Luís DE MAGALHÃES O BRASILEIRO SOARES prefácio e actualização de texto de Clara CRABBÉ ROCHA A Eça de Queirós , meu mestre e meu amigo Joaquim Soares fora para o Brasil aos quinze anos . Seu pai , lavrador em Bouças , tinha na Baía um irmão , que ia fazendo fortuna . A esta família dos Soares , na Guardeira , sua aldeia natal , chamava o povo os Soares da Boa Sorte . Com efeito , filhos de um jornaleiro da quinta da Cardenha , todos prosperaram e enriqueceram . O pai de Joaquim Soares , rendeiro de uns pequenos bens quando casara , conseguiu ao fim de vinte anos de trabalho comprar a herdade que cultivava , e ficou proprietário de umas terras que , bons por maus anos , davam de vinte a trinta carros de pão . Um irmão deste , com a ajuda do Sr.||_Morgado_da_Cardenha Morgado|_Morgado_da_Cardenha da|_Morgado_da_Cardenha Cardenha|_Morgado_da_Cardenha , fez-se padre e ficou sendo o capelão da casa . O terceiro foi para o Brasil à aventura ; porém com tanta felicidade que , pouco tempo depois , morrendo-lhe um patrão que não deixava filhos , casou com a viúva deste , cujo negócio de secos e molhados tinha uma certa importância entre o pequeno comércio da Baía . Era tudo gente remediada . Joaquim Soares foi , pois , para casa desse tio , como marçano . Ao tempo da sua partida , quando os pais o foram despedir a bordo da galera América , ele era um minhoto atarracado , de largos ombros , bíceps de atleta , tórax saliente , e o pescoço curto e grosso , como o dos valentes bois do Borroso . A cara tinha a expressão vulgar e trivial da raça : más feições , muito cabelo numa grenha áspera e curta , e esses dentes pequenos , iguais e sólidos do campónio , que parecem feitos para rilhar a côdea da broa . Era trigueiro e feio : a barba mal lhe apontava ; sobre o lábio grosso negrejava apenas a farrusca do buço penugento ; mas no seu olhar havia um não sei quê de bondade infantil , que atenuava o aspecto desagradável dessa face quase alvar -- de nariz chato e arrebitado , com narinas de bulldog , de boca grande , fendida rectamente , e de enormes bochechas de uma saúde exuberante de sanguíneo . Na Baía o tio||_Manuel Manuel|_Manuel explorou-o como um escravo . O rapaz era de uma bondade , de uma submissão , que o recomendavam muito especialmente ao seu egoísmo especulador . Assim todo o duro serviço da loja lhe caiu às costas , e a cada instante via-se ao fundo da baiuca o vulto do pobre marçano , curvado , derreado , transportando aos ombros os grossos fardos de géneros . Mas um dia chegou-lhe finalmente o tempo de ganhar . Subira um posto : era já caixeiro . O tio deu-lhe então um quarto melhor , tirou-o do vão de escada infecto e escuro onde o alojara até ali . E foi esse o seu primeiro dia alegre naquela longa clausura de anos , passados no fundo sombrio do armazém , como num cárcere onde o amarrasse a grilheta do trabalho . A vida sorria-lhe um momento , e mal se imagina a viva comoção , a alegria sincera , com que ele guardou no escaninho da arca a primeira moeda de prata que recebeu do tio . Até lhe parecia que a grosseira imagem litografada de S.||_Joaquim Joaquim|_Joaquim , seu patrono , que a mãe colara no interior da tampa , ao guardar-lhe a roupa , tinha abençoado com um sorriso esse primeiro troféu da sua luta pela riqueza ! Coisa de um ano depois , o tio , que já sofrera em tempo um leve ameaço de paralisia , sentiu-se perturbado uma tarde , ao erguer-se da mesa . Custava-lhe a falar , e todo o lado direito insensibilizara-se de repente . Um médico , chamado à pressa , confirmou a hemiplegia , dando porém esperanças de melhoras . Contudo durante alguns dias foi difícil compreender-lhe a fala entaramelada , e teve de recolher-se ao quarto , abandonando de todo a loja , cuja direcção ficou a cargo de Joaquim Soares , então seu primeiro-caixeiro . Esta gerência durou mais de um mês ; mas em todo esse tempo não houve a menor alteração no movimento comercial da casa . Nem bulhas entre os marçanos , nem queixas ou reclamações dos fregueses , nem irregularidades de escrituração . Tudo em perfeita ordem , tudo no mais escrupuloso e completo arranjo . A marcha habitual daquele negócio rotineiro , sem as aventuras da alta especulação , continuou monotonamente sob a gerência de Joaquim Soares . E nesta administração de poucas semanas , nalgumas compras importantes , nalgumas vendas por junto a comissários que iam mercadejar , o rapaz mostrou uma disposição prática para o comércio , aliada a um espírito de probidade , que fez pasmar o Lucas Pinto , negociante de panos crus e chitas , antigo íntimo de Manuel Soares , e por este encarregado de deitar os olhos sobre os negócios mais importantes da casa , entabulados ou resolvidos por seu Sobrinho . Mudou subitamente , depois disto , a atitude do tio para com ele . Manuel Soares ficara arrasado , sofrendo sempre , movendo-se a custo , tomado a miúdo desses acessos de irritação que a imobilidade forçada produz nos génios activos . Não podia sair do quarto , e gradualmente foi abandonando toda a gerência do negócio ao sobrinho , que começou então a mandar no estabelecimento como verdadeiro patrão . A loja prosperava , as vendas por grosso e as comissões ao interior cresciam , a ponto de ser preciso abrir novos armazéns para o negócio de exportação que a casa começava agora a fazer . Naturalmente Joaquim Soares esperava ser o herdeiro do tio ; mas no seu espírito bondoso , recto e modesto , isto não era uma ambição : era uma simples probabilidade dos acasos da vida e da ordem natural das coisas . O tio estava viúvo e sem filhos : os seus únicos herdeiros eram os irmãos -- o padre e José Soares , o pai de Joaquim . Estes iam em bom caminho de fortuna e achavam-se há muitos anos separados do irmão : Joaquim Soares contava pois com toda a casa , como que por um dever de afecto e até de reconhecimento da parte do tio . Entretanto o velho Soares , recolhido ao quarto , pregado a uma cadeira como a um potro de martírios , piorava com os anos . Era apenas a sombra do que fora , e a sua existência esmorecia lentamente como uma luz que se extingue . Um dia sentiu-se pior , e percebeu que morria . Quando o sobrinho veio ao quarto , à noite , depois de fechada a loja , disse-lhe em voz sumida , mas sem comoção e com a maior frieza : -- Isto está por pouco ... Naturalmente não passo desta noite ... Se eu morrer , toma conta no que por aí encontrares . Cautela com os amigos ... Há aí um testamento na minha secretária particular ... Não confies as chaves a ninguém . Joaquim Soares quis ficar ao pé dele . O velho recusou secamente . -- É escusado . Vai deitar-te . De manhã encontraram-no morto na cama . Expirara como vivera , unicamente consigo , desligado de todos os corações e de todos os carinhos -- sem um beijo respeitoso e algumas lágrimas quentes nas suas mãos geladas . Joaquim Soares , só depois de dispor todas as coisas para o enterro do tio , pensou no testamento . Contudo , à sua abertura perante as testemunhas legais , sentiu-se abalado por uma estranha vibração nervosa . Teve um palpite , um palpite repentino de uma grande desilusão . Mas serenou imediatamente , seguro no seu desinteresse e na paz da sua consciência honesta . O testamento era lacónico : uma página apenas de papel selado , onde depois do longo cabeçalho do estilo se consignavam estas simples disposições : Deixo todo o activo e passivo de meu negócio , mais todos os papéis de crédito e dinheiros à ordem , e tudo quanto em minha casa for encontrado , bem como a dita casa e todas as mais propriedades e bens que possuo , a Manuel Ribeiro Antunes , filho de Ricardina Antunes , desta cidade da Baía , e presentemente residindo no Rio de Janeiro , o qual reconheço por meu filho , e constituo meu único e universal herdeiro , com a obrigação dos seguintes legados : A Lucas Pinto , meu antigo companheiro , o meu relógio de ouro e corrente ; A meu sobrinho e caixeiro Joaquim Soares , como lembrança dos bons serviços que prestou ao meu negócio , os meus botões de ouro de camisa . E mais nada ! Ao princípio Joaquim Soares ficou como assombrado . Ignorava completamente que seu tio tivesse um filho natural -- segredo absoluto , que nunca suspeitara . Sentiu então um primeiro movimento de revolta . Doze anos de dedicação , de trabalho violento e contínuo , de zelo , de cuidados , de sacrifícios pessoais , com um ordenado miserável -- tudo isto pago com uns botões de oiro que não chegariam a valer duas moedas fortes ! E nem uma expressão de sincera estima , de gratidão , de afecto ! Nem no último dia da sua vida uma palavra ou gesto , que lhe traduzissem um sentimento qualquer da parte do homem a quem ele sacrificara durante tanto tempo o avanço do seu futuro comercial ! ... Mas depois reflectiu . Pensou no facto da existência de um filho , nos deveres da paternidade , nos direitos da filiação ... E em pouco tempo na sua alma bondosa e indulgente , sempre aberta à piedade e sempre pronta à resignação , o acto do tio mostrou-se-lhe sob um outro aspecto : era o cumprimento de um dever , a aceitação de uma responsabilidade . E por isto explicava a secura aparente , a indiferença afectiva do tio nos últimos momentos : não o quisera iludir sobre a sua sorte no testamento ; sacrificara o coração Ãs exigências do dever moral ! ... E foi cheio de lágrimas que , antes do saimento , se debruçou sobre o esquife para lhe beijar pela última vez a mão . Lucas Pinto procurou-o ao outro dia de manhã cedo . Joaquim Soares , todo vestido de preto , com colarinhos de merino , apareceu-lhe de fisionomia abatida -- muito pálido e os olhos inchados e vermelhos de chorar . Estava no escritório , fazendo a correspondência . -- Você já trabalhando , Soares ? ! -- disse o negociante ao entrar . Era um homenzinho magro e sumido , de raros pêlos ruços , olhar azul de uma mobilidade desconfiada e cobiçosa , nariz adunco , e a espinha curvada da assiduidade à carteira . Havia um misto de covardia e inveja na sua face cadavérica , onde a fisionomia oscilava entre a expressão do medo e da perfídia -- esse aspecto clássico dos avarentos , de feições secas e amarelentas , como as efígies cunhadas no ouro das suas moedas . Agitava-lhe o peito uma tosse seca e áspera , que se confundia às vezes com o seu riso entrecortado , sem expressão de alegria ; e as mãos , de uma magreza esquelética , tinham nos dedos uma curva de garra , uma crispação rapace -- como a de um milhafre que descobre a presa . Sórdido , com uma velha sobrecasaca puída e coberta de nódoas , uns enormes sapatos , empoeirados ou enlameados segundo a estação , e na cabeça encasquetado um grande chapéu de palha gorduroso e sebento , o Pinto das chitas arrastava-se de loja em loja , nas vizinhanças do seu estabelecimento , apoiando-se a um guarda-sol de gancho , imprevisto e traiçoeiro , salteando os segredos do comércio , escutando à porta dos escritórios antes de entrar . Uns temiam-no , outros odiavam-no* . E ele com a sua cobiça de usurário e o seu prazer de tiranizar e ter na mão a vida alheia , insinuava-se , oferecia os seus serviços para os negócios que surpreendia ou adivinhava , e , uma vez cravada a garra nos bens das suas vítimas , martirizava-as com todas as pequenas opressões mesquinhas da agiotagem -- os vexames de hipotecas , penhoras , citações , protestos de letras -- rejeitando com inflexível dureza rogos , súplicas ou propostas de acomodação . Engolira assim os primeiros lucros de empresas nascentes , muito negócio em prosperidade , muita pequena fortuna acumulada nas lutas de um comércio honesto . Era riquíssimo , mas chorava-se sempre ; e o seu negócio das chitas , rotineiro e medíocre , era a máscara humilde com que disfarçava a sua alta condição monetária na aventura desse latrocínio legal da usura . -- Você já trabalhando , Soares ? -- perguntou o velho . -- E não tenho pouco que fazer , Sr.||_Pinto Pinto|_Pinto -- respondeu o caixeiro . -- Há dois dias que não vejo a correspondência ; há aí facturas e encomendas a aviar ... E depois o testamento do tio põe-me às costas uma enorme responsabilidade ... Não sabe nada ? Pois aí o tem . Leia . O Pinto leu avidamente . Ao meio do testamento empalideceu , soltou um oh ! de assombro e fitou o caixeiro . -- Leia -- repetiu este sereno . O usurário correu trémulo as últimas linhas . No fim deixou cair o papel sobre a carteira de Joaquim Soares , com um ar abatido e desconcertado . -- Ora esta , Soares ! -- murmurou entre dentes . -- Quem se lembraria disto ? Quem pensaria tal de um homem como seu tio ? Que traição , amigo ! ... E realmente o Pinto considerava uma traição este testamento do seu velho companheiro , porque Soares tinha sido , de todos os pequenos comerciantes da Baía , o único que conseguira prender a estima do avarento . Esperto , manhoso , egoísta , soubera-o evitar . E no fundo o Pinto sentia uma certa admiração por esse homem de um sagaz instinto de raposa , que escapara Ãs malhas da sua rede de agiota , desse homem que vivera sempre explorando os outros , com um poder de dominação insinuante e uma previdência velhaca , pouco vulgares . Em rnais de uma ocasião o Pinto fora o instrumento das suas manhas . Ele alugava-o pelo resultado financeiro do negócio , e atrás da porta via os seus rivais esperneando na ratoeira do terrível prestamista . Entendiam-se , no fim de contas ; mas no íntimo dessa ligação aparente os seus egoísmos , duros e ásperos como pedras , não se fundiam nem ligavam . Assim , morto o homem , na alma do Pinto acordavam os instintos da sua eterna fome de ouro , e encolhido , desconfiado , aproximava-se ao cheiro do espólio , com a sua marcha oblíqua de hiena que pressente um cadáver . Não tendo conseguido apanhar o tio , lançava agora as suas vistas sobre o sobrinho recém-ricaço . Aquela leitura deu-lhe em cheio no coração , como um tiro à queima-roupa . E trémulo , pálido , o olho azul com uma cintilação de ódio impotente , resmungava entre dentes palavras soltas de desapontamento . -- O filho ... o filho da Ricardina . Ora quem se lembrava já do filho ... E era dele ? ! ... ah ! ah ! ( casquinava a sua risada seca ) . Dele , ou de outro ... vão lá sabê-lo . Um bandalho de porta aberta ... Este testamento é uma traição , Soares ! Mas Soares , ignorante de toda a intriga em que o Pinto o iniciava por estas expressões soltas e que lhe revelara o testamento , instou para que o esclarecesse : -- Explique-me isto , Sr.||_Pinto Pinto|_Pinto . Quem é essa gente , este filho , esta Ricardina Antunes ? Que segredo era esse tão guardado , que nunca o suspeitei , vivendo há tanto tempo na companhia do tio ? -- Coisas velhas ... rapaziadas -- respondia o outro com azedume . -- É no que dão as asneiras de outro tempo . Sirva-lhe de lição , a você que é moço . -- Foi há bons vinte e seis anos essa história ; uma amigação dos diabos com uma mulher que para aí houve , uma desavergonhada de uma viúva que vivia com todo o mundo . Soares era um babado com mulheres ; mas , como esperto , foi sempre por elas que se fez gente . -- Isto aconteceu antes do casamento . E com dificuldade , emendando-se a cada instante , lá reconstituiu a história desses amores do seu amigo . Fora uma ligação trivial com uma pobre mulher perdida , viúva de um velho funcionário do império , que em paga de mil infidelidades lhe legara uma fortuna razoável . Soares aproveitando-se da sua conhecida fraqueza , dessa facilidade com que ela recebia todos os homens como uma fêmea roída pelo cio , atracou-a uma vez à má-cara com a brutalidade de um soldado em dia de saque . A mulher cedeu , receosa , vencida por aquela imposição violenta ; e durante anos ele explorou-a dissipando-lhe os últimos vinténs , para a abandonar por fim , com um filho , quando morrendo o seu velho patrão , o Sousa , lhe sorriu o plano de apanhar-lhe o espólio casando-se com a mulher , uma velha ignóbil , quase demente , de quem depois ficou herdeiro . Abandonada , a Ricardina saiu da Baía com o filho , seguindo um outro homem , e lá morreu por longe deixando o pequeno ao desamparo . Soares nunca quis saber dele . Muitos anos depois , contudo , viu o seu nome firmando artigos e poesias em vários jornais do Rio . O rapaz , começara a vida como tipógrafo , desenvolvera ao contacto dos livros e dos trabalhos de oficina um talento literário prometedor . Mas o pai , homem bronco e prático , que a respeito de letras só admitia as de câmbio , convenceu-se logo de que o filho dera num gazeteiro , num pelintra , e votou-lhe desde então um profundo desprezo , sobre o desamor que já lhe consagrava . E se algum assomo de remorso lhe feria a consciência , resmungava sempre enfastiadamente : -- Ora ... que se arranje ! Não estou para sustentar malandros ... Foi esta história , cheia de episódios e peripécias , que o Lucas contou , já com grandes hiatos de falhas de memória , já com os pequenos detalhes que muitas vezes surgem no espírito repentinamente , depois de anos de um completo esquecimento . O que eles não souberam porém explicar foi o reviramento súbito dos sentimentos do velho Soares para com esse filho natural . Talvez um conselho secreto de amigo ? Talvez um remorso ao pressentir um fim próximo ? Talvez uma transigência de católico medroso receando um juízo supremo , e combinando o seu egoísmo de vivo com a sua salvação de morto , em detrimento do pobre sobrinho que o servira como escravo ? ... -- Não percebiam , não penetravam esse mistério . -- Mas que trapalhada , Soares ! -- exclamou o Lucas Pinto num visível descontentamento . -- Não há trapalhada nenhuma , Sr.||_Pinto Pinto|_Pinto -- respondeu serenamente o caixeiro . -- Tudo se reduz a eu participar ao herdeiro o falecimento de meu tio e as suas disposições . Depois ele que venha tomar conta do que lhe pertence ... -- E cumprir os grandes legados ! ... -- concluiu o Pinto oom azeda ironia . -- Na verdade , Soares , sempre ambos merecíamos mais alguma coisa a seu tio ... Deus lhe perdoe à memória , mas não é por este testamento que ele há-de entrar no Céu ... Foi um grande ingrato , na verdade ... Joaquim Soares levantou-se tranquilamente e disse , de um modo firme , numa voz em que transpareciam vibrações de sincera dor : -- Ó Sr.||_Pinto Pinto|_Pinto , ainda não há um dia que o corpo de meu tio deixou esta casa , que era sua , e eu exijo que , boa ou má , a sua memória seja respeitada aqui , como se ele fosse vivo . Meu tio tinha bens , e portanto o direito de dispor deles como quisesse . O que mandou será cumprido . -- Mas esquecer-se assim de você , que foi aqui o seu escravo durante doze anos ... esquecer-se de mim ... -- Basta , Sr.||_Pinto Pinto|_Pinto -- tornou um pouco mais exaltado Joaquim Soares . -- Peço-lhe o favor de não insistir em tal ponto . O procedimento de meu tio é o de um homem de bem : aceitou uma responsabilidade ... os encargos que lhe resultavam de um passo errado . Este testamento absolveu-o do antigo desleixo dos seus deveres de pai , absolveu-o das suas culpas e dos seus erros . Repito que há-de ser fielmente cumprido em tudo o que depender de mim . Para recordação da sua memória basta-me a lembrança que me deixou ... Não tenho alma de invejar o pão alheio , nem ponho preço à minha amizade como Ãs sacas de café ... -- Mas , homem , olhe ao menos para si -- dizia Lucas Pires desnorteado . -- Que diabo ! Não seja criança , homem ! ... Você tem vinte e sete anos e por única fortuna o bem de Deus ! Que quer você fazer , Soares ? Quer recomeçar todo o seu trabalho , ficar na piolheira do balcão ? Ser para aí um burro de carga toda a vida ? Não seja criança , já lhe&lhes+o dise ... Trate de si , homem , trate de si ... -- Que trate de mim ? ! -- interrogou Joaquim Soares , sem compreender o sentido das palavras do seu vizinho . -- Mas é o que vou fazer : trabalhar por minha conta , procurar capitais com o crédito que tenho , estabelecer-me ... O negociante de panos fitou-o com firmeza e com esse olhar de profunda análise , da análise implacável que dão a experiência da realidade e a educação da luta brutal dos interesses . -- Isso é o sonho de vocês todos ! Estabelecerem-se ... estabelecerem-se ! ... Criancices , amigo ! Se você visse o que eu tenho visto , se conhecesse como eu o negócio , não se prendia nessas teias de aranha . Isto de comércio vai uma desgraça ! Não se dá um passo ; não se sai da cepa torta , Soares . Conte-me disso a mim , que há quarenta anos me vejo metido nesta vida . Olhe o que eu tenho andado : ganho apenas para comer , meu amigo , apenas para comer ... E este é o negociozinho certo , a pingadeira de todos os dias . Porque lá esas altas empresas da moda -- lérias ! Veja você o que por aí vai : quebras e mais quebras ... Não se entra para isto sem fundos , Soares , sem fundos próprios , porque o crédito -- olhe que isto é verdade -- não passa de uma invenção do Diabo : serve só para tentar e para perder . Fundos próprios , Soares : este é que é o caminho seguro ! ... Sem isto nada . Eu sempre pensei que seu tio o deixasse herdeiro , e vinha propor-lhe um pequeno negócio . Assim ... só lhe digo que pense na sua situação e que se decida quanto antes ... sem perder tempo ... -- Que me decida a quê , senhor ? -- perguntou o caixeiro meio intrigado , meio duvidoso , na sua ingénua boa-fé , sobre o sentido daquela advertência . Lucas Pinto fez uma pausa . O seu olhar tomou uma vivacidade mefistofélica . A cobiça , a febre do ouro , a rapacidade ingénita do seu carácter , como que lhe saltavam da vista em chispas infernais . Dir-se-ia-o Tentador numa prosaica encarnação de burguês patife . -- Homem , sejamos francos ! -- continuou , passado um instante . -- A vida tem necessidades que você desconhece , na sua boa-fé de rapaz , necessidades a que não se resiste , Soares ... O mundo é assim , e não fui eu que o fiz . Não seja tolo , não deixe fugir as ocasiões ! ... Olhe que mais tarde arrepende-se . Bem sei que se fala , se diz ... etc. e tal . Lérias , lérias , amigo , histórias ! Palavreado dos que não podem -- e nada mais ! Todos somos o mesmo , bem no fundo , creia isto ; e mais tarde ou mais cedo vimos a cair na realidade das coisas ... Se você visse o mundo como um homem , sabe o que fazia ? ... Soares , cada vez mais perplexo , fitava-o , mudo , com um aspecto de idiota , de pé e as mãos apoiadas sobre a banca . O sangue afluía-lhe apopleticamente Ãs faces . Lucas Pinto media as doses do veneno que pensava infiltrar no juízo do caixeiro . Supunha-o um pobre diabo fraco , inexperiente e maleável . E por lhe desconhecer a obscura hombridade , a íntima energia moral , contava com um triunfo nesta traficância , proposta quase a descoberto , sem a sapa lenta e cautelosa das longas intrigas . Por isso aclarava o seu pensamento , desmascarando o conselho , abandonando gradualmente o tom vago e sibilino do seu discurso . -- Se você visse o mundo como um homem , sabe o que fazia ? ... Ia-se prevenindo ... Outra pausa . -- Sim , ia-se prevenindo ... Deixe-se de contos : não seja criança . ( Uma tosse seca agitou-lhe o peito . ) Veja se é de justiça que , depois de servir tantos anos o seu tio , fique para aí sem um real , sem nada de seu próprio para começar a vida ... E o outro de quem ele nunca fez caso , e a quem nem o seu nome quis dar , há-de vir aqui e , sem mais razões , meter Ãs algibeiras os contos de réis que você juntou trabalhando como um mouro ; porque a verdade é que esta casa só foi casa depois que o negócio lhe começou a correr pelas mãos ... -- Mas então entende que eu devo intentar um processo contra o herdeiro ? ... -- Um proceso ! Que ideia ! Um processo , sim ... mas sumário ! De que lhe valia a você uma questão nos tribunais ? Está aí o papel legal registado nas notas de um tabelião . O que se não sabe é o total da fortuna , o que se não conhece é o dinheiro que aí está dentro , nem o movimento da casa ... Papéis , letras , propriedades , tudo isso está nos livros dos bancos e dos negociantes , nos registos públicos . A escrituração da casa e o cofre , porém , estão na sua mão ... É ter a faca e o queijo ! ... Ande , homem , não seja tolo . Veja as coisas como elas são ... Que diabo ! A vida tem destas necessidades , o comércio tem destes casos , como já lhe disse ... Você não conhece o mundo . Cego de uma cólera negra , quase perdido de cabeça , o pacífico Joaquim Soares oscilava entre a indignação da sua honradez e a tibieza do seu ânimo . Descomposto de feições , rugiu esta pergunta , num tom cavo de raiva surda , onde ia toda a sua repugnância à tentação abjecta do traficante : -- O senhor aconselha-me que roube ! ... -- Que roube ! Bem digo eu que você é criança ! ... Roubar a quem ? A seu tio , que está morto ? Ao rapaz que não tem nada ? ... Homem essa é boa ! ... Este ponto de vista de uma subtileza cínica sobre um tão miserável crime , desnorteou de todo o espírito fraco do bom caixeiro . Lucas Pinto pensou-o dobrado e vencido , e julgou conveniente aproveitar o momento . -- Soares , a coisa faz-se entre nós , sem que o mundo o saiba ... Um jeitinho aos livros , uma sangria à burra e ninguém fica mal ... O rapaz não perde , pois que ninguém perde o que não tem ; e de resto muito lhe fica , todo o negócio , todas as letras , propriedades ... Seu tio só precisa agora da misericórdia de Deus ... Você escusa de se acabar mais tempo nessa vida de negro que tem levado ... e eu pelo meu conselho só lhe peço que me ajude num negociozito que nos pode render bom dinheiro ... Era muito . Joaquim Soares tremia , pálido , lívido , da indignação que o dominava . Percebera , por fim , a manobra do seu vizinho e Ãs últimas palavras dele , fora de si , como um louco furioso , deitou-lhe ao pescoço as suas grossas mãos cabeludas e duras e levou-o adiante de si até à porta do escritório , contra a qual o entalou . A cólera explodia-lhe em insultos entrecortados . -- Ah ! seu desavergonhado ! ... E isso não é roubar ! ? ... Olhe que o desfaço , seu grande canalha ! -- Aqui d & & x92 ; el-rei ! -- gritava Lucas Pinto . -- Respeite um velho , Soares ! ... -- Eu aqui não respeito ninguém , seu grande ladrão ! ... E brutalmente afocinhou-o sobre uma cadeira . Como todos os homens sem hábitos de pugilato , sem arte de luta , batendo apenas no ímpeto da cólera , os seus golpes eram incertos e tinham o ridículo dos ataques das crianças ou das mulheres ; arranhava , arrepelava , dava pontapés ! Ao reboliço acudiram os marçanos , que estacaram perante aquela cena , mal abriram a porta . Com a presença deles Soares como que veio a si , e de um empurrão atirou o Pinto contra a parede , perto da qual ele caiu de costas no sobrado . -- Rua , seu canalha ! -- rugia o caixeiro . -- Rua ! nem mais um instante nesta casa ... Fuja , que eu perco-me ... Fuja , olhe que o mato ! ... E impelido por outra onda de cólera crescia para o velho que , medroso , correu para a rua , escapando-se através da mercearia -- grunhindo e com as mãos nas faces feridas e pisadas . -- Para a loja ! Já para a loja ! Quem os mandou cá meter o nariz ? -- gritou este aos marçanos que correram , intimidados , atrás do vizinho das chitas . E meio desafogado , mas trémulo e nervoso , passeou por muito tempo de mãos nos bolsos , através do gabinete , murmurando insultos e exclamações ... Duas horas depois ele mesmo deitava ao correio uma carta dirigida ao herdeiro de seu tio , anunciando-lhe esse testamento inesperado que o enriquecia . Nas poucas linhas dessa carta ia o epílogo lacónico e simples de um grande acto de honestidade , de uma vitória , obscura mas heroica , sobre as tentações diabólicas do ouro . E no entanto o pobre homem sentia-se como sob o peso de um remorso -- só por ter ouvido as palavras venenosas do avarento ... Passaram-se anos , muitos anos ... Pelo Brasil , ora numa , ora noutra terra , Joaquim Soares labutou rijamente pela fortuna , atirando-se ao trabalho de cabeça baixa , indo buscar o lucro onde quer que ele estivesse , pondo ao ganho e à posse do dinheiro a exclusiva condição da sua intransigente probidade . Activo , com uma segura disposição para o negócio , pôs de parte o comércio localizado e entregou-se a empresas de comissão que lhe permitiam um começo de vida quase sem capitais . Comprava aqui , vendia acolá , dirigia transacções a distância , tomava empreitadas de fornecimentos , carregações , transportes marítimos -- de maneira que a sua vida tornou-se numa contínua viagem pelo Brasil , desde o Amazonas , onde embarcava a borracha , até Ãs campinas do Sul , onde negociava em gado e em couros . Muitas vezes no trato do negócio os outros comerciantes profetizavam-lhe um mau futuro pelos seus excessos de boa-fé e pelos seus minuciosos escrúpulos de honra . " Você há-de ser muito roubado , Soares ! -- Ande lá , que um dia o senhor paga todas as suas criancices ! " Mas a estes conselhos Soares respondia com uma pura serenidade de consciência : " Antes ser roubado do que roubar ... Primeiro que tudo quero o sossego cá de dentro . Havia de me saber a fel o pão mal ganho , palavra de honra ! E de resto sempre me tenho dado bem com o meu sistema . Homem , isto é fortuna de família . Lá na terra chamam-nos os Soares da Boa Sorte . " Por vezes no seu negócio aventuroso esteve em riscos de perder tudo . E nessas ocasiões difíceis havia da sua parte grandes rasgos de hombridade , franquezas sinceras sobre o seu estado comercial perante as praças em que tinha crédito , oferecimentos espontâneos de cauções a credores a quem devia quantias mal garantidas -- toda uma lisura de negócios e um timbre de cavalheirismo que , dia a dia , lhe confirmavam mais a reputação . Depois era um mãos rotas para a pobreza , um protector nato de quanto conterrâneo sem eira nem beira lhe caía ao lado . Era o homem dos asilos , das caixas de beneficência , dos hospitais , das escolas , para onde dava dinheiro à doida -- comprometendo às vezes nestas generosidades os lucros de todo um negócio , o rendimento de um ano inteiro de trabalho . E assim o seu capital engrossava lentamente , porque para Soares a riqueza não era um fim , mas um meio ; e nele o trabalho não representava a sede do ouro , mas uma necessidade de temperamento . Queria ser rico para satisfazer a sua febre de generosidade , para ver em torno de si todo o mundo feliz ; e se não fossem essas liberalidades loucas , em poucos anos teria amontoado algumas centenas de contos . Mas as suas ambições próprias eram modestas ; e um dia viu por fim realizado o seu grande sonho : poder liquidar um rendimento de mil libras ! Tinha quarenta e sete anos de idade e trinta e dois anos de trabalho . Achou que era tempo de se reformar em capitalista , de regressar ao seu Minho , tanta vez saudosamente relembrado , para gozar em paz o fruto de uma tão longa labutação honesta . E desde então a ideia da pátria , da sua aldeia da Guardeira , do velho pai e dos irmãos , que ainda todos viviam , a ideia fixa das boas almas dos expatriados em busca do trabalho , ao fim das suas valentes vitórias sobre a fortuna -- vir espalhar no torrão natal o dinheiro ganho fora , os troféus conquistados em batalhas contínuas nesses países do ouro -- essa ideia , aguilhoada pelas saudades , pelas reminescências castas e luminosas da infância , pela nostalgia das longas ausências , pela fadiga do trabalho , pelo gozo de um regresso triunfante , pela curiosidade de saber o que os anos fizeram de tudo o que se amou e estimou , antes de mais nada na vida -- essa ideia absorveu todo o espírito , todo o coração do bom Soares . Liquidou os seus negócios , escreveu aos seus participando-lhe a resolução , deu o último abraço aos amigos e , um dia , com as lágrimas nos olhos , entre a esperança e a saudade , numa comoção inexplicável de receio e desejo , como na primeira loucura da juventude quando nos arrojamos à responsabilidade de um acto duvidoso -- de bordo de um dos grandes paquetes da Royal Mail , Soares , debruçado na amurada , viu perder-se pouco a pouco no horizonte , como um traço esfumado de névoa cinzenta , essa terra da América do Sul -- onde lhe ficavam tantos anos da sua vida , tantas recordações , tantas saudades ... Na Guardeira a notícia do seu regresso estalou como o anúncio de um acontecimento superior , de um sucesso histórico cheio de consequências para a vida social do lugarejo . Não se falava noutra coisa em toda a freguesia . Era o assunto obrigado da chocalhice indígena em todos os pontos de cavaco , desde as vendas e o adro da capela , depois da missa , até ao alto círculo oficial da administração do concelho . -- Então o Joaquim da Boa Sorte volta do Brasil ? ... -- Assim ouvi , compadre ; e dizem que rico ... cheio como um ovo . -- Os irmãos é que vão campar ... -- Deixe lá que para nós também não é mal nenhum ... -- Olha a dúvida ! do que aqui se precisa é de dinheiro ... de um homem que aveze ... Com os ricos é que eu me quero , amigo ... Mas a família -- que apregoara largamente a grande notícia -- essa impava de orgulho , estalava de satisfação . Os Soares tinham grande importância no lugar . O irmão mais velho , o padre||_Inácio Inácio|_Inácio , era o abade da freguesia ; o segundo , o Ricardo , estava médico no partido do Soutelo , concelho limítrofe ; e o cunhado , o Francisco da Silva , antigo mestre-de-obras e pequeno proprietário , tinha-se feito grande homem político da localidade , tendo sido por várias vezes regedor , membro da junta de paróquia , director do correio e camarista no Município de Bouças , durante um biénio , por influência do morgado da Cardenha , que fora muito tempo o patrono generoso de toda essa família de clientes . Eram homens práticos , videiros , com uma tintura de instrução que lhes dava superioridade sobre os conterrâneos . E assim a ideia de terem um sólido ponto de apoio monetário na fortuna do irmão ricaço , para alavancar mais fortemente a sua influência , aumentava o júbilo sincero em que os trazia a esperança de o abraçar em breve , pois no fundo eram bondosos e honestos . Por isso quando receberam de Lisboa a notícia da sua chegada ao Lazareto a família resolveu ir esperá-lo ao Porto . Iriam todos , à excepção do pai , um velho quase nonagenário , meio paralítico , tão tomado das pernas que só nos bonitos dias de sol se arrastava tropegamente apoiado a um varapau até ao adro da igreja ; e numa bela manhã , o abade , o médico e Francisco da Silva com a mulher e os dois filhos , a Ermelinda e o Augusto , tomavam lugar no carro da carreira , alegres , radiantes , endomingados , como quem marcha para uma grande festa ou se prepara para figurar num triunfo . Quando entraram na estação de Campanhã ainda faltavam duas longas horas para a chegada do comboio do Sul . A plataforma estava quase deserta ; apenas dois empregados , de boné e guarda-pó de linho , passeavam conversando . Da marquise de ferro canelado caía o calor plúmbeo e asfixiante de um meio-dia de Julho . O asfalto queimava os pés . Lá fora a luz crua e a vibração do ar quente velavam a paisagem como sob uma ligeira gaze de prata cintilante . Sentia-se à distância o silvo de uma máquina que manobrava nas agulhas , e de vez em quando um carro de bagagens atulhado de malas passava , rolando com estrépito , impelido por um carregador . A família passeou longamente a todo o comprimento do cais , olhando o relógio com uma viva impaciência . A Sr.a||_Maria_do_Rosário Maria|_Maria_do_Rosário do|_Maria_do_Rosário Rosário|_Maria_do_Rosário contava os minutos ; mas Francisco da Silva , o marido , declarou em ar de censura que isto de comboios era uma pouca vergonha , que nunca se sabia Ãs quantas se andava . O abade dissertava gravemente sobre os caminhos de ferro e suas vantagens , relembrando as antigas jornadas do seu tempo , a cavalo ou de liteira , quando para ir do Porto a Lisboa era preciso fazer testamento . E concluía dizendo para o irmão e para o cunhado : -- Lá nisto de estradas e caminhos de ferro é preciso confessar que muito se deve ao Fontes ! No entanto outras pessoas iam aparecendo na gare . Ouvia-se fora , no largo da estação , o rodar das carruagens que chegavam . O timbre do telégrafo vibrou , e logo depois a sineta deu um toque de aviso . A estação despertava ; o chefe e os empregados apareciam ; os carregadores espalhavam-se na plataforma , bocejando , amolecidos pelo calor . Nesse momento dois rapazes que saíam do restaurante , rindo e falando alto , passaram mesmo ombro com ombro o pé dos Soares ; e um deles , loiro , muito ajanotado , de luneta , ao dar de cara com a Ermelinda , disse em voz baixa para o outro , acotovelando-o : -- Olha que bonita pequena ! ... Vês ? ... ali com aqueles tipos ... E ambos a fitaram cara a cara , com uma impertinência que a fez baixar os olhos . Mas daí a instantes , nesse passeio ao longo do cais , os dois grupos cruzaram-se de novo , e o rapaz loiro tornou a lançar à Ermelinda um longo olhar insistente e delambido . E assim continuou em cada volta , em cada encontro , provocando insolentemente o namoro . A hora , porém , aproximava-se . Ouviu-se ao longe a corneta do agulheiro , e um instante depois a máquina aparecia lá ao fundo , dobrando uma curva -- e entrava por fim estrepitosamehte nas agulhas , ofegante e empenachada de fumo . Houve um movimento na plataforma . Todos os grupos se aproximaram da linha , estendendo ansiosamente o pescoço , querendo reconhecer alguém na fileira de cabeças que saíam das portinholas das carruagens . Mas o comboio parou um momento para se recolherem os bilhetes . Os Soares , muito perturbados , procuravam distinguir de longe o irmão , cujas feições mal conheciam por uma fotografia antiga . Batia-lhes o coração , sentiam a garganta seca , tomara-os um mal-estar estranho -- essa espécie de angústia que se sente quando se aproxima enfim a realização de um sucesso longamente desejado . Foram uns minutos terríveis . Parecia-lhes que todas as caras que viam de longe , confusamente , assomar Ãs portinholas lhes sorriam , lhes faziam sinais amigos . -- Será este ? Será aquele ? -- perguntavam entre si . -- E se não viesse , se tivesse perdido o comboio ? Que decepção ! Por fim o condutor apitou , a máquina respondeu com um silvo agudo e o comboio entrou solenemente , vagarosamente , na gare , prolongando-se com o cais , enquanto os carrejões deitavam as mãos aos fechos das portinholas e os passageiros , com aspectos encalmados , exaustos de uma longa viagem sob o calor tórrido e o pó mordente , se debruçavam saudando um amigo que os esperava ou olhando com indiferença os grupos que enchiam a estação . Então à portinhola de um dos vagões , que passava em frente deles , os Soares viram uma larga face trigueira , emoldurada em duas grossas suíças , negras , fortes e curtas , uma face radiante , cujo olhar bondoso parecia procurar inquietamente alguém entre toda essa multidão . O abade teve um palpite . Aquela fisionomia bondosa não podia enganar as suas reminiscências de infância . Era ele , era o seu Joaquim ! E erguendo o braço gritou-lhe com a voz estrangulada pela comoção : -- Ó Joaquim ! Joaquim ! ! Os outros olharam ; viram uma mão que lhes acenava , dois olhos marejados de lágrimas e ouviram distintamente pronunciar os seus nomes : -- Ó Inácio ! Ó Maria ! Ó Ricardo ! ... ó filhos ! -- Ó Joaquim ! -- bradaram todos em coro correndo para a carruagem que parou um pouco adiante . A portinhola abriu-se e um homenzarrão veio cair-lhes nos braços , repetindo-lhes os nomes , chorando como uma criança , com a voz cortada pelos soluços . Foi um longo abraço mudo , comovido , nervoso -- em que sem uma palavra se transmitiu toda a confidência das antigas saudades , dos velhos sentimentos redivivos . Ele estreitava-os a todos , beijava-os , tornava a dizer-lhes os nomes , chorando , sorrindo , suspirando . -- São os teus filhos , Maria ? ! -- perguntava olhando os sobrinhos . -- Ai que jóia de rapariga ! Deixa-me abraçá-los também ... E o pai ? Como está o pai ? Muito velhinho , coitado ? ! Vá , saiamos daqui depressa . Estou morto por me ver em casa ao pé dele ... E chorava de novo , nervosamente , numa efusão que a sua vontade era impotente para dominar . Mas tornava-se preciso saírem dali . Os carrejões assaltavam-nos , pedindo-lhes a bagagem ; a multidão que se dirigia para a porta impelia-os na sua onda . À saída o aperto era grande ; e como Ermelinda deixasse cair o seu guarda-sol , sentiu que alguém o apanhava atrás dela . Voltou-se e viu o rapaz loiro que lhe&lhes+o entregou , dizendo-lhe : -- Este guarda-sol creio que lhe pertence ... -- Muito obrigado -- respondeu ela simplesmente sem o fixar . O Ricardo veio fora procurar um char- à bancs que os levasse à Guardeira , enquanto Soares , todo atarefado , abria as suas malas na sala das bagagens . Daí a instantes o carro partia a todo o trote , aos solavancos sobre as suas molas duras , cruzando rapidamente a cidade . Soares olhava as ruas e as casas , pasmado da diferença que o Porto fazia . Não reconhecia a cidade , e os prédios novos , de cantaria lavrada , azulejos frescos e claros , platibandas e grandes vidros nas janelas , encantavam-no , davam-lhe a nota dos seus gostos : coisas sólidas , bem feitas e bem pagas . Quando o carro entrou na estrada da Guardeira , começando a rodar sobre o macadame , debaixo das grandes tílias , entre os muros musgosos das quintas e os silvados cinzentos do pó , quando se começou a sentir o ar do campo , impregnado dos aromas dos pinhais , do mato florido , do trevo , da terra recozida pelo sol , Joaquim Soares comoveu-se profundamente . Aquela paisagem e aquele ar fresco despertavam na sua alma velhas recordações , reminiscências quase apagadas , sentimentos adormecidos há muitos anos no fundo do seu coração . Era toda a sua infância que se erguia diante dele -- toda uma idade calma , simples e ingénua , a que lhe parecia voltar depois do seu longo exílio nessas terras distantes , entre o trato rude dos homens e a implacável batalha da vida . E cheio de curiosidade , ia perguntando por estes e por aqueles , pela situação da aldeia , pelo destino de certas pessoas e de certas coisas . Imediatamente a conversa mudou de tom . Nas informações dos irmãos transpareciam os seus sentimentos pessoais e os seus interesses . Diziam bem de uns , mal de outros , narravam mil caos de intriga local , referiam as suas pretensões , os seus planos , deixavam claramente entrever o quanto contavam com ele para solidificar com o seu ouro a importância crescente da família . O Ricardo , que avançara pouco no partido de Soutelo e que tinha adquirido da experiência do mundo esta sublime verdade -- de que só pela política se fazem as coisas -- , aconselhava-o autoritariamente : -- Com o teu dinheiro tens tudo aquilo na mão : és o rei . Há muito que se precisa de quem faça frente ao Carlinhos da Cardenha , que entende que ainda hoje se lê cá na terra pela cartilha dos capitães-mores ... Depois o abade queixou-se-lhe da falta de meios da freguesia para fazer obras de primeira necessidade na igreja paroquial . E o cunhado , pela sua vez , procurou induzi-lo a que tratasse logo de obter a conclusão de uma estrada que lhe devia passar à porta da quinta paterna . Soares radiante e feliz , cheio de comoção , com lágrimas saudosas para o irmão abade , que lhe recordava o velho tio , capelão da Cardenha , que o ensinara a ler , com ditos para os cabelos brancos do médico , e abraços para o cunhado que fora o melhor dos seus companheiros de infância , prometia tudo , dizia que sim a todos os conselhos e a todos os pedidos . E quando ele chegou a entrar na Guardeira , quando a aldeia em peso o veio ver abraçado ao pai meio paralítico , cheio de lágrimas e de alegria , todos viram naquele corpulento brasileiro , de suíça dura , cabelo grisalho e uma larga face bonacheirona , honrada e feia , o Messias da localidade , o futuro rival político do Carlinhos da Cardenha , o pai dos pobres , o tesoureiro oficial de todos os que não tivessem dinheiro , o cofre inesgotável da população para todas as fantasias do fomento de campanário . Choveram-lhe em cima as visitas da gente grada , e à frente delas o temido Carlinhos , um bacharel formado , de vinte e sete anos , com pretensões a deputado , e dando-se uns ares de vice-rei no concelho -- Bouças . Todos estranharam este procedimento do Carlinhos , porque os Soares tinham-se posto de candeias às avessas com a casa da Cardenha , por o velho morgado se negar a empenhar-se numa pretensão do médico Ricardo Soares , que queria melhoria de vencimento no seu partido . Mas o Carlinhos , que tinha fumaças de homem finório e de vistas largas e que , além disso , havia comprometido seriamente a casa com dois anos de vida airada e uma viajata ao estrangeiro , pressentiu também em Joaquim Soares uma grande mina a explorar e pondo de parte o que ele chamava as ingratidões daquela gente dos Boa Sorte , tomando uma atitude nobre de generosidade e esquecimento , foi logo , amável e cortês , como um boiardo condescendente , visitar o servo enriquecido e parvenu . Passado o tempo das primeiras expansões , o génio activo de Soares começou a sentir a necessidade de movimento . -- Que diabo ! Canso-me a não fazer nada -- dizia ele à família . Então todos os parentes voltaram à carga -- um com a política , outro com a igreja , o terceiro com a estrada . Soares entendeu , no seu ingénuo cristianismo , que era em honra de Deus que devia começar a espalhar o seu dinheiro na terreola natal . Determinou pois começar pela igreja e as obras principiaram à larga , todo o telhado novo , altares restaurados , imagens modernas , reformas nas vestimentas e paramentos -- e enfim , para cúmulo , um belo cálix de ouro maciço com o pé trabalhado a relevos custosos , obra para uns centos de mil réis . O irmão abade , que na família herdara a representação eclesiástica , andava radiante e só pensava na grande festa com que inauguraria a sua capela depois de restaurada . Como testemunho de gratidão para com oirmão generoso levou a junta de paróquia a fazer tirar-lhe um retrato a óleo , de meio corpo , para ser colocado com um letreiro explicativo e laudatório na parede da sacristia . Ainda as obras da igreja iam em meio , já Soares espontaneamente se oferecia para construir uma casa de escola . Nisto o morgado quis operar uma manobra de mestre atraindo a si o nababo recém-vindo . Mal lhe chegou aos ouvidos a notícia de que o brasileiro ( Soares estava por fim confirmado definitivamente neste indispensável papel típico da aldeia minhota ) pensava em doar a freguesia com uma casa para a escola primária , foi procurá-lo à Portela , a quintarola do pai onde ele ficara a viver , e cheio de frases e de excelências pediu-lhe licença para o abraçar e significar-lhe o desejo que tinha de o apresentar ao governador civil para este fazer o seu nome conhecido do Sr. Ministro do Reino , e obter-se da parte do governo um subsídio para a manutenção da escola , pois professores que aceitassem a parca remuneração dos municípios " não eram decerto os sacerdotes correspondentes ao belo templo da instrução popular , que S.||_Ex.a Ex.a|_Ex.a ia erguer dadivosamente no seu torrão nativo " . O bom Soares ficou encantado , mas recusou-se cheio de modéstia . Era um pobre homem , dizia ele , com desejos sinceros de servir a sua terra , mas não queria nada com a política ; o seu gosto era viver em paz com todo o mundo , ver todos contentes e felizes . S.||_Ex.a Ex.a|_Ex.a o Sr.||_Dr._Carlos Dr.|_Dr._Carlos Carlos|_Dr._Carlos podia tratar pela sua própria influência desse negócio , que ele lá estava para correr com as despesas e para o mais que fosse preciso . O irmão médico torceu o nariz a esta atitude de Joaquim Soares ; mas este assegurou-lhe que em política se não metia , que nunca quisera tratar de coisas fora do alcance da sua cabeça , e que não tinha andado toda a vida para ganhar dinheiro para por fim criar com ele inimizades e indisposições . Faria o bem que pudesse , estava pronto a dar a camisa do corpo para socorrer a pobreza , mas lá em cavalarias altas de política -- isso de forma alguma . -- És um tolo -- afirmava-lhe o médico . -- Atiras toda uma fortuna à rua . Não te dava mais de dois ou três anos para seres deputado ... para teres tudo isto aqui assim na mão . E fechava a esquerda , como sofreando com as rédeas uma cavalgadura sujeita e domada . -- O quê , Ricardo ? Deputado , eu ? ! -- exclamou o brasileiro . -- Tu estás doido ! Eu metia-me lá nessa ... Ir para a Câmara fazer figura de asno , dizer que sim ou que não em coisas que não percebo , consoante o recado que me dessem cá de fora ? ! ... Tu estás enganado comigo . Eu conheço-me , e sei para o que nasci . Fala-me em câmbios , em açúcares , em cafés , em gado , em carregações , em armadores -- e tens homem . Fiz-me gente a lidar com isso , e nesses pontos sei-me governar . Agora lá pela basófia de fazer figura ou para dizer que tenho os outros debaixo dos pés , meter-me nessas empresas de alto bordo para que não tive princípios , isso não vai lá ! -- Homem , eu aqui , com os patacos que arranjei , posso talvez fazer algum bem . Mas metido na política , para que diabo sirvo ? Sim , que queres tu que eu faça na Câmara ? ... Ora deixa-te disso ! É pela figura ? Leve o diabo tal mania ! O que eu quero é que me deixem em paz ... que me deixem viver obscuro e sossegado , como tenho vivido até hoje ... -- Pois olha , eu no teu lugar ... -- ponderava ainda o médico , a quem estas doutrinas pareciam criancices . -- Mas isso comigo é outro cantar ... Tu tiveste estudos , andaste nas aulas , fizeste uma carreira pelos livros . Lá entendes disso . Eu cá fui um burro de trabalho , ora eis aí está ... -- Nada ! Deixemo-nos disso ... deixemo-nos** disso ! Cada um para o que se criou . Entretanto o morgado escrevia jubiloso ao governador civil que conseguira do brasileiro a construção da escola primária , e que julgava que para o animar se lhe devia oferecer uma comenda , terminando sempre com grandes protestos de fidelidade ao governo , almejando pelo dia que lhe pudesse prestar " outros serviços políticos superiores a estes pequenos negócios de campanário " . O seu jogo consistia em fazer crer ao governador civil que era o rei da terra com um Rothschild labrego à sua disposição , e em se dar por outro lado importância perante o lorpa do brasileiro , atirando-lhe com uma comenda ao peito . No fundo de tudo isto estava o sonho doirado do círculo . Ao fim dos trabalhos da igreja e quando os da escola iam já em mais de meio , Soares percebeu que nestas genorosidades a sua fortuna ia levando rombos perigosos . Achava-se forte , ainda novo , e resolveu recomeçar a trabalhar . Comprou a quinta ao pai , contratou com uma casa inglesa o fornecimento em larga escala de gado de embarque , e em pouco tempo a Portela era um depósito de juntas de bois de ceva , comprados em todo o Minho e Douro , que dali seguiam em manadas trôpegas para os embarcadouros dos paquetes ingleses no cais de Maçarelos . Como sempre , a boa sorte acompanhava-o nos seus negócios , e já ao fim do primeiro ano Joaquim Soares auferia lucros que lhe permitiam restabelecer o seu equilíbrio financeiro . Porém , desde que comprara a quinta ao pai , o brasileiro ruminava o plano de fazer construir uma casa -- o belo palacete com portões de ferro ao lado , mirante , platibanda de granito e mastro no quintal para içar bandeira aos domingos e outros dias festivos . Havia já ido ao Porto duas vezes tratar do risco com um arquitecto , e apenas restavam umas dificuldades de escolha de local nos limites da própria quinta , quando o Dr. Carlinhos , que pelas suas artimanhas políticas conseguira , não o círculo desejado , mas o lugar de secretário-geral num distrito do Sul , resolveu vender a Cardenha , última propriedade que lhe restava , mas já crivada de hipotecas fortes , das quais ele se sentia incapaz de a desonerar . O morgado anunciou a quinta nos jornais do Porto , mas os enlevos da época eram as construções urbanas , e os anúncios de propriedades rústicas , então , arrastavam-se meses sem sucesso algum nas últimas páginas das grandes folhas diárias . Os Soares todos caíram sobre o brasileiro influindo-o à compra . A quinta não achava comprador , os credores só a tomariam em último recurso e o morgado largaria aquilo por cinco réis de mel coado . Fugia assim à maçada de uma construção nova ; a casa era soberba , bem conservada , com um velho ar solarengo que lhe dava majestade , e pedindo apenas ligeiros reparos e embelezamentos . Joaquim Soares decidiu-se : escreveu ao morgado e depois de rápidas negociações concluiu a compra por vinte e cinco contos -- quase só o valor da casa ! Os Boa Sorte não cabiam em si de felizes com a ideia de terem na família a posse daquela rica propriedade , onde o avô de Joaquim Soares , o velho Manuel Inácio , começara a vida à frente dos bois . Era como que uma revindicta das suas humilhações de proletários aquela aquisição da Cardenha pelo mais trabalhador e mais feliz de todos eles . E agora , correndo livremente o imenso casarão , sentiam-se desforçados das vezes que tinham esperado , submissos e humildes , ao fundo das escadas ou nas antecâmaras , por que o Sr.||_Morgado Morgado|_Morgado se dispusesse a recebê-los . A Cardenha era o morgadio de uma família que no século XVIII dera em cónegos e em desembargadores as figuras mais casmurras dos cabidos e das justiças portuguesas . O morgado ficava-se sempre a caçar e a estafar cavalos nas terras de entre Douro e Ave , dando lautos bródios nas tradicionais festas do ano , enquanto os cadetes se espalhavam pelos coros das sés , pelos conventos ou pelos altos tribunais . Economicamente a casa resistiu muitos anos numa completa imobilidade conservadora , até que o morgado coevo da revolta Patuleia a empenhou em muito , tomando parte activa no movimento popular do Minho . Esse morgado era excepcionalmente um velho doutor em leis , amigo dos revolucionários de 20 , um clássico humanista , com a cabeça cheia de Grécia e Roma , e , como tal , apóstolo de uma liberdade catónica , dogmática e rígida , que o fazia um partidário ferrenho de todos os radicalismos da nossa política de então . Desiludido mais tarde sobre os destinos do seu país , o velho morgado abandonou o parlamento , onde tomara assento durante anos , e retirou-se Ãs suas terras . O único filho e seu sucessor morria pouco depois de um desastre à caça , deixando a viúva , ainda nova , e um filhinho , o Carlos . Metido na Cardenha , o morgado António da Silveira passou o resto da sua vida a reler os clássicos latinos e a agricultar rotineiramente as suas terras . Todo o seu enlevo era o neto , que fez educar no Porto , destinando-o para seguir depois o curso jurídico em Coimbra . Quando o rapaz estava quase no fim do primeiro ano , o pobre velho , quebrado da muita idade , cheio de sofrimentos e desgostos , morreu . A nora ficou na Cardenha até à formatura do filho , que , tomando conta da casa , ao sair de Coimbra , a acabou de comprometer com as suas dissipações no Porto e em Lisboa e com uma viagem a Espanha e a França . E assim passava o velho senhorio dos Silveiras , estirpe ilustre de juízes e frades crúzios , para as mãos de um torna-viagem , cujos avós lhe tinham cavado as terras durante longos anos . A Cardenha tomava toda a encosta de um pequeno monte e alastrava-se pelo vale fronteiro até à borda de um riacho ladeado de altos choupos , onde se abraçavam as cepas das vides de enforcado . A casa ficava a meio do outeiro , tendo à frente desdobrado o largo tapete dos lameiros e dos campos verdejantes de milho , e nas costas as espessuras alombadas de uma densa mata de pinheiros-mansos , que trepava até à cristã sinuosa daquela pequena cordilheira . Sobre esse fundo verde-negro a pesada edificação do século XVIII destacava , rectilínea e branca , com a sua linha de sacadas , e a um dos lados o torreão , cujo parelho nunca se construíra e fora substituído por uma pequena capela de portão verde e cimalha triangular , onde se fixava uma cruz . Ao meio do edifício abria-se a grande porta encimada pela pedra de armas dos Silveiras , e a toda a largura da frontaria estendia-se o jardim , um Le Nôtre de canteiros de murta e teixos aparados , cheio de roseiras-do-japão , de alecrins enormes e de magnólias , com fileiras extensas de craveiros em vasos vermelhos e ao centro um tanque circular , onde a água caía de um repuxo , com um sussurro monótono e sonolento . Vista de longe , a casa da Cardenha tinha um pitoresco antigo na orla do pinhal secular , com o seu torreão ameado , dominando as povoações do vale e o riacho com os choupos esguios . Mas era sobretudo bela à tarde , quando do monte fronteiro o Sol rubro e deformado , quase a desaparecer no horizonte sanguíneo , a vestia da púrpura ardente das suas últimas radiações , incendiando-lhe as vidraças e deixando toda a sua alvura em evidência na luz , enquanto em baixo os lugarejos se sumiam já nas sombras do vale . Era como o resplendor de uma apoteose de teatro , um efeito de cenário , onde a velha casa morgada sobressaía eminente e dominadora . A parte rústica da propriedade era importante , tanto pela extensão dos terrenos agricultáveis , como pela sua uberdade . Nas mãos activas e felizes de Soares -- toda a gente o dizia -- a Cardenha ia ser um principado . Poucos dias depois da compra , o brasileiro chamava mestres do Porto para reparar a casa . Quase que lhe conservou apenas as divisões . O mais foi tudo substituído , portas , janelas , sobrados , pinturas , papéis , estuques . Velhos tectos em maceira almofadados com magníficas vigas de castanho esculpido , largas portadas com ferragens de serralharia artística , alguns antigos azulejos -- nada resistiu à mania do moderno do brasileiro sem gosto e dos operários especuladores . Por fim a casa ficou com um aspecto interior burguês e incaracterístico , que destacava da sua pesada majestade exterior . A mobília acabou esta obra demolidora . Era a eterna monotonia do mogno e do mármore branco , do reps e do tapete com flores . Mas o golpe mais cruel no velho ar da Cardenha foi a transformação do jardim , onde os teixos foram abatidos , a taça de granito substituída por um lago oom ponte rústica , e as ruas cobertas com parreiras sobre esteios de pedra e ladeadas por estatuetas de faiança , representando as estações do ano e as partes do Mundo . Soares , porém , estava encantado com a sua obra , e no dia em que se instalou na nova residência deu uma festa principesca , um desses bárbaros jantares do Minho , em cujo menu entram o arroz de forno com patos , a orelheira com feijão branco , a sarrabulhada , o lombo assado -- e vinho verde a rodo . Instalado no seu palácio , Joaquim Soares achava-se só . Não conseguira que o pai largasse a Portela onde se entretinha a olhar pelos bois que quinzenalmente ali se juntavam a fim de seguirem para o embarque , e não pudera arrancar o abade à residência senão aos domingos para jantar . O cunhado e a irmã viviam à sombra do velho e não o deixavam : depois que ele entrevecera , Francisco da Silva passou uma venda que tinha , arendou a sua quintarola da Cortelha e foi fazer as terras da Portela , quase como um tutor ou curador dos bens do sogro . Apenas o irmão médico vinha passar à Cardenha uns dias , de vez em quando , com bem vontade de mandar ao diabo o partido e mudar-se para ali definitivamente . Um dia Soares queixou-se ao abade da sua solidão . -- Olha , Inácio , não sei que me parece ver-me aqui só neste casarão . Às vezes ao jantar até me vêm as lágrimas aos olhos : dá-me vontade de me erguer da mesa e ir à Portela comer o caldo com o pai . E à noite ? ... É um sossego ... parece isto um cemitério . Nunca em minha vida me senti tão triste , tão não sei como ... -- Homem , casa-te ! -- disse-lhe o abade resolutamente . -- Ora , casar-me ! -- tornou Joaquim Soares . -- Casar-me com quem ? Por aí não vejo nada ... e lá com alguma madama da cidade , isso só se eu fosse tolo ... Não é que eu seja contra o casamento , não senhor : até nem se me dava de tomar estado se achasse alguém que me servisse . Mas isto de mulheres é o diabo ... é uma sorte . Se calha bem é o céu ; mas se calha mal -- é o pior dos infernos ... E depois , eu nunca pensei em mulheres ... pouco lidei com elas ... e que lhes agrade não tenho senão o dinheiro . Se fosse pobre , mulher que me quisesse era porque gostava de mim ; agora sendo rico , eu sei lá se é por amor da minha pessoa ou das minhas libras que elas me fazem os olhos doces ... -- Deixa-te disso -- dissuadia o abade . -- Ele há por aí muita mulher de juízo e de bons sentimentos ... -- Pois sim , sim , eu não digo menos . Mas é uma sorte , tudo vai no acertar . Já vês que estes enganos é que não têm cura . O nó que vocês lá dão na igreja só a cova o desata a valer . A gente separa-se , é certo ; mas de que vale ? Arredam-se os corpos , mas cá a liberdade fica amarrado como dantes . É pior às vezes , homem ... é muito pior . Enfim , não sei ... E o mais é que é preciso também que o coração puxe para aí . A gente não pode fazer uma coisa dessas assim a sangue-frio . Uma mulher não é uma moça de todo o serviço ; é uma companheira para a vida ... Homem , isto é negócio muito sério ... -- É que tens pensado pouco no caso . Vai para três anos que aqui estás e só cuidaste até agora de obras e de negócios . Puseste-nos a igreja como nova -- Deus to pague no céu ! -- , deste uma escola a esse rapazio que andava por aí a garotar , a jogar a pedra , meteste-te no negócio dos bois ... e agora não pensas senão nesta quinta : é arranjos , é compras , é mestres para cima e para baixo ; não tens um instante de teu . -- Eu te digo , Inácio -- interrompeu o brasileiro . -- Eu te digo : para ser franco , eu já tenho botado as minhas vistas ... -- Sim ? -- perguntou o padre intrigado . -- Isto é ... quer dizer -- volveu Soares como que irresoluto nas suas confidências -- eu tenho pensado cá para mim que me serviria esta ou aquela ... -- Mas em particular , sabes ? quis-se-me afigurar que a Ermelinda ... -- Qual ! a nossa sobrinha ? ... -- Sim , a nossa Ermelinda ... Já vês ... ficava na família ; era um descanso para a nossa irmã , um descanso para o pai ... e depois , não sei ... parece que é raça conhecida ... é cá do meu sangue ... -- Sim ... sim ... -- monossilabava o abade , como julgando o caso concentradamente . -- Com efeito , isso não me parece tolice ... Ela é bonitinha , é bastante prendada para moça de aldeia , é tua sobrinha ... Mas ela ? ... Tens-lhe dado a entender ? ... tens-lhe mostrado ? ... -- Homem ! ... -- concluiu resolutamente com uma leve reticência como para se atrever a dar toda a clareza à sua ideia -- Já a namoraste ? ... Soares fitou-o , espantado , olhos muito abertos , como se lhe tivessem feito alguma pergunta extraordinária e imprevista . -- Namorá-la ? ! ... Eu namoro lá ninguém ! eu sei lá disso ! ... Tenho pensado comigo apenas ... tenho imaginado ... São contas minhas ... para entreter o miolo . -- Mas achas que o coração te vai para aí ? ... -- Quero dizer ... se ela se não mostrasse mal disposta ... Simpatizo , entendes ? Por ora só simpatizo . Mas sinto um não sei quê quando a vejo , parece que me envergonho , não estou à vontade com ela como dantes ... É isto que me faz crer ... sim ... que me tem feito lembrar ... que há cá dentro alguma coisa pela rapariga ... -- Então por que lhe&lhes+o não dizes ? -- Não me atrevo ... Bem vês : nunca me meti em tais negócios ... Lá com mulheres entendo-me pouco . Isto costuma dizer-se de um modo que eu não sei ... Não atino ... não sou para estas coisas ... -- Pois sim ! Mas sem isso ... Houve um silêncio . Os dois irmãos olharam-se , sorrindo daquela conversa , que sentiam um tanto cómica para a sua idade . Joaquim Soares pasmava das confidências a que insensivelmente fora levado e que bem no fundo o surpreendiam quase tanto como ao irmão , pois esse amor nascente era no seu espírito um sentimento vago , como que um sonho cuja realização lhe parecia utópica , impossível . Mas agora que se tinha descoberto era preciso ir até ao fim . E indeciso , sem força para se abalançar a uma declaração formal , pensou em entregar a sua causa nas mãos do abade . Olha : vê lá tu isso ... Não digas como coisa minha ... Fala-lhe por alto ... dá-lhe a entender que ... Tu lá sabes como isso se faz . Enfim , sem dares cavaco desta conversa , vê lá se ela não tem por aí o seu namorico e o que diz a esta ideia ... mas como se nada houvesse por ora , entendes ? assim como a rir ... a falar por falar ... -- Bem , deixa estar -- respondeu o abade . -- Trata-se disso . Eu cá sei os caminhos ... Descansa que te não comprometo ... -- Pois anda lá , que me fazes favor ... É que eu com mulheres não dou uma para diante . Não está mais na minha mão . Tenho lidado pouco com elas e tudo me atrapalha -- isto é que é . E o abade , abrindo à porta o seu grande guarda-sol e enfiando pela rua principal do jardim , dizia ainda ao irmão que de roupa de linho e chapéu de palha o fora despedir à saída : -- Descansa , Joaquim . Eu cá sondarei o negócio . Na verdade , as mulheres não eram o forte de Soares . E esses climas cálidos do Sul , que incendeiam até à extrema animalidade o temperamento erótico do minhoto , haviam-no poupado deixando-lhe a consciência desafogada , sem remorsos de devassidões corruptoras . No Brasil ninguém lhe conhecera a menor ligação amorosa . Vivera sempre livre , independente , com uma repugnância inata por aventuras desta ordem . Parecia que o caso do tio o impressionara fortemente , dando-lhe uma severa lição de moral . A ideia de um bastardo incomodava-o . O adultério fazia-lhe horror ; na sua proba e simples honradez considerava-o como um roubo da felicidade e da honra alheia . Assim , se não era um santo , se nem sempre marchou na estrada da vida apoiado , como S. José , à açucena mística , as suas fragilidades , os seus pecadilhos , eram desses a que a indulgência canónica fecha benevolamente os olhos , quando caem na vulgaridade de simples infracção sem agravantes ao caso sexto do Decálogo mosaico . " Fraquezas humanas , irmão ! -- dizia-lhe sempre o confessor . -- Mas ao menos observe o preceito do apóstolo : Se não puderes ser casto , sê cauto . " E com o protesto anual de boas intenções o confessor dava-lhe sempre , sem escrúpulos , o atestado de consciência limpa . De resto a sua vida activa , laboriosa , fatigante , dominara , esmagara-lhe no fundo do temperamento a energia dos sentimentos . Em toda essa existência de trabalho não sonhara com outros nomes femininos que não fossem estes -- Compra e Venda . Era um sóbrio em tudo ; e a satisfação das suas necessidades orgânicas havia de ser sempre breve , rápida , simples -- porque , dizia ele , tinha mais que fazer . Moralmente mesmo , apenas uma única paixão lhe oonsulsionara a alma com ternuras castas e pungentes dores : fora o louco afecto que consagrara à mãe , afecto apaixonado e absorvente , mas ferido pelas saudades inconsoladas da morte repentina dela , ao tempo da sua longa ausência da pátria . De resto nunca namorara , nunca amara , nunca envolvera a mulher noutro sentimento que não fosse o do seu largo amor da espécie , da sua comovida piedade humanitária , da sua ingénua ternura bondosa e dedicada , com que abria o coração aos homens nesse estado emotivo que o cristianismo criou , chamando-lhe caridade . Com um pouco de latim ao princípio da vida e as respectivas ordens , ele teria dado de certo um santo cura de almas , um adorável reitor de aldeia , casto , simples e cândido na sua fé evangélica , providência dos pobres , consolo dos tristes , defesa dos fracos -- um Jesus menos transcendente , menos filósofo , menos divino do que o da tradição , mas tão prático na sua bondade e no seu amor pelos homens . Assim o bom Soares imaginara sempre no real amor dos sexos qualquer coisa de muito superior , com que a sua natureza não tinha sido dotada . Por isso quando um dia percebeu em si as perturbações , quase ridiculamente retardatárias da influência do amor , quando descobriu na sua alma de cinquenta anos os desejos , os receios , as comoções , todo o delicioso sofrimento da virilidade afectiva que principia a desenvolver-se , sofrimento que acompanha a crise psicológica da puberdade para a juventude , o pobre homem desconheceu-se e teve medo de si próprio . Era estranho para ele aquele estado , e sinceramente o atribuiu a uma fraqueza cerebral : -- Não estou em meu juízo ! -- dizia consigo mesmo . -- Parece que isto não regula direito ! Começou a não poder fitar a Ermelinda , sempre que ia à Portela , a envergonhar-se , a perder a voz , a não atinar com as palavras . E sob o olhar descuidado dela , sob a sua gargalhada franca , sob as suas liberdades de sobrinha para com um tio maduro , o brasileiro sentia-se mal , constrangido , atrapalhado , incapaz de coordenar dois pensamentos , numa quase inconsciência sonolenta das suas palavras , dos seus gestos e dos seus actos . Queria explicar a si mesmo o seu estado moral , mas a explicação que lhe vinha constantemente ao espírito , com uma persistência instintiva , achava-a ele absurda , monstruosa , quase impossível . -- Amor ? aquilo amor ? ! Mas sabia ele lá o que era amor ! Era ele porventura capaz de amar ? ! E só a conversa com o irmão abade o fizera ter fé pela primeira vez na energia amorosa do seu coração . Francisco da Silva tinha dois filhos : a Ermelinda , mais velha , de vinte e quatro anos , e um rapaz , de vinte , o Augusto , malandro incorrigível que parasitara em casa do morgado Dr. Carlinhos , a pretexto de lhe tratar dos cães de caça e vigiar as bouças , e que matava o tempo atirando Ãs codornizes ou correndo todas as feiras dos arredores ao passo travado do seu garrano . Este Augusto era o coq villageois , o janota da terra , companheiro e macaqueador do morgado , com o qual se dava ares de grandes intimidades . A sua prenda de tocador de viola tornava-o indispensável nas esfolhadas e serões das aldeias circunvizinhas . Era infalível em todas as romarias , e aos domingos , depois da missa , debaixo das grandes carvalheiras do adro , derriçava com as raparigas endomingadas , encostado ao varapau , requebrando-se todo na cinta apertada pela faixa de lã azul , chapéu para a nuca , cabelo sobre a testa , e um olho pisco , por causa do fumo do cigarro . Tanto este rapazelho ralava de cuidados os pais , quanto a Ermelinda lhes dava prazer e os enchia de orgulho . Parecia uma senhora -- diziam na terra . Era alta , magrita , de um moreno de cigana de oleografia . O rosto de um contorno oval tinha feições regulares : nariz correcto e fino com pequenas narinas palpitantes , maçãs do rosto ligeiramente salientes , queixo redondo apartado por uma covinha muito pronunciada , e olhos escuros , orientais , fendidos transversalmente , meio cerrados , de longas pestanas sedosas , e cobertos por um supercílio levemente arqueado , como duas curvas finas feitas de um traço a nanquim . Mas a feição característica , eminente , singularmente expressiva desse rosto era a boca -- uma boca pequena , vermelha , acetinada , que parecia feita com duas pétalas de rosa . E na sua pequenez , os beiços finos e bem talhados tinham uma contracção habitual , que como que os adiantava amorosos e ardentes no movimento de um beijo prolongado de espasmo histérico . Palpitavam-lhe os cantos da boca num ligeiro tremor nervoso , e , quando sorria , os lábios descerravam-se-lhe vagarosamente como numa lassidão voluptuosa , deixando ver o marfim anilado dos dentes de um talhe simétrico e rectilíneo . Se tivesse outras proporções de volume , carnações mais sadias e largas , era um modelo de expressão para uma cabeça de bacante . Faltavam-lhe contudo a linha antiga , a acentuação naturalista , o tom dessa sensualidade pagã , forte , vigorosa , divina , que se expande nos contornos amplos e desenvolvidos da estatuária clássica . Mas modernizando o tipo da bacante no tipo da cocotte , pondo os bosques arcádicos onde os faunos perseguiam as dríades fugitivas , no boulevard contemporâneo onde os dandies seguem as prostitutas transformando o tonel de Baco na garrafa de champanhe , civilizando o prazer , refinando nervosamente a sensualidade -- aquela fisionomia era a criação espontânea desse meio , a figura típica para o ídolo dos novos ritos do amor livre . Os caçadores da cidade que atravessavam a Guardeira e passavam sob a varanda alpendrada da casa da Portela ficavam às vezes surpreendidos ao ver aquele tipo de aldeão , tão pouco vulgar , destacando pela sua esbelta finura , pela sua expressão delicada e mordente , de entre a beleza grosseira e animal das mulheres do campo . De pequena o tio abade dera-lhe lições de leitura e escrita , e a madrinha , a Sr.a||_D._Catarina D.|_D._Catarina Catarina|_D._Catarina , mãe do Dr.||_Carlos Carlos|_Carlos , tinha-a dias inteiros na Cardenha , ensinando-a a costurar e a bordar , e iniciando-a num género de vida bem diverso daquele a que a destinava o seu nascimento . A Ermelinda brincava com o Carlinhos , de quem herdava os bonecos velhos . Costumara-se a pisar tapetes , a repoltrear-se comodamente em boas cadeiras , a servir-se por talheres de prata , e na companhia de D. Catarina , uma senhora -- Lisboa de alta educação e de família fidalga , ia conhecendo todos os artigos de luxo , todos os pequenos requintes de gosto e de conforto que entram nos costumes da mulher das cidades . Rendas , veludos , sedas , batistes , jóias de preço , perfumarias caras -- eram-lhe coisas familiares , que via e com que lidava habitualmente . Quando o Carlinhos foi para o colégio , no Porto , era ela a única companhia de D. Catarina , pois António da Silveira passava os dias no seu escritório a reler pela centésima vez todos os grandes monumentos da jurisprudência clássica e a sua eterna história romana , ou nos campos , sob um enorme guarda-sol de campónio , a vigiar os trabalhadores . E então a rapariga escutava longas histórias da vida de Lisboa , tomava conhecimento de certos nomes de família da boa sociedade , de certos termos do alto mundo , aprendia a existência dos centros elegantes ou notáveis como S. Carlos , o Chiado , S. Luís , o Grémio , o bairro fidalgo da Junqueira , Cascais e Sintra . D. Catarina , nas raras vezes que vinha à cidade fazer compras ou ver o filho ao colégio , trazia-a consigo , e ela entrava nas lojas , nas casas das modistas , sabia o preço dos objectos da moda e ficava conhecendo uma ou outra senhora da primeira roda do Porto , com quem a triste viúva de Luís da Silveira se encontrava na rua , falando um instante . Aos quinze anos fez-se repentinamente mulher . Cresceu muito , desenvolveu-se-lhe o peito , alargaram-se os quadris , as feições afirmaram-se acentuando-se , de tal sorte que numa das vezes que o Carlos , já então com vinte anos , voltou de Coimbra , D. Catarina teve de os vigiar de perto , porque o rapaz não se tirava de casa e procurava sempre o quarto da mãe , onde a pequena estava habitualmente , ficando-se horas inteiras pasmado a olhar para aquela fisionomia singular e estranha , entre modesta e provocante . Mas o Carlos demorava-se pouco na Cardenha , e a vida de Coimbra fazia-lhe esquecer logo a rapariga . D. Catarina conservava-a por isso em sua companhia , tanto mais que depois da morte do sogro se achava absolutamente só . E apesar do rompimento entre os Boa Sorte e os senhores da Cardenha , Ermelinda continuava ali " porque -- dizia Francisco da Silva -- , não tinha alma de tirar aquela companhia à senhora morgada , que lhe queria , à sua filha , como a própria mãe " . D. Catarina estimava-a pelas qualidades de finura de trato nela ingénitas , destoantes da grosseria e brutalidade aldeãs . Depois que ela começou a fazer-se mulher , depois que o seu carácter se foi definindo , a fidalga reconheceu-lhe um fundo egoísta e reservado , uma propensão marcada para um extraordinário amor próprio , superior e dominante em todos os seus outros sentimentos . Mas Ermelinda era doce e reconhecida com D. Catarina , e esta , acostumada à sua companhia , estimava sinceramente a afilhada . Formado , Carlos demorou-se na Cardenha desde um Maio , em que fizera o acto de 5.° ano , até ao Novembro seguinte em que resolveu a mãe a ir viver com ele para Lisboa , onde , asseverava , ia tratar de fazer carreira pela política . Nesse intervalo , porém , as impressões repetidas que nele produzira durante as sucessivas férias a beleza de Ermelinda , somadas todas deram em resultado uma paixoneta erótica , uma toquade sensual , cega e violenta , contra que valeu apenas essa qualidade de egoísmo frio , já então desabrochado na alma da mulher e que a fazia vencer-se a si própria pelo único interesse do seu futuro . Ermelinda percebeu o desenvolvimento da paixão no morgadinho , e viu logo os inconvenientes dela . Não lhe convinha uma situação de amante com homem nenhum . Queria a sua fortuna e o respeito do seu estado garantidos e bem seguros pelas leis . Não acreditava nos juramentos humanos , porque não acreditava em si mesma . Sabia-se capaz de perjurar , mesmo contra a sua consciência , e tinha portanto um cepticismo generalizado a todo o mundo a respeito dos sentimentos de lealdade e de boa fé . Por isso , apesar do seu exterior nervoso , sensual e histérico , resistiu com valor à paixão tentadora de Carlos . Uma tarde , ao fundo de uma rua do jardim , num recanto sombrio coberto pela ramaria de uma grande magnólia , junto de um muro donde se avistava toda a paisagem do vale , Ermelinda , que tinha andado a apanhar flores para os aposentos de D. Catarina , sentou-se um momento . Era uma tarde de Setembro , dessas tardes de uma melancolia vaga , em que os poentes iluminam o horizonte cor de opala com a luz esbatida e temperada do Outono , cuja radiação vibra como que em surdina ... Vinham do vale sons amortecidos -- de cantigas em coro ao recolher do trabalho , de carros chiando lentamente pelos atalhos , de cães latindo Ãs portas das herdades , de rãs coaxando nos charcos . E sobre estes rumores esparsos e destoantes vibrou três vezes o toque das ave-marias em badaladas graves , distanciadas , cheias de um misticismo poético e simples . Na linha serpeante do pequeno rio estendia-se uma tira imóvel de neblina , de entre a qual irrompiam os ramos esguios dos choupos vagamente esfumados na grande serenidade do ar . Sobre o fundo azul-pálido do horizonte alastrava a grande mancha negra do monte fronteiro , indistinto na sombra do lusco-fusco , e no céu a primeira estrela cintilou , com uma luz dúbia e fraca , com a palpitação fosforescente de um fogo-fátuo . Ermelinda , encostada ao parapeito do muro , olhava contemplativa aquela cena outonal do entardecer . Trazia um roupão de lã cinzenta , espécie de vestido que habitualmente usava , por não ter o carácter de uma toilette de senhora , que não poderia sustentar como ela queria , nem a simplicidade de um trajo de criada , incompatível já com os seus hábitos educados . Os ramos espessos e pendentes da magnólia faziam atrás dela um plano de sombra , e portanto o seu busto , debruçado sobre o muro , desenhava-se indeoiso na claridade frouxa do crepúsculo , num vago de contornos , como o das pinturas de Henner . Carlos atravessava o jardim , e descobriu-a ali . Avançou em silêncio , e entre a ramaria da árvore fitou-a longamente , com um desejo irreprimível de animal cioso , la lançar-se a ela , tomá-la de assalto entre os braços , quando Ermelinda , pressentindo-lhe as passadas , se voltou com rapidez . -- Oh ! Estás muito romântica ! ... -- disse-lhe todo nervoso . -- Não , Sr.||_Carlos Carlos|_Carlos , estava descansando um pouco -- respondeu Ermelinda no tom mais indiferente do mundo . -- Corri todo o jardim atrás de flores para pôr no quarto da mamã . Não há nada que preste . Está tudo numa lástima ... -- Sim ! Tu és pouco para poesias ... Quem não tem coração ... -- Ora essa ! -- interrompeu ela rindo . -- Tu ? ... Tu és um pedaço de gelo ... -- Mas o gelo lá tem o sol que o derrete , como diz aquela lengalenga muito comprida que o menino me contava em pequeno ... -- E riu-se de novo . -- Mas é que não há sol que desfaça o gelo da tua alma , minha ingrata ... -- replicou Carlos , descambando num lirismo chocho , com que queria suavizar a brutalidade da sua fúria erótica . -- Ah ! Sr||_Carlos Carlos|_Carlos , não me chame nomes que não lhe mereço ... -- Oh ! isso mereces ! ... Vês-me sofrer assim ... vês como eu ando por tua causa ... -- Se é aí que quer chegar , Sr||_Carlos Carlos|_Carlos , é melhor deixar-me -- atalhou ela com uma grande frieza . -- Já lhe disse ao menino que não estamos em posição de nos entendermos a esse respeito . Sr.||_Carlos Carlos|_Carlos , é preciso ter juízo ... -- Ora , não sejas tola , não te faças fina ... -- dizia o rapaz já fora de si . E deitou-lhe nervosamente as mãos aos pulsos . Ermelinda retesou os braços para o desviar , e serenamente : -- Sr||_Carlos Carlos|_Carlos , poucas graças dessas ! -- disse . E como ele a apertasse mais , acrescentou com voz dorida : -- Ai ! ... olhe que me magoa ... -- Não , já não te deixo ! -- murmurava surdamente Carlos . -- Não sejas criança ... Amo-te muito ... -- Olhe que eu grito ... olhe que eu grito contra si , Sr.||_Carlos Carlos|_Carlos ! ... E corria-lhe com as mãos os braços , querendo estretá-la contra si . Ermelinda debatia-se em silêncio ; mas como Carlos se adiantasse demais ameaçou-o sem exaltação : -- Pois grita , grita à vontade ! ... És minha , entendes ? ... és minha ! ... Ermelinda então mostrou ceder , como vencida ; mas quando Carlos lhe deixou os braços para lhe tomar a cinta , ela , vendo-se um momento livre , deu-lhe uma bofetada com toda a sua força , fazendo-o recuar dois passos , estonteado pela dor e pelo insulto . E aproveitando esse instante de indecisão deitou a correr pelo jardim . Quando entrou no quarto de D. Catarina , disse com a maior naturalidade do mundo : -- Ai ! lá me esqueceram as flores ao pé da magnólia grande . Vou ver se o José as pode ir agora lá buscar ... Sinto-me hoje tão cansada , madrinha ... nem faz ideia ! D. Catarina ainda pensou em levar a Ermelinda para Lisboa , mas a rapariga declarou não querer sair de ao pé dos pais . No fundo ela procurava apenas evitar a perseguição de Carlos , que já duas vezes tentara de novo possui-la . Portanto , quando os últimos senhores da Cardenha foram residir para Lisboa , Ermelinda voltou para casa dos pais , onde não vivia de cama e mesa havia quatro para cinco anos , desde a morte do Sr.||_Morgado Morgado|_Morgado velho . Na Portela passava os dias costurando e tratando das flores . De tempos a tempos escrevia à madrinha , que lhe respondia em longas cartas cheias de afectuosos conselhos . Mas esta correspondência durou pouco , porque D. Catarina meio ano depois de chegar a Lisboa caiu de cama com um tifo que em cinco dias a matou . Ermelinda sentiu deveras a morte da madrinha , única pessoa talvez que ela estimava verdadeiramente no mundo . Depois desta perda achou-se completamente só , sem ninguém com quem comunicar . Tudo na aldeia lhe era inferior em gostos e em hábitos ; e ela , não o fazendo sentir , punha-se contudo numa tal reserva de maneiras e palavras que a ninguém consentia uma aproximação de trato íntimo . Em casa o seu quarto , muito arranjadinho , com duas janelas engrinaldadas por trepadeiras , papel claro , cortinas de cassa , e sempre um vaso com flores sobre a mesa de costura , contrastava com a nudez sóbria e sem conforto do resto da habitação . Ficara com muita roupa ainda em bom uso que a madrinha lhe havia dado , ao sair da Guardeira ; e para ela era já uma necessidade enraizada o sentir na pele o contacto doce das holandas finas ou da malha do fio de Escócia . E tanto nisto , como nas mais pequenas coisas , acentuava-se o destaque de uma educação diversa e de tendências e costumes diferentes dos da sua família . Nestas altura nenhum rapaz dos sítios se atrevia a requestá-la . Os mais pimpões , que se tinham arriscado a arrentar- lhe , diziam despeitados , na sua decepção : " Está ali guardada para um príncipe . Ora a tola ! ... " Mas guardada ou não para um príncipe , a Ermelinda continuava intratável e pouco comunicativa . Afastada desde pequena da companhia da família , não sentia por ela aquele afecto radicado nos episódios da convivência doméstica , nas tradições de uma pequena história íntima , que ata e estreita os laços de sangue . Decerto pensava no seu futuro , reconhecia que a vida que levava não lhe servia como uma condição definitiva . Mas cheia de tino prático reservava-se , paciente , sem se comprometer nalgum passo leviano que lhe cortasse as probabilidades de sair um dia do seu estado social . Esperava com fé um imprevisto , um caso fortuito -- como havia muitos , dizia ela . O convívio da família era no seu espírito uma necessidade transitória . E firme , segura de si , cautelosa e vigilante , farejando os acasos , calculando sempre , vencia os estímulos espontâneos do seu temperamento , as exigências imperiosas do seu sangue ardente , as solicitações da sua carne de hetera . " Depois ... depois ... " , dizia a si mesma quando picada pelos incitamentos da tentação . E estas palavras traduziam todo o egoísmo pérfido e consciente daquela alma . Prometia o prazer livre à sua carne quando estivesse garantida contra as consequências dele , quando se achasse segura pelo dote e independente pela fortuna . Não eram a virtude , a consideração do dever , o temor religioso , a crença moral , que a desviavam do erro ; era o medo dos resultados funestos de um mau passo -- a gravidez no celibato , a miséria de um enlace pobre , a condição subalterna da concubina , a sorte vária , instável e como escrava , da prostituta . A sua maldade tinha uma direcção de bom senso , de previdência , de consciente malícia , que tocava quase as raias do cinismo . Era uma precocidade de manha prática , de desiludida compreensão da realidade da vida -- bem rara numa alma de tão poucos anos , e esses passados num mundo restrito de aldeia , longe das convulsões , dos embates , das lutas , das intrigas , que agitam a existência dos grandes centros . Mas na Guardeira ninguém lhe suspeitava este carácter , ninguém a conhecia na verdade do seu tipo moral . A sua reserva passava por um encanto de tristeza ; o seu mutismo concentrado explicava-se como saudades da madrinha que tanto a estimara ; a sua vida sedentária , passada invariavelmente no quarto ou no pequeno jardim da Portela , tomava-se como prova de gostos modestos , de amor a uma existência caseira e recolhida . " Que jóia ! " , dizia todo o mundo . E os próprios pretendentes recusados não se atreviam à menor murmuração sobre a sua fama de mulher honesta . Havia , contudo , transpirado na aldeia a história da paixão do Dr. Carlinhos . Contavam-se de um modo vago umas cenas de declaração e de promessas de casamento , que Ermelinda recusara . Mas isto servia apenas para a maior exaltação das suas qualidades , pois essa imaginária recusa foi de todos considerada um acto de rara modéstia e de tino excepcional . O Dr. Carlos , dizia-se , poderia mais tarde arrepender-se de um casamento com mulher de posição inferior à sua , que teria de apresentar à fidalgaria de Lisboa , e -- o que mais era -- achar-se impedido de realizar um consórcio rico , que lhe ajudasse a endireitar a casa . Ermelinda sentir-se-ia-infeliz se tal se desse , e teria querido evitar a posição desagradável de mulher desprezada e esquecida . Era um procedimento sem igual , toda a gente concordava ! e a toquade erótica do morgado , que nem sequer oferecera a Ermelinda uma posição de amante , sustentada e mantida , era interpretada na aldeia como um amor puro e respeitoso , com um honesto fim matrimonial ! Quando , ano e meio depois da morte da mãe e dois depois da mudança de residência para Lisboa , o morgado teve de abandonar a sua vida à rédea larga e voltar para a Cardenha , entregue a feitores rotineiros e roída já pelas hipotecas , passou meses sem ver Ermelinda , pois os Boa Sorte não tinham dado o braço a torcer depois do rompimento com António da Silveira , e Carlos , pelo seu lado , ficara-lhes com má vontade pelo facto de eles não assistirem ao funeral do avô . Por questões políticas , Francisco da Silva teve de fazer as pazes com o morgado . E quando Carlos foi à Portela pagar-lhe a visita , viu então a Ermelinda , que tinha nessa época vinte para vinte e um anos . Mas durante a sua ausência , na vida fácil de Lisboa e do Porto e na viagem a Paris , ele havia-se quase saciado de mulheres . Tinham sido elas a causa principal das suas dissipações . Em dois anos contara as amantes pelos meses , quando não pelas semanas . Ocasiões houve em que os seus amigos lhe chegaram a conhecer três -- simultaneamente . De todos os tipos , de todas as raças célebres pelas suas especialidades em mulheres de prazer , este frascário havia gozado , dando nesse espaço de tempo plena expansão à sua sensualidade represa ou mal alimentada até ali na prostituição reles e barata de Coimbra . Portanto Ermelinda não o impressionou de todo , nem a sua formosura , mais firme e definida agora , fez reviver de algum modo a chama apagada . E , indiferentes e frios , cumprimentaram-se des-prendidamente nas raríssimas ocasiões em que sucedia verem-se . Era esta a situação da filha de Francisco da Silva quando o tio||_Joaquim Joaquim|_Joaquim chegou do Brasil . Mal se recebeu na Guardeira a carta em que o parente , desconhecido para ela , anunciava o seu regresso com tenções de se estabelecer entre os seus , Ermelinda suspeitou a probabilidade do acaso com que havia tanto tempo contava . Ainda Joaquim Soares , a bordo do paquete , com a sua carteira cheia de letras de alto valor sobre Londres , vinha a caminho da pátria , já no seu lugarejo natal uma sobrinha , cuja existência ele apenas conhecia , calculava friamente o meio de ver deposto a seus pés , como a oferenda de um vassalo rendido , o troféu monetário que esse conquistador da fortuna trazia dos países do ouro . De maneira que quando o bom homem a abraçou , a beijou nesse dia do regresso à sua aldeia , donde saíra aos quinze anos , Ermelinda contou logo transformar aquelas carícias ingénuas como a pessoa de quem vinham , nesse penhor sagrado , nessa liberdade casta e virginal do primeiro beijo e do primeiro abraço , que as mulheres , entre o gozo e o pudor , concedem puramente aos noivos . E a pouco e pouco , sem que Soares desse por isso , ela entrava-lhe furtivamente no coração , e num hábil disfarce estendia-lhe todos os laços . Eram a maneira de o receber , a maneira de o olhar , a maneira de lhe sorrir . Era a distinção , como que natural e não premeditada , com que o tratava , o ouvia ou lhe falava . Era o interesse que , o mais a propósito possível , ela mostrava pelos seus negócios e pelas suas empresas . E , representando maravilhosamente um difícil papel de ingénua , permitia-se com ele liberdades acirrantes : deixava-se beijar fitando-o com uma languidez voluptuosa de criança amimada ; tomava-lhe a mão para lhe ver o brilhante do anel ; punha-lhe , a rir , uma flor na lapela , tocando-lhe os lábios grossos com os fios crespos dos seus cabelos negro-azuis ; e às vezes para saltar um portelo , passeando no campo , atirava-se-lhe aos braços atléticos com a gargalhada franca e pura de uma rapariguita inocente . Se subiam juntos as escadas de pedra , que davam para a varanda alpendrada , ela passava-lhe adiante , apanhando o vestido ; e outras vezes , sentando-se , cruzava como que distraidamente uma perna sobre a outra , deixando ver o artelho fino entre uma brancura de saias , mais tentadora do que a completa nudez . Mas a todos estes artifícios , com que lhe espicaçava a carne e o coração , conseguia dar uma aparência de tal forma simples e natural que ninguém suspeitava do seu bem tramado plano , em que não desanimara durante três anos . Supunham-na muito amiga do tio , cativada da sua bondade insinuante . E ela para confirmar esta suposição repetia a cada momento a uns e a outros : " O tio é um santo : morro por ele ! " E assim , mostrando-lhe uma simpatia desinteressada , fazia crer que o brasileiro grosso e vulgar não lhe era repugnante ; e , prendendo-o , enredando-o , numa aparência de simples estima , colocava-se para o casamento em pers-pectiva no terreno seguro de o aceitar , em vez de se fazer aceitar por ele . O pobre homem , desacostumado Ãs carícias femininas , começou por pagar centuplicada a simpatia da sobrinha : enchia-a de presentes , queria-lhe como a uma filha , dizia ele . E a pouco e pouco , levado pelos carinhos , pelas distinções , pelas preferências da rapariga , preso da sua bem representada candura , crente na sua inocência , deixou-se arrastar , desprevenido e cego , no declive da paixão . Ermelinda sentia os progressos da sua conquista , e , como uma pequenina aranha venenosa , estilava da baba subtil da sua maldade os fios ténues e brilhantes em que esse pobre moscardo do tio se havia de deixar prender . -- Tu precisas de casar , rapariga -- dizia o abade à sobrinha , sentado num banco do hortozito da Portela , enquanto Ermelinda arrancava as ervas dos craveiros , alinhados em vasos e em caixões de madeira sobre o parapeito do muro que dava para a estrada . -- Para quê , tio ? Estou tão bem com meus pais ... -- respondeu ela numa serena indiferença . -- Pois sim , mas isso não é posição -- retrucou o padre . -- Há viver e morrer . É lei do mundo , filha ... é lei do mundo . E depois uma moça da tua idade não pode assim ficar ao deus- dará ... Quem tens tu nesta vida que te ampare faltando-te teus pais ? O malandro do teu irmão ? ! ... -- Ora ... é melhor nem falar nessas coisas -- continuou a rapariga , sem se interomper na sua jardinagem . -- A morte é bem triste quando vem : para que se há-de a gente ralar pensando nela ? ... E se isso acontecesse , não me faltaria o amparo de pessoas amigas ... Tinha os tios ... -- Estamos todos velhos , rapariga . E depois um tio nunca é um marido ... sim , por mais amigo que se seja , não é aquela estima sem reservas do casamento , vês tu ? Olha : tenho pensado muito nisto ... custa-me ver assim acabar-se a família : meus irmãos não se casaram ; apenas tua mãe ; nasceram vocês dois , e não vos vejo com inclinações para aí ; teu irmão é um gaiato , que o que quer é derri-çar sem se prender ; tu não te decides , e aí está ; Ora eu bem sei que não te quadram estes moços daqui . Tiveste outros princípios , outra educação na casa dos morgados , afidalgaste-te de maneiras , e se , louvores ao céu ! , te não fizeste soberba , também não te serve homem da tua primitiva criação ... Bem sei isso ... Mas enfim , é preciso ... é um passo necessário ... Era bom deitar os olhos ... Às vezes , onde menos se espera ... Ermelinda ouvia-o , tentando dissimular a sua surpresa . Onde quereria o tio chegar ? Seriam aqueles conselhos unicamente uma lembrança , uma ideia do abade , ou haveria já através deles qualquer manifestação dos sentimentos do brasileiro ? Cautelosamente dispôs-se a explorar o terreno . -- Mas então com quem quer o tio que eu case ? -- perguntou , passado um momento . -- Reconhece que não há aqui homens de que eu possa gostar ; hei-de mandar vir um de fora , por encomenda ? Depois o tio sabe muito bem que eu não sou das que se deixam levar por namoros . Ai ! eu tenho visto no que isso dá : em pouco tempo não se entendem , e é um inferno . Nada . O casamento é um passo muito sério ... deve ser muito pensado ... É por isso talvez que até hoje me não decidi , e mais o tio bem sabe que não me têm faltado basbaques , plantados um dia inteiro aí defronte dessa janela . -- Pois de acordo , plenamente de acordo , filha -- tornava o abade . -- Pensas muito bem . Assim é que é . Mesmo por te ter na conta de uma rapariga de juízo é que eu entendi dever falar-te ... assim . -- E calou-se de súbito , como se tocasse no ponto grave da questão . -- Mas o tio imagina que alguém ? ... -- perguntou Ermelinda numa interrogação terminada em reticência . O abade hesitava em se lançar francamente no caminho aberto pela sobrinha . Lembrar-lhe o irmão , como se da parte deste nada houvesse por enquanto , era fazer dele um joguete de interesses , era tratá-lo como o objecto de um negócio vergonhoso , que decerto -- pensava o padre -- a dignidade da rapariga repeliria . Parlamentar o caso , como enviado do brasileiro , era ultrapassar os limites do seu mandato , ir além dos termos que lhe haviam sido indicados . O abade via-se seriamente embaraçado . -- Eu te digo -- resmungava ele ... -- eu te digo ... Sim ... nestas coisas de coração ... tu sabes ... a gente lembra-se , imagina ... bota as suas contas . Ora eis aí está ! ... -- Mas o tio botou as suas contas a alguém ? A pergnta era decisiva . Debruçado sobre os joelhos , com os olhos no chão , querendo dar-se um ar despreocupado , o abade verrumava a terra com a ponteira do seu enorme guarda-sol . -- Botar as contas ... é um modo de dizer . Lembrei-me apenas ... -- Mas de quem ? ... -- perguntou Ermelinda com a mais natural curiosidade . O abade levantou a cabeça sorrindo-se . -- Do tio||_Joaquim Joaquim|_Joaquim ! ... -- respondeu finalmente . -- Ora ! , o tio está a rir ! -- disse ela num tom de incredulidade e ligeiro desapontamento . -- E como se a conversa estivesse morta e já sem interesse , começou a regar os seus cravos . Entalara entre os joelhos a saia de chita , de largo xadrez cor-de-rosa , para se não molhar , e em bicos de pés sobre uns tamanquinhos de verniz , que usava quando vinha ao jardim , com os braços altos , o peito saliente , quebrada nos rins , numa postura de cariátide , dando ao corpo toda uma linha graciosa desde a cabeça erguida até ao contorno fino dos calcanhares , borrifava por um regador pequeno , um a um , os grandes vasos de barro vermelho . De repente , porém , o regador ia-lhe tombando das mãos , e se o abade lhe não acode tê-la-ia encharcado . Mas ela , reparando que o tio lhe notava o rubor súbito e a ligeira tremura dos lábios , disse-lhe a rir , tomando um longo hausto de respiração : -- Devo estar muito vermelha . O regador pesava tanto ... A sua perturbação , porém , tinha outra causa : era a comoção da vitória , o prazer estonteador do enfim ! ao cabo de uma demorada empresa ! ... -- Mas pensa nisto , rapariga ! -- tornava o abade , querendo reatar a conversa . -- Olha que é um negócio sério . -- Ora tio , isso não tem pés na cabeça ! -- respondeu ela , mostrando-se cada vez mais despreocupada . -- Mas porquê ? -- Porque nós nunca pensamos um no outro ... -- Nunca pensaram um no outro ... Não está má essa ! Mas pensem agora ... -- volveu o padre . -- De resto eu não te digo que decidas já . Digo-te que penses ... que converses com o travesseiro ... -- Ora ... -- repetiu com uma reticência Ermelinda , abaixada a pôr uma estaca numa roseira . -- Qual ora ! -- insistiu o velho . -- Por acaso desagrada-te o tio ? ... Eu bem sei que ele não é já muito rapaz ... -- Não é por isso ... -- Também não é aí nenhum Narciso de formosura -- notava puxando pelas suas reminiscências mitológicas . -- Também não é por isso ... -- Então por que é ? Desembucha para aí , rapariga ! -- Ora por que há-de ser ! ... porque o tio é muito rico e há-de querer uma mulher de outra educação , de outra classe ... -- Lérias , lérias ... histórias da vida ! -- exclamou padre||_Inácio Inácio|_Inácio . -- Ora adeus , minha amiga ! Teu tio o que quer é uma mulher de juízo e de boa fama . Não vês o que aquilo é ? ... um santo homem tão simples e tão modesto que até recusou a comenda quando foi da inauguração da escola ... Então ele não podia ser o Sr.||_Comendador Comendador|_Comendador , como o brasileiro do Carvalhido , ou aquele barão aí de ao pé das Ortigueiras , que também por lá andaram nesses Brasis atrás da fortuna ? ! Deixa-te de tolices ! O Joaquim é aquilo que ali está , vês tu ? O que ele quer é fazer bem : tem aquele coração nas mãos para todo o mundo . É uma alma de pomba ... é um santo . Importa-se-lhe agora lá com o nascimento das mulheres , quando elas possam ser esposas honestas ... -- Pois sim , mas ... -- disse Ermelinda , meio meditativa . Mas o quê ? ... -- Eu sei lá se o tio me quererá ... -- Temos nós outra ! ... Pois isso também eu não sei ... Mas ... mas supeito- o ... -- Suspeita-o ? Porquê ? Ele disse-lhe alguma coisa ? -- interrompeu ela . -- Dizer não disse : sim , ele não mo declarou ... -- gaguejava o padre . -- Deu-mo contudo a entender ... Queixa-se de que está só na Cardenha ... que lhe custa não ter quem lhe goze o dinheiro ... que se lhe aparecesse uma rapariga nas condições que ele desejava , assim não muito fora da sua igualha , mas num pé de educação cuidada , se não botava fora do casamento ... Percebes ? ... um meio palavreado ... Mas eu dei logo no vinte , e falei-lhe claro . Disse-lhe o que te disse a ti ; se tu lhe servias , que me parecia que estavas na conta ... que era o que ele precisava , etc. -- E ele ? -- Ele pôs-se com essas mesmas lérias : que tu talvez não gostasses dele , que era um velho , que por te estimar muito não te queria ver forçada a um casamento sem vontade ... e por aqui adiante . -- Por isso te digo : pensa no caso . Se tu vês que te convém , que és capaz de o estimar , eu dou-lhe umas esperanças , ele fala-te e temos o negócio arranjado . Se não te convém , dize-mo igualmente com franqueza : não se lhe diz nada , e fica tudo como dantes . Estás por isto ? -- Pois sim , tio ... -- respondeu Ermelinda , como hesitante . -- Pois sim , eu pensarei . Já vê que é muito sério . Mas enfim ... o seu conselho ... -- E depois de uma pausa acrescentou sorrindo : -- Daqui a três dias dou-lhe uma resposta ... -- Ora ainda bem ! -- exclamou o padre . -- Pede ao Espírito Santo que te alumie e te inspire um bom propósito ! Adeus , filha , adeus . Vou cá dentro ver o pai . E subiu apegado ao guarda-sol as escadas que davam entrada para a casa . Quando se decidiu o casamento toda a Guardeira ficou boquiaberta . Uns chamavam sonsa a Ermelinda e entendiam que tinha havido armadilha em todo aquele negócio , lamentando o brasileiro . Outros -- os mais íntimos -- defendiam a rapariga jurando sobre a sua inocência e sobre o seu juízo . Decerto -- diziam estes -- não era um casamento de amor ; mas Ermelinda estimava o tio , respeitava-o muito , e no fim de contas só ele a podia manter no pé em que a haviam educado , em outros tempos , os fidalgos da Cardenha . Os Boa Sorte exultavam . Soares , esse julgava-se o homem mais feliz do mundo . Não acreditava que da parte da Ermelinda pudesse haver paixão , mas cria facilmente que ela o estimava deveras e que se lhe entregava sem repugnância . Ao declarar-se-lhe falara-lhe com a sua rude franqueza . Pedia-lhe apenas que fosse sincera para com ele , que não se constrangesse a um casamento de conveniência , pois , mesmo solteira , nunca a sua protecção lhe faltaria . Mostrou-lhe que conhecia a diferença de idade que havia entre eles " porque , acrescentava sorrindo , costumava ver-se ao espelho " . Mas se não era um rapaz que a pudesse encantar estava certo , contudo , que a estimaria mais do que nenhum outro homem . -- Ó tio , basta-me a sua estima para me fazer feliz -- respondera Ermelinda . -- Sabe que eu sempre fui muito sua amiga ... Creia que hei-de ser tão boa esposa , como tenho sido sobrinha ... E o pobre Soares chorava lágrimas de um doce enternecimento de criança ! ... 0"base="0 casamento foi pouco tempo depois . Soares imediatamente à decisão H mandou ir a irmã ao Porto com a sobrinha para tratarem do enxoval . -- Quero tudo do melhor ! -- recomendava . -- Nada de economias ! E Ermelinda , com esta carta branca , corria dias inteiros as lojas da cidade , escolhendo , comprando , mandando cortar vestidos à larga em casa das modistas . Pelo seu lado Joaquim Soares chamava um estofador do Porto para arranjar o boudoir da noiva .