de Raul Brandão A VILA 13 de Novembro Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste ... Uma vila encardida -- ruas desertas -- pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva -- o castelo -- restos intactos de muralha que não têm serventia : uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures . Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida . A torre -- a porta da Sé com os santos nos seus nichos -- a praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco . Sobre isto um tom denegrido e uniforme : a humidade entranhou-se na pedra , o sol entranhou-se na humidade . Nos corredores as aranhas tecem imutáveis teias de silêncio e tédio e uma cinza invisível , manias , regras , hábitos , vai lentamente soterrando tudo . Vi , não sei onde , num jardim abandonado -- inverno e folhas secas -- entre buxos do tamanho de árvores , estátuas de granito a que o tempo corroera as feições . Puíra-as e a expressão não era grotesca mas dolorosa . Sentia-se um esforço enorme para se arrancarem à pedra . Na realidade isto é como Pompeia um vasto sepulcro : aqui se enterraram todos os nossos sonhos ... Sob estas capas de vulgaridade há talvez sonho e dor que a ninharia e o hábito não deixam vir à superfície . Afigura-se-me que estes seres estão encerrados num invólucro de pedra : talvez queiram falar , talvez não possam falar . Silêncio . Ponho o ouvido à escuta e ouço sempre o trabalho persistente do caruncho que rói há séculos na madeira e nas almas . * * 15 de Novembro Debaixo destes tetos , entre cada quatro paredes , cada um procura reduzir a vida a uma insignificância . Todo o trabalho insano é este : reduzir a vida a uma insignificância , edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida . Tapá-la , escondê-la , esquecê-la . O sino toca a finados , já ninguém ouve o som a finados . A morte reduz-se a uma cerimónia , em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita . Se eu pudesse restringia a vida a um tom neutro , a um só cheiro , o mofo , e a vila a cor de mata-borrão . Seres e coisas criam o mesmo bolor , como uma vegetação criptogâmica , nascida ao acaso num sítio húmido . Têm o seu rei , as suas paixões e um cheirinho suspeito . Desaparecem , ressurgem sem razão aparente de um dia para o outro num palmo do universo que se lhes afigura o mundo todo . Absorvem os mesmos sais , exalam os mesmos gases , e supuram uma escorrência fosforescente , que corresponde talvez a sentimentos , a vícios ou a discussões sobre a imortalidade da alma . As paixões dormem , o riso postiço criou cama , as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos . A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza , e só um ruído sobreleva , o da morte que tem diante de si o tempo ilimitado para roer . Há aqui ódios que minam e contraminam , mas como o tempo chega para tudo , cada ano minam um palmo . A paciência é infinita e mete espigões pela terra dentro : adquiriu a cor da pedra e todos os dias cresce uma polegada . A ambição não avança um pé sem ter o outro assente , a manha anda e desanda , e , por mais que se escute , não se lhe ouvem os passos . Na aparência é a insignificância a lei da vida ; é a insignificância que governa a vila . É a paciência , que espera hoje , amanhã , com o mesmo sorriso humilde : -- Tem paciência -- e os seus dedos ágeis tecem uma teia de ferro . Não há obstáculo que a esmoreça . -- Tem paciência -- e rodeia , volta atrás , espera ano atrás de ano , e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado . Paciência ... paciência ... Já a mentira é de outra casta , faz-se de mil cores e toda a gente a acha agradável . -- Pois sim ... pois sim . Cabem aqui seres que fazem da vida um hábito e que conseguem olhar o céu com indiferença e a vida sem sobressalto , e esta mixórdia de ridículo e de figuras somíticas . Mora aqui a insignificância , e até à insignificância o tempo imprime carácter . Mora aqui , paredes meias com a colegiada , o Santo , que de vez em quando sai do torpor e clama : -- O inferno ! O inferno ! Mora um chapéu , uma saia , o interesse e plumas . Moram as Teles , e as Teles odeiam as Sousas . Moram as Fonsecas , e as Fonsecas passam a vida , como bonecas desconjuntadas , a fazer cortesias . Moram as Albergarias , e as Albergarias só têm um fim na existência : estrear todos os semestres um vestido no jardim . Moram os que moem , remoem e esmoem , os que se fecham à pressa e por dentro com uma mania , e os que se aborrecem um dia , uma semana , um ano , até chegar a hora pacata do solo ou a hora tremenda da morte . Moram os que enriquecem no fundo das lojas , onde as fazendas petrificaram . Mora aqui o egoísmo que faz da vida um casulo , e a ambição que gasta os dentes por casa , o que enche a existência de rancores e , atrás de ano de chicana , consome outro ano de chicana . Moram na viela íngreme e cascosa , que revê humidade em pleno verão , velhas a quem só restam palavras , presas , alimentadas , encarniçadas , como um doido sobre uma coroa de lata que lhes enche o mundo todo . Mora de um lado o espanto e a árvore ; do outro o absurdo . E todos à uma afastam e repelem de si a vida . Moram aqui a D. Engrácia e a D.||_Biblioteca Biblioteca|_Biblioteca . Mora aqui a Teles que passa a vida a limpar os móveis , só e fechada com os móveis reluzentes , talvez resto de um sonho a que se apega com desespero , e velhas só mesuras , só baba , só rancor . Ter uma mania e pensar nela com obstinação ! Criá-la . Ter uma mania e vê-la crescer como um filho ! ... Mora aqui a D. Restituta , sempre a acenar que sim à vida , e a Orsula , cuja missão no mundo é fazer rir os outros . Todos os dias a morte os leva , todos os dias toca a finados . O nada a espera e a D. Procópia a abrir a boca com sono , como se não tivesse diante de si a eternidade para dormir , e a D. Felizarda a invejar as plumas da D.||_Biblioteca Biblioteca|_Biblioteca . Tudo isto se passa como se tudo isto não tivesse importância nenhuma ; tudo isto se passa como se tudo isto não fosse um drama e todos os dramas , um minuto e todos os minutos . Mora aqui a D. Hermengarda e a D. Penarícia -- mania ! mania ! mania ! -- hoje , amanhã , sempre -- e a morte joga com a regularidade mecânica de um pêndulo . Toda esta gente usa a vida como quem usa uma ninharia . Aí vem a Adelina ... A Timótea se tivesse de envenenar a vila , envenenava-a Ãs pinguinhas . Há os que se gastam como quem gasta uma pedra sobre outra pedra . O Félix procurador não avança palavra sem dobrar a língua , e conserva no escritório , em rimas de papel cobertas de pó , a história da ganância , da vida e da morte de várias gerações . O severo Elias deixa morrer a mãe à fome e todos os anos dá contos de réis aos asilos . Regula a consciência como quem dá corda a um relógio . Dívidas são dívidas . Tem regras fixas . Para não ver o céu dobra-se sobre livros exatos : de um lado Deve , do outro Haver . O drama do Anacleto é um drama respeitável , um drama por partidas dobradas , na máxima ordem e no máximo escrúpulo . Cabem aqui dentro as velhas cismáticas , atrás de interesses , de paixões ou de simples ninharias , dissolvendo-se no éter , e logo substituídas por outras velhas , com as mesmas ou outras plumas nos penantes , com os mesmos ou outros ridículos , fedorentas e maníacas ; os homens a quem se foram apegando pela vida fora dedadas de mentira , prontos para a cova -- e o Gabiru e o seu sonho . Cabe aqui o céu e as lambisgoias com as suas mesuras , a morte e a bisca-de-três . E cabe aqui também uma velha criada , que se não tira diante dos meus olhos . Obsidia-me . Carrega . Obedece . Serve as outras velhas todas . A Joana é uma velha estúpida . Serviu primeiro na vila , serviu depois na cidade . Serviu um antropologista exótico , que fundira cem contos a juntar caveiras , e de quem a Joana dizia ao amolecer-lhe os edemas dos pés : -- Este senhor é um 2° Camões ! Serviu a D. Hermínia e a D. Hermengarda . Serviu com uma saia rota , as mãos sujas de lavar a louça , uma camisa , os usos e seis mil réis de soldada . Lavou , esfregou , cheira mal . Serviu o tropel , a miséria , o riso , que caminha para a morte com um vestido de aparato e um chapéu de plumas na cabeça . Para contar fio a fio a sua história bastava dizer como as mãos se lhe foram deformando e criando ranhuras , nodosidades , côdeas , como as mãos se foram parecendo com a casca de uma árvore . O frio gretou-lhe&lhes+as , a humidade entranhou-se , a lenha que rachou endureceu-lhe&lhes+as . Sempre a comparei à macieira do quintal : é inocente e útil e não ocupa lugar , e não vem primavera que não dê ternura , nem inverno sem produzir maçãs . A vida gasta-a , corroem-na as lágrimas , e ela está aqui tal qual como quando entrou para casa da D. Hermengarda . Faz rir e faz chorar . Os meninos borraram-na -- adorou os meninos . Os doentes que ninguém quer aturar , atura-os a Joana . Já ninguém estranha -- nem ela -- que a Joana aguente , e a manhã a encontre de pé , a rachar a lenha , a acender o lume , a aquecer a água . Há seres criados de propósito para os serviços grosseiros . Por dentro a Joana é só ternura , por fora a Joana é denegrida . A mesma fealdade reveste as pedras . Reveste também as árvores . É uma velha alta e seca , com o peito raso . O hábito de carregar à cabeça endireitou-a como um espeque , o hábito das caminhadas espalmou-lhe os pés : a recoveira assenta sobre bases sólidas . Parece um homem com as orelhas despegadas do crânio e olhos inocentes de bicho . É destas criaturas que dão aos outros em troca da soldada o melhor do seu ser , que se apegam aos filhos alheios e choram sobre todas as desgraças . E ainda por cima dedicam-se , aturam os meninos , e quando as mandam embora , porque não têm serventia , põem-se a chorar nas escadas . -- É preciso escodeá-la -- asseverou a D. Hermengarda quando lhe foi em pequena para casa . Escodeia-a . Noite velha e já ela bate de cima com a tranca no soalho , a chamá-la . -- E não te servindo a porta da rua é a serventia dos cães . Mas ela apega-se . Nunca teve outra ama como aquela senhora . Venera-a . Anos depois diz das pancadas : -- Merecia-as . Já não é preciso chamá-la : a Joana ergue-se num sobressalto , alta noite , noite negra , e dorme com um olho fechado e outro aberto . Velha , tonta , abre de vez em quando os olhos , põe o ouvido à escuta num movimento instintivo , à espera de uma imaginária ordem : ouve sempre a voz da D. Hermengarda a chamá-la . Mal se compreende que depois de uma vida inteira , esta mulher conserve intacta a inocência de uma criança e o pasmo dos olhos à flor do rosto . Trambolhões , fome , o frio da pobreza -- o pior -- e , apesar de amolgada , com uma saia de estamenha , no pescoço peles , as mãos gretadas de lavar a louça , uma coisa que se não exprime com palavras , um balbuciar , um riso ... Misturou à vida ternura . Misturou a isto a sua própria vida . Aqueceu isto a bafo . Tem as mãos como cepos . 16 de Novembro Sempre as mesmas coisas repetidas , as mesmas palavras , os mesmos hábitos . Há momentos em que o caixão que passa às costas de um galego , me chama à realidade , ao espanto . Desvio logo o olhar , reentro à pressa na vida comezinha . Finjo que sorrio e esqueço . Toda a gente forceja por criar uma atmosfera que a arranque à vida e à morte . O sonho e a dor revestem-se de pedra , a vida consciente é grotesca , a outra está assolapada . Remoem hoje , amanhã , sempre , as mesmas palavras vulgares , para não pronunciarem as palavras definitivas . E , como a existência é monótona , o tempo chega para tudo , o tempo dura séculos . Formam-se assim lentamente crostas : dentro de cada ser , como dentro das casas de granito salitroso , as paixões tecem na escuridão e no silêncio , teias de escuridão e de silêncio . Na botica sonolenta ao pai sucede o filho sobre o tabuleiro de gamão . Quero resistir , afundo-me . Começo a perceber que o hábito é que me fez suportar a vida . Às vezes acordo com este grito : -- A morte ! a morte ! E debalde arredo o estúpido aguilhão . Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulcro vazio . Oh ! como a vida pesa , como este único minuto com a morte pela eternidade pesa ! Como a vida esplêndida é aborrecida e inútil ! Não se passa nada , não se passa nada . Todos os dias dizemos as mesmas palavras , cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras . Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados . O tempo mói : mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas . Não há anos , há séculos que dura esta bisca-de-três -- e os gestos são cada vez mais lentos . Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesma mesa do jogo . O jogo banal é a bisca -- o jogo é o da morte ... O candeeiro ilumina e a sombra rói as fisionomias , a majestosa Teodora , a Adélia , a Eleutéria das Eleutérias , o padre . Retraem-se no escuro outras figuras indecisas e atentas , e ainda mais no escuro outras figuras invisíveis e atentas sobre o jogo paciente . Chegamos todos ao ponto em que a vida se esclarece à luz do inferno . Mas nenhuma arrisca um passo definitivo . O relento sabe bem , e o tempo passa , o tempo gasta-as como o salitre aos santos nos seus nichos . Se o desespero aumenta não se traduz em palavras . A vila cria o mesmo bolor ... Pouco e pouco também a Teles esqueceu o sonho e esfrega , sem os ver , os móveis reluzentes . A D. Procópia odeia a D.||_Biblioteca Biblioteca|_Biblioteca , mas nem ela sabe o que está por detrás daquele ódio , contido pelo inferno . Toda a gente se habitua à vida . Matar matava-a eu , mas várias palavras me detêm . Detém-me também um nada ... As velhas com o tempo adquiriram a mesma expressão , com o tempo chegaram a temer um desenlace . Debruçadas sobre a mesa as figuras não bolem . Não bolem outras figuras que se envolvem no escuro , e o que me interessa não são as palavras do padre -- Jogo -- nem o que a Adélia diz baixinho à Eleutéria , para que a velha temerosa ouça : -- A nossa Teodora está cada vez mais moça ! ... -- o que me interessa são as figuras invisíveis : é a dor dessas figuras imóveis , e sobre elas outra figura maior , curva e atenta , que há séculos espera o desenlace . A vida é fictícia , as palavras perderam a realidade . E no entanto esta vida fictícia é a única que podemos suportar . Estamos aqui como peixes num aquário . E sentindo que há outra vida ao nosso lado , vamos até à cova sem dar por ela . E não só esta vida monstruosa e grotesca é a única que podemos viver , como é a única que defendemos com desespero . -- Pois sim ... pois sim ... Estamos aqui a representar . Estamos aqui todos ao lado da morte e do espanto a jogar a bisca-de-três . Estamos aqui a matar o tempo . Este passo , que é único e um só , damos-lo como se fosse uma insignificância . Reparem , vê-se daqui a vila toda ... Lá está a Adélia , o Pires e a Pires como figuras de cera . Ninguém mexe . Num canto mais escuro a prima Angélica não levanta a cabeça de sobre a meia . Tanta inveja ruminou que desaprendeu de falar . Chega o chá , toma o chá , e apega-se logo à mesma meia , a que mãos caridosas todos os dias desfazem as malhas , para ela , mal se ergue , recomeçar a tarefa . Um dia -- uma semana -- um século -- e só o pêndulo invisível vai e vem com a mesma regularidade implacável -- prá morte ! prá morte ! prá morte ! Reduzimos a vida a esta insignificância ... Construímos ao lado outra vida falsa , que acabou por nos dominar . Toda a gente fala no céu , mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o céu na sua profunda , na sua temerosa realidade ? O nome basta-nos para lidar com ele . Nenhum de nós repara no que está por trás de cada sílaba : afundamos as almas em restos , em palavras , em cinza . Construímos cenários e convencionamos que a vida se passasse segundo certas regras . Isto é a consciência -- isto é o infinito ... Está tudo catalogado . Na realidade jogamos a bisca entre a vida e a morte , baseados em palavras e sons . Há decerto uma coisa chamada consciência , mas com o uso perderam o sentido . E também há outra chamada instinto que não tem importância nenhuma ... Isto assume aspetos de catafalco monstruoso de lonas e ripas inúteis , que nos é indispensável para viver . Desde que se cumpram certas cerimónias ou se respeitem certas fórmulas , consegue-se ser ladrão e escrupulosamente honesto -- tudo ao mesmo tempo . A honradez deste homem assenta sobre uma primitiva infâmia . O interesse e a religião , a ganância e o escrúpulo , a honra e o interesse , podem viver na mesma casa , separados por tabiques . Agora é a vez da honra -- agora é a vez do dinheiro -- agora é a vez da religião . Tudo se acomoda , outras coisas heterogéneas se acomodam ainda . Com um bocado de jeito arranja-se-lhes sempre lugar nas almas bem formadas . O Anacleto traz tudo em dia , as contas , os livros , os escrúpulos . Nunca pôs a mulher na rua -- não pode vê-la -- por ser contra os ditames da sociedade . Nunca se separou dela por lhe&lhes+o proibir a Igreja . Nunca lhe faltou com respeito , ordem e método . A praça considera-o , a Igreja considera-o . Deus considera-o . Que mais quer aquela sombra trágica , que nem se atreve a queixar-se , e que se chora -- chora para dentro ? Toda a gente tira o chapéu à D.||_Biblioteca Biblioteca|_Biblioteca , que usa brasão na fralda da camisa , quando passa na sua missão de caridade . Os pobres exaltam-na , a Igreja exalta a sua caridade , que rebusca a desgraça para lhe dar três vinténs . É sempre a primeira em todas as listas de esmolas ( reservam-lhe de direito esse lugar ) . Lá está no alto dos subscritores : D.||_Biblioteca_das_Bibliotecas Biblioteca|_Biblioteca_das_Bibliotecas das|_Biblioteca_das_Bibliotecas Bibliotecas|_Biblioteca_das_Bibliotecas : três tostões , seis tostões , um quartinho . Os filhos veneram-na , o respeitável Elias de Melo , e o impoluto Melias de Melo . Mas o respeito pelos pais só resiste , enquanto os pais respeitam o interesse dos filhos . Há decerto uma lei moral , mas há sempre por trás uma boca a pregar ... Tudo tem limites . A D. Leocádia é de outra casta . Não entende a caridade assim . Resolve tudo segundo a sua consciência , procede sempre segundo a sua consciência , põe acima de tudo a sua consciência . É avara e somítica , e leva para casa uma órfã a quem sustenta e que lhe entrapa as pernas . O Félix procurador , que comunga com enternecimento Ãs sextas-feiras , convencido até à medula ao aproximar-se da Santa Mesa Eucarística , todas as semanas com muitos papéis do Estado e a conivência da lei , demanda alguns desgraçados . A questão para ele é de selos . Só o Santo prega cada vez mais alto : -- O inferno ! o inferno ! Como Santo Agostinho tinha tido uma mulher e um filho , como Santo Agostinho os repelira . Intrinsecus oculatum , o Santo só vê para dentro . A vida não existe -- só a eternidade existe . Depois de cem mil anos o condenado sente as labaredas como na própria hora em que entrou no inferno . Desconfia de si e dos outros e repete no mesmo desespero : -- O inferno ! o inferno ! Mas o inferno existe ? Nenhum de nós sabe o que existe e o que não existe . Vivemos de palavras . Vamos até à cova com palavras . Submetem-nos , subjugam-nos . Pesam toneladas , têm a espessura de montanhas . São as palavras que os contêm , são as palavras que nos conduzem . Mas há momentos em que cada um redobra de proporções , há momentos em que a vida se me afigura iluminada por outra claridade . Há momentos em que cada um grita : -- Eu não vivi ! eu não vivi ! eu não vivi ! Há momentos em que deparamos com outra figura maior , que nos mete medo . A vida é só isto ? Por mais que queira não posso desfazer-me de pequenas acções , de pequenos ridículos , não posso desfazer-me de imbecilidades . Tenho de aturar ao mesmo tempo esta ideia e este gesto ridículo . Tenho de ser grotesco ao lado da vida e da morte . Mesmo quando estou só o meu riso é idiota . E estou só e a noite . Por trás daquela parede fica o céu infinito . Para não morrer de espanto , para poder com isto , para não ficar só e o doido , é que inventei a insignificância , as palavras , a honra e o dever , a consciência e o inferno . E ainda o que nos vale são as palavras , para termos a que nos agarrar . É então um mundo de fórmulas a que eu obedeço e tu obedeces ? Sem ele não poderíamos existir . Se víssemos o que está por trás não podíamos existir . O nosso mundo não é real : vivemos num mundo como eu o compreendo e o explico . Não temos outro . É a voz dos mortos insistente que teima e se nos impõe . Mais fundo : não existem senão sons repercutidos . Decerto não passamos de ecos . Na verdade o que eu não posso é ver , o que eu não quero e ver ! A vila regula-se por hábitos e regras seculares -- mas há outra coisa enorme para lá do cenário de que me rodeio . Para não ter medo criei eu isto , para a não ver criou o Santo o inferno . Há outra coisa esfarrapada e dorida -- o Jogo . Cada vez me sinto mais reles , cada vez as palavras me parecem mais gastas . Esta figura grotesca não é a minha figura . O salitre roeu os santos nos seus nichos -- roeu-os também o sonho ... Curvado sobre a mesa repito os mesmos gestos inúteis para não desatar aos gritos -- Jogo ! Isto para fingir que é indiferente o que nos rodeia , que estamos habituados ao que nos rodeia , que sorrimos ao que nos rodeia ! Está ali a morte -- está aqui a vida -- está ali o espanto -- e só a ninharia consegue deitar raízes profundas . 20 de Novembro Fecho os olhos . A chuva desaba interminavelmente do céu , e na luz turva vejo sempre a vila com as mesmas figuras de museu sentadas na mesma sala ... Insignificância , insignificância , insignificância . Portas chapeadas que rangem nos gonzos como portas de prisão , fachadas com os vidros partidos , e uma , duas , três camadas de pó sobrepostas . Lojas térreas de onde vem um bafo húmido que trespassa ... Como todas as almas , todas as janelas estão perras , e o tempo vai substituindo uma figura por outra figura , uma pedra por outra pedra . Ponho-as em fila diante de mim , com os seus penantes usados , grotescas e maníacas . Considero . Vejo vir os gestos , as cortesias , as acções do confim dos séculos . Isto é nada -- é vulgar e quotidiano . É uma aparência . A vila é um simulacro . Melhor : a vida é um simulacro . Atrás desta vila há outra vila maior . A lentidão , o gesto usado , a meia tinta mesmo em plena luz , toldam-me a visão . Sobre cada ser caiu uma camada de pó . A vila é isto -- e a vila não é isto . Que me importa a Adélia , um dia de inveja , um dia de aquiescência , um sorriso , baba , mesura atrás de mesura ? Outra velha mexe por trás desta velha mesquinha . As letras assinadas , as letras protestadas deste ser absorto , o exagero minúsculo , têm outra significação . A realidade é a manha , a astúcia que cada um põe em jogo . Não há velhas com cartas na mão ; há orgulho , soberba , inveja paciente . Há intuitos , cautela de quem caminha na ponta dos pés . Há forças e experiência , avareza e astúcia . Todas as palavras que se empregam têm , além da significação banal , uma significação que cada um pesa e calcula -- e outra significação superior . Há palavras que requerem uma pausa e silêncio , e há palavras que é preciso afundar logo noutras palavras . Há pelo menos dois seres neste homem que toda a gente conhece , pautado , regrado , metódico . Ele , e o doido morto por fazer esgares . Ele , e o doido que só consegue comprimir à força de pontualidade . Esta velha não é a velha com quem lidamos -- é outra . Tem tido um trabalhão para fazer mal , nunca conseguiu fazê-lo . É uma discussão que não acaba , com a boca amarga , arrependimento -- e por fim não realiza uma catástrofe autêntica , que a engrandeça . Curvada sobre o lar remexe sempre as mesmas cinzas frias . Todos se defendem . Por isso existe uma certa grandeza em repetir todos os dias a mesma coisa . O homem só vive de detalhes e as manias têm uma força enorme : são elas que nos sustentam . Reparo melhor na vila ... Alvenaria e castanho , construções para séculos . Ruas lajeadas , recantos onde nunca entrou o sol . Paredes mestras . Silêncio e humidade até à medula , gestos lentos , hábitos regrados . Uma rua desce até à igreja de cantaria lavrada . Um prédio enorme avança sobre a ruela onde os passos ecoam . Cresce aqui uma vegetação especial de sepulcro , e a sombra absorvida pelas muralhas da Sé exala-se em bafo passado um século . Os alicerces são temerosos , as traves de uma casa davam para a construção de um bairro . E tudo isto se entranhou de salitre , de interesse e de ódio . Em tudo isto há uma mescla de inutilidade , de fé e de sonho . Tudo isto esta cimentado para séculos . Cada barrote foi pregado com um destino , cada bloco metido na terra para se lhe erguer em cima não uma parede , mas uma ideia , uma vida , uma alma -- tudo isto tem uma camada de bolor e se impregnou de desespero . Até os sepulcros foram construídos para a eternidade . A pedra depois de talhada é uma expressão . Entro na catedral . Silêncio e um cheirinho a floresta apodrecida . As lajes estão gastas de um lado pelos passos dos vivos , do outro pelo contacto dos mortos . Tudo aqui gira em torno da mesma ideia . A pedra esboroa-se , mas eu contemplo-a viva , com um povo de estátuas em cima , com um povo de mortos em baixo . Nos alicerces uma geração , outra geração , todos apodrecendo juntos na mesma terra misturada e revolvida . A parte exterior é maravilhosa , a parte subterrânea é mais maravilhosa ainda . É a única raiz que se conserva intacta . Aqui não andam só os vivos -- andam também os mortos . A vila é povoada pelos que se agitam numa existência transitória e baça , e pelos outros que se impõem como se estivessem vivos . Tudo está ligado e confundido . Sobre as casas há outra edificação , e uma trave ideal que o caruncho rói une todas as construções vulgares . Debalde todos os dias repelimos os mortos -- todos os dias os mortos se misturam à nossa vida . E não nos largam . Reparo melhor na vida secreta e na vida subterrânea . Compreendo como é difícil viver todos os dias e todas as horas , como através de tudo é forçoso seguir um fio invisível -- e ser reles e sorrir . Gasta-me uma força superior , e com todas as chagas e todos os vícios , com a vida mesquinha e a vida quotidiana , o nada , o penante usado , o fel e o vinagre , tenho de arcar com uma coisa imensa de que me separa apenas um tabique . Tudo o que faço é um arremedo . Está ali outra coisa quando falo , quando me calo , quando me rio . E falo mais alto porque a ouço mexer ... Todos suportam o drama de todos os dias , o cinzento de todos os dias , as aflições e a usura que tornam as figuras ridículas e coçadas . Todos suportam os tratos que envelhecem e preparam para a cova , os pequenos interesses , a inveja , a ambição , a dor física . Todos os dias a Hermengarda amarga os brasões da Biblioteca , a Bisborria todos os dias cisma na sua respeitabilidade , e aturam o azedo que pouco e pouco se deposita nas almas -- e com isto uma coisa desconforme , que se levanta e deita com+nós , não se tira do nosso lado , em quem ninguém fala e com quem temos por força de coabitar ; diante de quem é forçoso ser vulgar e dissimulado , fazendo que a não vemos e com ela à cabeceira da cama ... Atrás da insignificância andam os céus , os mundos , os vagalhões doirados . Anda o desespero . Anda o instinto feroz . Atrás disto andam as enxurradas de sóis e de pedras , e os mortos mais vivos do que quando estavam vivos . Atrás do tabique e das palavras anda a Vida e a Morte e outras figuras tremendas . Atrás das palavras com que te iludes , de que te sustentas , das palavras mágicas , sinto uma coisa descabelada e frenética , o espanto , a mixórdia , a dor , as forças monstruosas e cegas . Em certas ocasiões , se as palavras e a insignificância desaparecessem da vida , só ficava de pé o espanto . Só a insignificância nos permite viver . Sem ela já o doido que em nós prega , tinha tomado conta do mundo . A insignificância comprime uma força desabalada . Para não ver , para não ouvir , é que nos curvamos sobre a mesa de jogo . Para te não ouvires a ti mesmo , para não veres o que te gasta a todos os minutos e a todas as horas , usura imensa que não sentes e que te vai levar para o escantilhão sôfrego , que te vai mergulhar no silêncio profundo . Usura de todos os instantes . Gasta-nos , desgasta-nos** . E todos os dias acordamos mais velhos , todos os dias acordamos mais inúteis . Todos os dias acordamos com mais fel . E todos os dias com mesuras , sem gritos de terror , nos curvamos sobre esta mesa de jogo , não vendo , fingindo que não existe , o espanto que está ao nosso lado , e o espanto pior que trazemos com+nós . Chama-se a isto o quotidiano . Isto não tem importância nenhuma . Com isto enchemos a vicia até chegar a morte . Esta mesa de jogo é a nossa existência vulgar , a vida de todos os dias , com o galope da outra vida ao lado . Não se passa nada ! não se passa nada ! No verão o calor sufoca , de inverno a mesma nuvem impregna o granito , e apega-se , amolece , dissolve pilares das janelas , casebres e a oliveira da praça , só tronco e duas folhinhas cinzentas . Em volta um círculo de montanhas , descarnadas e atentas , espera a tragédia -- e as montanhas não desistem . De vez em quando , na solidão que à noite redobra , caem do alto da Sé as badaladas , uma a uma , pausa a pausa . O som tem um peso desconforme . Estamos aqui todos à espera da morte ! estamos aqui todos à espera da morte ! CAPÍTULO II O SONHO Chove . Cada vez vejo mais turvo , cada vez tenho mais medo . Estamos enterrados em convenções até ao pescoço : usamos as mesmas palavras , fazemos os mesmos gestos . A poeira entranhada sufoca-nos . Pega-se . Adere . Há dias em que não distingo estes seres da minha própria alma ; há dias em que através das máscaras vejo outras fisionomias , e , sob a impassibilidade , dor ; há dias em que o céu e o inferno esperam e desesperam . Pressinto uma vida oculta , a questão é fazê-la vir à supuração . Esta manhã de chuva é um minuto no rodar infinito dos séculos , e os seres que passam meras sombras . Tudo isto me pesa e pesa-me também não viver . Do fundo de mim mesmo protesto que a vida não é isto . A árvore cumpre , o bicho cumpre . Só eu me afundo soterrado em cinza . Terei por força de me habituar à aquiescência e à regra ? Crio cama , e todos os dias sinto a usura da vida e os passos da morte mais fundo e mais perto . " É necessário abalar os túmulos e desenterrar os mortos . " É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem som . Um homem absurdo . Olhos magnéticos de sapo . É uma parte do meu ser que abomino , é a única parte do meu ser que me interessa . As vezes deita-me tinta nos nervos . Fala quando menos o espero . Chamo-o , não comparece . Se quero ser prático , gesticula dentro do casaco arrepiado : -- A alma ! a alma ! Singular filósofo ! É capaz de desejar a morte para ver o que há lá dentro ; é capaz de achar vulgares até as coisas eternas . Ao lado da vida constrói outra vida . Sonha , e os seus sonhos são sempre irrealizáveis , transformam-se-lhe nas mãos em barro informe . Toda a gente se ri -- já sonha outra vez ... Para ele a vida consiste , encolhido e transido , em embeber-se em sonho , em desfazer-se em sonho , em atascar-se em sonho . Meses inteiros ninguém lhe arranca palavra , dias inteiros ouço-o monologar no fundo de mim próprio . Ignora todas as realidades práticas . Na árvore vê a alma da árvore , na pedra a alma da pedra . Deforma tudo . Põe a mão e molha . Destinge sonho ... -- A alma -- diz ele -- ao contrário do que tu supões , a alma é exterior : envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a matéria . Em certos homens a alma chega a ser visível , a atmosfera que os rodeia toma cor . Há seres cuja alma é uma contínua exalação : arrastam-na como um cometa ao ouro esparralhado da cauda -- imensa , dorida , frenética . Há-os cuja alma é de uma sensibilidade extrema : sentem em si todo o universo . Daí também simpatias e antipatias súbitas quando duas almas se tocam , mesmo antes da matéria comunicar . O amor não é senão a impregnação desses fluidos , formando uma só alma , como o ódio é a repulsão dessa névoa sensível . Assim é que o homem faz parte da estrela e a estrela de Deus . Nos vegetais , nas árvores , a alma é interior , pequenina emoção , pequenina alma ingénua e humilde , que se exterioriza em ternura a cada primavera : tocada pelo grande fluido esparso , onde andam as nossas lágrimas , vem à tona em ouro e verde , em deslumbramento . Nos minerais , na pedra concentrada e recalcada , que dor inconsciente , que esforço cego e mudo por não poder abalar as paredes e comunicar com a alma do universo ! A pedra espera ainda dar flor . Para ele estas coisas etéreas são visíveis . Vê tão exatamente como eu te vejo a ti a paixão , o ódio , o amor , os grandes fluidos desgrenhados de ouro , de piedade e de génio . Tem-se estragado tudo . É o doido que em nós prega e nos deixa aturdidos . Às vezes consigo afastá-lo , mas sucede que fico sempre com pena : se o ouvisse talvez fosse mais feliz e mais desgraçado ... Desdenho-o , e sinto-lhe a falta quando o não tenho ao pé de mim . Deita-me a perder se me apanha desprevenido . Quase sempre é ele quem manda em minha casa , e , mesmo quando falo como toda a gente fala e quando rio como toda a gente ri , só a ele o ouço no mundo . Diz-me coisas que nunca ouvi , isola-me num vale apertado e cismático , longe de toda a terra , arrasta-me , ou desespera-me . Desaparece como um cão vadio e quando volta , com lama de todos os caminhos , folhas de todas as florestas , reflexos de todos os enxurros , vem exausto , mudo e feliz . Vem feliz ! É ele que me prega : -- Toda a agitação é inútil . Não tenhas medo da desgraça ! E eu tenho medo da desgraça . À força de hábito cheguei a mantê-lo no seu lugar , mas nunca o pude suprimir , e quanto mais me aproximo da morte , mais saudades levo do Gabiru , que me estragou a vida toda . Mora num velho pardieiro encostado à muralha , abafado de um lado pela muralha da vila , que à noite redobra de proporções . O granito enegreceu , poliu-o a chuva , e a escadaria de pedra dá calafrios a quem entra . -- Essa alma , essa alma disforme , que vai de mundo a mundo , e que em cada ser realiza uma primavera é que é tudo . O resto insignificância . É ela que nos devora e faz da morte a vida e da vida a morte ... De um lado a muralha de dentes arreganhados para o céu , do outro o sórdido pardieiro , no alto a noite de luar como uma camélia gelada . Dentro disto sonho . Ponho-me a olhar para ele -- ponho-me a olhar para mim . Passou a vida naquela inutilidade , de que sai a rever sonho e com os cotos partidos a esvoaçar na noite dorida . Primeiro afundou-se em experiências do laboratório , à procura da pedra filosofal . -- Ridículo . Depois na aplicação da eletricidade aos vegetais , que se consomem de febre , que se desentranham em flor , sem produzirem fruto . -- Grotesco . Agora ninguém o arranca a infindáveis monólogos caóticos : -- A morte ! a morte ! a morte ! Incongruência , obscuridade e dor também ; a dor de quem vem da irrealidade , encolhido e transido ; a figura estranha de quem se debate com o sonho e sai da luta esfarrapado e dourado . Se o tiram do sonho titubeia e não sabe onde põe os pés . Tem as asas partidas . Compreende então a sua inutilidade e desespera-se até reentrar na nuvem que o envolve . Puxa a si o mistério , e , entre as árvores e os fios elétricos que correm todo o quintal , ouço a sua voz magnética , que impregna de sonho o luar todo branco : -- Isto é um fluido dor , falta-me condensá-lo . É uma nuvem que envolve tudo , que vem do turbilhão da Via Láctea , arrasta tudo consigo , e ascende em espiral até Deus . Não , a sensibilidade não é individual , é universal . Basta ferir a sensibilidade , que vai dos nossos nervos até à Via Láctea , para transformar as noções do tempo , do espaço , da vida e da morte -- basta deitar dentro de um tanque uma gota de vermelho para tingir toda a água . Deito-lhe sonho dentro ... 7 de Dezembro A vila é tumular e encardida , mas oculta dentro dos seus muros um sonho desconforme . Talvez desconexo , mas desconforme . O sonho é dele : a própria casa de granito revê sonho . O Gabiru mistura , revolve , extrai sonho do sonho . Debalde o que é mesquinho lhe mostra os dentes : o Gabiru não ouve , não vê , não sente . O sonho isolou-o da própria mulher transida de frio , no casarão que deu à costa como uma nau do passado , com o cavername roído pelo mar das trevas . É um ser quase etéreo . Nem sei dizer se existiu , se a criei ; sei que se sumiu num sopro cada vez mais efémera , com dois olhos verdes de espanto . Sei que me pegou sonho , e que fui levado , perdido , como uma coisa inerte ... Morreu transida de frio . Uma mulher pálida -- o que vale um pássaro . Ternura e dois olhos verdes de espanto . Hesita , mal poisa os pés no chão , chora baixinho , e vai talvez acordá-lo , queixar-se ... Não se atreve , e esboça um sorriso logo molhado de lágrimas . Morre de frio . Agosto -- morre de frio . Até para lhe sorrir se esconde , e põe-se então a olhar o muro ( vou-te dizer o sítio ) a falar com o muro , a queixar-se à grande nódoa de humidade da parede . Dois olhos verdes de espanto , um vestido de seda , e as meias rotas nos calcanhares . Um nada de ternura tê-la-ia salvo -- ninguém a arranca Ãquele sonho informe . Morta ... Ninguém . Estende fios no chão entre as árvores , e as árvores todo o inverno se desentranham em flor . Pegou-lhes sonho também . É um desbarato , uma profusão que as devora . Absurdo . O quintalório ao pé da muralha , que há séculos revê humidade , não é maior que um lenço ; a primavera só chega aqui tarde e de mau modo , com pena das árvores de saguão . Arrepende-se logo . Já veem que o absurdo é maior ainda ... Dezembro e primavera . O céu gelado , um brilho de estrelas em engastes novos , e , entre a cárie das paredes , as macieiras baixinhas e humildes como exalações de ternura . Mortas . Mortas , secas de sonho . Mortas as árvores desfeitas em flor . -- Este eflúvio é que é tudo : a torrente de ideias e a torrente de paixões . A minha atmosfera , a alma , penetra a tua atmosfera , e dissolve-a , domina-a , conquista-a . Recua , tateia , hesita . Mas escusas de falar para que eu te entenda . A matéria muitas vezes não me deixa compreender , mas é raro que eu não saiba logo quem tu és , e , mesmo que seja a primeira vez que te fale , as vezes que te tenho encontrado no mundo . E logo : -- A vida perdi-a a sonhar . Depois de morta é que dei com ela . Mas que importa ! -- Acabei com a morte , vou ressuscitá-la . Viveremos sempre , amaremo-nos sempre ... A noite é de aparato . A lua de coral sobe por trás da montanha em osso , e depois na chanfradura das ameias . Mais flores -- todos os galhos dão flor . Sente-se , quase se ouve , a dor das árvores , dos seres vegetativos , ao terem de apressar , de modificar a sua vida lenta , dispersos em ternura . -- Perdi-a , perdi a vida ! Esqueci-a como esqueci tudo . Perdi-a e mais dois dias e tinha suprimido a morte ! Sob o fluido elétrico o quintal tresnoita . Cai neve e abrem os primeiros botões . A árvore transforma-se num ser dorido e esplêndido -- transforma-se em sonho -- em sonho desfeito em flor , em flores espezinhadas umas atrás das outras por camadas sucessivas . Os ramos espremidos escorrem dor . Até as pedras deitam tinta . O quintal escorre sonho como a alma do Gabiru . Atrevem-se e acordam as coisas apodrecidas , e velhas pedras iludidas põem-se a cantar nesse pio triste dos sapos , que sai da fealdade como uma inútil queixa de desventura . A noite côncava e branca -- gelada -- cobre indiferentemente tudo isto . Que não cobre a noite ? Quatro paredes negras , no fundo remexe o sonho . Perco também a noção da realidade . -- Tanta flor ! -- Para a sua cova . E pondo em mim os olhos atónitos : -- O que é preciso é ir buscá-los ao fundo da mixórdia , arrancá-los à obscuridade , juntar outra vez as bocas dispersas . Não morrer é nada : vou ressuscitá-los ... Imagina o negrume de um poço -- imagina dentro o espanto , e não sei que luz viva , não sei que dor recalcada , não sei que de humilde , que quer viver apesar de dorido . Vivo , e a pata enorme que espezinha e esmigalha . Escuridão e ouro -- silêncio e ouro -- espanto e ouro . -- Vê tu a árvore ... Uma camada de flor -- um grito ; outra camada de flor -- outro grito . Vê tu a árvore como se transforma num fantasma de árvores , e depois em emoção ! ... Suprimir a morte ! É uma coisa grotesca . O sonho trasborda , o luar trasborda -- branco e dor -- branco e sonho . Depois o silêncio , depois a sua voz magnética -- depois a sombra imensa que ameaça desabar sobre nós , no quintal do tamanho de um lenço . Desato aos gritos quando todas as roseiras , fartas de dar rosas secam , quando da catedral e do silêncio caem uma , duas , três badaladas , que me apertam uma , duas , três vezes o coração . E o Gabiru com olhos de frenesi insiste : -- Não morrer é nada , suprimi a morte . O que é preciso é arrancar os outros ao silêncio . É uma coisa simples , é uma questão de síntese . -- A morte -- afirmo-lhe&lhes+o -- é o repouso eterno . -- Repouso eterno , estúpido ! É exatamente o que está vivo , a morte . É o que está mais vivo . 10 de Dezembro Na escuridade e no silêncio o sonho deita braços desconformes . Pega-se-me . Debalde luto contra o fluido que avança para mim como uma exalação de frenesi e de nervos . A teia invisível rodeia lentamente a inutilidade , a teia dissolve almas , e fios impalpáveis apoderam-se da vila quieta e absurda onde só ele se atreve e cisma ... Isto é possível ou isto não passa de um sonho grotesco , de mais outro sonho grotesco ? De que é feita a tibórnia , o líquido viscoso , cor de sabão , com filamentos verdes , que o Gabiru com olhos de sapo revê no vidro , através da luz -- a maior descoberta do século , o soro que acaba de vez com a velhice e arreda a morte para confins ilimitados ? Alguns sais , o sódio , o enxofre , o magnésio , O brómio , o carbono -- e sonho . Dezassete elementos , entre os quais a prata , o cobre , o ouro , o arsénico -- e dor . Matéria , espírito e concentração . O mistério é este e mais nenhum , é exprimir como o que é espírito se transforma em matéria , como a poeira se condensa , como a alma se faz corpo . Gritos , mais desespero . Contar o quê ? As noites infinitas , as mãos que tentam arrancar farrapos ao manto em que o mistério se envolve e o procuram reter quando ele se dissipa ? Outra vez absorção , outra vez o rebuscar em ti mesmo o inexplicável , e os nervos que tendem e quebram , o cérebro que dói , o lento acordar das vozes submersas , a discussão , o tumulto , e poder distinguir entre tantas bocas que falam , a única que tem direito a falar . É desta obscuridade , desta discordância , que emerge a ideia de suprimir a morte . Não te rias . Já to disse : é um ser à parte com cotos em vez de asas , que se agitam num desespero para voar . Não se contenta com esta vida nem dá por ela , mas fica sempre a meio caminho , e tão dorido que não é possível tocar-lhe . Já to disse : é um ser grotesco que põe em mim os olhos turvos e teima , insiste , repete : -- Sobre a vila , repara , paira uma atmosfera cinzenta , composta de todas as atmosferas : é a alma da vila . E afirma cheio de convicção : -- Deito-lhe sonho dentro . Queira ou não queira faz-me pensar ... Na realidade morrer é absurdo . Nunca me capacitei a sério que tivesse de morrer . Morrer é estúpido . Não compreendo a morte , e , por mais que desvie o olhar , prendo-me sempre a essa hora extrema ... Um ser grotesco , um unguento verde , e aquela voz aos meus ouvidos . É caricato e pega-me dourado . E o pior é que este sonho é afinal o meu sonho e o teu sonho . Ninguém o confessa senão a si próprio . O nosso sonho e não morrer . Quando a gente se esquece um bocado a vida tem já passado . E quando a vida tem já passado é que nos agarramos com mais saudades à vida . A resignação custa muitas horas doridas em que ficamos alheados e suspensos . A morte ... A morte é inevitável ? -- pergunto baixinho . E como a morte é inevitável , como tenho por força de me resignar , como não lhe posso fugir , para não perder tudo , criei a outra vida . E afinal quem sabe se este sonho que a humanidade traz consigo desde que pôs o pé no mundo não é o maior de todos os sonhos e o único problema fundamental ? A verdade é que teima . Não nos larga na vida e levamos-lo escondido para a cova . A verdade é que foi esta sempre a nossa maior aspiração , e que , como todos os sonhos , há de acabar por se converter em realidade . Temos construído o universo assim , podemos construi-lo de outro modo . Falta talvez um passo ... A vida eterna admitimos-la quando não nos podemos manter nesta vida ; mas , no fundo , o que nós queremos é este mesmo sol , esta pobreza , esta dor , estas ilusões moídas e remoídas . Deixem-nos a vida que aceitamos tudo . Aqui há , portanto , um erro primário . Protestas do fundo do teu ser : a morte é absurda . É preciso cortar um nó que não existe . O mais difícil é passar do império do possível para o império do impossível . É talvez uma questão de vontade . A vida é um acto de fé de todos os instantes . Arredemos de vez este suor frio . Não importa se é da uniformidade da vida ou do medo da morte que me vem esta ânsia . Sei que acordo e grito : -- Eu não vivi ! eu não vivi ! E cada vez o meu protesto ascende mais alto . Quero tornar a viver a mesma vida aborrecida e inútil , quero recomeçar a desgraça . Ninguém pode com semelhante peso . Não há quem possa com ele . Na solidão , a primeira coisa que procuro é a ninharia para esquecer a morte . Um minuto sós a sós com o espanto , recamado de mundos , que caminha desabaladamente no silêncio , dura um século e outro século ainda . Não posso , nem tu nem eu , viver sobre o fio de uma espada e olhar para a voragem de um e de outro lado ; não posso arcar todos os dias com esta usura que me gasta sem mergulhar na insignificância . E agora até a insignificância me é impossível . O silêncio ... O pior de tudo é o silêncio , e o que se cria no silêncio , o que eu sinto que remexe no silêncio ... Carrega em cima de nós tal peso que ninguém o suportava se desse por ele . É o peso do espanto . Juntem a isto a vila comezinha , e o negrume que levanta os cotos esfarrapados , como se fosse voar , quando o padre||_Timóteo Timóteo|_Timóteo dá o seu passeio habitual no pátio da Misericórdia , e , na meia dúzia de metros quadrados com árvores éticas do jardim , as Sousas arrastam os vestidos , última moda do Grandela . Juntem a isto a grande nódoa de humidade a que ela costumava queixar-se . Juntem a isto a Morte e aquela voz de desespero cada vez mais frenética , que não cessa de pregar , e que me põe em frente de mim mesmo , que é o que mais temo no mundo . -- O que eu quero é tornar a viver . A minha saudade é esta . O que eu quero é recomeçar a vida gota a gota , até nas mais pequenas coisas . Não reparei que vivia e agora é tarde . Sinto-me grotesco . Recomeçá-la nas tardes estonteadas da primavera e na alegria do instinto . Encontrei há pouco uma árvore carcomida : deixaram-na de pé , e um único ramo ainda verde desentranhou-se em flor ... Pudesse eu recomeçar a vida ! -- Cala-te ! Terei de confessar a mim próprio que nunca amei , que nunca fui arrastado até ao âmago pelo desespero ou pela paixão , e que de tal forma se me entranharam as palavras e as regras , que passei a vida a mascar palavras e regras ? Terei de confessar a mim mesmo que vou para a cova com a boca a saber-me a vulgaridade e a pó ? Antes me soubesse a fel -- antes a dor ! ... -- Mas sonhaste , estúpido ! -- Sonho . E o que me resta nas mãos inermes , nas mãos para que olho com espanto e terror , nas mãos de velho , senão grotesco , farrapos de grotesco , restos de grotesco , com alguma tinta em cima ? ... Não ; viver é que é bom , viver com o instinto , como os ladrões e os bichos , os malfeitores e as feras , sem pensar , sem sonhar , sem palavras nem leis , até cair a um canto , morto e feliz , de barriga para o ar . Isso sim ! isso sim ! ... -- Quantas conversas temos tido juntos ! quantas discussões inúteis ! quantos desesperos de que não há sair , batendo com a cabeça na mesma parede ! Às vezes subjugo-o : -- Cala-te ! cala-te ! Às vezes fala mais alto e domina-me ele a mim . Rio-me de ti e impões-te me . És ridículo e só tu te atreves ; só tu és feliz porque te atreves a sonhar , a seres tu , a dizeres inconveniências sem fé nem lei . Só tu não tens método , só tu te fechas a sete chaves à tua vontade , livre , feliz e desprezado . No fundo invejo-te . Aquilo incha , transborda , como um rio que alaga tudo . Pega-se-me e molha-me . Aturde-me . É só ele que fala no mundo , cada vez mais obcecado e mais alto , com interjeições e gestos desordenados pelo meio : -- Estúpido ! Hei de falar ! quero falar ! Hei de por força falar ! E há aqui dor e ridículo . Há um esgrouviado a dizer vulgaridades , e uma coisa que vem da raiz da vida num frémito e que me mete medo . Um bafo , e logo mil vozes que aproveitam o momento e desatam a pregar sem tom nem som . -- Toda a gente se ri de ti ... -- Deixá-lo . -- Toda a gente se ri ! toda a gente se ri ! -- Quero por força tornar a viver ! Hei de por força tornar a viver ! Debalde lhe aconselho calma , o Gabiru insiste : -- Entrevejo na morte um sofrimento atroz . O inferno não é uma palavra vá . É um inferno de ânsia , um desespero sem consciência e sem gritos . A vida não é senão uma trégua -- um ah -- e logo um mergulho nesse inferno de dor . Na dor extrema . Eis o que é a morte : a dor extrema , a dor emudecida . O terror instintivo da morte é uma advertência . Não quero morrer e vou ressuscitá-los ! ... Viver sempre ! amar sempre ! sonhar sempre ! -- que esplêndido sonho ! A vida é quase nada . Tudo que custou tanto desespero , tudo sumido num buraco para sempre . Ouves ? Para todo o sempre . De que serviram os gritos , as lágrimas , subir , trepar , chegar ao topo do calvário ? Para todo o sempre ! Bem sei : aquilo a que me apego é impalpável : é a mulher que passou , assomando-lhe ao focinho uma expressão de ternura , e que nunca mais tornarás a encontrar ; é aquela manhã de chuva em que nos molhamos juntos ( e ainda me sinto molhado ) e que se não repete , é o minuto que nos escorre das mãos como um fio de água , mas doura-o o sol , e é esse mesmo minuto translúcido que quero tornar a viver , sem a sombra da morte a meu lado . É a essa mesma ninharia que é a vida a que deito as mãos com desespero . A vida é nada -- e esta cor , esta tinta , esta desgraça . É saudade e ternura . É tudo . É os meus mortos e os meus vivos . Levo pena de tudo , até da fealdade . Agarro-me a tudo , tudo me prende , o sonho que não existe , as horas inúteis , o possível e o impossível . A floresta não faz parte do meu ser , e eu tenho aqui a floresta , o som e o aroma da floresta , a vida da floresta ; o céu não faz parte do meu ser , e eu sou o céu profundo , o céu trágico e o céu esplêndido . Dá-me a vida -- dou-te tudo em troca ... Agarro-me como um náufrago , agarro-me com uma saudade , que vem não só de mim , mas de muito mais longe , da base mesmo da vida . Para sempre ! para todo o sempre ! E , com um suspiro mais fundo , repete : -- Suprimi a morte , vou ressuscitá-los ! A noite vem , a noite avança . Sinto os mortos . Ainda vivo , já estou em seu poder : faço parte da legião . Noite imensa sem gritos . Pior que sofrer é não sofrer -- para sempre . É nunca mais sentir . É ter as órbitas vazias voltadas para o céu e nelas não se refletir a luz das estrelas . Mais um passo e é o silêncio absoluto . Mais um passo e tapas-me para sempre a boca . Não me importa ser feliz -- não me importa ser desgraçado . O que me importa é o que há depois , é o que está por baixo da terra e o que está por cima da terra . Já não luto . E ele insiste e cada vez prega mais alto : -- Eu não vivi . Que importa , vais morrer ! Para sempre , para todo o sempre , o mesmo buraco de onde não sai rumor . Escuta isto : de onde não sai rumor . Repete isto : para todo o sempre . Nenhuma explicação te é lícita , nenhuma transação é possível . A morte não espera nem atende . É estúpida . Primeiro é estúpida , depois é incompreensível . É tremenda porque contém em si mistificação ou beleza . Absurdo ou uma beleza com que não posso arcar . O nada ou uma coisa que a minha imaginação não atinge . Se é o mistério , e se desvenda de um golpe , apavora-me . Se é o nada repugna-me . Apenas um minuto , e lá em cima as mesmas estrelas , e outros vagalhões de estrelas ... Para ela tanto vale um segundo como um século , carrega um ser inútil ou um ser delicado com a mesma indiferença para o túmulo . Tens passado a vida a esperá-la . Que outra coisa fizeste na vida senão esperar a morte ? É o que nos preocupa . Debalde a arredamos : a vida não é senão uma constante absorção na morte . Então para que nasci ? Para ver isto e nunca mais ver isto ? Para adivinhar um sonho maior e nunca mais sonhar ? Para pressentir o mistério e não desvendar o mistério ? Levo dias , levo noites a habituar-me a esta ideia e não posso . Tenho-te aqui a meu lado . Nunca se cerra de todo a porta do sepulcro . Estou nas tuas mãos ... Adeus sol que não te torno a ver , e água que te não torno a ver . Arvores , adeus árvores que minha mãe dispôs ; adeus pedra gasta pelos seus passos e que meus passos ajudaram a gastar ; adeus ternura para a minha sede , fruto escondido -- para sempre ! para todo o sempre ! Tenho-te horror e odeio-te . Interrompes os meus cálculos . És o maior dos absurdos . Ver para não ver , ouvir para não ouvir , viver para morrer ! E aqui te faço uma confissão : o que mais me custa a largar e , como à cobra a pele , a vida comezinha . Não , o fim lógico da vida não é morrer , é viver sempre , é ascender sempre . Até onde ? Até Deus . Vou ressuscitá-los . Vou ressuscitá-los ! E em eles se pondo a caminho vais ver dourado . A vida toma novo impulso . Desaparecendo a morte é que tu abranges a vida . Vais ver a cor que toma o mundo , as tintas que o mundo escorre e as flores que as árvores criam ... Vou ressuscitá-los ! Vou ressuscitá-los ! ... A terra remexe . Sinto um esforço e revive o suor da desgraça ; um arranco na profundidade , e todas as primaveras dispersas não tardam , uma atrás de outra , a reflorir . Há sepulcros até ao fundo do globo . De mais longe vem um ímpeto -- são outros mortos ainda . Uma sombra desmedida , uma sombra que se despega da obscuridade , com todas as lágrimas que se choraram no mundo condensadas , vai desabar sobre nós . As suas palavras criam . O pior foi tocar-lhe ! Neste debate entra agora o mundo todo . Entram as árvores e as pedras . Não há dúvida para mim : quando sair disto tenho renascido : o mundo não é o mesmo mundo , o céu o mesmo céu , a vida a mesma vida . O que existe é outra coisa dourada e imensa , esfarrapada e imensa . Repara que o céu aumentou em profundidade . O que existe são gritos , o que existe é o espanto . O pior foi tocar-lhe ... Um remexer de treva , que até agora pudemos recalcar , soltou-se da escuridão e pôs-se a caminho . Já não há esforços que a contenham ... Um borrão trágico avança -- outro borrão informe prepara-se . Os mortos empurram os vivos ... Passa no mundo a estranha ventania ; é a morte que custa a separar da vida . O rasto que fica atrás , a perspetiva que fica adiante foi cortada . A morte está aqui de um lado , está do outro a vida . Tinha raízes enormes : arrancaram-lhe&lhes+as de vez . Agora atrevo-me a tudo . O turbilhão colérico abala o mundo , ouro e negro , esplêndido e feroz . Desenraíza tudo . As almas acordam num sobressalto , e não há homem que se não ponha à escuta . Passa no mundo a doida ventania das nossas aspirações secretas , das nossas dúvidas , dos nossos desesperos . É uma voz -- são muitas vozes . É um grito -- são muitos gritos . -- É o grito contido há milhares de anos , o grito dos mortos libertos . CAPÍTULO III A VILA E O SONHO Em lugar de1 o uso de palavras fazia isto melhor com o emprego de dois tons -- cinzento e ouro : uma nódoa que se entranha noutra nódoa . O sonho turva a vila . A primavera toca neste charco só lodo e azul : tinge-o e revolve-o . Mas o hábito de tal forma se entranhou na vida , que coabitam com o espanto e continuam a ir à repartição . Horas na torre . Mais silêncio . A morte roda aqui por perto , alguém fala : " Então como passou ? Passou bem ? " O hábito tem profundidades de légua . A princípio olham-se desconfiados , com medo uns dos outros . Sem dúvida gostam de viver mais um século , mais dois séculos , mas não sabem ainda que emprego hão de dar à existência . Não se lhes dava mesmo de morrer contanto que continuassem a jogar o gamão no infinito . O que lhes custa mais a perder não é a vida , são os hábitos . Vêem-se e não se reconhecem . Há almas embrionárias , velhos lojistas que olham para si próprios com terror . A maior parte da gente , nasce , morre sem ter olhado a vida cara a cara . Não se atrevem ou ignoram-na : a outra existência falsa acabou por os dominar . Não há máscara que não custe a arrancar -- há mentiras que têm raízes mais fundas que a verdade . Por isso , para uns não morrer é continuar a jogar o gamão pela eternidade , para outros é juntar uma moeda a outra moeda , um dia a outro dia inútil . Sempre ... Já na botica dois idiotas recomeçaram com escrúpulo uma partida que deve durar cem anos , e o bocal amarelo , as moscas mortas estão ali com outro ar . Fixaram-se . Estão ali embirrentas e sórdidas para toda a eternidade . Pouco e pouco o sonho dissolve , a nódoa de ouro alastra . Vai mexer com o subterrâneo , acorda os mortos , desenterra o sonho submerso há dois mil anos , sobressalta o instinto , bole com todas as almas sobrepostas até ao fundo da vida . Transforma , volta a existência do avesso , deita o muro abaixo . Por ora é só uma ideia , mas sai-nos de cima o peso do mundo ... Mexe em tudo , revolve todas as raízes que se apoderaram da vila . O sonho cai na regra , no charco de interesses , na hipocrisia que se não atreve , nos dentes afiados que se transformaram em sorrisos , na paciência de quem espera uma herança com vagares de quem tece uma teia . Certas existências são formidáveis , outras existências são como alcovas onde nunca entrou a luz ( cheiram a relento ) e onde agora se agita e gesticula um ser desconhecido . Certas existências são feitas de ódio minúsculo , de inveja que sorri -- porque nem a inveja se atreve . Certas existências são crepusculares . Em certas existências são os mortos que ordenam , muito mais vivos e imperiosos depois que estão no sepulcro . Quase toda esta gente se desconhece . Nunca se atreveram e agora perguntam-se : -- Sou eu ? sou eu ? Aqui estou eu que finjo que sorrio , e acabo por fingir toda vida . A minha vontade era anular-te -- e finjo , e o sorriso acaba por ganhar cama , a boca por se habituar à mentira , a ponto de já não saber discernir o meu ser , do ser artificial que criei peça a peça . -- Pois sim ... pois sim ... Mas atrás disto há outra coisa -- há fel . E quando tiro a máscara ? Mas eu já não posso tirar a máscara , mesmo quando me fecho a sete chaves : a mentira entranhou-se-me na carne . Este fantasma chegou a ter mais vida que a própria realidade . E aqui andam outros seres . Eu não sei quem sou e até o meu metal de voz estranho . Eu não sou quem falo . A meu lado , atrás de mim , vem um cortejo de fantasmas , uma cauda disforme que me conduz e empurra , e adiante de mim há uma projeção de vida até aos confins dos séculos . Acaba a hipocrisia . Acaba principalmente a hipocrisia para com+nós , mais difícil de largar que a própria pele . Eu minto mais a mim mesmo do que minto aos outros , finges tanto com a tua alma como com a minha . Primeiro é a hipocrisia que descasca . Acabou ! acabou ! E com espanto ouço e desconheço a minha própria voz . É que a morte regula a vida . Está sempre ao nosso lado , exerce uma influência oculta em todas as nossas acções . Entranha-se de tal maneira na existência , que é metade do nosso ser . Incerteza , dúvida , remorso ... Nunca se cerra de todo a porta do sepulcro , sentimos-lhe sempre o frio . Agora não , a vida pertence-nos . A morte não existe , desapareceu a morte ... Ali a um canto um ser desata a rir , a rir , a rir como nunca ninguém se riu . E , através da pedra destas fisionomias , transparecem já outras fisionomias : as velhas , como uma roda de aranhas de penante na cabeça , apertam o círculo em volta da majestosa Teodora . São anos de paciência , de inveja e de fel -- são anos de tragédia . Sobressaltam-se as futilidades que estavam para durar séculos , mas ninguém arrisca ainda um gesto que o comprometa . Têm-lhe obedecido de rastros . O tempo passa , e com o tempo esta luta entre o inferno e o sonho reveste-se de cimento e de grandeza . Obedece e sorri a Eleutéria . Mói , tem moído a vida inteira . Mói-se a si e aos outros . -- E o tempo passa ... Obedece e sorri a Adélia , que esperou , tem esperado a vida inteira . A miséria conserva : tem os cabelos pretos . Seis , doze vinténs desequilibram-lhe o orçamento : perde-os todas as noites com um sorriso de angústia . Obedece e sorri a Porfiria , que é a pior de todas ; é feita de destroços e de restos . A aquiescência também está presente com a D. Restituta , de guarda-chuva na mão , acenando sempre que sim à vida : -- Pois sim ... pois sim . Faz-se um pouco surda para só ouvir o que lhe convém . Nunca diz mal dos outros , nunca repete numa casa o que ouviu cá fora . As vezes , de noite , vira-se e revira-se na cama , mas nem sozinha se explica : suspira . É na aparência um pouco trôpega , um pouco adoentada e surda : tem uma saúde de ferro e um filho escondido . E ao passo que a D. Restituta , tendo dito a tudo que sim , tendo dito a tudo e a todos que sim , já não pode dizer , com o mesmo esgar , senão que sim : -- Pois sim ... pois sim ... -- a Adélia é ríspida : um vestido , um xaile , um chapéu de plumas , e o desejo exasperado de toda a sua vida ( tem sessenta anos ) de ter uma sala de visitas com dois castiçais de prata e um álbum . O álbum lá está , na sala que cheira a bafio , e há vinte e dois anos que dois paninhos redondos de croché esperam os castiçais de prata . Obedecem as figuras secundárias , atentas e imóveis sobre o jogo , dependentes umas das outras , ligadas pelo mesmo interesse . O medo acabou , e o escrúpulo , a hipocrisia da gente que vive à roda de uma ideia sem atrever a encará-la . As velhas ouviram passos apressados dentro das próprias almas , o sonho veio à tona , e ficam absortas com as mãos agarradas aos queixos e as bocas espremidas a remoer em seco ... -- É preciso matá-la ! São anos e anos , são séculos de inveja paciente , que sobem à superfície : até as figuras de pedra ressumam dor e desespero . Agora metem-me medo . As velhas somem-se , e ficam gritos , fica o espanto , ficam fantasmas . Toda a gente dá a mesma ferocidade , ódio instinto . Espremidos deitam as mesmas paixões . Uns ignoravam-se . Outros usavam a vida em manias . Outros gastavam-na em grotesco . Outros habituavam-se . A paciência era pegajosa . A paciência tinha uma cor especial , verde desbotado , que mal feria a vista , e um filho , a cobiça , tal qual como a D. Restituta , que encrespa o pêlo e se põe de pé com o guarda-chuva em riste . Cada ser me perturba como se contivesse em si o céu e o inferno . Bem sei que a fórmula não é inútil : ao contrário a máscara é indispensável e é por ela que nos julgam . Mas , apesar de criarmos o mesmo bolor e de nos sepultarmos ao mesmo tempo com certa comodidade sob alguns palmos de terra , há qualquer coisa que remexe e que faz parte integrante da vida . Até o escuro se eriça -- até a grande sombra se deforma . -- Muita gente na vida só conta com a morte . A D. Desidéria desata aos ais . E é com secreta satisfação que vejo esfarelar-se este edifício tão bem construído sobre bases , que pareciam inabaláveis , do interesse , da hipocrisia e das conveniências ... Impelidos por uma mola dão todos um passo em frente , e há três dias que os padres se descompõem na colegiada sem se chegarem a entender : -- Lá vai o inferno ! lá vai o inferno ! E , efetivamente , de um instante para o outro , lá vai o inferno que tanto custou a fazer , e outras sombras temerosas reduzidas a cisco . Lá vai o cenário admirável e monstruoso , todas as regras , todos os papéis pintados , que atravancavam o mundo , e eram pelo menos metade da nossa existência . O que tinha uma importância extrema passou a não ter importância nenhuma ; o que parecia indispensável à vida , e sem o que se não dava um passo na vida , reduziu-se num minuto a zero . E outras coisas insignificantes assumiram proporções enormes ... Os padres clamam num coro desesperado : -- Acabou o inferno ! acabou tudo ! Descompõem-se na sala da colegiada que deita para o passado -- o claustro com um pé de oliveira , e dois túmulos encravados na parede , cenografia para o Hamlet -- ser ou não ser eis a questão ... Cheiram a urina e a ranço . A religião sem inferno está perdida . -- Mas lã por o homem ter suprimido a morte , não deixa de haver inferno -- observa o estúpido cónego Fazenda . -- Isso está claro que não deixa , obrigado pela observação , mas é um inferno tão distante que não mete medo a ninguém . -- Protesto ! -- Lá vai o inferno ! acabou o inferno ! Lá vai também o céu , mas o céu não faz falta nenhuma . Já não há esforços que contenham o mundo subterrâneo que se pôs a caminho . Aos mortos cheira-lhes a vida , a saque , a infâmia . A poeira remexe . Por mais que queiram conter a vida dentro de certos limites , ela extravasa e vem à supuração ; por mais que a queiram comprimir estala por todas as costuras . É inútil . Além da vida aparente , há outra vida de ódio , de sonho , de interesses ocultos . É a vida , é o que eu cismo de noite e me sustenta de dia . É o desejo de extermínio , é o sonho que arredo e que me pega fuligem : são os restos de sonho de toda a gente . Em todas as almas , como em todas as casas , além da fachada , há um interior escondido . Saem dos antros entontecidos e respiram , olham o céu e respiram . Saem dos buracos e põem-se a rir , ou falam só , o que é a primeira vez que sucede na vila . Emergem da noite e vão deixando cair os farrapos . Respiram com sofreguidão , os gadanhos afiam-se-lhes , e o mesmo desejo os domina : a vida ! a vida ! a vida ! Só esta velha parou de remexer nas cinzas frias . Petrificou-se mais , petrificou-se mais ainda , e a figura curva exprime , na imobilidade trágica , sonho e desespero , dor e desespero , noite e desespero ... 20 de Dezembro Que há dentro deste ser , que não tem limites ? que há dentro deste ser de real e verdadeiro ? Cada um assume proporções temerosas . Caem lá dentro palavras , sentimentos , sonho -- é um poço sem fundo , que vai até à raiz da vida . Á superfície todos nós nos conhecemos . Depois há outra camada , outra depois . Depois um bafo .