimentar ; os milheirais de longas fôlhas já sêcas , ondulando e rangendo à aragem ; a paìsagem que a luz , fulva e rutilante , espiritualizava , transmitindo-lhe animação , uma vida quáse supersticiosa , insuflando-lhe uma alma . De quando em quando , Júlia , batendo as palmas de contente , detinha-se para observar de perto as trepadeiras silvestres que se cobriam de florescências cheirosas , e as suas mãos , que eram tam lindas , tinham delicadezas extrêmas ao tocarem nas folhagens , nas corolas rescendentes . -- Veja que beleza , Frederico ! -- convidava ela . E fazia um ramo que prendia , com alfinetes , na blusa de sêda -- uma sêda transparente que o tom sadio e casto da sua carne rosava . A cada momento deparavam vergeis em que os frutos apetitosos amadureciam . Nos ramos mais altos , as maçãs còravam ao calor como faces humanas ; as laranjas , no meio das fôlhas , redondas e amarelas -- dum amarelo brilhante , -- ofereciam-se Ãs gulodices . A terra mostrava-se hospitaleira e generosa , e Frederico , já iniciado , sob o céu que tinha a meiguice dum amoroso olhar humano , compreendia , enfim , que essa terra , mãe piedosa e inexaurível , comunicasse Ãs criaturas um pouco da sua bondade clemente , da sua energia vigorosa , inspirando-lhes uma regra justa da vida . Diante dos casebres pobres , Júlia , compadecida , parava , contemplando com piedade as crianças rotinhas e sujas que brincavam pelos portais e pousando-lhes os dedos sôbre as cabeças . Elas fitavam-na , espantadas , com um secreto temor no olhar . -- A vossa mãe ? -- perguntava . -- Não está cá -- respondiam elas , com modos agressivos . Dava-lhes moedas de cobre , amimava-as com essa ternura que só as mulheres felizes conhecem , enquanto Nuno , enojado da porcaria em que a gracilidade daquela infância murchava , dizia : -- Nas aldeias há , de-certo , muita pobreza , muita penúria . Mas tambêm há muito desleixo . Oh ! senhores , uma tina de água transformaria em flores êstes pequeninos selvagens ! -- Que queres tu , Nuno ? -- atalhava Júlia , condoída . As desgraçadas mães trabalham um dia inteiro e quando chegam a casa o que querem é repousar . Vendo-a assim , luminosa , pura e branca no meio das meninices desditosas , Frederico tinha a visão deslumbrante duma aparição celeste baixando do azul , num vôo brando , para consolar aflições , acolher no seu desamparo as plebes lacrimosas , sarar feridas , suavizar torturas : e cada vez a sua admiração por Júlia mais crescia . Nela tudo era perfeito , sedução , perfume , ritmo , claridade : e o encanto que derramava à sua volta penetrava-o até ao âmago da consciência . Pensando na sua beleza , na unção da sua bondade , abstraía-se por tal modo que até chegava a esquecer Nuno , marchando ao seu lado : e era-lhe necessário fazer um esfôrço violento para reentrar na realidade das coisas . Nestes instantes , analisando-se , espavorido , perguntava a si próprio se não estaria interessando-se demasiadamente por essa mulher tam digna e tam cândida que , legítimamente , pertencia ao seu melhor , ao seu único amigo . No espírito passava-lhe confusamente a recordação doutros dias já extintos em que , entre êle e Nuno , se fôra consolidando uma camaradagem nunca interrompida ; e , por isso mesmo , julgava que a fôrça secreta que o impelia para Júlia era uma traição ... Uma traição ? A esta ideia , ficava transido de terror e ansiosamente pretendia conhecer a essência da sua admiração , da sua simpatia , para ver se nelas surpreenderia qualquer coisa de impuro : mas , a análise minuciosa tranqùilizava-o . Não ! Não existia nenhuma impureza no seu sentimento . Amava Júlia santamente , como amaria uma irmã mais nova . -- Em que diabo vais tu a matutar , Frederico ? -- interrogava Nuno , intrigado com a sua prolongada mudez . -- Eu ? Em nada ! A paz rural mergulha-me num estado psíquico de tal ordem que me torna incapaz de sustentar uma conversa . Verdadeiramente , nem sei o que hei de dizer . Custa-me a articular os vocábulos , a construir as expressões . Quando o crepúsculo , descendo progressivamente , idealizava as perspectívas e desdobrava sôbre arvoredos , sôbre outeiros , pelas encostas , pelos vales mais fundos , uma sombra e uma névoa que de instante para instante se adensavam e gradualmente escureciam , regressavam a casa , satisfeitos , reconciliados com a natureza que lhes ofertava alegrias , prazeres nunca experimentados . Júlia , pousando os ramos de flores silvestres , que sempre trazia das suas digressões pela campina , corria para o filho , já saùdosa da sua inocência , da sua formosura . Devorava-o com beijos , acariciava-o com meiguice , mostrava-o , orgulhosamente , a Nuno , que sorria enlevado , a Frederico , que a fitava num alheamento . Os " stores " subidos das janelas deixavam entrar os derradeiros fulgores da claridade expirante . Lentamente , o céu embranquecia . Longe , as linhas dos montes tinham enredamentos complicados que decompunham uma paìsagem quáse sem realidade , fantástica , cheia de vago e de mistério . -- E se tu tocasses alguma coisa antes do jantar , Júlia ? -- lembrava Nuno . Até nos abria o apetite ... -- Pois sim ! Que queres que eu toque ?