ABEL BOTELHO AMANHà -- Essa ceia está pronta ? -- perguntou enfastiado o Serafim , cuja figura esgalgada e curva , tendo vencido o último degrau da escada , assomava oscilando à porta da cozinha . -- Há que tempos ! -- respondeu-lhe , sem o olhar , uma mulherita atarracada e bruna , que no vão da chaminé , à esquerda da porta , mesmo junto à esquina , de candeia suspensa da mão esquerda mexia um tacho de barro fumando sobre e fogareiro . -- Bem ... vamos então a aviar ! -- comandou o operário , numa leve impaciência , atirando o corpo descadeirado e longo para cima de um mocho de pinho , de encontro à mesa , do outro lado da porta de entrada , e projetando o chapéu com arremesso . -- É para já ! -- acudiu de salto a mulher , enquanto lhe vinha perto pendurar a candeia , de um grande prego enferrujado . A seguir , foi à chaminé , voltou , e fitando agora firme o Serafim , inquiria , com um significativo ar , quando na frente lhe punha , sobre a gordura gretada das tabuas ressequidas , o tacho fumegante : -- Vens-lhe com gana hoje . -- Mas gana de quê ? ... -- logo repontou o Serafim , enviesando malevolamente os olhos . -- Ora de que há de ser ? ... De tasquinhar . E ainda bem ! Dizendo , a ladina da Clara rodopiava ligeira no acanhado aposento , descendo do armário e dispondo na mesa dois pratos de barro , singelamente vidrados a branco e a sua franja de azul nos bordos , depois colheres e garfos de chumbo , pão , um pires esbeiçado com azeitonas . E então , com o mesmo ar finório , as costas da mão sobre a mesa : -- A não ser que tu ... sim ... lá tenhas outro sentido . -- A cara patibular do Serafim torcia-se num sorrisinho implicante . E a mulher a insistir : -- Não sei o que te acho ! Estás-me assim a modo campeiro ... E tu estás muito doutora ... Cada um é como Deus o fez ... Senta-te ! -- gritou com ímpeto o Serafim , fuzilando-lhe um relâmpago de cólera na abaçanada frouxidão dos olhos . E arrastou ainda , numa sorna de ameaça : -- Nós temos festa ... -- Depois imperiosamente a repetir : -- Então ! Ao que a mulherita prontamente obedeceu , trazendo cadeira para junto do seu homem , e dando-lhe ao sentar-se um amorável repelão no braço : -- Mostrengo ! Mas , insensível , o Serafim lançava do tacho para o prato e sorvia automaticamente , sem vontade , sem prazer , uma negra e triste aguadilha , mosqueada de olhitos de azeite , condensando na frialdade do ambiente um vapor nauseabundo , e de cuja dessorada fluidez a quando e quando emergia a ironia cortical de um feijão , ou a coriácea insipidez de alguma couve saloia da sua banda a Clara imitava-o , atacando também , mas de longe , como quem se despacha de uma fastidiosa obrigação , o sujo tacho requeimado ; e para isto estendia o braço direito , todo longo , e sobre o antebraço esquerdo em repouso tinha o avental colhido no regaço . Então , durante alguns minutos , num silêncio ao mesmo tempo desalentado é ávido , em alternativas cruéis de voracidade e fastio , de anorexia e de fome , trataram os dois de filosoficamente iludir a sua irremediável condição de insaciados . A boa da Clara , se de acaso a sua colher extraía do tacho algum feijão mais inteiro , algum tórosito mais tenro , ia e deitava-os , com amorosa isenção , no prato do companheiro , que , insensível e cabisbaixo , sorvia sempre a insulsa mistela , com ruido . Projetada de alto , a luz incerta e lívida da candeia prolongava-lhes as magoadas figuras num destaque violento e enternecido . Eram bem duas criaturas de azar , dois enjeitados da sorte , derreados a poder de privações e sofrimento , -- ele com c ? Longo dorso alcachinado , onde , escorchadas com anatómico rigor , as omoplatas cavavam esqueléticas sombras , e com os braços moles , escalavradas , roxas as mãos , a face estirada e verde ; ela com as suas espaduas muito redondas , a sua cor ardente de canela e a vida arrogante dos seus olhos lutando ainda contra a consumpção , cujo triunfante estrago se acusava já bem palpável na ósseo apontar das articulações , nos grandes seios sem vôo , nas miuditas rugas precoces e no fundo bistre das olheiras . A luz titubeante da candeia estirava num realce cruel todos estes sinais patentes de ruina ; e afusando ao alto seu grosso penacho de fumo , passeava em volta caprichosos cancans de sombras pela nua desolação das paredes encardidas . A mobília era rudimentar : alguns mochos claudicantes , uma grande mala de pau , duas cadeiras estripadas . Á ilharga da mesa onde os dois comiam , via-se uma porta entreaberta , dando para qualquer repartimento interior . Na parede ao lado , fronteira à porta por onde o Serafim entrara , havia uma outra mesa , com gavetas , igualmente de pinho , igualmente suja , também por igual flanqueada por uma portita ao lado ; na parede seguinte , notava-se um armário , uma janela , e a para a junto da chaminé . Ao alto , no estuque fumarento do teto , dançavam sanefas de teias de aranha , prenhes de pó , e negrejava , por milhares , um constelado planisfério de dejeções de moscas . Da cornija da chaminé para a quina oposta , suspensa em diagonal , bamboava uma corda com roupa . E na janela que dava para o quinteiro , junto da lareira , vinham de espaço a espaço , vergados pelo vento , esqueletos de árvores arranhar os vidros fuliginosos . Quando terminava , um calefrio correu o corpo fruste do Serafim , que , aconchegando com as duas mãos a jaleca , lamuriou : Sempre está um raio de um tempo ! Chove . Não , agora não ... Mas debaixo , do rio , vêm um barbeirinho de respeito ! -- Pois , olha , eu estou com calor ! -- retorquiu-lhe num jeito agreste a companheira , erguendo as duas mãos também ao cabeção do chambre de chita , de miuditas ramagens , que desabotoou e esgorjou , num assoprado alívio . Tens calor ? ... Eu logo vi ... Quem te coçasse bem , minha cabra ! Estás tolo ! -- contestou , a fazer de agastada , a Clara , acudindo com outro significativo beliscão , e este na coxa , do Serafim , a quem encarou com lascívia . Mas ele , sem a ver , arredando o prato : Que mais há . Mais ? ... Só se for o resto dos carapaus do jantar . E louvar a Deus , hein ? ... -- comentou o Serafim , numa dolorosa ironia . Então ? ... -- fez a mulher , encolhendo num protesto de inocência os ombros . Ora valha-te o demo ! Meu rico ! Não estamos em tempo de milagres ... Ora essa ... Muito faço eu ! -- Bem , bem ... Venha de lá o que houver ! Aplacada , a Clara tirou a si a gaveta da mesa e sacou de dentro , postos a monte sobre um número amarrotado do Seculo , uma meia dúzia de carapaus fritos . Espalmados , moles , tinham um aspeto repugnante , escabiosos de purulências brancas , nadando numa suja e crassa oleosidade , que repassava ao papel em areolas negras . Não obstante , resignadamente , o Serafim tomou um e levou-o de manso com as mãos aos dentes , ao tempo que sobre a mesa procuravam o que quer que fosse com sofreguidão os seus olhos desvairados . -- Clara ! O que falta aqui ? ... A rapariga , imóvel , não respondeu . Não ouves . Sou de gesso ... -- respondeu ela , conciliadora , ensaiando sorrir . Ele porém volveu , ameaçador : -- Tu queres que eu te apalpe ! Ao que a Clara , numa revolta , erguendo-se : -- Ai , ai , ai ! ... A modos que vens hoje com muita fajéca ... Pois fica sabendo que não me metes medo nenhum ! -- Dá-me vinho , Clara ! -- insistiu de sobrecenho , numa aparente serenidade , o Serafim . -- Não há ... Pois vai por ele ! Onde ? ... Aqui o Serafim , rôta a paciência , ergueu-se de salto , com estrondo , e atenazando com força , numa grande osga malfazeja , os pulsos da mulher : -- Vais ou não vais ? ... -- Depois , numa crescente onda de raiva , mandou-lhe a mão estendida contra a face , o que a fez ir de recuo até à chaminé , cambaleando . -- Raios te partam ! -- Bruto ! Animal ! Não tenho medo , não ... Ainda que me mates ! -- gaguejou Clara , esbraseada , ofegante , com as mãos pendulando em assomos de vingança e os olhos enresinados . -- É este o pago que você me dá ? ... Estes homens ! ... Sim , porque você está farto de saber que eu , se lhe nego o vinho , é para seu bem ... é pro não ver mais estragado do que você já está , seu traste ! -- Lérias ! -- comentou cinicamente , de olhos no chão , o Serafim . Veio de dentro , pela porta da direita , um choro alto de criança . E a Clara , agora já com uma leve tinta amorável na expressão : Você bem sabe o mal que o vinho lhe faz . Quando é demais ... Não que tu não te contentas com pouco ! Puseste-te fresco ! ... Deixaste esse vicio tomar-te posse do corpo , de sorte que agora , em vez de reconheceres o bem que te fazem , qual história ! Ainda em cima refilas ... Lambada para cima ! São todos assim ... E eu é que sou tola ... É bem feito ! Que eu devia mas era deixa-lo a você enfrascar-se à vontade ... e depois , se o diabo te levasse ... ora ! Mais depressa me via livre de ti . Clara ! Clara ! Não mo atentes mais ... Que demónio de chinfrim é este ? ... -- acudiu de relance , apontando da porta da direita , uma rapariguita aganada e débil , ruço o cabelo , os ombros ladeiros , o peito raso , mal agouradas hepatizações na face , e uma bondade escampe água tintada na garça translucidez dos olhos . -- Cá estão vocês outra vez pegados ! Ora , ora ... Acordaram-me a pequena ... Valha-as Deus ! Dizendo , avançara a enlaçar Clara afetuosamente , enquanto num piedoso olhar de reprimenda continha em respeito o Serafim . -- Ó Sra.||_Ana Ana|_Ana , -- acudiu logo este , embrulhando a fala , meio vexado , -- veja vossemecê se isto não é de razão ? ... Este raio apura-me a paciência ! E insofrida a Clara : Ó Deus do céu ! Mas que homem ... Mas então que foi ? ... -- disse Ana com doçura . Então não se lhe meteu agora em cabeça a este diabo acostumar-me a que eu coma sem beber ! -- voltou à carga , adiantando-se , o Serafim . Encarando alternamente os dois , numa amorável censura , numa carinhosa visagem maternal , Ana sorria ... Da mesma porta por onde ela entrara , uma pequenita dos seus cinco anos veio agora e num timorato jeito , abrindo de pavor os olhos , afogou-lhe o rosto na saia , com os dedos muito agarrados . Protectoramente , a Ana baixou a mão a afagar-lhe os cabelos de oiro . Entretanto o Serafim , forte na sua implacável rezinga , disse : -- Chega um homem ralado , moído de trabalho ... e é isto ! Em vez do descanso de que tanto precisa , vai e fazem-lhe um inferno ! E num descoroçoamento infantil , baixando a cabeça e abatendo os ombros , de novo amarfanhou o descadeirado arcaboiço sobre o mocho , ao canto , junto da mesa . Então a Clara , vendo que se havia dissipado a tempestade , afastou-se da vizinha , e , suasiva , amigável , tratou de explicar : -- Ó homem ! Mas se eu já te disse ... agora , ainda que te quisesse dar vinho , não o tenho ! -- Lá do seu canto , o Serafim teve um gesto incrédulo . -- Não tenho ! Palavra ... Correu ao armário , e sacolejando bem no espaço e voltando de gargalo ao fundo , uma após outra , quantas garrafas aí tinha : -- Vês ? ... Nem pinga ! Ante a irrecusável evidencia , subjugado , o Serafim dobrou mais a espinha e sobre a comissura da boca o bigode fino e ralo estirou-se-lhe , num desalento . Mas providencialmente aqui acudiu a Ana . Foi despedida ao seu armário , junto à janela , com a filhita presa sempre à saia ; tomou de uma prateleira uma garrafa com vinho ; e prantando-a em cheio , com um copo , na mesa em frente do Serafim : -- Lá por isso não seja a dúvida ! Pronto ! Têm aqui do nosso . Ao ver assim de improviso , diante de si , o cubicado , o imprescindível licor , o derreado tanoeiro aprumou-se , mordido de uma comoção galvânica . Logo as mãos avançaram a tatear a garrafa , numa desconfiança , enquanto se lhe esbugalhavam , muito secos do prazer , os olhos , e com a língua a crescer dentro dos beiços ávidos , mal conseguia entaramelar : -- Ob ... obrigado , vizinha ! -- Depois , achincalhadoramente , para Clara : -- Toma conta , vês ? ... Isto sim ! Isto é que é mulher ... Numa passiva desaprovação , a Clara , em pé contra a parede , cruzara os braços no regaço . E o Serafim , depois que bebeu o primeiro copo , num indizível bem-estar , consolado e tranquilo , perguntou : Então esse Esticado ainda não veio ? ... É verdade ... -- respondeu Ana , contrafeita . -- Muito longe se lhe fez hoje o largo do Assucar ! Ao tempo , uma furiosa rajada de vento , prestes a apagar a candeia , irrompeu da porta da escada , aberta , e silvou pelas frinchas mal vedadas ; e logo uma violenta corda de água fustigava através os vidros da janela e tamborinava fora , na claraboia , com estrondo . Ena , como chove ! -- exclamou Clara . Assim , como há de ele romper ? ... -- acrescentou Ana , abrindo compassivamente os olhos . -- Safa ! É isto que veem ! -- vociferou então , esbofado e entrando de ímpeto , o Esticado , um belo e forte rapaz , alto e moreno , cabelo crespo , narinas fogosas , farto bigode negro , solido o tronco nas pernas robustas . -- Raios parta minha vida ! Ai ! Filho ... -- lamentou Ana , erguendo as mãos . -- Vens uma sopa ! Tira-te , que te encharcas ... -- volveu meigo o mocetão para a filhita , que tinha ido carinhosa enlaçar-se-lhe ás pernas . E , com ela pela mão , avançou à porta da direita . Vinha literal mente a pingar . No ponto do soalho onde parara um momento , negrejava uma poça de água . A boina cinzenta , a blusa de ganga azul e por baixo desta a camisola de lã , as mesmas calças de riscado , empapadas e moles , modelavam-lhe a musculatura com vigor . Luzidio e fresco , parecia o bigode camarinhado de pérolas . -- Olha do que eu me livrei ! -- murmurou regalado o Serafim . E o Esticado , já conformado e risonho : Isto em mim é a pouca sorte ! Avia-te ! -- gritava-lhe a mulher , de dentro , no compartimento da direita . O Esticado seguiu logo . -- Era uma pequena sala , aceiadita e quadrada , rudimentarmente lambuzada a vermelho , com duas janelas abrindo para à rua . O melhor compartimento da casa . Lisas cortinas de cassa branca resguardavam as vidraças . Acusava bem o soalho , na sua cor açafroada e macia , o uso constante da potassa . Á esquerda de quem entrava , via-se uma porta de alcova , e , a seguir , a indispensável comoda de pinho envernizado , com a sua toalha de chita com folho ; em cima , um candeeiro a petróleo , de latão , aceso , duas jarrinhas de vidro azuloio com flores de papel , várias bugigangas de cartão , um cesto de costura , e um espelhito de moldura doirada oblíquo contra a parede , da qual pequenas fotografias pendiam , em molduras de palha a cores , entrançada , tendo nos ângulos grandes laços vermelhos . Depois , mais longe , no recanto à direita , salientava em angulo reto um pequeno espaço retangular , formando vão , e correspondente à caixa da escada do prédio , sobre o qual , como num estrado , se acomodava diretamente uma cama . Daí voltou a lamuriar , mais imperioso e alto , o mesmo choro insistente de criança . Logo , muito solícita , a Ana acudiu ; e erguendo da cama uma criancita de meses , que beijou com efusão , enquanto a embrulhava num velho saiote seu , de baetilha , veio com desvanecimento oferecê-la ao pai , que , beijocando-a também : Então esta berrélas está acordada . Olha , foi obra ali dos vizinhos ... -- disse Ana , baixando a voz e indicando a cozinha . Como . A bulharem , como de costume ! Complacente , o Esticado teve um sorriso de piedade ; e deixando-se cair , à ilharga da cama , sobre um grande canapé de palhinha , estripado , tirou então pachorrentamente a boina , a blusa e as calças , sacudindo a cada momento as mãos , em vagas , expirações de arrelia . Aa lado dele , interessada e imóvel , com o queixinho apoiado na mão e o cotovelo finque no braço do canapé , a filha mais velha , lembrando um arcanjo rafaelesco , seguia-lhe carinhosa os movimentos com uns grandes olhos compadecidos . Quando viu o homem em camisola e ceroulas , apoquentada sinceramente , disse Ana : Mas que hás de tu vestir agora ? ... Valha-me Deus ! Então a outra blusa . Lavei-a há bocado ... Está lá fora , a enxugar . E a jaqueta de ver a Deus . Sempre com a filhita ao colo , Ana estendeu ao marido umas calças que tirara da comoda , e baixou os olhos , sem responder . -- Ah , sim ... está no prego ! A guarda-roupa dos pobres ... -- obtemperou o Esticado , com amargura . -- Não me lembrava , mulher ... É sina ! -- Depois , com a mais estoica resignação , erguendo-se : -- Bem olha ... A camisola escapa , fico com ela ... Deita-me o teu chale pelas costas . Por agora , remedeia ! Com um sorriso triste , soltou Ana da escapola , que o sustinha , o seu esfiampado chale cor de cinza e passou-o aos ombros do marido , que com uma forçada animação , mirando-se : Então , que tal ? ... Quem me dera o teu génio ! Não estou nada mau ... E , num saracoteio de troça , já todo faceiro o-Esticado saía para a cozinha , com a pequena lida segura aos restos de franja do chale , e atrás a Ana com a outra filhita ao colo e o candeeiro na mão . Mal que naquele preparo o virara , a Clara e o Serafim não se puderam ter que não rompessem , mandíbula batente , a rir . E , muito desvanecido , o Esticado , dessa mesma zombeteira acolhida tirando estimulo : -- Estou um bom pãozinho , hein ? ... para fazer rente a um guita ? -- Mas de repente , sério , arrumando-se num cansaço contra a sua mesa , sobre a qual poisara a Ana o candeeiro , suspirou : Ai ! Ai ! ... não há remédio senão fazer a gente gala na miséria ... -- Depois , quadrando-se na cadeira e arranjando ao lado lugar à filha : -- Vamos nós mas é fazer bem ao estomago ... enquanto há que comer ! A Ana fora à lareira , e punha agora diante do marido um tacho com comida . Trouxe talheres , o pão , o vinho , e sentou-se também , sempre ao colo com a filha . Servem-se ? -- ofereceu o Esticado aos vizinhos . Obrigado ... a nossa já cá canta , -- respondeu , do seu canto , o Serafim , enrolando um cigarro com a folha da navalha , que sacara do bolso . A Clara , essa , parecendo-lhe haver agora ali demasiado luxo de iluminação , apagou a sua candeia . Entretanto o Esticado , com a mais patente voracidade , passava ao prato e rapidamente deglutia o guisado que tinha diante de si , fumegando , -- inclassificável miscelânea de ossos , gorduras , alguma batata , muito tomate e nacos de chouriço . Enquanto comia , disse para o Serafim : -- Esta só pelo diabo ! Hein ? ... com uma noite assim , como há de a gente ir ? ... -- Onde é que vocês vão ? ... -- acudiu logo a Clara . E o Serafim , com mau modo : -- Não é da sua conta ! Mas já o outro inquiria com interesse a mulher : Tua mãe não quer comer . Não ... Coitada ! Desconfio que está pior . Tinha feito o prato à Idazita , e , soltando o lenço de lã cor de chocolate , que um alfinete lhe mantinha trespassado sobre o seio escasso , deu o peito à filhinha que tinha nos braços , e procurou também comer . Anda , come , mulher ! -- incitava o marido com meiguice . Não posso ... Asneiras ! -- Se tu tivesses a dor que eu tenho ... Vai-me do peito ás costas ! E , de cotovelo na mesa , a pobre Ana dobrava-se toda , extenuada , febril , pela implacável sucção da filha . Na sua instintiva logica infantil , a Idazita entendeu que não precisava de garfo , visto que as suas mãos tinham dedos . Mas o pai , dando-lhe uma forte palmada : -- Menina ! Então ... Tenha propósito ! Não me seja porca . A mãe acudiu logo em defesa da inocente . E o pai , com violência , assentando de ímpeto o punho fechado sobre a mesa , num trejeito de enfado : -- Aí está para que nos serve esta praga ! Deus me perdoe ... Nem uma pessoa é senhor de comer descansado ! Vamos a querer-lhes dar educação e logo saltam as mães com a água benta ... Forte estopada ! -- Ó homem ! Deixa o anjinho ... -- suplicou Ana com invocativa ternura , passando os dedos emaciados pela cabecita de oiro de lida , em cujos olhos bailavam amimadamente lágrimas . -- Credo ! Até nos pode o céu castigar ... -- O céu ! O céu ! ... -- fez , desdenhoso e incrédulo , o mocetão , abanando os ombros . -- Olha , num inferno estamos mas é nós aqui , com esse raio dessa porta aberta ! E aconchegando o chale encarava oblíquo , para a esquerda , numa colérica visagem , a porta que dava para a escada . Correu logo a fecha-la a Clara , que continuava junto dela , em pé , arrumada de costas e espalmadas ás mãos contra a parede . -- Obrigado , vizinha ! -- retribuiu o Esticado , sem olhar , todo novamente dobrado sobre o prato . E , enquanto comia , voltando à rezinga anterior : -- Não , mas é que é assim ... até nesta obra dos filhos essa corja dos ricos têm sorte ! Vocês não veem ? ... Quantos não há , aí assim , a nadarem em dinheiro e sem filho nenhum ! E a má semente ... -- murmurou o Serafim . Nós cá então , os pobres , os da ralé , como eles nos chamam ... sem mantença que chegue não que nem sequer para nós , e é isto ... E apontava as duas filhas . -- Cada cavadela , cada minhoca ! -- Deixa , homem ... -- observou Ana com doçura . -- Tudo o que vêm é para bem ! Depois de uns minutos de silêncio , voltara-se agora o Esticado , tendo acabado de comer , para o Serafim ; e enquanto inflamava a ponta do cigarro ao alto da chaminé do candeeiro : Então a gente vai , ou não vai ? ... Deixa ver se pára a chuva . Ele o vento cada vez é mais ... E tanto fez fechar a porta como nada ! Olha , olha ... Raio -- casa ! É que continuava lufando com violência o vento , que varria em todas as direções a quadra , entrando pelas numerosas fisgas e juntas imperfeitas . Vinha assim da escada , a espaçados ímpetos , um forte cheiro a bacalhau assado , ao tempo que também , soprada em tremiculosas ampliações e prestes a apagar-se , crescia agitadamente a chama do candeeiro . Entretanto , o tanoeiro explicava : -- Então ? ... tu bem sabes que todas estas casas aqui da Belavista foram feitas quando foi da nossa greve ... Fizeram-na asseada ! Pudera ! Nem nós sabíamos da poda , nem as madeiras eram próprias . Foi um simples remedeio , para nos entreterem , para nos darem que fazer . E então vocês arranjaram estas indecentes barracas ! Pois sim , mas o senhorio leva bom dinheiro por elas ! -- apostrofou a Clara com decisão . -- Almas do diabo ! -- rosnou o Esticado , quase impercetivelmente , crispando numa ameaça os punhos e repregando os olhos . O Serafim foi à janela , e depois de investigar um momento para o exterior : -- Espera ... o vento parece que quer rondar ao norte . Isto ainda se compõe ... -- E voltando para o seu canto predileto : -- É verdade , ó Clara , olha lá ... tu é que podes dizer à gente ... Que faixa tem o novo contramestre lá da fábrica . Quem , o Sr.||_Mateus Mateus|_Mateus ? ... É um homem muito bem parecido ! Eu ainda o não vi . Há que tempos que não vou para esses lados ! -- disse Ana naturalmente , com a filhita ao colo , movendo os joelhos num carinhoso embalo , sentada junto da mesa , onde poisava , sobre as mãos , a loira cabecita da lida adormecida . O Serafim disse : Gostam lá dele . Muito ! Homens e mulheres . Toda a gente . Porque diabo é isso ? ... -- interveio o Esticado , dobrando com interesse o busto nos joelhos . -- Tem muito bom modo , sim senhor ... E então umas falas ! Um modo de dizer as coisas , tão bom , tão claro , tão lindo , que parece que vêm direito ao interior da gente ! -- Que bem informada que tu estás ! -- Ah , não quele vai lá aos teares , muita vez ... Trata muito bem a gente ... E tão senhoril , tão principal ! Ele é que parece o patrão . Com um ar desconfiado , disse então o Serafim para o amigo : Que te parece ? ... Sabe-a toda ! Tem querença para as mulheres , o ladrão ! A mim cheira-me mas é a que o maroto usa de manhas de jesuíta ... Já me não agrada ! -- Não , homem ... deixa ver ! E , dizendo , o Serafim voltara à janela : -- Olha ! Já vejo estrelas ... Vamos ? ... O Esticado pôs-se em pé , e num lastimoso acento , mirando-se e sorrindo : Mas como ? ... Não saias ... -- ainda insinuou Ana docemente . Se tu queres , -- ofereceu com vivacidade o Serafim , cujos olhos brilhavam de uma ansia doentia , -- tenho aí um casaco de pano que outro dia comprei na Feira da Ladra . Ainda nem o estreei ... Está-me largo , deve-te servir . -- Venha de lá isso ! -- exclamou o Esticado , jucundo , de rompante , arremessando para a cadeira o chale e retesando num aprumo viril os braços ; ao tempo que as duas mulheres trocavam um olhar de muda submissão , contrariadas . -- Ciara ! Despacha-te ... dá cá essa coisa ! -- disse então com império o Serafim para a mulher , que atarefada se sentia remexer roupa , dentro , na alcova junto à janela . E como demorava a aparecer : -- Deixa ! Que tu não dás com ele . Por seu turno entrou , e daí a instantes voltava , com a Clara seguindo-o , e suspenso na mão o casaco , que o Esticado enfiou num pronto . Ora ! Está ótimo ... Parece que foi feito para mim ! Nem um fidalgo , sim senhor ! -- aplaudia o Serafim , batendo as mãos . Bem ... vamos lá ! -- disse com decisão o caixoteiro , já de chapéu na cabeça , abrindo a porta . -- A que horas vens ? -- perguntou-lhe Ana , no patamar , enquanto iluminava . Sei lá ! Não , diz ... Sempre gosto de saber . -- Não sei , mulher ... que seca ! Quando vier , cá me encontras ... Deita-te ... Fechem bem a porta ! -- Valha-me Nossa Senhora ! -- suspirou resignadamente , recolhendo com a luz , a rapariga . Chegados agora ao fundo da escada os dois companheiros , pararam um momento à porta , já os pés assentes na soleira , pregados numa incerteza perante a vaga escuridão da noite . Vamos a direito ? -- perguntou o Serafim . Não ... -- acudiu logo , acendendo outro cigarro , o Esticado . -- Vamos aqui primeiro pela ilha do Grilo , buscar o Manaio . O Silvério diz que também quer ir . Ó homem , vê lá ... Fico por ele ! Bem ... Se aquele bolha do Ventura se decidisse a vir também e deixasse as raparigas em paz por hoje ! Isso sim ! Era um socio de primeira ordem para a coisa ... Com aquela esperteza , aquele génio ! Mal empregado rapaz ! Assim discorrendo , os dois avançavam de manso pelo macadam da rua larga e mal iluminada , derreados e mãos nos bolsos , chapinhando na lama . Ao cabo da rua , aí onde isolado se erguia um pequeno prédio em osso , -- provisoria construção ainda por concluir e já tombando em ruina , -- tomaram à esquerda , internando-se então ás terras , por um estreito carreiro valeirado no terreno natural , anfractuoso , irregular , cada vez mais cavado descendo entre áridos taludes negros . Aqui a iluminação municipal acabara-se ; o último lampião tinham-no eles já deixado nas costas , soldado à esquina , contra a taipa desnuda do prédio em osso , cuja desamparada armação se riscava com trágica violência no espaço , como uma forca . De sorte que se adiantavam com crescentes precauções , a cabeça baixa aproada ao nordeste e sumida té aos olhos a face nas golas levantadas , enquanto essa luz rasa e agonizante lhes estirava para a frente indefinidamente as sombras , ao longo da viscosidade barrenta do caminho . A um angulo mais escuso , o Serafim parou : Não enxergo nada , que raio ! Não tens mais cigarros ? ... Toma ! -- ofereceu-lhe o companheiro . O tanoeiro aproximou-se , acendeu ; depois reataram a andar , e esclareciam agora o caminho , alternam ente puxando a brasa dos cigarros . Em volta deles , Ãquela hora desabrida e triste , alastrava uma implacável toalha de sombra ... a obscuridade , o silêncio , a desolação eram completas . Na álgida pacificação da noite apenas ressoava , pegajoso , espaçado , o chlap , chlap do seu calcar na estrada . E , por cada fumaça que tiravam , instantâneas na sua frente as poças de água luziam como espelhos . Como o caminho seguia cavado sinuosando pelo dorso do outeiro , a um e outro lado o instinto dos dois adivinhava um largo desdobramento de aspetos , panorâmicas distribuições que lhes eram familiares , os extensos e variados panos de perspetiva a que tão afeitos andavam os seus olhos extenuados . -- Assim , para a esquerda pressentia-se um amontoamento vago de construções , a vida industrial empilhada e intensa , como que um grande formigueiro em repouso , a leviatanesca fecundação da miséria e do trabalho ; claraboias , telhados , armazéns , alpendres , longas blindagens de zinco mordidas de oliveiras , apontavam de escorço nesse imenso anfiteatro , que descia a quebrar-se abruptamente , em duras linhas caprichosas , no manso estanho horizontal do Tejo . Para a direita , rasgava-se-lhes no flanco a violenta curva da linha-férrea de cintura , ao longe barrava o horizonte uma chapada negra , e entre estas duas projeções de tinta , mais opaco ainda e mais negro , se era possível , corria como um traço o estreito vale de Chelas , picado aqui e ali de luzitas distantes , como pirilampos , e com a fiada valente das suas fábricas adormecidas acusada apenas pela floresta das chaminés , que em esfumaçamentos de cinza se aprumavam num arranque triunfal para o Infinito , sob o peneiramento lucido das estrelas . Agora , súbito , o talude natural das terras interrompia-se , continuado como que por um duplo muro vertical , alto e seguido , num paralelismo linear , formando rua . Tomando por ela , os dois internaram-se numa espécie de corredor de Penitenciaria , negro claustro aberto à noite , velha catacumba desterroada , a qual mergulhava por igual na treva e em cujas misteriosas entranhas arfavam gemidos vagos , tremulava o dolorido murmúrio de um grosso resfolgar humano ... Estavam na ilha do Grilo . -- Um duplo renque de casebres , de singela madeira e taipa , mal armados , imundos , quase sem beirais , sem forros , sem vidraças , todos riscados no mesmo padrão , com a mesma feição patibular , todos calcados no anonimato peculiar ás coisas ínfimas . Assim como era um , eram todos . Rés do chão e um andar : em baixo , alternadamente , uma janela e uma porta ; em cima uma sucessão monótona de janelas . Mas nem as portas tinham resguardo , nem as janelas caixilhos por onde entrava a luz , havia de entrar também o vento , a chuva , o frio , o calor , toda a sorte de inclemência . As paredes eram uma casca de noz , os alicerces uma abstração , a segurança um mito , a higiene um impossível . Aberta , cada uma destas reles barracas era uma praça ; fechada , era um túmulo . E túmulo com carneiros , pavorosamente cavado em subterrâneas ramificações , a avaliar pelas exíguas frestas que no seu carcomido rodapé tenuemente luziam , aqui , ali , mesmo à raiz da terra . Ao longo de toda a ilha alastrava a mesma grossa e vaga escuridão do campo . Apenas , a intervalos irregulares , algumas raras janelas , como vazias órbitas de espetros , radiavam lívidos luaceiros na absorvente espessidão da sombra . O piso , talhado no terreno natural , era um misto traiçoeiro e imundo de restos de comida , dejetos de toda a sorte , cacos , barro , cisco , cascalho e lama . Na grande valia longitudinal fermentavam acidamente as podridões . Havia um cheiro acre e nauseante , cumulativamente a hospício , a curral e a cemitério . E dessa sórdida promiscuidade animal , dessa fruste aglomeração de miseráveis , subia para a frialdade inerte do ar , dançando nas infetas emanações de caneiro insalubres harmonias , um como surdo verrumar de febre , um atormentado e bárbaro concerto , feito ao mesmo tempo de pragas , risos , lamentações , balidos de cabras , mugidos de vacas , grunhidos de porcos , latidos de cães e choros de crianças . O Esticado parou junto de uma das portas , à esquerda , e pondo o pé no degrau , bateu : Ó Manaio ! Quem é ? ... -- rompeu de dentro uma voz rouquenha . Manaio ! Abre ... Uma pequena cabeça grisalha assomou ao postigo , desconfiada . -- Ah , são vocês ? ... Entrem ! E o mesmo homem pequenino e curvo , logo cobrada a confiança , escancarava a porta para o interior da sua misérrima toca . -- Um acanhado recinto , surrado e negro , simultaneamente sala e cozinha , atramochado de coisas sem brilho , pelintras , reles , a mais formal negação do asseio e do conforto . Em cima da mesa havia um candeeiro de petróleo , de folha , com a chaminé partida . Junto à lareira , sobre uma arca , enovelava-se uma velha com um gato ao colo . E num recanto à esquerda , protegida por um ténue resto de cortina de chita , farpada , correndo sobre uma corda , jazia uma enxerga ignóbil afogada num monte de farrapos , entre os quais aflitivamente se debatia estrebuchando , arfando , como tenalhada nas garras imateriais de algum pesadelo , uma rapariguita apenas núbil , esgalgada , anémica , o cabelo raro e sem brilho , afilado e branco o nariz , e uns grandes olhos cor de cinza no rosto oblongo , mordido das bexigas . -- O Manaio insistiu : -- Então vocês não entram . Mas logo , sem perder tempo a entrar , o Esticado : Queres vir . Merecerá ele a pena ? ... Eu cá estou que sim ... -- apoiou o Serafim , com a pupila num fulgor de esperança . -- Ó filhos ! é que eu já estou tão escaldado de fantochadas destas ... -- objetou o Manaio ; e depois de uma breve hesitação : -- Enfim ! Como vamos todos de paródia ... Tornou dentro , à alcova , e reaparecendo logo de chapéu na cabeça e um velho xaile-manta pelos ombros : Vamos lá ! Não saias , homem ! -- observou-lhe mansamente , imóvel no seu púlpito , a mulher . Fitou-a o Manaio de rancor , sem responder , e encaminhou-se à porta ; ao que ela , projetando longe o gato e saltando a segurar-lhe a franja do chale : -- Onde é que tu vais ? Não ouves . O homúnculo sacudiu-a , num arremesso : -- Larga-me ! ... Olha essa rapariga Fecha a porta ! -- E , já fora , arreliado e tateando à cautela o espaço , enquanto enterrava os pés no lamaçal : -- Ora o diabo da tarasca ! Tinham os três dado alguns passos no escuro , quando com o Esticado esbarrou um vulto desempenado e esbelto , cujos grandes olhos ardentes cintilavam na treva como carbúnculos , e que no mesmo sentido deles seguia , porém mais depressa . Ó Ventura ! és tu ? ... Adeus ! Seus bandidos ... Não vens até Marvila ? -- arriscou-lhe ao ouvido o Serafim . -- Se eu fosse tolo ! -- E , perante o desapontado gesto do tanoeiro : -- Nada ! Não acho graça a homens ... Vou-me mas é bater té à fonte da Samaritana . -- com uma noite destas ? ... -- Pro amor são as melhores ! -- E com inflexões de sátiro , baixando a voz , para o Serafim , a quem apertava nervosamente o braço : -- Demais a mais , hoje tenho lá coisa ... daqui ! -- Premia lascarinamente o lóbulo da orelha , e explicava , a seguir : -- Uma petizita dos Fósforos ... em primeira mão , dizem ... Anda a meter-se-me à cara , mesmo perdidinha por mim ! Não te dói a consciência , meu traste . Então ! Se há de ser outro ... O diabo te de o que te falta ! -- resmoneou o Manaio , enfadado . Ah , por enquanto , não falta , não ... graças a Deus ! Olha que africa ! -- desdenhoso comentou o Esticado . Adeus ! Adeus ! E , assobiando e saltando , o Ventura desceu a rua e breve o seu ágil perfil desaparecia na sombra . Não tem emenda , este ladrão ! . Anda aqui ao Silvério ... -- dizia para o Manaio o Esticado tomando-lhe do braço . Olha que eu não sei se ele virá ... Porquê ? ... Aquele mulherio todo tem lá feito hoje um inferno ! Diabos as levem ! ... Não era eu ... Mas é que capaz de não vir ! Era até uma Providencia ! -- arriscou , muito intencional , o Serafim . Mas que cisma que tu tens com o homem ! -- retorquiu logo , numa exaltação , o Esticado . -- Quem demónio te azoinou assim ? ... Olha que ele não é o que tu pensas ... Vamos sempre lá a ver ! E , seguido dos dois companheiros , silenciosos , o caixoteiro demandou , com uma rápida segurança de familiar , uma porta que estava entreaberta , quase ao cabo da ilha . Licença a três , seu Silvério ! Á vontade , amigos ! -- disse de dentro uma voz pausada e cheia . Ao convite , o Esticado fez rodar a porta e entrou , enquanto , suspensos no limiar , com um pé sobre o degrau , os outros dois encaravam num confrangimento de tédio o desordenado e torpe interior da locanda . -- Aberta a porta , logo de dentro vaporou este cheiro peculiar , relentado e doce , denunciativo de grande acumulação de mulheres numa casa . Ao fundo , contra a parede salitrosa e verde , abancava junto à mesa o Silvério , tipo flácido de gordo , muito branco , timpânico o abdómen , as carnes empapadas , o cabelo ruivo já rareando , o nariz afogueado , e na larga insipidez da face rolando lascivos uns pequeninos olhos negros . Ele tinha ao lado , sobre a mesa , uma botija de genebra , e com os dedos cruzados amparava o ventre , cuja obesa enormidade lhe fazia retesar opressivamente o busto , firmando na parede a nuca . Em volta , aos seus pés , todo o sobrado andava crassamente juncado de trapos multicores , dos mais diversos tecidos , das mais opostas procedências , porém todos por igual saturados de porcaria , realizando maravilhosas combinações de tons , de linhas , de relevo , como o mais imaginoso tecelão persa não lograria inventar , e sobre cuja andrajosa imundície seis criancitas , todas quase da mesma idade , refocilavam nuas , no abandono e na fome ... Também , de pé junto da mesa , em atitude mutuamente agressiva e ardendo-lhes de um lume odiento os olhos , viam-se três mulheres , todas novas , com um patente ar de família , todas de um traço de parentesco próximo por igual marcadas . O Esticado disse : Ó seu Silvério ! O dito , dito ... Cá estamos ! Ah , sim , eu vou ... -- disse moroso o confesso polígamo , deslaçando as mãos e espreguiçando-se . -- Estava a pôr esta bicharia na ordem ! Maliceiramente , olhando baixo as mulheres , o Esticado sorriu . E impaciente o Silvério , erguendo-se : Safa ! Que praga ... Dão comigo em doido ! Pudera ! ... e você para que é torto ? ... -- rompeu uma das mulheres com arrogância , crescendo para o Silvério , de mãos nos quadris e prolongando ameaçador o queixo . -- Torto porquê ? ... -- acudiu outra do lado , a mais velha , interpondo-se . Lá voltas tu ! Para que é isso bom ? ... Tudo porque o meu homem me deu uns reles dez tostões da féria , e a você não lhe deu nada . Já se deixa ver que sim ! Ó minha alma esganada ! Pois tu não vês que ele direitamente é meu e só meu ? ... que comigo é que ele foi à igreja . -- E tu não reparas que , se o padre lhes fez lá a vocês essa intrujice das rezas , eu não tenho menos direitos ? ... Tenho aqui assim , nada menos ! Três filhos ... Vês ? ... Isto não é nada . E num enternecido ímpeto puxava a si as crianças que largaram a chorar com medo . -- Quem te mandou pôr debaixo dele ? -- volveu a outra . -- Não quero cá saber ! Tanto é pai de uns , como de outros ... Tem igual obrigação ! -- Isso é que não tem ! Pachorrentamente , num vaidoso cinismo , tinha ido o Silvério , em silêncio , tomar o chapéu de sobro uma cadeira ; ao passo que o Esticado continuava a sorrir , escandalizado o Manaio retrocedera para a sombra da rua , e piedosamente o Serafim , embrulhando um cigarro : -- Para que uma mãe cria três filhas ! Mas agora adiantava-se a mais novita das três raparigas , e num lastimoso acento , a que emprestava eloquência a ruina precoce da sua figura : -- E então eu ? ... Vamos ! Eu é que estou primeiro que ninguém ! -- Espanto refilão das outras duas . -- Talvez não seja de razão ? ... Coitada ! Vocês têm saúde , estão capazes de trabalhar , podem ganha-lo ... enquanto eu , por me fiar nas araras deste senhor , lixei-me ... fiquei arruinada para toda a minha vida ! E num jeito doloroso , curva à frente , premia com as mãos o ventre , à altura dos ovários . -- Então , que querem vocês ? -- explicava conciliador , entre aquela lacrimosa tríade , o lamecha do Silvério . -- Isto tem de ir por partes ... Hoje uma , para semana outra ... Sempre assim foi ! O que eu ganho não dá para todas . Ora adeus ! Quisesses tu ... Silveriosinho da minha alma ! Não , não ... não posso ! Já disse . Nem vocês precisam ... Deixem-me ! -- Adiantou-se à porta , com o Esticado , -- E ala ! Que se faz tarde . -- Não , sem me dar alguma coisa é que você não vai ! -- exclamou resoluta a mais ribaldeira das três mulheres , barrando-lhe o caminho . -- E a mim também ... olé ! Tenho que ir à botica ! -- reforçou no mesmo tom a mais nova . -- Não dês ! Não dês ! -- gritou a terceira , de murro erguido ás irmãs , que abanou pro lado . Atreve-te , que te chego ! Você aqui não manda nada ! E num furioso ingranzéu , tomando roda à pacifica figura do Silvério , acotovelavam-se , injuriavam-se , fazendo-lhes coro o amedrentado grazinar dos pequenos . -- Ah , ele é isso ? ... -- exclamou por fim , rôta a paciência , o matulão . -- : Eu já vos arranjo ! -- Em duas musculosas braçadas desembaraçou-se , atravessou a quadra , com o Esticado adiante de si ; depois , já na soleira , puxou sobre si a porta , a que desandou a chave ; e , metendo-a na algibeira : -- Agora , chiai para aí ! Dizendo , saltou para a rua , numa grossa expiração de alívio , enquanto dentro rompia uma atroadora litania de maldições , acompanhada do reboante matraquear dos punhos abanando a porta . Que paciência que tu tens ! -- fez , num dó , o caixoteiro . São os meus pecados , homem ... Chegavam ao pé do Serafim e do Manaio . Aquele observou : Falta o Lourenço , das Varandas . Ele ficou de vir aqui ter ... -- aclarou o Silvério . Diabo ! Para irmos agora à vila Dias , faz-se tarde ... -- disse o tanoeiro , impaciente , profundando longe com o olhar o espaço . -- E ele que já conhece o gajo , de lá da fábrica ! -- disse o Manaio . -- Não se me dava de o ouvir primeiro . -- Ah , lo aqui vêm ! -- prorrompeu radiante o Serafim . E indicava um vulto tarraco e negro , que pela rampa em curva do fim da ilha vinha subindo , açodado . Ora vivam lá ! A que horas vens ! Tenham paciência ... Isto , ao sábado , sempre a gente ceia um pouco melhor ! Virá também alguém de Xabregas ? ... -- perguntou o Esticado . Provavelmente . Pois , olha , eu dispensava-os bem ! -- resmungou o Serafim . -- São muito burgueses demais ... querem-se folgados . Não gostam de se incomodar ! Agora , avançando os pés com precaução , os cinco operários desandaram , medindo a todo o comprimento a ilha , e voltando a percorrer toda a rua da Belavista ; depois , cortando ao alto a calçada do Grilo , internaram-se pela rua de Marvila , voltando novamente a marchar na mais completa escuridão , entre altos muros solitários . -- Na sua maior extensão a rua de Marvila , desprovida ainda de iluminação a gaz , era de noite servida por alguns escassos candeeiros de petróleo , que a camara dos Olivais mantinha . Naquela noite , porém , obra talvez do temporal , estavam apagados . O que fez , numa inquieta surpresa , o Lourenço observar : -- Diabo ! Marvila assim ás escuras ... Isto é um perigo ! E instintivamente os seus dedos nodosos procuravam a sevilhana no bolso da jaqueta . -- É que o Zé Pequeno fez o que lhe eu disse ... -- explicou com sibilino ar o Serafim . -- Apagou os candeeiros ! E para quê ! ? ... Para a patrulha , se nos visse e mais os outros nestas andanças , não desconfiar ... Então , tranquilizados e fortes da engenhosa explicação , todos cinco atacavam agora a sombra com denodo , o tronco atirado à frente , e os pés tartameleando incertos no basalto . -- Vamos então ouvir coisas bonitas ? -- mascou em tom incrédulo o Silvério , renovando entre os dentes o cigarro . -- Mais cantiga , menos cantiga ... ora adeus ! -- arrastou o Manaio , num desdém . Não senhor ! -- emendou logo o Serafim com enfâse . Ora ! E eu que os conheço ... Este agora é outra loiça , verás ! ... Desta vez é que a coisa rebenta ! E como que prematuramente vergados ao trafico vaticínio desta hipótese decisiva , avançaram uns segundos em silêncio estes broncos conspiradores . Até que , num palpitante interesse , parando de andar , o Manaio : Mas afinal que casta de homem é ele . Tem uma linda apresentação , isso é que tem ! -- disse o Esticado . E é uma grande cabeça ! -- admirativamente completou o Serafim . Olha , aqui está o Lourenço , que o conhece , de quando ele andou na fábrica das Varandas . Ó Lourenço , que tal ? ... Eu cá gosto dele ! É honrado , é sério ... sabe de tudo ! Caramba ! E muito bons conhecimentos lá fora ! Como é que tu sabes . Mostrou-me ele cartas , livros , jornais ... muitas vezes ! É homem de capacidade , isso é ... Não andam aí nessa patifaria da política muitos que se lhe comparem ... Isso então na honradez , nenhum ! O homem embruxou-te , não há que ver ... Digo-lhes mais : com ele , ou mandado por ele , eu ia ao fim do mundo ! Com a curiosidade progressivamente estimulada , o Manaio disse : Diz que tem um partidão nas mulheres ! Oh , se ele me livrasse das que lá tenho em casa ! -- rompeu com ansia o Silvério . Ao que os outros de força riram . E reataram todos caminho . Tinham agora alcançado o ponto em que a estrada , dali ao Poço do Bispo , era já servida pelo gaz . Então , nesta invasão súbita da luz , contraíam-se-lhes de instinto as iris , e , automaticamente movidos naquela cegueira de momento , iam os pés dos cinco esconjuros tropeçando nas pedras erráticas do caminho . Mesmo o Silvério , com a sua grande obesidade desatinado e perro , atolou-se na brava torrente que , grossa da chuva , pelo rego longitudinal do centro da rua jorrava a sua tara perene de imundícies , em pastosos gorgolões enastrados de trémulas arestas de prata . Raios parta diabo ! Para onde é que eu vou ? ... Aqui , homem ! Perdeste o tino ? -- o Manaio gritou , tomando-lhe do braço . Foi quando cavidamente , fazendo pé num escasso retábulo de sombra , o Serafim observou : -- Ó rapazes ! O seguro morreu de velho ... Agora aqui é melhor separarmo-nos . E cauteloso parou , de mão na ilharga , depois de haver num jeito banzeiro inclinado o chapéu à nuca , o esguio tronco acuchilado sobre as pernas em compasso . Os quatro companheiros , aderindo em silêncio , toca então de avançarem isoladamente , por intervalos desiguais , na calçada sonora e húmida , ao longo da lúgubre fiada dos altos muros salitrosos , por cujas bossas obliqua a luz do gaz de capricho bocejava . Sobranceiras e gementes , sentiam-se oscilar , carvoadas em verde-cinza , as grandes massas de árvoredo dos parques opulentos ; e ao de cima e muito , longe , barrava de negro o espaço a impenetrável caligem do céu , novamente obscurecido . -- Assim foram seguindo os cinco , em dissimiles andamentos , silenciosos , como estranhos , atravessando agora uma pequena meia-laranja , cortada da aparatosa mancha do portão da Quinta da Inauguração do Caminho de Ferro ; costeando depois alguns raros prédios de habitação , cocheiras , uma fábrica de papel pardo ; até que tomaram à esquerda , justo à esquina da ruela escura que dava para o pátio do Picadeiro , e logo , a dois passos mais , levava ao apeadeiro da linha férrea . Aí , tornearam todos sucessivamente essa modesta casita , de um só andar , em cujas lojas ardiam faceiramente as duas largas portas , franco-abertas , da taberna do Zé Pequeno . Tomada porém a esquina , na face lateral da casa , havia uma pequena porta , cerrada discretamente , pela qual eles subtis se escoaram , no cómodo favor da sombra . Na frente , do outro lado do atalho , centelhava , como que em fogo , no embaciamento fosco da velha alvenaria , a torneira de latão dura chafariz ; e havia de roda um grupo chalreiro de mulheres , esperando vez para encher . Aglomeradas ali soltamente , ao acaso , de costas para o caminho , sentadas umas na boca dos canecos , outras melancólicas seguindo o fio moroso da água que caía , é certo que não deram pela manobra prudente dos operários . Apenas a Bandeirinha , que tinha lume no olho , e , por haver sido uns meses concubina do Zé Pequeno , havia tido conhecimento e lição de varias conspiratas saloias , essa apreendeu , observou o desfile num sorrisinho inteligente ; e quando no coice viu finalmente apontar o Serafim , não se pode ter que lhe não dissesse : Olé ! Você também ? ... O que é que tu queres . Então , reinata hoje cá pro sitio ? ... Eu cá ... vou a Lisboa . A Clara deu licença ? ... -- insinuou trocista a rapariga . E com mau modo o Serafim : -- Mete-te com a tua vida , ouviste . O grupo feminino da fonte voltava-se para os dois , tomando no diálogo seu maligno interesse . E a Bandeirinha , vendo que tinha auditório , continuou de ironia : -- A Lisboa ! A esta hora ... Hum ! Tão cedo não há comboio . Credo ! Muito desafinados trazem vocês os grilos ! -- Se julgavas que vinha o Ventura , enganaste-te ! -- rosnou , adiantando para a taberna , o Serafim . Quero lá saber ! Foi tempo ... Bem sei ... Estão verdes ! Minha rica , quem comeu , comeu ... Melhor para ele ! Olha , se o queres ver ... -- dizia o Serafim , progressivamente azedo , -- vai lá abaixo , à fonte da Samaritana ... Ora ! Vai , anda ! Que não o encontras só ... com as cachopitas é que se ele quer ! -- Tem mais juízo que vocês ! De roda as mulheres , atraídas ao pique da novidade , algumas já de cântaro à cabeça , fechavam círculo e riam , com grave escândula da Bandeirinha , que , a derivar de si o cómico incidente , em termos de implicar disse : -- Ora mas estes bananas , a pensarem que me embaçam ... A Lisboa , a estas horas ! ... Ai ! Se eu quisesse falar ... -- Adeus , amiga ! -- disse sacudido , voltando costas , o Serafim , que começava a ter receio do pendor indiscreto da conversa . -- A coisa é outra ! -- ainda insistiu , com modos de iniciada , a rapariga . E de repente , adiantando-se e mudando de tom , muito chegada ao ouvido do tanoeiro : -- Eu também sei da marosca , entende ? ... Andai lá ! E à vontadinha ... que , se vier a rusga , cá fica a palerma pros avisar ! Assim que tal ouviu , o rosto mole do Serafim desenrugou-se num sorriso alvar . Ao tempo que , direito por igual à taberna , descia das bandas de Braço de Prata o João dos Unguentos . -- Era um tipo mercenário e banal , acaboclado , bexigoso , de olhos languidos e melenas , exímio cantor do fado , que o vicioso comércio com mulheres e um sedentarismo relaxe efeminara . Tinha o segredo do Sicativo milagroso , o mais pronto , admirável e eficaz específico para doenças venéreas , mirifica droga da sua invenção , a qual ele pelas suas próprias mãos , com o destro auxílio da amiga e em casa , preparava . Além disso , grande entendedor na preparação de cremes , licores , elixires e toda a casta de perfumarias . Em suma , o químico , o habilidoso , o endireita , o sábio da redondeza . Mal que viu o tanoeiro , em baixo : -- Serafim ! és tu ? ... -- Ó João ! ... -- exclamou pronto o Serafim , numa expansiva efusão tocada da sua ponta de respeito . -- Ora se tu havias de faltar ! E pela portita escusa da ruela os dois entraram também , de braço dado . CAPÍTULO II Havia primeiro uma sorte de pequeno pátio interior , ladrilhado a tijolo , com portas abrindo sobre imundas cafuas em esconso , que promiscuamente serviam de depósito de géneros e quartos de dormir . Uma outra porta , em frente da entrada , dava serventia para uma grande sala em osso , assimétrica e oblonga , o teto sem forro , nua ainda na sua provisoria aspereza a taipa escura das paredes , e onde a intensa absorção da luz , por efeito da ausência quase completa do branco , junta com um espesso véu de fumo sobrenadando , apagava as arestas , comia os contornos , emprestava aquele vasto cenário um ar fantástico , impedindo a nítida visionação das coisas . Entretanto , via-se logo porção de gente abancada contra as duas compridas mesas paralelas , que longitudinalmente tomavam toda a quadra . Difusas , vivas , em todos os sentidos cruzavam-se as conversas ; um estrupidante rumor de interesse reboava alto no recinto , por entre o alegre tilintar dos copos e o lento espiralar dos rolos de fumo dos cigarros . Da asna central do teto , -- cuja ossatura pelintra , a descoberto , acusava a grade irregular das vigas e permitia contar as telhas , -- pendia um varão de ferro , tendo nos extremos dois grandes candeeiros de petróleo com para-luz de folha pintado a verde . De roda , numa caótica confusão , vestindo as traves , pejando os cantos , em rima junto ás paredes , por toda a parte riscando cabalísticas sombras , apontavam vagos perfis de arados , ancinhos , foices , aduelas , arcos de pipas , talhas para azeite , rosários de cebolas , pilhas de lenha , um promontório enorme de batatas . Cheirava a feno e a peixe frito ; respirava-se um ar morno e penetrante , cumulativo a tasca e a curral , a abegoaria e a caserna . Além dos sócios do Serafim , estariam agora ao todo ali umas quinze pessoas , que os recém-chegados cumprimentavam em alvoroço , à medida como , aproximando-se , iam descortinando os conhecidos . -- Lá estavam assim , entre outros , o Queimadela , o Adelino , o Manuel António , da Vidreira , o Zanaga , dos Fósforos , o Romão , do Campo-Grande . -- A bela sociedade ! -- E de roda de todos eles , irrequieto , de pé , furando , pulando , insinuando-se rápido pelos grupos , completando os conhecimentos , arranjando lugar a um , trazendo vinho a outro , desorbitado e feliz numa vertiginosa , uma estonteante e loquaz ubiquidade , incansavelmente lidava um homem coxo e pequenino , a pupila inflamada , a face devorada de febre , a cabeça grisalha ventoinhando sem repouso , e os lábios de cera vibrando abertos num risinho triunfante . -- Olha lá , ó Fagulha , -- disse-lhe , baixo , o Manaio . -- o tal Mateus já aí está . Não o conheces . Qual é ? ... Aí o tens ... chutt que ele vai falar ! E indicava um simpático vulto de homem , miudito , delicado , que vagaroso e solene se erguera do seu banco , quase ao centro da sala . -- Á primeira vista , encantava ... Tinha o ar , a um tempo , humilde e dominador , imperioso e tímido . O seu longo perfil semita , energicamente vincado da coroa do frontal ao mento , acusava a tenacidade , dava bem eloquente o síndroma desta forma absorvente do querer , capaz ela só de arrastar ás extremas soluções , no paroxismo de um sentimento ou no aferro a uma ideia . Cabelo castanho , olhos negros , e na base das narinas fumegantes a branda caricia de um bigode algodoado e fino , impercetível quase . Atrigada e sem brilho , tinha a sua pele essa inalterável cor de marfim velho , que nos países do sol caracteriza os temperamentos fortes . A regularidade de linhas do rosto , a expressão ingénua e simples , o gesto comedido , rebuçavam de concerto o fogoso agitador , a um exame superficial mostravam Mateus como sendo a mais pacífica e angelical das criaturas ; mas o que quer que era de voluntarioso e arrogante chispava a espaços nos seus olhos , e impercetíveis carfologias de impaciência corriam-lhe de relance nos dedos trémulos . Aquela mesma docilidade aparente não era senão o meio , tão suave como eficaz , de ele solidamente cimentar a sua vontade , à custa do mínimo atrito sobre a vontade alheia . -- Vivam , rapazes ! -- saudou ele , a meia voz . E logo , como por encanto , tendo-o mais adivinhado do que ouvido , todos se voltaram com interesse , imobilizando-se em atitudes expetantes ; logo instantaneamente se abriu na tumultuária multidão um largo e ávido silêncio . -- Estão então decididos a fazer alguma coisa ? ... Vejam bem ! Eu de discursos estou farto ... de os fazer e de os ouvir ! Venho , mais uma vez , aqui ter com os meus queridos irmãos , para lhes bradar bem alto que é tempo demais de mostrarem quanto podem e quanto , valem . -- Reboou pela sala um longo murmúrio envaidecido . -- Ação ! Ação meus amigos ... É o vosso dever ; é o meu desejo . Se achais cedo , dizei-o já ... e eu vou-me embora ! -- Cedo ? ... -- Não ! Não ! -- Estamos prontos , decididos a tudo ! -- Vamos a dar cabo dessa corja ! -- É para já ! ... -- tais foram as vozes que o apropositado reto do Mateus fez chispar na multidão . E então ele , sentindo-se senhor da situação e do auditório , com uma voz de catequista , suasiva e potente , de que ninguém suporia capaz o seu corpo franzino e repousado , continuou : -- Devo começar por lhes dizer que não me traz a este lugar nenhuma sorte de ambição ... Nem viso a que falem de mim nos jornais , nem pretendo engrandecer-me . -- É a cantiga de todos ! -- rosnou baixo para o Serafim o Manaio , num dar de ombros incrédulo . -- Ouve ! -- limitou-se a retrucar , a meia voz , o tanoeiro , cujo derreado arcaboiço todo inflamadamente se erguia agora , dir-se-ia-que suspenso dos lábios do orador . -- Traz-me aqui ... mal parece eu dize-lo , mas é a verdade ! -- e ao dizer , o Mateus , dobrando o braço , arrancava do peito a murro inflexões convictas , -- traz-me aqui o cuidado , o amor pelo vosso bem-estar ... esta febre , esta ralé , esta ansia constante por libertar os eternamente explorados , por galvanizar os fracos , por erguer os oprimidos ... febre , cuidado e ansia que tanto dissabor me têm causado ... horas negras , noites de pavor , dias de fome ! Ao mesmo tempo o tormento e a esperança , o mais fundo espinho e a preocupação essencial da minha vida ! -- Pois já se vê ! Ora não há ! ... -- volveu o ceticismo contumaz do Manaio a escarninhar . E indignado o Serafim , acotovelando-o : -- Tu não te calarás ? ... -- Depois , todo estendido , bancada fora , ao Fagulha : -- Ó coisa ! Dá para aqui uma droga . -- Que nós nesta campanha , vocês já sabem , não estamos sós ... -- prosseguia Mateus no seu ardiloso exordio , cavando a voz e arrastando em sibilinas intenções as silabas . -- A luta pela verdade abarca o mundo ! Aquilo que nós hoje aqui resolvermos terá logo , para bem de todos nós , sua imediata repercussão lá fora . Em todas as principais sociedades operárias da Europa e da América eu conto com amigos dedicados . Quer dizer : são outros tantos irmãos , cujo coração bate igual com o nosso , que aguardam com avidez as nossas deliberações , prontos a fornecerem-nos toda a qualidade de auxílio , toda ... em conselho , em experiencia e em dinheiro ! Ah ! ... -- Então que dúvida temos ? ... Posso-vos provar . Não me faltam felizmente os documentos ... Eu voss trarei ! E por eles podereis então bem na evidência certificar-vos de que as sagradas reivindicações do povo estão hoje indestrutivelmente ligadas , por todo esse mundo em fora , poios laços da solidariedade universal ! Para onde quer que volteis , no vosso anseio libertador , os olhos , aí vereis o aceno animador de irmãos ... e irmãos tanto mais para admirar e amar , para gravar no coração e seguir no exemplo , que eles há muito servem com alma a nossa causa comum ... e enquanto vós aqui , moles e indecisos , palavrosamente esperdiçais o tempo , lutam eles com fé e ardor , lutam deveras ... arriscando tranquilidade , haveres , posição , família , jogando a reputação , perdendo a vida ... mártires no sacrifício e heróis no desespero com que à conquista se votam cegamente desse grande principio igualitário , -- o Sol do dia de amanhã . -- que deve ser o lema , a bandeira , o norte , o ideai de todos nós ! Á medida como seguia no seu crescendo natural a inflamada eloquência do tribuno , paralelamente também no bronco auditório o interesse , o entusiasmo e a fascinação cresciam . Arrastavam-se bancos , apertavam-se os grupos , havia copos entornados pela impaciência de cotovelos correndo de repelão as mesas , e a mesma expetante uniformidade orientava direitos à dominadora figura do orador todos aqueles perfis ávidos e sombrios . Somente , isolada e impassível , no extremo de uma das mesas se ficara a flácida obesidade do Silvério , ingerindo genebra a saborosos tragos , os dedos em tresilha amparando o ventre , e inquisitorialmente apontados ao Mateus os seus pequeninos olhos de camaleão , redondos e lascivos . O Zanaga , dos Fósforos , tinha vindo , em pé , plantar-se cerce na frente do orador , as mãos nos bolsos , as pernas em compasso , e o seu inseparável cachimbo , entalado nos lábios negros , comovido tremulava sob a magnética influição daquela voz potente e sugestiva . Enquanto , desorbitada e feliz , a pequenina figura grisalha do Fagulha de um para outro grupo incansavelmente saltitava , claudicando , erguida a face flamante à extática adoração do " seu homem " , e num lume triunfador ardendo-lhe os olhos fascinados . Como , depois da última tirada , entendesse por bem o Mateus fazer uma pequena pausa de importância , com a sua irritante voz de falsete o Adelino interrogou : Mas o que vai então a gente fazer ? ... o que vamos fazer ? ... -- aclarou logo Mateus , com decisão . -- Vamos pôr as coisas no seu devido sítio ! Reivindicar os nossos direitos ... os direitos naturais do homem ... Não tolerar da sociedade restrições nem peias , senão aquelas que nós muito livremente quisermos aceitar ! Vamos , em suma , pugnar pela nossa alforria moral , pela definitiva abolição dos abusivos limites que o Estado impõe à liberdade de cada um ! -- Apoiado ! Pois isso é que é ! ... E vigorosos brados de adesão , decididos golpes de punhos sobre as mesas , em uníssono vibraram no recinto . A grossa face oleosa do taberneiro , o Zé Pequeno , jubilosamente assomou à porta , a espreitar . Quando , firme e sereno na frisante evidenciação do seu triunfo , o Mateus prosseguiu : -- Eu já outro dia vos disse , o Estado é uma pura excrescência que vive à custa de todos nós . Dispensa-se ... Ele nada nos faz , nada nos traz de bom ... É uma sanguessuga a pólvora e bala ! -- Abaixo com ele ! É uma organização artificial , violenta , contraria ás leis naturais ... a qual não aproveita senão a um limitadíssimo numero de indivíduos , com prejuízo de todos os outros ... que não tem outro fim senão explorar o misero trabalhador ! -- Muito bem ! Muito bem ! -- Fora com os gulosos ! -- Abaixo a autoridade ! -- Vá de chinfrim ! Menos parodia ! Rapaziada ... -- prudencialmente aconselhou , da porta , o locandeiro , num cauto receio enviesando o olhar ao corredor . E logo , de salto ao pé dele , o Fagulha : -- Não te agonies , homem ! Deixa ... Isto não se ouve lá fora ... Roda-me mas é tu , anda ! Lá para o balcão ... Toma conta com a rusga . Convencido , o Zé Pequeno voltou para a taberna ; ao tempo que já o ubíquo Fagulha , dando-lhe costas e esfregando as mãos num radioso enlevo : -- Que bem que isto vai ! E voltava extático a encandear-se do Mateus no verbo fascinativo e quente . -- Porque há aqui uma coisa que eu preciso explicar-vos , -- continuou este . -- Reparai bem ... Até agora tem-se pensado que o governo , o Estado são coisas indispensáveis na vida das nações . Acredita-se na sua origem divina , na sua ação sobrenatural . E eu rio-me ... eu revolto-me contra semelhante absurdo ! Lá porque , nos primitivos tempos da sociedade , foi necessária a intervenção de um governo espiritual e temporal para regular as coisas , inferiu-se daí que ela o há de ser sempre . Ora não há nada mais tolo . Se os que uma tal heresia proclamam e defendem são uns miseráveis especuladores , aqueles que a aceitam , que a ela se submetem e lhe dão crédito , não passam , tende paciência ! ~ de uns lastimáveis palermas . Essa agora ! ... -- remoeu alto , coçando a cabeça , o Esticado . É assim mesmo ! O homem antigo , que , cheio de superstição e ignorância , pensava que o sol e a lua tinham sido projetados e postos a dançar no Espaço por uma invisível mão toda poderosa , e que a espécie humana fora modelada em barro pela suprema influição de um artista sobrenatural , imaginava também que a sociedade a que pertencia fora por igual modelada e enquadrada de antemão em moldes imutáveis , ou diretamente pela Providencia , ou indiretamente pela sabedoria transcendente do tal sobre-humano legislador . E como a corrente da tradição tem muita força , e cada um foge de ordinário a pensar por si , este pernicioso ponto de vista radicou-se , perpetuou-se , ficou ... fazendo ainda hoje atribuir ás instituições caducas do passado um carater sacrossanto e augusto , que as torna intangíveis ao exame e as ergue acima de toda a crítica . E aí está o erro ... Parece incrível ! Mas ainda agora a grande maioria das pessoas pensa e crê que o estado social de uma nação é o resultado da obra dos seus governantes , a aplicação feliz , vejam vocês ! -- e frisava a ironia , -- das lucubrações dos génios políticos que essa nação há tido a felicidade de possuir . -- Fora com a política ! -- Todos para o guano ! -- Hemos de pendura-los dos candeeiros ! -- Pois eu não estarei na razão ? Não é certo isto que eu digo ? ... Governar , legislar ... Mas governar quem , a quem e como ? ... Legislar , mas porque forma , com que autoridade , saber , com que direito ? ... Vós já pensastes acaso nisto : na surpreendente facilidade com que a presunção humana faz supor-se cada qual investido e iluminado , sem maior escrúpulo nem preparo , na complicada faculdade de legislar ? ... Nos atos mais insignificantes , mais individuais , mais íntimos da sua vida , a cada passo o homem cinca , recua , hesita , a todo o momento se afunda na dúvida , tropeça em dificuldades . Um renúncia à ideia de governar a mulher e deixa-se dominar por ela ; outro não atina com o meio de salutarmente educar os filhos ; outro reconhece-se finalmente incapaz de administrar a casa , de dirigir os seus negócios domésticos , de disciplinar os criados . Pois não obstante estes desastres parciais , apesar das contrariedades em que tão frequente o homem esbarra , nas suas relações miúdas com a humanidade , falai-lhe em relações coletivas e vereis como ele logo se julga um onipotente , um sábio ... como esse mesmo ente inconsequente e fraco , que uma conta de deve e haver ataranta , pronto sempre a capitular perante um capricho feminino , se reconhece e declara ato e forte para regular os negócios dos homens formando o conjunto-nação ! -- Eles conhecem-nos lá ! -- objetou aqui , num cambeteio impaciente , o Fagulha . E agora de salto , vergado ao ombro do Queimadela : -- Nem nós sabemos nunca quem eles são ... Que os leve o diabo ! Dizes bem , Fagulhai -- apoiou rápido Mateus . Incapazes de governarem a sua casa , mas querem mandar na casa dos outros ! Viram já um absurdo , um desaforo assim ? ... Que maior competência , poder , valor têm eles para o caso , do que qualquer de nós ? ... Leis ! Agora leis ... Não são leis , são lérias ! -- Apoiado ! Roda com eles ! A Lei é uma coisa feita à vontade deles . Pois seja-o agora à nossa ! Muito bem ! Muito bem ! -- Abaixo esses ladrões ! -- É tempo de vingar o povo ! A violenta apóstrofe do Mateus , como um rastilho , tivera o condão de acender naquela tumultuaria jolda de famintos uma rabida explosão de vaias , uivos , imprecações , insultos , cóleras . Interminavelmente e sem trégua , em epilepsias de dor , em exasperados lamentos , em paroxísmicas febres de revolta , de lado a lado estrugiram brados vingadores , cruzaram-se torturadas vozes de deserdados . Era a virulenta reação que estoirava contra cinco gerações seguidas de desenganos , de burla , de abandono e de fome . E toda essa inflamada fúria apreendia-a , absorvia-a o Mateus embriagantemente . A cada nova estralada de impropérios os seus olhos , irrequietos , ávidos , beatificamente fuzilavam . Dir-se-ia-ali que ele , sôfrego , ardente , recolhia a alma , bebia a vida do estrepitoso referver da onda ... Uma boa parte da assembleia , agora compacta e de pé , tinha vindo irresistivelmente agrupar-se-lhe em roda . Apenas junto à mesma quina de mesa , frente à sua querida genebra , o obeso e mole Silvério permanecia , a tudo atento mas tranquilo , dessa veemência afogueante da multidão cada vez mais antinómico e mais distante . O cachimbo homérico do Zanaga , apagado , riscava no espaço , ao sabor das nervosas deslocações daqueles beiços de cafre , cabalísticas ameaças . A saltitante inquietação do Fagulha preza na hirta solenidade do momento , imobilizara-se . E por sobre o insofrido e vago remoinhar da multidão , radiosa superando essa rembrandtesca aglomeração de cabeças sórdidas e terríveis , apagadas no fumo , carvoadas na sombra , somente iluminada e serena , na rutila evidenciação do triunfo , trepada a um banco , perorando sempre , do Mateus a cândida e voluntariosa figura destacava . -- Ora digam-me vocês uma coisa : todos vós , sim , tendes um ofício ... e esse ofício , por mais simples que ele seja , custou-vos um certo tempo de aprendizagem , não é verdade ? ... Muito tempo trabalhastes , sem ganhar , amparados à lição de um mestre , gradual e progressivamente assimilando o vosso noviciado técnico , os segredos da vossa profissão . E isto é indispensável , não é assim ? ... Ninguém faz milagres , ninguém nasce ensinado . Pois bem ! Toda a sorte de ocupação , todo o género de trabalho , ainda o mais elementar , carece então , para se poder exercer capazmente , de um tirocínio prévio , e só não há de exigir aprendizagem o que há de mais difícil , -- o oficio de fazer leis para uma nação ! ... para isto , está-se a ver ! é só os protegidos , os meninos bonitos quererem : num pronto se tornam infalíveis ! Raios os partam ! Eles não conhecem a milésima parte dos seus concidadãos , nunca lhes falaram , nunca os viram , nada se interessam , nem podem interessar , por eles ... não têm senão ligeiríssimas noções , quantas vezes falsas ! Do modo de pensar , dos hábitos , costumes , reclamações , necessidades das classes a que pertence a grande massa dos oprimidos ... a que pertencemos todos nós ! E não obstante creem firmemente que poderão tudo abarcar nos seus planos legislativos ... que todos lhes obedeceremos , e caminharemos para o mesmo lado , e ficaremos contentes ! -- Que me dizem a isto ? ... -- E cruzava sobre o peito indignadamente os braços . -- Querem prova mais frisante de que as tais leis são boas só para eles ? Que são uma coisa arbitrária , violenta , injusta ... puramente artificial . Pois já se deixa ver que são ! -- Cambada ! -- Isto é que é uma cabeça ! Nós não precisamos das tais leis para nada ! -- reforçava agora imperioso o Mateus , descruzando os braços e em fulvas crispações das mãos anavalhando ameaçador o espaço . -- Um chefe é um tirano . Vamos suprimi-los ! Valeu ? ... Não devemos ter ninguém por senhor , nem também sermos os senhores de ninguém ! A sociedade , tal como as leis naturais a traçaram , tal como deve ser , -- como nós vamos fazê-la ! -- não é o escandaloso logradoiro , monopólio insolente de meia dúzia de malandrins com sorte ... É um produto orgânico vivo , como outro qualquer , dentro do qual os homens são assim outras tantas células , espontânea e solidariamente concorrendo , -- mas todos ! Todos por igual ... tanto uns como outros ... -- para o desenvolvimento , para a vida , para a harmonia e o bem comum ! -- Mas como há de ser então essa coisa ? ... -- voltou a voz em falsete do Adelino a interrogar : -- Alguém nos há de dirigir ... -- Eu cá não entendo ! -- Oiçam ! -- Não é novidade nenhuma isto que vos proponho , -- aclarou o Mateus , sorrindo da ingénua dificuldade que aquelas dúvidas acusavam . -- Nem no mundo há novidades ! Vede lá ... quantas vezes , de dia , o sol brilha claro , o céu está limpo , e brusco forma-se uma nuvem . Esta nuvem foi acaso uma substancia nova que se formou ? Uma nova coisa que apareceu ? ... Não ! Mas simplesmente a transformação de uma outra substancia , a qual , -- a humidade por condensar , -- sob uma forma difusa e transparente já anteriormente existia . Analogamente , o cometa que de repente se desdobra airoso pelo Espaço , amedrontando os ignorantes , dando origem a toda a sorte de patranhas , também não é um corpo novo , que criado fosse naquele instante . Já anteriormente existia , mas a uma tão grande distância , que andava fora do alcance da nossa vista ... Pois também a sociedade , o modo de viver que nós tomos a organizar , com o inteiro e completo exercício dos nossos direitos , a distribuição equitativa e perfeita dos gozos e bens da terra , a definitiva abolição de todos os limites à liberdade de cada um , não é uma coisa nova , abstrusa , imprevista , que de improviso surgisse agora do Nada ... não é o produto de uma imaginação escandecida , sem origem nem preparo nos misteriosos domínios do equilíbrio universal . Essa organização será , pelo contrário , a consequência lógica , natural dos titânicos esforços em que há dezenas de séculos se debate e consome a humanidade . Até agora não a podíamos ver nem atingir , porque a traziam fora do alcance da nossa ação toda a casta de pressões exteriores . Porém os ominosos tempos da tirania , do obscurantismo , da superstição passaram . Hoje os homens sabem perfeitamente que não são máquinas : são consciências ! E , como tais , têm sentimentos , aspirações , desejos ... irresistivelmente reclamam o pleno uso e expansão das suas forças interiores ... Não queremos portanto mais leis , senão as leis naturais ! Nem batinas , nem becas , nem patrões , nem reis ! Queremos que o domínio da nossa vontade seja finalmente um fato ; e que a sociedade não imponha à nossa esfera de ação mais limites do que aqueles que nós consentirmos em aceitar livremente ! É isto , ou não é ? ... Sim ! Sim ! -- Mãos à obra ... vamos ! Mas isso é uma coisa sem rei nem roque ! -- objetou então , com pasmo geral , em voz pausada mas forte , o Silvério , do extremo do seu isolamento . E alongava a insípida face num desdém . É que você não percebeu nada ... -- exclamou o Romão , furioso . Enganas-te ! -- veio , muito solícito , dizer-lhe ao ouvido o Fagulha . Cala a boca , bruto ! -- gritou-lhe de longe , numa visga olhada de rancor , o Serafim . -- Pelo contrário , meus amigos ... -- acudiu o Mateus , sempre com o mesmo sorriso inteligente . -- A revolução que nós vamos fazer , o ideal a que aspiramos , é o que há de mais prático , de mais compreensível , mais justo ! -- E juntando teatralmente os braços e apoiando na concha da mão o queixo reflexivo : -- Mas como vos hei de eu explicar Neste momento , rasgou áspero o ar o silvo estridente do tramway que perto passava , na linha de cintura . Tão perto , que demorado ressoou pelo recinto o seu estalido tremulante , o som ferrolhado e cheio do seu rápido rodar . -- E no mesmo instante o Mateus , como iluminado de uma ideia súbita , erguendo de ímpeto a cabeça e deslaçando os braços : -- Ah ! Aí têm vocês ... Ouvem ? ... Passou agora o tramway uma das mais prodigiosas e fecundas aplicações da inventiva humana . -- Os caminhos de ferro rasgaram , galgaram as entranhas da terra por toda a parte ; como uma teia de aranha colossal , a sua rede de aço liga e abarca o mundo . De continente para continente , de país para país , o sistema ferroviário forma atualmente a mais sabia e bem ordenada engrenagem , com uma correspondência perfeita de horários , analogias de material e as convenientes especializações de serviços . Pois essa vastíssima organização , típica como modelo , de um rigor e de uma harmonia tão perfeita apesar da sua extensão imensa , do seu domínio internacional , funciona e exerce-se , -- vede bem ! -- sobranceira e independente ás chamadas formulas politicas ; não obedece a nenhum poder central ; não tem parlamentos , nem reis , nem padres , nem fidalgos , nem guarda municipal . Governa-se por si ... individualmente nas questões regionais , coletivamente nos assuntos de universal interesse .