Memorias d' um Doido ( Romance contemporaneo ) Original DE A. P. Lopes de Mendonça ( 3.a EDIÇÃO ) LISBOA Empresa Lusitana Editora Calçada do Ferregial , 23 Prologo da segunda edição Sem alterarmos nem a acção do romance , nem os sentimentos dos personagens , suppozemos que poderíamos dar lhe maior desenvolvimento , n esta nova edição , expurgando-o das negligencias de est > lo , e das declamações um pouco vagas e obscuras , que revelavam a inexperiencia do escriptor , e o improviso que exigem os trabalhos da imprensa . Deixariamos realmente expirar esta obra , que é mais um esboço do que um romance , se o público , justa ou injustamente , não nos indicasse a necessidade de uma nova edição , por reiterados pedidos . Mais do que nenhum , este ensaio carece de ser precedido da certidão de edade do auctor . Tinha elle pouco mais de Vinte annos , quando se publicaram as -- Memórias d' um doido -- pela primeira vez -- nas paginas da Revista Universal . Abril de 1859 . A. P. Lopes de Mendonca . A procissão de Corpus Christi O romance contemporâneo , se não existe entre nós , como n ' outros paizes , é porque a sociedade realmente não favorece , pela sua situação , este genero litterario . A vida é tão limitada , os acontecimentos ficam sendo tão nossos conhecidos , os typos confundem-se tanto com as individualidades , que se receia sempre , como se diz em phrase popular , talhar uma carapuça , ou offender os melindres de tantos que não vivendo em paz com a sua consciencia , abominam as liberdades da critica , e os devaneios pouco respeitosos dos escriptores . Esta nossa sociedade , que consome a sua seiva intellectual , na analyse mais ou menos espirituosa do proximo , parece que tem horror de si mesma , ao vêr-se retratada . Se Deus nos concedesse um Balzac , ter-nos hia feito talvez um favor esteril : o celebre romancista , em França , é um grande observador de costumes ; em Portugal é de crêr que nào passasse de um libellista atrevido , um d' estes talentos sem futuro , que malbaratam os dotes eminentes da intelligencia , nas reuniões da sociedade , deixando por unica tradição de gloria , uma ou outra anecdota , de chiste duvidoso . N ' um paiz que fica quasi immovei , no meio das suas revoluções , a imaginação é uma faculdade que se dirige mais á analyse dos sentimentos , que ao estudo dos caracteres , e da vida social : e d' ahi , o gran de número dos nossos poetas lyricos , comparado com as illustrações d' outro genero : a imaginação do artista não pode libertar se das influencias , que a comprimem , e soltar um vôo mais ousado . Os romances entretanto tornaram-se a leitura quasi exclusiva do nosso público , e não será difficil descobrir a razão do phenomeno . O romance é como um espelho , não diremos um espelho de rara fidelidade , aonde a sociedade mirando se e reconhecendo-se , vê a realidade ornada com todos os prestigios da poesia , e ao mesmo tempo as paixões e os desejos a que accommettem , purificados e absolvidos por um esforço de imaginação . Mais agradavel isto se torna ainda nas nações pequenas , aonde todos se conhecem , aonde mais ou menos todos somos primos , e cuja litteratura sentimental se espraia sobretudo em necrologios plangentes , e em pomposas elegias . A campa é entre nós um verdadeiro campo de egualdade . O vicio e a virtude , a dignidade e o servilismo , os nobres affe tos como os ruins instinctos tudo se confunde no mesmo bana ! elogio , e qualquer miseravel trapaceiro , quando Vê erguer-se a morte deante dos olhos , quasi que póde esperar que o convertam em heroe preclaro n ' um artigo de jornal . Vamos á procissão de Corpus Chnsti : e quem se não lembra d' ella , por pouco tempo que houvesse habitado em Lisboa ? A procissão , a nosso Vêr , attinge dois fins do mesmo modo importantes no bastardo regimen que por tantos lados se prende ainda ás obscenidades e misérias do velho absolutismo : satisfaz a uma tradição , e offerece um pretexto para que os barões velhos e novos se arreiem com as suas vistosas condecorações , dando pasto á vaidade que os caracterisa As janelas adornam-se d' aquelles velhos damascos franjados de ouro mareado , as ruas cobrem-se de areia Vermelha , o exercito estende-se em alas , o povo apinha se nas ruas , e os elegantes matriculados , e os que o não são , passeiam a caVallo- olhando as sacadas apinhadas de senhoras , que se não poupam ao prazer de serem admiradas e vistas . O dominio mourisco deixou grandes vestígios nos nossos costumes , e o primeiro e mais saliente d' elles era a clausura a que se condemnavam as mulheres , que ainda mais se aggravava quando no clássico capote e lenço , ficavam impenetráveis aos mais atrevidos olhares . Lisboa só depois do governo liberal , é que consente que o sexo feminino passeie nas ruas , frequente os passeios , suspire pelos bailes , e escabeceie melancolicamente nas philarmonicas , ouvindo duetos desafinados . As mulheres só appareciam nas procissões , e nas egrejas , e suppunham se felizes quando em vez de irem á missa das almas , podiam figurar na missa do dia . A procissão do Corpo de Deus é ainda hoje uma festa verdadeirameníe nacional , e que faz correr de todos os pontos da cida de , e das povoações visinhas o povo , que desde o romper da manhã toma logar para vêr o S.||_Jorge Jorge|_Jorge e o Homem de ferro , duas entidades , que são já mythos , e que servem de thema ás observações mais ou menos engenhosas das Evas curiosas do bairro . As saloias e saloios suppunham um desar para a sua prosapia , o não haverem assistido uma ou duas vezes na sua Vida a essa procissão de celebrada memória , cujas maravilhas se transmittem , pela tradição , de filhos a netos . Acabavam de dar onze horas : as ondas de povó vagueavam curiosas e impacientes , e os mais atrevidos da plebe injuriavam os cocheiros quando ds carruagens procuravam abrir caminho : os namorados iam tomando logar pelas esquinas , com aquelle ar meio terno e meio parvo , que os aponta desde logo á analyse dos que gostam de saber das vidas alheias ; as senhoras começavam a abanar-se , e a tapar os inevitáveis abrimentos de bocca , que um madrugar excepcional sempre produz . No momento em que passava , rapido como um sonho , um trem magnifico , decerto pertencente a personagem da alta sociedade , pelo bom gosto dos adornos , e pelo aspecto arrogante dos cavallos que espumavam na carreira , um mancebo aproximou avidamente a cabeça , lançou um olhar febril á muiher que olhava com indifferença quasi desdenhosa os espectadores , e bradou com expressão apaixonada : -- " É elia ! " O gesto , e a palavra resumiam um d' esses dramas pungentes de intima poesia , que vivem escriptos no coração d' um homem , e que só podem comprehender as intelligencias superiores , desterradas pelo destino , a uma posição obscura , e inferior á sua ambição , e ao seu talento . É que aquelle mancebo , pobre , ignorado , e perseguido pela miséria , amava uma mulher rica , -- nobre e poderosa : é que entre elles havia um abysmo , que só um milagre do destino poderia fazer desapparecer : não eram só as distincções sociaes que separavam aquellas duas existências , um outro sentimento que vive quasi sempre unido aos dotes de uma alma altiva -- o orgulho . Antes que o homem tenha consciencia do que vale -- soffre grandes luctas , e frequentemente descrê de si mesmo . Incertesas cruéis , que devoram o pensamento , e que só se acalmam , quando um grande successc , uma circumstancia inesperada , nos manifesta o que somos e o que podêmos . O amor fôra para Mauricio uma revelação . D ' um banco do theatro vira um dia n um camarote uma donzella vestida de branco , e que realisára n ' um relance todas as vagas idéas que elle formava de uma formosura angélica e innocente . Apenas a viu , sentiu essa commoção electrica , symptoma de um amor profundo , vehemente e exclusivo . Mas o que era elle , zero social , para poder levantar os olhos para essa mulher , e dizer-lhe : -- " Amo-te , como amo a Deus , como amo a gloria , como amo as magnificências da naturesa ! " Ás vezes , via a apparecer em sonhos , sorrindo com o sorrir desdenhoso que frequentemente pousa nos labios das mulheres orgulhosas : e o rubor subia-lhe ás faces , e sentia-se mesquinho e pequeno deante d' aquelle despreso , que o anniquilava . Então perguntava a si mesmo se Deus o destinára ao supplicio de uma vida obscura ; se não chegaria um dia , em que dissesse a essa mulher : -- " Gloria , poder , fortuna , tudo quanto alcancei pela energia da minha vontade é teu , e eis-me aqui a teus pés pedindo que o acceites , em nome do meu amor ! " E então conheceu que Deus lhe concedêra essa celeste faisca , que nem sempre luz pura e desassombrada , e que os olhos do mundo às vezes só devisam quando as illusões da vida se desfolham , ou quando está próxima a hora da eterna viagem . Cesar lendo a Vida de Alexandre , chorava de enthusiasmo e de angustia por se sentir pequeno deante de tanta gloria , e por reconhecer que na mesma edade apenas maravilhára os elegantes de Roma pelas suas loucuras : mas poude depois , com penna tão Veloz como a espada , historiar a brilhante campanha das Gallias , que ainda hoje a posteridade admira . Mas que póde fazer um homem , quando o seu paiz adormece em somno lethargico , quando só se ouve o zumbir das pequenas intrigas , e das mesquinhas paixões , quando a gloria foge aos esforços da mais poderosa e energica vontade ? Mercadejar com a intelligencia no traficar da vida politica , servir a mediocridade , para a dominar depois , ou esperar tudo da fatalidade dos acontecimentos ? Mas o tempo nada respeita : n ' esta carreira aonde as dôres se multiplicam , deixa-se cada dia um nobre sentimento , e quando se póde attingir o alvo , já a alma está gasta e cançada , já nos sentimos frios e inertes perante as magnificências que outr'ora nos seduziam a imaginação . Tal era pouco mais ou menos a situação moral do personagem que fazemos entrar em scena . Era a mulher que elle so-nhára que passava esplendida e bella , mas que nem por esmola lhe lançava um desses olhares , que ao menos reanimam a esperança , e não nos fazem descrer de todo da felicidade ! Cruel supplicio ! Elle que tanto a amava , seria apenas para ella um vulto entre tantos Vultos , apenas uma imperceptivel unidade entre as turbas que contemplava indifferente ! -- Oh ! exclamou elle seguindo a carruagem com os olhos -- é a grandesa do meu orgulho que ainda mais me afasta de ti que as soberbas do teu nascimento ! Grito ingénuo de um coração , que as tempestades da vida ainda não crestaram . A procissão descia d ahi a momentos vagarosa e solemne pelas ruas . Viam-se ali retratados os diversos acontecimentos que teem transformado os destinos da nossa sociedade . A Babel das dis tincções que tem convertido tanto lacaio em funccionario publico , tanto negreiro em barão , as fardas bordadas , os crachás , os mantos de cavalleiro , os arminhos de par , tudo quanto alimenta a vaidade , e prepara materia prima para os Molière e Lesages futuros , pintores dos M. Jourdains e Turcarets da nossa época . Mauricio não invejava essas ostentações , que mal se combinam com os altos instinctos de um poderoso espirito : mas sentia a sua pequenez , vendo-se confundido no meio da multidão , humilhado pelo luxo que o deslumbrava , acotovelado pelo espectador , que fôra ali trazido por uma curiosidade banal . Sentiu então um d' esses intimos desesperos em que a voz se desata em soluços convulsivos , que comprimem e abafam o peito . Elle -- o engeitado d' essa civilisação que o deprimia ! -- mal podia erguer os olhos para a mulher que amava , emquanto tantos outros teriam o direito de a olhar , de lhe fallar , de poderem talvez ser correspondidos ! Quando as carruagens desfilaram depois da passagem da procissão , quando elle viu a mulher dos seus sonhos debruçada elegantemente para um cavalleiro , que corria ao lado da carruagem , teve um d' aquelles accessos de ambição omnipotente , em que se declara a guerra á sociedade . Instinctivamente , ameaçou com um gesto soberano aquella grandesa , que o esmagava . Era um momento comparável áquelle que fez do escravo Spartaco , o heroico rebelde , que esteve a ponto de anniquillar o poder de Roma ! Depois reconheceu o pouco que valia : sentiu o sentimento de desalento que deve accommetter a aguia , quando encerrada na gaiola , tenta elevar o vôo e a quem falta espaço . Foi interrompido da sua meditação , pela pergunta dum homem que passava : -- " Appareces hoje á noite ? " disse-lhe elle . " Hoje mais do que nunca ! " respondeu Mauricio pegando-lhe convulsivamente na mão , chamado á vida real , a essa vida triste e desconsolada , em que se lucta para satisfazer as primeiras necessidades materiaes , longe dos elevados pensamentos e dos dourados sonhos que devoram a imaginação do poeta . O pobre mancebo privado da apparição que o encantára , caminhou com passo descuidado e lento , repetindo , a meia voz , aquelles versos do grande lyrico francez : Lasciate ogni speranza , voi che entrate Poucas scenas affligem mais uma alma sensivel do que o aspecto de uma casa de jogo : vêr aquellas plrysionomias , que se estendem em torno d uma mesa , com os olhos ávidos , com a respiração anciosa , animadas pela emoção do ganho , outra vez contristadas , quando a sorte lhes é adversa . O jogo não é uma nobre paixão , mas é uma grande paixão , e raros homens deixam , em certo periodo da Vida , de quererem experimentar as devoradoras impressões que elle offerece A casa aonde vamos levar o leitor era situada n ' uma das ruas d' esse , se não formoso , ao menos pittoresco bairro da Mouraria . Entrava-se n ' um pateo , aonde cães , gallinhas , carneiros , e gatos viviam n ' uma promiscuidade extravagante : a um dos lados havia uma escada de pedra , d' estas que ainda se vêem pelas aldeias : uma porta verde no topo , a que mysteriosamente se batia , dava ao jogador livre accesso n ' um espaçoso aposento de tecto antigo de traves , com paredes enfurnadas , e pavimento coberto de poeira , e já em partes arruinado ; a imagem de um celleiro de lavrador pouco abastado . O jogo , n ' uma sala , entre pessoas da alta sociedade , que se vêem obrigados a respeitarem se e a dissimularem as suas impressões , é bem differente d' este jogo , que admitte todas as classes , que acceita o dinheiro do rico e do pobre , do ratoneiro e do mendigo , do filho de familia e do modesto operário . Era o jogo da miséria , aonde o vicio apparece nú e descoberto , cynico , grosseiro , não poupando as pragas , os brados de cólera , as exclamações de despeito , as obscenidades e os vituperios ! Os jogadores estavam apinhados em roda de uma mesa comprida , coberta d uma cousa , a que chamavam panno Verde , cheio de nodoas , queimado e desfeito , e sobre o qual chovia a cinza de cigarros : eram rostos , mais ou menos paliidos , macerados pela vigilia , que ardentemente seguiam os movimentos do banqueiro . Mauricio jogava também-A nobre physionomia do mancebo parecia estar ali desterrada entre indivíduos , nos quaes predominava a animalidade dos instinctos . O moralista ou o philosopho que quizer comprehender e analysar as causas de muitos crimes , deve descer a esses centros subterrâneos e mysteriosos , verdadeiras catacumbas , aonde se occulta a mais torpe devassidão , e os sentimentos se pervertem no contacto com o crime , com a abjecção e a infamia . O dinheiro que a banca devora procede às vezes de um roubo fraudulento , é a subsistência de uma familia que geme de fome a essa hora , é o fructo das lagrimas que a humilde costureira verte sobre a renda , que os seus dedos entreteciam , esperando o beijo do amante . Nada ha que realise melhor a egualdade do que o vicio . O olheiro , por exemplo , era um antigo negociante , que gyrára com uma boa fortuna , que a perdêra jogando , e que reincidindo cada vez mais na infernal paixão , estendia a mão a um salario aviltante , para depois o arriscar ! De intervallos a intervallos , apparece aquilio que na linguagem do jogador se denomina um pato . É um morgado da província , um caixeiro abonado de escriptorio , algum dono de loja ou fabricante , e a esse em geral , e segundo a terminologia procuram depennal- o . Seria um estudo a fazer o notar a successiva graduação pela qual um rosto ingénuo , franco e leal , se transforma n ' uma cabeça de Medusa , de olhos desvairados , cabellos hirtos , labios espumando , dentes que rangem , e musculos que se contrahem á proporção que o banqueiro lança de um e outro lado as cartas do baralho . Mauricio estava n ' essa situação vulgar para os jogadores que amam o jogo pelo jogo , queria perder . E todavia , apezar de iazer paradas atrevidas , a fortuna seguia todos os seus palpites . Quando estava mais empenhado em seguir os movimentos do banqueiro , sentiu-se tocado levemente no hombro , e viu estender se uma mão avida , e dizerem lhe com voz submissa : -- " Empresta me doze Vinténs ! " Era um d' aquelles pontos infelizes que Nicoláu Tolentino tão chistosamente descreveu n ' uma das suas satyras . -- Tire d' ahi ! respondeu Mauricio , sem se mover . Um movimento de alegria servil , se é permittida a associação das palavras , veio manifestar-se no rosto do misero jogador , que sem dinheiro até ali para arriscar , experimentava as agonias do suplicio de Tantalo . -- Já não sigo o teu jogo , Mauricio , vaes perder , exclamou um joven estudante , que assistira a toda a scena . -- Vou perder ? Porque dizes tu que vou perder ? perguntou Mauricio . -- Esse pobre diabo é o Calisto constante de todos os pontos , e pessoa que lhe empreste , deve perder a esperança de nunca mais ganhar uma parada . Insoffrivel belisario ! Parece que o banqueiro de proposito o tem aqui para nos fazer perder ! -- Cala-te , homem ! Eu jogo , não para ganhar , mas para me distrahir . Quero tornar me estupido com essas cartas e dados , e affrontar a sorte , até que ella se cance de me favorecer ! Mauricio continuou praticando o que dizia . Fez paradas loucas , mas conseguiu , segundo a phrase consagrada , levar a banca á gloria . -- O monte ! o monte ! bradaram algumas vozes , applaudidas por todos aquelles que estando já sem meio de apostar , seguiam entretanto o jogo , com a Vaga esperança depoderem tirar a desforra . Mauricio aproximou se do estudante , que lhe fallára , emquanto o banqueiro se assentava , limpando o suor que lhe corria em bagas pelo rosto . -- Para que jogas tu , meu amigo ? disse o estudante a Mauricio com voz pauzada e triste . -- Porque me perguntas isso , pobre innocente ? Nunca lêste Leone Leoni , o romance immortal da grande escriptora do seculo ? O jogo é a primeira das paixões , é uma paixão mais energica que o amor : é uma paixão que resume todas as paixões como o arco iris todas as côres do prisma . Aofide viste tu que um homem podesse passar de rei a mendigo , de rico a miseravel , n ' um salto , n ' um improviso , n ' algumas sortes de dados ? O jogador vive em regiões inaccessiveis aos outros homens , e quando está rico , quando vê no ouro amontoado a satisfação de todos os seus desejos , procura por todo o modo arruinar se e empobrecer , para gosar d' essa terrível emoção , sem a qual a vida é perfeitamente insipida . O jogo é o paraiso das almas energicas -- viva para sempre o jogo ! -- Mauricio ! Mauricio ! o orgulho ha de te perder ! -- Orgulho ! que me importa a mim o orgulho ! Acaso me deu Deus coração , para que eu o enterre n ' uma camada de gelo ? Não me deu o sangue para a vida e o corpo para o prazer ? -- Acabe a banca franceza ! o monte ! queremos o monte ! bradou um dos parceiros . O banqueiro , que Vamos descrever era um typo . Percorrêra todas as estações que successivamente aproximam o jogador do crime . Começára por ser pato , e perdêra a pequena fortuna que lhe haviam deixado seus paes : depois , convertêra- se em ponto de especulação , o que arrisca uma certa somma , em duas ou tres paradas , contentando-se com a sua diaria , se por acaso ganhou . Era agora um mestre eonsummado na batota , e ninguém fazia com maior pericia um pegote , e , empalmava com mais destresa uma carta . A lealdade no jogo é , afinal , uma cousa tão difficil de encontrar como a flôr que chora , de que faliam os poetas italianos . O ouro , que sempre apparece luzindo deante dos olhos , perverte os caracteres mais firmes ; aqueila vida de convulsões e angustias , faz desfallecer a força mais estoica , e é quasi impossível que o stigma da deshonra não Venha no fim de alguns annos manchar o jogador , por mais innocente que elie fosse ao principio . O banqueiro parou , e pousou as cartas : estendeu o pescoço , com aqueila avidez da cegonha quando enxerga um reptil enroscado entre os arbustos : e mediu a assembléa com o olhar resignado do general que coma as filas rareadas , depois de uma batalha . Viu claramente que os pontos estavam reduzidos ao ultimo extremo , e com aquella grosseria , que acompanha o vicio descarado , perguntou com insolência : -- Tem vocês dinheiro para apostar ? Parece que já estão todos á paz de piroto , e , não sou tão tolo que mude de jogo para que se possam desforrar , arriscando alguns patacos . Os jogadores olharam com ar compungido uns para os outros , e não se atreveram a replicar . Mauricio levantou-se , n ' um impeto de súbita cólera , e olhando para o banqueiro com um olhar fulminante , bradou , com voz aspera e convulsa : -- Quero eu , mando-lhe eu que jogue o monte ! -- Se é esse o seu desejo , não terei eu dúvida em mudar para o monte ; disse o banqueiro com um ar tão attencioso , que maravilhou , pela novidade , os parceiros habituaes da casa . Queixam se hoje dos romancistas , por serem minuciosos na descripção . É-se realmente injusto , com esse genero de talento , que tanto contribúe para dar colorido e sentimento aos quadros da Vida intima . Quanto não Vale no Père Qoriot , a admirável pintura da Maison Vauquer ! Que seria Walter Scott sem esse supremo dom de resuscitar , pela intuscepção quasi mystica do passado , o viver , e os instinctos sociaes das gerações desvanecidas ! Os caracteres , as paixões , que talvez na sua essencia não variam , tomam formas múltiplas e desenvolvem-se pelo influxo de circumstancias completamente diversas . Um gesto , uma palavra , um simples movimento , nas regiões da vida moral , significa tanto como no mundo physico o fragmento do animal fossil , pelo qual Cuvier reconstruia os animaes ante-diluvianos . O banqueiro olhado superficialmente , e sem grande attenção , parecia dotado de uma physionomia commum . Era um homem que teria trinta e cinco annos quando muito , com cabellos negros , mas já misturado com algumas cans , com o rosto pallido e livido , mais pelas vigílias e cuidados , que pelos estragos de doença-Era nos olhos todavia , que se lhe revelava a profunda corrupção , e a manha abjecta a que fôra conduzido pelas suas paixões insaciáveis . O jogo começou d ahi a pouco , e a sorte Voltou se contra Mauricio , sem o poupar uma unica vez-Em breve , perdeu tudo quanto ganhára , e mesmo o dinheiro que levára . Levantou-se e atirando o ultimo pinto sobre uma carta : -- Ahi vae , para decidir ! -- Fôste a uma dama ! É perda certa ! disse um dos parceiros . O banqueiro ganhou , e pondo as cartas na mesa , disse : -- Era este senhor quasi a unica pessoa que jogava , e como decerto não deseja continuar , são horas e mais que horas de sair . E dirigindo se para Mauricio com voz mais branda : -- Quer dinheiro ? Mauricio olhou para elle assombrado . Estas franquesas não estavam nos habitos do banqueiro , e os circumstantes olharam uns para os outros , com o pasmo que os accommetteria , vendo o tigre tornar-se espontaneamente em manso cordeiro . Mauricio ao principio , pareceu com o gesto recusar : depois emendando-se , disse com bastante enleio : -- Acceito o seu favor , mas por pouco tempo . O rosto do banqueiro pareceu alegrar-se e dando o braço a Mauricio , saiu com elle . -- Aposto a minha cabeça , disse um , e não aposto lá grande cousa , que Mauricio teve uma herança , e que o tratante já o sabe ! -- Ou talvez lhe chegasse do Brasil algum tio , encarregado de lhe arranjar um casamento , á moderna , isto é , de pouco amor e muito dinheiro ! -- Para que se cançam ? exclamou um velho jogador , homem sabido e corrido nos mysterios da gafa , dos dados chumbados , e do trombone aperfeiçoado , temos mulher em scena . -- Mulher ? -- A amiga de Mauricio , linda como um anjo , e meiga como uma pomba . -- Já a viste ? -- Entre vidros , como as relíquias . -- Um jogador apaixonado sem ser pelas cartas e pelos dados ! -- É que se parece com alguma dama de copas , de ouros , e lhe-hia para palpite ! O banqueiro entrou d' ahi a pouco , esfregando as mãos . -- Olé ! ainda por cá estão ! é sair , é sair ; são já trez horas da noite e ninguém me paga o barato das luzes que se vão gastando ! D ' ahi a pouco escoavam se aquelles vultos pelas trevas da noite , e a immunda espelunca , segundo a phrase energica dos estudantes da Universidacte , ficou entregue ao silencio . Amor n ' uma agua-furtada O bairro -- Alfama é uma das curiosidades archeologicas de Lisboa , e não só os edifícios , mas até mesmo os habitantes parecem pertencer a mundo separado por séculos , do nosso tempo . Na architectura póde-se frequentemente estudar a historia dos costumes , e as adufas , que ainda ornam as janellas de algumas das antigas habitações , indicam que o ciume dos arabes procurara todos os meios para subtrahir as suas mulheres á vista dos estranhos . Pela cidade baixa adivinha se o genio austero , o sentimento de unidade administrativa do marquez de Pombal , e não menos a inferioridade social da classe media naquelle tempo . Os quarteirões são gaiolas enfileiradas , numeradas , uniformemente similhantes , e quando se passeia uma hora no seio d' aquella regularidade monótona , carecé- se de ir tomar ar , de espairecer a vista por uma campina ou uma montanha . Mauricio habitava o bairro dAlfama , e não se podia saber se era por predilecção poética , se pela commodidade do preço . A verdade É que a Alfama com as suas ruas mouriscas , os seus fragmentos de architectura gothica e mosarabe , as suas rotulas do antigo regimen , convida a namorar de escarrinho , e a repetir aquelles versos de Nicoláu Tolentino : Senhor||_Francisco_Bandalho_Fita Francisco|_Francisco_Bandalho_Fita Bandalho|_Francisco_Bandalho_Fita Fita|_Francisco_Bandalho_Fita verde no chapéu ! Eram quasi quatro horas da manhã quando o nosso poeta subia a rua dos Cavalleiros , e tomando pelo arco de Santo André , bateu á porta de uma casa , cujas apparencias muito depunham a favor da sua antiguidade , subindo a um d' esses últimos andares que não sabemos por que mysterio de etymologia se denomina -- Agua furtada . Appareceu-lhe uma velha , que pelo modo de vestir e aspecto garrido pertencia certamente aos saudosos tempos do minuete da côrte , e do landum choradinho , e entrou para um . aposento , que no genero e estylo , concordava com esse bairro , que abandonado quasi iníairamente pela gente abastada , acolhe a população mais pobre e miseravel . A um dos lados do aposento , recostada n ' um canapé , dormia com aquelle somno profundo que succede ás grandes fadigas uma mulher ainda no verdor da mocidade . O corpo esbelto e franzino , que um roupão de cassa branca envolvia , sem occuitar as suas elegantes fôrmas , o seu rosto pallido , mas sereno , e as mãos que ella cruzava sobre o peito , e que bastas tranças de negro cabello quasi que inteiramente encobriam , davam-lhe o aspecto d' uma dessas estatuas de virgem que o cinzel italiano suavemente esculpe sobre os tumulos de marmore . Uma lamparina que allumiava a imagem de Nossa Senhora , uma mesa coberta de papeis e de livros , revelavam o amor do estudo no homem , a crença fervorosa na mulher . Mauricio , como vimos , tornara se sceptico e materialista , mas a sua alma era generosa e boa . Ao vêr aquella mulher que elle arrancára ao seio da sua família , e que supportava com angélica jesignação os caprichos phreneticos , os loucos accessos de sensibilidade , os morbidos periodos de abatimento , que agitavam a sua existência , con-demnada á paixão e ao desespero , como sempre acontece nas organisações nervosas e acerbas , sentiu o coração movido á piedade . E todavia não ha cousa que offenda mais a sensibilidade intellectual do poeta do que esta monstruosa associação da formosura e da miseria ! Paulina , que era o nome da mulher que dormia , de dia para dia ia tendo menos influencia sobre o seu coração , porque sobre ella , e porventura por causa d' elle , adejava a miseria hedionda , asquerosa , cruel , com o seu trabalhar obstinado e incessante , com a fome , com o frio , com o isolamento , quasi com os andrajos da mendicidade ! Pobre , humilhado , perseguido de credores , quasi sem esperança de melhorar de sorte , e com a tremenda responsabilidade do destino de uma mulher , que n ' elle lealmente confiára , Mauricio não pôde suster as lagrimas e soluçou . Paulina estremeceu , como se um magnético instincto lhe denunciasse a pessoa que chorava , levantou-se meia adormecida , abriu os olhos , e vendo Mauricio levantou se n ' um pulo , e correu para elle . -- Porque choras ? Não foste feliz ao jogo ? Bem o devia adivinhar ! Adormeci , deixei-me adormecer , sem rezar uma oração para que a sorte te favorecesse ! E escondeu o rosto no seio do mancebo . -- Paulina , para que Velar até horas tão adeantadas da noite ? Estás tão pallida ! Tens tão desfigurado o rosto ! -- E para que te recolhes tu tão tarde ? Já não és para mim o mesmo que eras quando começámos a viver juntos ! Estavas horas inteiras ao pé de mim ! Passavas dias inteiros comigo ! Agora , vejo-te tão poucas vezes ! Parece já que te não lembras que existo no mundo ! -- Pobre Paulina ! Não queiras saber os motivos que me levam a afastar me de ti ! Sabe só , que o fogo que me abrasa por dentro , deve assimilhar se ao que devora no inferno os eternamente condemnados ! -- Mas amas-me ainda ? O que eu não quero é perder o teu amor ! -- Não te amo ? Quem te disse que já te não amo ? exclamou Mauricio , deixando escapar o seu segredo n ' aquella involuntária exclamação . -- De que te serve o meu amor ? Para que te hei de eu amar ? Como posso , unido a ti por inflexível cadeia , deslumbrar essa sociedade , que eu ' odeio , que eu abomino , e que todavia me attrahe como o precipício attrahe o viajante , perturbado pela -- Vertigem ? Mulher , porque te não fez Deus grande pelo coração , como te fez sublime pela intelligencia ! Paulina comprehendeu pela intonação colerica e vibrante d' aquella voz , que Mauricio a queria abandonar , e caiu quasi inanimada sobre o canapé : ficando envolta nas tranças do seu cabello , parecia a imagem da S.||_GenoVeVa GenoVeVa|_GenoVeVa , da lenda popular , quando errante e solitaria divagava nos bosques do Brabante . Vieram as lagrimas depois : lagrimas de intima agonia , que só uma vez se choram na vida , porque é unico e exclusivo o amor que as faz verter . Aquella scena todavia era pungente , mas estava contida na lógica inflexível que domina as paixões humanas . As allianças deseguaes , na ordem moral , cedo se quebram , quando a chamma do amor enfraquece . Paulina não comprehendia a poesia , não via no seu amante senão um homem , e não a intelligencia superior , que queria elevar se , e que tantas vezes se perdia nas regiões sublimes , do mundo poético . A alma de Mauricio , como a d' esses marinheiros intrépidos , que a tristesa devora , quando a tempestade os não procura , adormecia na bonança de um affecto tranquillo e resignado . Podia elle acaso vasar no seio d' essa mulher os sentimentos , absurdos talvez , que o dominavam : os delirantes sonhos que perturbavam a sua imaginação , essas vagas impressões , que nem a poesia , nem a língua humana pódem traduzir , mas que realmente se apoderam de nós , e como nos transportam a mundos ignorados , e que parece havermos outr'ora percorrido ? Mauricio teve , naquelle momento , o desejo de se afastar para sempre de Paulina . Nos seus pensamentos egoistas de ambicioso , Via que na sua situação , não era senão um obstáculo , e já com muitos tinha elle de luctar . Levantou-se com impeto e dirigiu-se para a porta . Paulina , encontrou no seu amor ultrajado , força para se conter , para dissimular o que soffria-As lagrimas seccaram se nos seus olhos por um impulso vigoroso de vontade , levantou a cabeça com gesto altivo , e afastando com resolução os cabellos que lhe caíam sobre o rosto , olhou fitarnente Mauricio com um olhar de severa accusação ! Um homem por pouco artista que fosse mal podia resistir á influencia d' aquella rapida transformação Esta mulher , que soubera comprimir a violência da dôr que a torturava , era bella na pallidez e no desespero do seu amor despresado . O dia começava a despontar n ' aquelle momento Aos baços clarões da luz , que embranquecia com uma refracçâo duvidosa o quarto , aonde se passava esta scena , as duas physionomias assumiram essa indefinivel expressão que raras vezes a pintura póde reproduzir nas suas invenções . Paulina , com as faces crestadas pelas lagrimas , com as tranças caídas , com os olhos negros incendidos pela paixão , com os dentes cerrados por uma crispação nervosa , era a imagem dessa cólera augusta , que impera pelo gesto , que reina pela energia do sentimento moral , que desafia o genio da palavra , na muda eloquência da expressão . Mauricio , de braços cruzados , olhava-a com um olhar socegado e quasi adormecido . Meditava comsigo mesmo quanto era difficil , nos romances mais ou menos completos , que atravessam a Vida , encontrar duas almas , que se comprehendessem , que se podessem amar com egual affecto , que se confundissem absorvidas na mesma adoração ! Um raio do sol que começava a despontar no horisonte veio illuminar-lhe o rosto , e esclarecer com a sua luz ainda frouxa o triste aposento aonde esta scena se passava . Mauricio , n ' esse momento , com os seus negros cabellos , os seus olhos rasgados e fascinadores , a sua tez pailida , e já amortecida pelo abuso do trabalho intellectual , e de uma Vida desordenada , podia servir de argumento aos que pretendem explicar todas as modificações da matéria pela acção constante do espirito que a domina . -- Olha , Paulina , disse Mauricio , sei que mereço o teu odio , nem posso , não me é licito attenuar o crime que commetti ! Chora com lagrimas inconsoláveis o dia fatal em que me viste ! Podias ser feliz , e ficaste perdida para sempre ! Não era este coração que te podia amar , como merecias ! Odeia-me , podes odiar-me , mas accusa antes a fatalidade que me persegue ! -- Eu odiar-te , a ti , isso nunca ! exclamou Paulina commovida por aquella dôr que era sincera : bem conheci que não podia ser amada por um homem , que Deus fadou tão grande pelo talento , eu , fraca e obscura mulher ! E apertou-o de novo nos braços , derramando copiosas lagrimas . Mauricio beijou a na testa , com uma solemne tristesa : depois , sentiu-se impellido pela vaga esperança de poder elevar aquella mulher até comprehender os pensamentos que lhe dominavam o espirito . Baldado empenho ! O milagre de Moisés fazendo brotar agua de um rochedo com a varinha , não se reproduz no mundo moral . -- Ouve-me , Paulina , e vê depois se eu sou digno do teu perdão , vê-se a minha vontade póde resistir á lei fatal , que me domina , que dispõe de mim . Sou ambicioso , e a ambição é uma d' estas amantes imperiosas , que como a Messalina da antiguidade , pódem cançar-se mas nunca saciar os desejos ! -- E queres que eu então lucte com um tão poderoso sentimento ! exclamiju Paulina com funda melancolia . -- Espera , espera sempre ! Póde ser , que eu atormentado por estas crises , olhe afinal com deleite o oásis , aonde possa repousar , e o prefira a esta interminável Viagem , aonde a terra da promissão sempre se alonga na linha fugitiva do horisonte ! Talvez que eu chegue a poder apreciar esse coração , que respeita , se não comprehende as agonias que me devoram ! -- E para que não te resignas desde já á tua sorte ? -- Não peças aos rios , que parem na sua corrente impetuosa , nem ao oceano que amanse as suas ondas embravecidas , nem ás nuvens que se fiquem immoveis no espaço que te não hão de ouvir ! Deus creou-me assim ! Mas ouve : dir-te hei quanto soffro e talvez te compadeças de mim ! E Mauricio passou a mão pela testa , que ardia em febre , como para avivar na memoria as tremendas lembranças do seu passado ! Ha certamente momentos na vida em que o caracter mais reservado , não esconde os segredos da sua alma , e patenteia os intimos intuitos da sua ambição . Bonaparte , coroado pela fortuna na batalha de Marengo , não póde conter-se , que não escreva aquella carta ao Imperador de Allemanha , em que se mostra deslumbrado pelo triumpho . André Chénier , em face do cada falso , sentindo que um grande destino ia ser cortado em flôr , profere aquella sublime phrase , que hoje se tornou banal , á força de ser repetida : " Pourtant , j ' avais quelque chose lá ! " A existência de Mauricio era por assim dizer a imagem de muitas , que nascem das circumstancias especiaes da nossa época . Filho de um official realista , morto n ' uma das batalhas d' essa guerra fratercida , Vira-se sem pae quasi ao sair do berço . Quando criança , fôra educado nas mais severas praticas religiosas , e no culto cego e inexplicável que uma grande parte do paiz prestava ao nome de D. Miguel ; vivendo até aos doze annos quasi na miséria , n ' uma das provincias do Norte , Vira se orphão n ' aquella edade , porque sua mâe não pôde resistir ás angustias , e desgostos de uma inconsolável viuvez . Mauricio nascêra com uma intelligencia facil e penetrante , e em breve perdera as crenças da juventude , no contacto com o mundo . O absolutismo appareceu-lheum dia com os hediondos caracteres que o distinguem , e não quiz sacrificar-se á poesia do infortunio , que Chateaubriand poz em moda , porque a idéa não valia tão sublime sacrificio . Para os homens novos , essas formas caducas do antigo regimen , que parecem inventadas para tornar esteril toda a iniciativa intellectual , converter-se hiam em obstáculos invencíveis a qualquer pensamento de nobre ambição . Arremessado aos quatorze annos no tumulto da capital , tivéra de se sustentar , como Rousseau , do trabalho machinal do copista , e na estreitesa e improbas fadigas de tal profissão , pôde entregar se ao estudo . Lendo avidamente a historia , sobretudo a historia moderna , já a sua intelligencia penetrára em todos os problemas da política , e a acção dos acontecimentos que se succediam com uma variedade própria das quadras revolucionarias , amadureceu a sua precoce experiencia . Mostrára a sua vocação , escrevendo alguns pamphletos , cheios de energia , e de vivacidade pittoresca . Lançára- se na critica implacavel de medidas que elle suppunha timidas e incompletas , porque reconhecêra a distancia que o separava dos mediocres vultos , que dirigiam os negocios publicos . Apreciando , pelo que lêra , o que devia ser um homem de estado , Via os que governavam desperdiçando as forças de uma situação excepcional em questões de mesquinha influencia , e nas intrigas , que mancham todas as obras , grandes ou pequenas , da política . Vira o que se podia esperar em dois annos de um governo que conhecia a sua fraquesa , e que vivia de expedientes . Em 1835 abraçava com ardor e fervido enthusiasmo as doutrinas e sentimentos da opposição . Mauricio , todavia , medira , com olhar seguro , as difficuldades da sua posição na vida política . O talento é uma grande força , quando a gloria o póde coroar com os seus prestígios , quando a fortuna lhe multiplica a influencia . No governo representativo , a propriedade é e será sempre o elemento social preponderante . Uma grave falta viéra tornar mais precaria ainda a sua situação . Amára uma mulher e ligára- se a ella . No calor da lucta , a mulher é sempre um obstáculo , e quasi todos os grandes ambiciosos são castos , por profundo calculo . Vira a , nos primeiros Verdores da mocidade , idealisára- a na sua imaginação , e nos primeiros delirios do amor , julgára-a a Margarida de Fausto , vindo com um innocente beijo refrescar a sua fronte escaldada pelo fogo da meditação . Paulina não era a mulher que podia operar sobre Mauricio o effeito que a harpa de David produzia sobre os furores de Saul Em breve o seu coração procurou outros horisontes . Aquelle dia era o dia da crise que devia separar duas existências heterogeneas . A sua ligação tornára se um martyrio . Mas antes , pungido conjunctamente pelo fastio da vida e pelos remorsos entregára- se aos prazeres devoradores da devassidão . Seriam loucas e absurdas as pretenções do mancebo , mas nem pel ' o serem , o seu padecer se tornava menos acerbo . Paulina poderia porventura , ser sublime , inspirada pelo coração n ' uma circumstancia excepcional , mas não possuia o dom , nem o segredo de dar poesia ás emoções do proprio sentimento , que a dominava . Os thesouros da sua alma não os podia manifestar entregando se aos cuidados vulgares , que mesmo em mais abastadas existências , pesam ás organisações demasiadamente poéticas . Mauricio sentia o desejo de vasar n ' algum coração as dôres que o torturavam . Chegára a uma situação terrivei . Tinha a escolher entre a fome e a infamia ! Haviam-lhe proposto , para o salvar , um contracto de ignominia , o subordinar a sua intelligencia ao egoismo de um partido , e ás vaidades de um homem . Fôra o jogo que o conduzira áquelle terrivel extremo . O ambicioso , que devêra só trabalhar , e confiar no destino engolfára- se n ' esses vicios que enervam a vontade , que degradam a intelligencia . Não foi sem o conhecimento profundo dos segredos da alma humana que a Egreja introduziu a confissão entre os seus preceitos . Ella torna-se , nas grandes crises da vida , uma necessidade imperiosa , e Mauricio via se n ' aquelle momento á borda de um abysmo que o fascinava . -- Perder , ter de perder tudo ! ter de immolar a minha ambição ás miserias d' esta vida ! Paulina vê como eu sou desgraçado ! -- exclamou Mauricio fitando-a com um olhar de desespero . -- Que é ! que é ! dize ! não estou eu aqui para te consolar ? -- respondeu Paulina com ternura . -- E que vale isso ? Que me importa esta vida , se tenho de abandonar as minhas esperanças , o meu sonho , o meu futuro ! E eu sentia aqui dentro um pensamento grandioso e elevado ! Erguer do nada um povo abatido , regenerar uma sociedade peia energia de uma idéa , aproveitar toda a força dos acontecimentos para resuscitar um povo ! ... o que são elles , esses homens insignificantes , que se revolvem nos delirios da sua própria incapacidade , e de vaidades pueris ? ... Eu sim , sentia que as revoluções não se aproveitam , senão dando nova fórma ás sociedades caducas ; tornar Portugal digno das suas tradições , era dar ao meu nome uma fama eterna , e expirar no seio da gloria ! E querem agora que eu venda este talento , que eu me curve aos seus caprichos ! Morrer ou abdicar ! E sentou se na cadeira , como se a luz de um relampago lhe deslumbrasse a vista . Paulina , foi com algumas palavras apagar o ultimo clarão de affecto que lhe pertencia n ' aquella alma , revelando o quão pouco podia comprehender os pensamentos do seu amante . -- E porque hesitas -- disse ella -- não é melhor viver socegado , com a certeza do pão d' ámanhã ? Não o digo por mim : mas quem avalia esses trabalhos em que consomes a vida , e pelos quaes adquires inimigos irreconciliáveis ! Disseram-me ha pouco que te poderiam prender , se continuasses a fallar mal do governo ! Bem vês que deves acceitar ! ... Mauricio levantou-se como se lhe tocassem com um ferro em brasa , e com as faces convulsas pela cólera ; a sua physionomia tomára uma expressão terrivel , porque perdêra de todo a esperança , talvez egoista , de erguer aquella mulher ao seu nivel . -- Não ! tu já não pódes viver comigo mais um instante ! E's uma alma fria e vulgar , que não comprehendes quanto é infame o homem que mercadeja com o que Deus lhe deu de mais sublime -- a intelligencia ! É que não vês que eu tenho de abandonar a esperança infinita da minha vida , e de comer o meu pão amassado com as lagrimas da vergonha , e os despresos do mundo ! -- Para que buscas pretextos para te separares de mim , Mauricio -- disse Paulina com voz grave e affectuosa -- conheço que já me não amas , que já não és capaz de sentir por mim o que sentes talvez por outra . Quem te descobriu esse segredo ? Como soubeste que eu amo outra mulher ? -- exclamou Mauricio verificando pela sua exclamação aquella desconfiança vaga . -- Bem m ' o dizia o coração ! amas outra ! -- bradou Paulina com delirio . -- E que te importa ? -- respondeu Mauricio n ' um accesso de orgulho -- amo-a porque é bella , porque para ser amado , necessito de ser grande e poderoso ! E hei de selo ! -- repetiu elle em voz mais sumida , descobrindo n ' um gesto convulsivo aquella testa espaçosa , aonde se lia toda a anciedade dos seus desejos ambiciosos . Paulina já não ouvira estas palavras . Estava desmaiada . Sorrisos e lagrimas Passar de uma agua-furtada a um palacio , é uma scena vulgar no nosso seculo , e talvez exprima uma das suas feições caracteristicas . Ou seja pelos vicios da organisação social , ou pelas paixões desregradas que dominam os individuos , a verdade é que a miséria segue a civilisação , e que as carruagens esplendidas que passam em desenfreado galope , sapicam de lama o indigente que ao canto da rua estende a mão á caridade publica . Vamos conduzir o leitor a uma das habitações mais elegantes d' esse romantico bairro -- Buenos-Ayres , onde vivia em aprazivel viuvez uma das mulheres , se não mais importantes , ao menos das mais celebradas do tempo . Era uma mulher politica , e quem a visse assentada deante de uma secretária coberta de livros , com o olhar altivo , a fronte arrogante , e o gesto sobranceiro , mal poderia comprehender , que nascendo nas mais elevadas regiões da sociedade , rainha das salas , pela formosura , pelas maneiras , e peio espirito , descesse ao ponto de se tornar docil instrumento das empresas de um partido . Os dotes com que a natureza a enriquecêra , serviam-lhe apenas para corromper , e para alcançar confidencias uteis . Sabia o preço dos seus sorrisos , e se podia ousadamente luctar em devassidão com as mulheres da regencia , que o sentimento do prazer physico apenas dominára , excedia-as na infamia . Taes são as aberrações que se encontram no mundo , e na vida ! A sua bellesa era por tal modo fascinadora , que vista de relançe , faria palpitar de enthusiasmo o coração de um artista , arrancaria dos lábios de um poeta um grito espontâneo de admiração Não possuia a regularidade , frequentemente destituída de expressão , do perfil grego . Era um typo meio peninsular e meio italiano ; às vezes , animava se daquela vivacidade hespanhola , que tanto impressiona e seduz os sentidos : outras vezes caía n ' aquelle languido desfallecimento , que na bella lingua do Dante se denomina morbidezza , uma das singularidades das encantadas regiões , aonde o sirocco tantas vezes sopra . Ha quem se admire de Vêr estas creaturas cujo coração pulsa com a regularidade physiologica da circulação do sangue , nas crises mais Violentas , simularem osimpetosde uma fogosa paixão , e imitarem com a voz as mais sentidas interjeições do amor : como se no século passado , não víssemos os sopranos , entes degradados , os Farinelli , e Cafarelli arrancarem das plateias lagrimas de profundo enternecimento , tal era a expressão apaixonada com que traduziam os mais maviosos sentimentos ! Estas organisações monstruosas , que seriam Racheis , ou Mars no theatro , na sociedade são sublimes aventureiras , cuja existência a philosophia vulgar do mundo poderia facilmente explicar . A viscondessa de era nem mais nem menos que a nympha Egeria , mas menos casta e mysteriosa , de um estadista , a que se ligára talvez um pouco pela vaidade que leva as mulheres a desejarem vêr os Hercules fiando submissos a seus pés . Esta ligação , entretanto , tinha o seu tanto ou quanto de financeira . Vendo se viuva , arruinára- se com uma rapidez digna de um morgado perdulario , e não carecia menos das caricias , que das liberalidades faustuosas do seu amante . Associada com elle n ' essas tenebrosas empresas de uma política que a sua impopularidade fazia descer aos manejos subterrâneos , o seu coração tornára se insusptivel de todas as nobres affeições , e apenas se revelava mulher , quando podia simulando as apparencias da paixão , seduzir os amantes , que unjas vezes o calculo , outras os desejos que acompanham uma naturesa sensual e ardente , lhe faziam escolher no mundo que a rodeava-Não se julgue entretanto , que a sua reputação fosse das mais condemnadas . É a triste sorte da nossa sociedade que as leis da honra e da moral tenham por incançaveis campeões e por professores sublimados as feias invejosas , as mulheres devotas de um duvidoso passado , e os homens que hypocritamente escondem os vicios sob a cortesia das maneiras . Com estas potencias estava a viscondessa em paz , e como offerecia de vez em quando uma chavena de chá , e recebia nas suas salas , tinha um partido que applaudia se nào as suas virtudes , ao menos , a sua amabilidade , e sentimentos de ostentosa beneficencia . A viscondessa passava já dos trinta annos . isto equivale a dizer , que sabia dissimular pela toilette os estragos do tempo . Vestida com um roupão de veludo verde mar , de mangas largas , com os braços envolvidos de finíssima renda , a sua mão de uma brancura deslumbrante , destacava na côr sombria do estofo : os seus cabellos , caíndo numa desordem , muito graciosa , para não ser estudada , envolviam-lhe o rosto , que finamente esboçado , e d aquella côr pallida e transparente , que deixa perceber o azulado das Veias sob a epiderme , podia figurar sem desdouro , nas paginas de um Keepsake . Pareceria um anjo , para os que não estudassem os seus olhos , que mudavam de côr ás variações da luz , e resplandeciam com aquelle brilho felino , se é permittida a expressão , que quasi sempre revela os perfidos instinctos do animal . Estava n ' uma posição abandonada e distrahida que , poderia ao primeiro aspecto , confundil a com a imagem de uma d' essas castellas da edade media , cujo nome era invocado nos torneios como uma esperança de victoria . O banqueiro da rua da Mouraria era um dos agentes da sua policia secreta , e fôra encarregado de attrahir Mauricio ao partido . Depois de introduzido no gabinete , esperou em pé e respeitoso que a viscondessa lhe dirigisse a palavra . -- Como corre por iá o jogo ? -- perguntou a viscondessa depois de alguns momentos de silencio . -- Vae andando , vae andando como Deus é servidodisse o banqueiro , inclinando a cabeça . -- E o rapaz tem perdido ? -- Parece que caiu afinal nas minhas mãos ! -- Pelo dinheiro , que lhe ficou devendo ? -- Não é só por isso . Parece que tambem o lisongeia a idéa de merecer as sympathias de uma mulher , cuja imagem elle pretende esquecer , procurando impressões d' outro genero ! -- E sabe quem é essa mulher ? -- Pois não adivinha ? Quem poderá ser senão v . ex.a ? -- disse o banqueiro . Um sorriso de vaidosa satisfação deslisou rapidamente nos lábios da viscondessa . -- Pois acaso me viu elle em alguma parte ? -- No theatro ! -- Amor de ... imaginação ! -- Amor de poeta ! -- Ah ! tambem é poeta , disse a viscondessa dando á palavra uma intonação irónica -- E deseja elle fallar-me ? -- Espera que V . ex.a o receba n ' uma das suas reuniões ? -- Não tenho dúvida n ' isso : traga-mo cá hoje mesmo , agora se é possivel ... -- Espero que fique convertido ! -- Havemos de aparar as azas da avesinha , para que não remonte aos céus em arrojado vôo ' disse a viscondessa . O homem da rua da Mouraria despediu-se e saiu . Mauricio foi d' ahi a poucos momentos apresentado á viscondessa , e entrou no seu gabinete , que todas as elegâncias do luxo adornavam . Tentação irresistível para essas frágeis organisações que o sentimento do bello exclusivamente domina . A avidez dos prazeres materiaes , o desejo ardente de uma falsa gloria , são os obstáculos que difficultam a ascendência d' essa aristocracia do talento , que parece dever substituir-se ás outras influencias que até aqui dirigiram o movimento social . A viscondessa mirou o , com um olhar penetrante , que talvez se absorvesse na voluptuosa chamma com que as féras magnetisam a presa , antes de a despedaçarem nas sofregas garras . A comparação exprime talvez a situação de ambos . A viscondessa sabia gosar das amargas delicias que se sentem em praticar certos crimes : fazia o proselytismo da devassidão , como outros o fazem da Virtude . É necessário accrescentar além d' isso , que ella não era physicamente insensível , e que Mauricio poderia contentar o passageiro capricho de uma mulher blasée , e um pouco aborrecida . N ' um relance adivinhára Mauricio : viu que as fadigas moraes , que se revelavam no seu rosto eram o resultado das tempestades da cabeça e não de profundos pezares do coração : que talvez podesse conhecer a vida na esphera da especulação , mas que nem por isso as suas impressões seriam menos vivas e exaltadas . Mauricio sentia-se succumbido deante da viscondessa . Elle que mal se atrevêra a levantar os olhos para ella , quando a vira como uma magica apparição , na sua carruagem , tinha-a agora deante de si , podia confessar-lhe o que elle sentia , prostrar-se aos seus pés n ' um transporte de amor delirante . Houve um homem d' espirito , que para demonstrar a uma mulher , o quanto a adorava , disse simplesmente : " ] e vous aime tant que je deviens stupide ! " É o que sentia exactamente Mauricio : uma vertigem passára lhe pelos olhos , e parecia adejar n ' essas regiões phantasticas onde ás Vezes nos levam desvairados sonhos ! A viscondessa , era experiente de mais para não conhecer o seu enleio , e applaudiu-se d' elle . Qual é a mulher que se não lisongeia de homenagens que a convertem em idolo ? -- A sua visita não podia ser mais a proposito -- disse ella -- sei que é poeta , e de certo se não recusará a escrever alguns versos no meu album ! -- Estimaria , minha senhora , poder provar-lhe quanto desejo ser-lhe agradavel , porém ha annos que não faço versos . -- É a política então que o desvia de cultivar as musas ? Ou acaso teme comprometter-se pondo o seu nome no album de uma adversaria politica ? -- Seria levar muito longe o meu melindre , e ao pé de v. ex.a quem se pode lembrar d' outra cousa senão de obedecer aos seus desejos ! Um dos sorrisos mais seductores da viscondessa veiu pousar-lhe nos lábios . -- Já me parece lisongeiro de mais apezar dos seus poucos annos ! -- Duvida da minha sinceridade ? -- Não : admiro o seu talento . Mauririo sentiu um movimento de orgulho ouvindo aquella phrase . É a doença moral que os anjos decaídos communicaram a esses entes mais frágeis , que vieram habitar a terra . E não devia gloriar-se tão facilmente . O talento póde ser favorecido por um acaso feliz , mas ainda não conquistou a sua supremacia na sociedade moderna . Ha momentos na vida em que se descrê d' essa immortalidade intellectual , com que as gerações no futuro sabem remir as injustiças das gerações passadas . Não era nas palhas dos cárceres de Ferrara , que o Tasso podia lêr as homenagens que depois , em sua própria Vida , alcançou : não era nas dobras do lençol que deu mortalha a Camões , que o nobre poeta deveria antever o eminente logar que obteria na admiração da posteridade : nem os presentimentos bastam para consolar a alma , nos momentos amargos da Vida- -- o que deseja que eu lhe escreva ahi , -- disse Mauricio , com voz trémula . -- Talvez que a sua modéstia se offendesse se houvesse de dizer tudo quanto sinto , e não me resolvo escrever cousas indifferentes , porque me pezaria não ser sincero ! -- Não sabe , que se as suas palavras fossem tomadas á léttra , era quasi uma declaração , o que acabou de dizer ? -- respondeu a viscondessa rindo . Mauricio corou como uma donzella . A viscondessa bem reconheceu n ' aquelle rubor espontâneo a explosão de um vivo sentimento : não quiz comprometter-se , continuando : mudou de assumpto como mulher experimentada . -- Diga-me , não o inspira este bello dia de inverno , tão suave e bonançoso ? Quem se não tornará poeta bafejado pelas doçuras do nosso delicioso clima ? -- Os dias , ainda os mais bellos , não podem ser apreciados por todos do mesmo modo . As lagrimas não param de correr nas faces de quem padece , nem os desejos de devorar os corações que soffrem . -- Vamos , poupe me uma declaração democrática : os escriptores agora , mesmo tendo o seu talento , quasi que reduzem a conversação a um artigo de fundo mais ou menos violento . Bem se conhece que pertence á imprensa militante . -- E se é assim , proferiu Mauricio em voz baixa , se quando só paixões artificiaes nos dominam , existem reaimente miserias , que não são phantasticas , não creadas pelo pensamento , mas pela horrível realidade ! -- Pois acha que os nossos sentimentos são apenas visões da nossa phantasia exacerbada ! É uma opinião nada agradavel para o nosso amor proprio : accrescentou a Viscondessa com uma certa intonação sentimental . -- Não , é impossível que isso aconteça . As candidas physionomias , que nos apparecem allumiadas por um raio de bondade divina , devem inspirar-se de elevados e generosos sentimentos ! E Mauricio dirigiu á viscondessa um olhar a um tempo respeitoso e apaixonado . Como é sublime e infinita a felicidade que sente um homem quando tem a esperança de poder viver adorado na alma de uma mulher ! Os sentimentos que assim despontam impetuosos no coração , teem o vigor d' essas plantas , que embora a tempestade faça curvar com o seu sôpro omnipotente , erguem depois para a luz que as aviventa a sua mimosa haste de flôr . A viscondessa curvou-se levemente sobre a mesa para folhear um album . Fingiu que não ouvira as palavras de Mauricio , a que não lhe convinha responder , porque na primeira entrevista julgava prematura uma viagem nas aprazíveis aguas do fleuve du tendre . -- Era necessário ser mui vaidosa , ou mui crédula para acreditar tudo quanto me teem repetido nas paginas deste album ! -- Um album não é certamente bastante discreto para receber certas confidencias ! -- A affectação , o falso enthusiasmo são hoje os sentimentos que mais dominam na sociedade ! Affirmam , proclamam que sou formosa ? Applicariam a mesma phrase a qualquer flôr que encontrassem n um jardim : os poetas ! são homens cuja imaginação se desenvolve e cresce á custa da sensibilidade ! A cabeça em breve lhes devora o coração ! Estas argúcias de metaphysica sentimental , que as mulheres da sociedade desenvolvem com tão frivola facúndia não podiam achar um habil contradictor em Mauricio . As affeições verdadeiras são raras vezes eloquentes . Os olhares , os gestos tudo dizem , tudo sabem dizer , a palavra está muda : a voz expira na garganta . Mauricio encostou a cabeça a uma das mãos , e olhou com um olhar de timida adoração a viscondessa : omnipotente homenagem para uma mulher vaidosa ! A Viscondessa sorrindo-se graciosamente , apresentou-lhe o álbum , e com voz seductora , disse-lhe : -- Escreva o que mais fôr do seu gosto ... Não me cumpre pôr limites á imaginação brilhante de um poeta ! Mauricio sentiu o sangue affluir-lhe ao coração , ouvindo aquellas palavras : allucinado pelo clarão vivíssimo de duas paixões sublimes -- a admiração e o amor ! -- caiu sobre o livro , a que ia confiar o mais intimo segredo da sua alma ! Era ao descair da tarde : o sol , meio escondido entre nuvens pouco espessas , allumiava o horisonte em clarões de fogo . Hora solemne , em que as trevas , de que a naturesa se envolve , parecem revelar ao mundo , privado de luz , os vedados mysterios da morte ! Chegado ao limite que divide o dia da noite , o magestoso astro parece parar na sua magestosa carreira : parece dizer um adeus de saudosa despedida ao mundo que acabou de alagar de vivificante luz : desappareceu afinal no seio das ondas . Qual é o espirito por menos inclinado a meditar sobre o tremendo problema que está suspenso sobre a existência da humanidade , que se não sinta accommettido de Vaga melancolia , de involuntária tristesa ? Um vulto de mulher penetrava no cemitério dos Prazeres . Nos seus vestidos de luto , nos seus cabellos em desalinho , nas suas faces pallidas , aonde se percebia o sulco de pungentes lagrimas , no seu andar morbido e vacillante , revelava-se essa agonia íntima , essa dôr profunda que já na terra não pode encontrar nem allivio nem conforto . Ajoelhou piedosamente e ergueu com fervor as mãos para o céu . Era Paulina . Ali , sobre uma humilde cruz de madeira , sem distico , nem epitaphio , repousavam as cinzas de seu pae , victima da miséria : as cinzas de sua mãe , que succumbíra á vergonha de vêr sua filha abandonando o lar paterno , para se entregar á devassidão e ao Vicio ! Tardio vinha o arrependimento ! Os preceitos de austera virtude que ouvira na infância , estavam já incertos na sua memória , como as sombras vagas que adejam nos delirios de um sonho ! Esquecêra aquelle santo amor de mãe , para se absorver neutro amor mais egoista , e mais ardente , e esse amor tornára se para ella uma verdadeira expiação ! Ha dores que buscam a solidão porque as consolações banaes do mundo não as podem suavisar : o affecto immenso de Paulina , irreflectido talvez , fôra fulminado pelo desdem , ultrajado pela ironia cruel do ente por quem tudo sacrificára ... Assim como não ha montanha , por mais alta e arrogante , que a tempestade não açoite , também não ha humildes valles aonde a sua cólera não se manifeste . Era profunda a mágoa de Paulina , eram pungentes as lagrimas que caíam dos seus olhos ! Lembrava-se dos beijos affectuosos de sua mãe , quando junto d' ella velava nas longas noites de inverno ! Aquelle adeus a um sepulchro era o adeus extremo aos seus dias de innocencia ! Sonhára ella também , em vingar-se do homem que a despresára ! Queria algum dia apparecer aos olhos de Mauricio com flores na fronte , coroada pela sua ignominia , rainha da devassidão , e dos venaes prazeres ! Pedia perdão áquellas duas almas , não de haver amado , mas de se ir entregar ás caricias venaes , de ir beber em sôfregos tragos a taça de ignominia que para sempre a separava do mundo Aquella invocação era mais pungente que a do proscripto , quando abandona a terra do seu nascimento , os campos aonde brincou nos annos da juventude , sem esperança de os tornar a vêr . O pranto que então se chora , deixa nas faces um sulco inflammado , e que nunca se apaga ! O adeus a um passado de que não sômos dignos échôa terrivel como o grito extremo do martyr , quando chama a maldição de Deus sobre a cabeça dos seus algozes . Desenganos A situação de Mauricio experimentára uma completa revolução . Abandonando a politica , não viu no horisonte senão a encantadora imagem da viscondessa , entre os prestígios da grandesa e do luxo . Se o amor , como disse mad. de Stael , é apenas um episodio na vida do homem , e resume toda a vida da mulher , nem por isso é menos do que elle é , como escreve Dryden , a grande mina do coração humano . O amor de Mauricio não era um culto , uma esperança vaga , uma inspiração poética , não antevendo nos seus sonhos mais do que a felicidade suprema de uma adoração silenciosa . Era uma paixão nervosa , e lasciva , d' essas que fazem correr com ardor o sangue nas veias , e cujas visões abrasam o cérebro , e exaltam os sentidos . Mauricio , não pela experiencia da Vida , mas pela intuição do talento , adivinhára o caracter d' aquella mulher , e se perdêra assim a veneração ideal que de longe lhe consagrava , nem por isso o seu affecto era menos profundo . Estava no seu quarto fumando em silencio , entregue a uma Vaga abstracção . De espaço a espaço levantava-se impaciente para olhar no relogio as horas que o separavam da entrevisla que a viscondessa lhe concedêra . A sua agitação era extrema . Tinha febre . Entrava d' ahi a pouco no seu aposento um dos mais espirituosos elegantes da época D. Affonso era um fidalgo no sentido ideal da palavra . Seguindo com exemplar Verdade o mote de -- noblesse oblige nem por isso deixava de comprehender e seguir as tendências illustradas da época em que vivia . O seu rosto , que realisava em todo o seu esplendor o typo peninsular , e que unia a graça á energia , retratava a sua alma . De uma intelligencia facii e penetrante , afastára se todavia das luctas políticas , e n ' esta sua abstenção não entrava nem receios pueris , nem a preguiça : suppunha que a sua dignidade lhe prohibia usar dos meios abjectos , que frequentemente se tornam uma necessidade na vida politica . Bravo até ser temerário , generoso até quasi tocar o extremo da prodigalidade , a delicadesa feminina das suas formas em nada diminuía a elegancia varonil do seu aspecto . Quem Visse aquelle corpo franzino domar sem esforço as impaciências de um cavallo fogoso , ou o seu semblante sorrir com altivo desdem em presença de qualquer perigo , immediatamente reconheceria que as eminentes faculdades que o distinguiam , nunca poderiam desenvolver-se n ' uma sociedade que vive quasi sem lucta , entregue no morbido lethargo que succede ás crises de uma violenta febre . D. Affonso entrára com uma familiar desenvoltura , cantarolando o delicioso dueto de " Guilherme Tell " : " Ó cielo ! tu sai si Mathilde m ' écara " A musica combinava tão directamente com as idéas que agitavam Mauricio , que se levantou subitamente do canapé , e olhou fixamente o seu joven amigo . -- Bravo ! O meu canto adquiriu a prerogativa de trombeta do juizo final , levanta os mortos das campas ! disse D. Affonso a rir . -- Porque escolheste para cantar esse trecho de Rossini ? perguntou Mauricio meio enleiado . -- Pois não sabes ainda ? É a musica da moda -- e já não ha gaiato , nem gallego que a não repita pelas ruas e chafarizes . Mauricio sorriu-se . Aquella graciosa animação , aquelle ar deselegante desenvoltura , tinham sempre o dom de o distrahir . D. Affonso accendeu um charuto , e sentou se como pessoa que se decide a prolongar a visita . -- Então , porque é que ninguém te vê , porque te mettes dentro d' esta toca , prima ou irmã das aguas furtadas aonde Gilbert fazia versos , e morria de fome ? -- Não posso perder tempo . Trabalho em obra importante . -- Desculpa infallível de todos os poetas ... namorados . Ninguem te ha de acreditar . O motivo da tua reclusão é já conhecido , estás dominado por uma paixão , e a ponto de inspirares outra ... -- Como te veiu similhante idéa ? perguntou Mauricio com anciedade . -- Olha : deixemo-nos de rodeios : sei quem é : e declaro-te que emquanto á formosura é a viscondessa digna do amor de Tasso ou de Petrarca : mas duvido que lhe bata alguma cousa debaixo do seu seio esquerdo . Digo-te que ama em ti um specimen de paixão devoradora , que rugindo como a cratera do Vesuvio , lhe dá occasião para estudar ao vivo os mysterios dos sentimentos . -- É uma sessão de espirito , a que vou assistir ? -- Não , é a visita de um medico ... de almas sympaticas . -- Vieste tarde -- disse Mauricio modo triste -- já não me podes salvar ... Amo a como nunca amei , como se não pode amar outra mulher no mundo . -- Lamento o teu destino -- disse D. Affonso com um tom triste -- aquellas mulheres não se vencem senão pelo calculo , e pelo sangue frio : quando te repetir que te ama , que não podia calar no peito o segredo do seu amor , se lhe apalpares o coração , has de vêl- o bater pacificamente , sem uma pulsação mais forte ! -- Que queres então ? ... Este amor foi uma fatalidade , que nem a minha inteiligencia nem a minha vontade poderam dominar . Já viste um viajante olhar voluptuosamente um abysmo , e não poder desfitar os olhos que a vertigem deslumbra . Assim me aconteceu a mim . Vivo só com um pensamento , abrasa-me uma só idéa , não tenho mais que um desejo ! -- E se eu te apresentar essa mulher como ella na Verdade é , mais infame do que as mulheres perdidas , que a historia marcou com o ferrete da ignominia ; as Dubarrys , e as Marions de Lorme são innocentes comparadas com essa mulher ! Mauricio escutava avidamente aquellas palavras . Se não partissem dos lábios de um homem , que elle amava como um irmão , que elle respeitava como um d' aqueiles raros caractéres que a mentira nunca mancha , talvez não pudesse resistir ao resentimento que as suas palavras lhe produziam . Fataes paixões , cuja historia Prévost superiormente nos transmitte no seu romance de Manon Lescaut . É que o fogo da sua indignação não era bastante para suffocar os delirios do seu amor . Ouvira o que o seu amigo lhe dissera , e a imagem d' aquella mulher adejava-lhe na imaginação , bella e idolatrada como sempre , e os seus labios sorveriam com delicias os seus beijos em bora entre elle e ella se erguesse a imagem dos seus passados amores ! D. Affonso começava a sua historia . -- Sobre a cabeça daquela mulher pesa um grande crime . É moralmente matricida , e fez descer ao tumulo , no verdor dos annos , e entre acerbas agonias , a sua própria filha . -- Acaso se ignora esse facto ? perguntou Mauricio . -- Todos o sabem ; é um d' aquelles crimes públicos , sabidos , commentados , sobre o qual a sociedade dissertou tres dias , e que tão facilmente esqueceu como as modas que já se vão tornando velhas ! -- E vive essa mulher risonha e satisfeita , no seio da ostentação e do luxo ! -- Os olhos da lei apenas vêem o crime nas feridas do moribundo , ou sobre os veios lividos que o veneno faz apparecer sobre os membros do cadaver . Sua filha expirou , moralmente assassinada por sua mãe , mas o sepulchro é discreto . -- Conta-me ! conta-me tudo ! exclamou Mauricio . -- A filha da viscondessa era uma destas organisações angélicas , que vivem sempre estranhas no meio da atmosphera corrupta da nossa civilisação . No coração , gasto e extenuado , da viscondessa despontou um terrivel ciume . As adorações do mundo , que outr'ora lhe eram exclusivamente dirigidas , também faziam corar as faces Virginaes de sua filha . Em vez de ter orgulho d' essas homenagens , não viu n ' aquelle anjo , senão uma rival importuna , e resolveu vingar-se d' ella . A sua vingança foi completa . Houve um mancebo que se apaixonou por sua filha . Pediu-a a sua mãe , e estava já marcado o dia do casamento . A viscondessa facilmente o fez mudar de resolução e de amor , e um dia a innocente menina teve plena prova de que era atraiçoada . Semi morta de dôr e vergonha , devorou em silencio a sua angustia , e não sobreviveu muito tempo a este golpe . Extinguiu-se aos quinze annos , como as flores ephemeras que despontam ao nascer da aurora , e que as brisas da tarde desfolham nos campos abrasados pelos ardentes calores do estio . -- E a viscondessa não teve remorsos ? perguntou Mauricio com anciedade . -- Depois de receber , segundo o estylo , os pezames , vi-a dançar uma valsa a dois tempos com admiravel ligeiresa -- respondeu D. Affonso concisamente . -- E continuou a ser recebida na sociedade , não houve ninguém que a fulminasse com o seu despreso ? -- Innocente mancebo ! Ninguem trata com menos respeito uma mulher , que apparece brilhando com joias e diamantes , e se sabe toucar com grinaldas da ultima modal O sangue de sua filha não manchava os seus vestidos , e os médicos , com a rara penetração que os caracterisa , tiveram o cuidado de affirmar que a fragil donzella succumbira a uma phtisica pulmonar , formalmente caracterisada ! -- Oh ! meu Deus ! bradou Mauricio com desespero , e pude ... e posso amar ainda essa mulher ! -- E enriquecer o seu livro com uns inspirados versos ! disse D. Affonso lançando os olhos sobre o que Mauricio havia escripto : são realmente dignos do objecto , e Byron não os escreveria com mais ardente sentimento : São negros esses teus olhos São azues , negros ou não ? Nem côr do céu , nem da noite Nem verdes ! Então que são ? São olhos que teem taes côres , Que prendem como condão ! Os negros são aziagos Os verdes não teem valor ! Os azues que são celestes Nuncam revelam amor ! Nenhuns olhos se parecem Com os teus olhos na côr ! Eu vi-os ! Porque os veria Se me Vieram ' prender ? ! Se os segredos que elles dizem Ninguém os póde saber ! ... Se os desejos que eiles trazem Não gosal- os -- é morrer ? Eu amo a luz dos ieus olhos Amo lhe as côres que teem ! Até lhe adoro os segredos Que louco -- preso me teem ! As emoções que elles fazem Nunca as senti por ninguém . Anjo do céu , tu serias Cá na terra um seraphim Mas quem sabe se esses olhos Nunca me entendem a mim ? Se ás falias que os meus lhes dizem Nunca lhes respondem -- sim . Que importa ! Não quero outros Porque outros não quero amar ! Porque os teu dizem amores Até no mais vago olhar ! Porque olhos assim não podem Os meus olhos enganar ! Se me enganarem -- no mundo Nunca outros quererei Porque nos teus creio tanto Como em Deus acreditei ! Depois de tel os perdido Sem pezar acabarei ... Mauricio levantou-se para rasgar a pagina do álbum . Com as faces accendidas em rubor , o coração palpitava-lhe movido pela indignação , e pela raiva . D. Afionso sorriu com ironia ao vêr o seu despeito , e arrancou-lhe o album das mãos . -- Olha bem ! uma pagina rasgada no album da viscondessa , ser te-hia tão fatal como a lettra que Gennaro arrancou do nome de Borgia da fachada do palacio do Grão-Duque de Ferrara . -- Se a sociedade é tão infame que não cobre de ignominia essa mulher , terei eu a coragem de lhe tirar a mascara , e de proclamar a sua infamia ! -- E quem és tu para lhe lançares a luva , talento obscuro , que vendes os sonhos generosos da tua alma á curiosidade frívola d' esse mundo que despresas ? Na vida , não ha senão dois caminhos , a obediencia ou a revolta . Revolta ? Aonde está a tua força ? Quem jura nas tuas palavras , quem ouviria com convicção os teus protestos ? Byron era um lord , era um grande poeta , coroado pela dupla auréola de um nascimento illustre , e de um engenho que attingia os limites do genio , e mal pôde alcançar um tumulo nas praias d' essa Grecia , a que offerecêra o seu sangue , e a sua espada ! A tua acção era de uma alma elevada e generosa , e havias de ser por ella anniquilado : serias talvez um heroe aos olhos da consciencia , tornavas te ridiculo em presença do senso commum ! Mauricio caiu desfallecido no canapé , e soluçou n ' um choro sem lagrimas : era uma tempestade similhante áquellas que rebentam em pleno estio , que illuminam de fitas inflammadas o horisonte , sem que as nuvens carregadas de electricidade se desfaçam em chuva . Reconhecia como se tornára impotente no seio da sociedade . Bem comprehendia que aquellas palavras eram a exacta expressão da Verdade . Nas épocas corruptas , a lucta embora heroica não escapa ao ridículo . As vocações desamparadas pela opinião , hão de tornar se servas dos preconceitos do mundo . Os talentos curvam-se para que não fiquem esmagados . -- A tudo sou capaz de atrever-me ! -- exclamou Mauricio -- embora me odeiem , me condemnem , e se riam de mim ! O sentimento da minha dignidade me indemnisará de tudo . -- Cairás , e ninguém deplorará a tua queda . -- Queres então que appelle para o suicídio ? -- Nem á custa d' elle alcançarias a menor celebridade . N ' um grande paiz como a Inglaterra póde um poeta , como foi Chatterlon , conseguir que o seu sangue cáia sobre a cabeça dos que o perseguiram , ou o abandonaram , e que a Voz da posteridade fulmine os que não souberam compadecer-se das suas angustias . Entre nós , diriam que não tiveras coragem para supportar a miséria , e que cedêras ao despeito de não poderes captivar o affecto de uma mulher ! Mauricio levantou-se , e aproximando se da janella , pôz-se a olhar as leves nuvens , que o vento fazia gyrar no céu . -- Deixas-me no meio da minha narração ? E não queres ouvir o resto ? -- Acaba essa maravilhosa historia exclamou Mauricio sorrindo com visível esforço -- é indispensável conhecer a chronica da sociedade , para que as nossas candidas illusões se não percam ! -- Pois bem , esse homem , que vira morrer deante dos seus olhos aquella innocente victima , que tanto o amára , que contemplára sem remorso a lenta agonia que a aproximava do tumulo , não se gosou por muito tempo do amor da viscondessa . O anjo converteu-se num relance em tigre . Um dia , confessou-lhe , n ' um momento de tedio e fastio , o motivo que a levára a acceital- o como amante : escarneceu da sua credulidade , e da sua vaidosa inconstância ; e quebrando com elle todas as relações , teve a audacia de declarar aos seus íntimos , que o não recebia em sua casa , por ter ousado fazer-lhe uma declaração . Devorado pelos remorsos , repellido pela sociedade , e contemplando com todo o horror a vil acção que commettêra , o infeliz alistou-se no exercito portuguez que partia para Hespanha , e teve a felicidade de morrer n ' um combate . A viscondessa alcançou um completo triumpho . O unico ente que poderia arrancar-lhe do rosto a mascara de Virtude , e apresental- a vergada pela infamia , como a Lucrecia Borgia do grande poeta francez , nunca mais se soube d elle . -- E como podeste descobrir os mysterios d' esse drama íntimo ? perguntou Mauricio . -- Fui seu companheiro na guerra , e tudo me revelou nos últimos dias em que passámos juntos . Amava-a ainda , apezar da sua infame traição ! Tal é a influencia irresistivel que certas organisações femininas exercem sobre homens d' aquella indole . Vira-a hedionda e repugnante como as Bacchantes da antiguidade , e recordava-se com delicias dos momentos em que ella se sorria para elle terna e apaixonada ! -- Caminho para o mesmo abysmo . Separado dos meus amigos politicos , vejo me quasi a ponto de pertencer a uma facção , cujas idéas não abraço , e cujos sentimentos detesto . Já me é quasi impossível recuar . Não acreditariam a minha conversão . Hei de escrever para me alimentar ! Escrever , pensar para os outros ... -- horrivel prostituição da intelligencia ! -- eis a situação a que me reduziu essa mulher ! -- Não pares , já que andaste tanto . Seria tardio o arrependimento . Bebe o calis que te offertaram com coragem . Movido por uma fatal paixão , esqueceste os teus deveres , e nunca te hão de perdoar . -- Que hei de eu fazer então ? -- Para que te serve o orgulho ? O mundo segue o carro do triumphador , e applaude tarde ou cedo , os que são bem succedidos . Milhares de boccas accusadoras seguiriam o teu exemplo , e não se venderam ainda porque naturalmente não tiveram a dita de achar comprador . -- Triste consolação é essa ! -- exclamou Mauricio com desalento . -- Arremessar aos pés de uma mulher o prestigio de um nome , os sonhos queridos , uma vida inteira , quando essa mulher possue um coração para avaliar o sacrifício , é pouco , é nada em presença de um amor verdadeiro ! Mas ella apenas desejou atrellar ao seu carro mais um misero vencido , e rir-se-ha vendo que os impulsos da minha vontade nada podem contra a violência da paixão que lhe consagro ! E sinto que ainda a amo , e estremeço quando ouço o som das suas meigas palavras : tenho impressos na mente aquelle sorriso , e aquelle olhar que endoidecem , e que fascinam . -- Luctas indignas de um talento superior , e ao qual a adversidade deveria ter ensinado ! Soffre que o mereces : exclamou D. Affonso com ar solemne : expiarás o teu delicto , tornando-te o ludibrio d' essa ignobil mulher ? Para que serve uma camelia ? Não será exigir do leitor um grande sacrifício , se lhe pedirmos que nos acompanhe a um baile . É um espectaculo tão trivial na vida , como nos romances , e desde os vasos de flores que ornam a entrada até aos lustres que iluminam as salas , os opulentos reposteiros que as dividem , nada tem escapado á analyse dos numerosos cultores d' essa deusa implacável , que se denomina publicidade . Um baile todavia , tem uma grande influencia nos destinos da sociedade elegante . Quantos dramas se não começam e se não continuam ao som da orcbestra que convida os dançadores a uma valsa : quantas férvidas paixões se não accendem , entre os monosyllabos de uma conversação apparentemente frivola : quantas agonias , nascidas da inveja ou do ciume se não disfarçam , com um mavioso sorriso , ou se procuram esquecer , nos movimentos agitados da dança . As revoluções do mundo moral assimilham-se ás do mundo physico : se a crusta superficial da terra arrefecendo , produz essas maravilhas que nos encantam a vista , nem por isso se lhe agitam com menos vigor no seio elementos de destruição , que às vezes fazem desapparecer cidades como Herculanum , e Pompêa , ou reduzem a ruínas capitaes como Nápoles , e Lisboa . Se n ' um baile o homem demonstra o alto gráu de civilisação que pôde attingir , moderando as suas paixões e os seus desejos , é evidente que n ' essa apparente serenidade , se dissimulam frequentemente as mais furiosas tempestades moraes . A viscondessa abrira as suas salas , e desde logo amigos e inimigos todos se ha viam apressado em reconciliar se com ella , para terem o prazer de assistir ao seu baile . Não ha odio , nem resentimento que resista a um gracioso convite . Se Lugarto , o fusco tyranno do romance Mathilde , de Eugenio Sue , existisse realmente no mundo , como existem malvados menos completos na sua depravação , mas não menos nocivos , dispondo dos seus cinco milhões , havia de ser applaudido e festejado , e teria um cortejo de admiradores . A tendencia geral é a adoração da riquesa . Os hebreus no deserto não se prostravam com maior veneração deante do bezerro de ouro , do mais estúpido millionario-Ha mulheres que se sentem real mente animadas de grande coragem para domesticar os monstros mais ferozes , e para realisarem a legenda de la belle et la bête . Poucos espíritos resistem ás seducções de um baile . On rencontrera tout ce qu'il y a de mieux dans la societé -- era a phrase que rapidamente circulava nas coteries do mundo elegante-Seria realmente um grave delicto contra o bom tom , não tomar um copo de neve nas salas da viscondessa . A rainha da festa estava entregue a uma prodigiosa animação ... espirituosa . Parecia que por milagre fôra restituída aos dezoito annos . Ornara os lábios com o seu sorriso mais seductor , e os olhos pareciam estar absorvidos numa vaga abstracção . Umas vezes , languida e abatida , parecia que as palavras lhe saíam com o hálito embalsamado : outras vezes , fallava com uma precipitação febril , dando á voz uma intonação apaixonada e vibrante . Mauricio não podia deixar de apparecer no baile . Pallido , com os cabellos em desalinho , com os olhos abrasados de paixão , e de cólera , sentia o peito devorado pelos mais oppostos sentimentos Encostado á ombreira da porta , posição que os Othellos escolhem de preferencia , os seus olhos dirigiam se para os grupos que circulavam , com uma expressão de silenciosa ameaça . Se a naturesa lhe houvesse concedido as forças de Samsão , talvez não hesitasse como o heroico hebreu em abalar a columna do templo , para morrer vingado sob as suas ruinas . A viscondessa sentiu , ao vêl- o , um sentimento de vaga curiosidade , e reconheceu que o poeta estava acommettido de verdadeira paixão . Dirigiu se para o logar aonde elle estava , e movendo com intensão o ramalhete , deixou cair uma camelia . Mauricio teve ao principio o desejo de beijar a pobre flôr abandonada , de a apertar ao coração , para depois lhe arrancar as folhas , pisando-a aos pés com despreso : mas impellido pelo desejo de se aproximar da viscondessa , com um motivo plausivel , apanhou a camélia , e foi offerecer-l ' ha . Não encontrou a viscondessa de sobresalto . Era mestra já n ' estas tacticas de galanteio , que occupam os mortaes desde o principio do mundo . Retirada para uma sala anterior descançava com languidez sobre um sophá , com a cabeça morbidamente encostada á mão , com os olhos baixos como se não podesse resistir ao cansaço que a oprimia : era a imagem de uma sultana favorita , que os prazeres monotonos do harém enfastiam . -- Venho trazer-lhe , senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , a camélia que ha pouco deixou cair do ramalhete -- disse Mauricio com voz pausada . -- É uma camelia vermelha ! O vermelho é a côr da guerra -- respondeu a viscondessa , estendendo a mão , e tomando a flôr . -- É a côr do sangue ! Se fosse branca , podia ser o symbolo da innocencia ! -- exclamou Mauricio com uma pronunciada intensão . -- E podia acontecer assim ! as lagrimas da dôr tudo podem expiar ! -- disse a viscondessa com intonação melancolica . -- Nem todas as faltas se apagam com o pranto ... e ha crimes que Deus perdoa talvez , mas que o arrependimento não póde remir ! -- accrescentou Mauricio com voz trémula e convulsa . A viscondessa , apezar do seu sangue frio , tornou se pallida . Olhou fitamente Mauricio , para conhecer até que ponto podia desvanecer as apprehensões que lhe dominavam o espirito : um sorriso acudiu aos seus lábios : conheceu que lhe seria facil conseguir a victoria . -- As lagrimas só valem quando de todo morreu a esperança ! disse ella . -- E quando já se descrê do amor ? Quando se teme aspirar o hálito que nos embriaga , fitar os olhos que nos enfeitiçam , e se retiram os labios dos beijos que nos poderiam realisar tão suaves delicias ! Quem sabe se essa flôr que sentira as pulsações de um coração que se anciava possuir , não esteve a ponto de ser arremessada no meio das salas , para se desfolhar entre os pés dos dançadores . -- Cruel pensamento teve ! -- exclamou a viscondessa com ironia . -- E talvez fizesse mal em o não executar ! Ha presentimentos que não enganam : e apezar do grato aroma que exhala a mancenilla , ái do viajante que adormece á sombra da sua frondosa ramagem . -- Dou-lhe os parabéns pela poesia da imagem : mas não creio que dê a morte aos que de mim se aproximam -- com tão fatal prerogativa , em breve ficaria isolada e sósinha . -- Oh ! senhora viscondessa , exclamou Mauricio com energia , ha quem affirme que ha paginas no seu passado , tão vermelhas de sangue como a côr d' essa camélia ! -- Accusa-me ! offende uma mulher na sua própria casa , quando essa mulher o acolhia com toda a consideração e sympathia , e devia esperar em vez de expressões amargas , ao menos uma palavra consoladora ! De ninguém o estranho mais , do que d' aquelle , a quem consagrára um profundo affecto , e que m ' o retribue com suspeitas injuriosas ! Mauricio quizera fechar os olhos para a não vêr , tornar surdos os ouvidos para a não ouvir ; a fingida emoção com que haviam sido proferidas aquellas palavras tornaram-o delirante ; caiu aos pés da viscondessa , e tocou com os lábios as tranças soltas do seu cabello . -- Será esse um beijo de reconciliação , e de paz ? disse a viscondessa com meiga e ingénua voz . Mauricio teve alento para dominar os seus sentidos abrasados : as palavras solemnes e severas que D. Affonso lhe repetira , repercutiram-se-lhe aos ouvidos , e levantou-se n ' um violento e supremo esforço- -- Devemos ficar estranhos um ao outro ! -- repetiu elle com um modo triste -- entre nós não pode haver nem amor , nem odio -- seja apenas o esquecimento ! -- Esquecêl- o ! -- quem é que póde dominar o coração , e arrancar viva dalma a esperança d' um amor , que se annunciava tão ardente ! -- Louco sería o que confiasse nas promessas que se proferem , e o coração não ractifica -- e nos juramentos , que duram tão rápidos como o som das palavras ! -- Bem vejo -- exclamou a viscondessa assumindo um ar solemne -- que me calumniaram aos seus olhos , que deturparam o meu caracter , que envenenaram os actos mais innocentes da minha vida ! Espere-me aqui , depois de findo o baile , e conto que hei de justificar-me ! ... Os convidados haviam-se retirado . As salas estavam completamente vasias . Os primeiros clarões do dia penetravam pelas aberturas das janellas , patenteando a desordem que succede ás agitações de um baile . O pavimento estava juncado de flores ; os ramalhetes esquecidos sobre as poltronas e sophás . A viscondessa , apezar da pallidez que as fadigas e emoções da noite lhe haviam derramado no rosto , dos seus cabellos em desalinho , do seu ar abatido , e dos olhos languidos , mostrava-se bella , como uma flôr robusta , que resiste aos furores da tormenta : a brancura transparente das faces sobresaía nas cores vivas da console aonde se sentára , como o lirio entre rubras e opulentas camélias . -- Estou muito cançada ! disse ella , levando a mão á testa , e deixando pender a cabeça com frouxo desalento , devo parecer-lhe desfigurada , não é assim ? É grande prova de confiança , affrontar os primeiros raios da aurora , deante de qualquer homem , a quem desejámos agradar . -- Não tenha receio , viscondessa -- respondeu Mauricio com um certo tom de ironia -- as flores sempre se ostentam mais formosas ao romper da madrugada , -- quando começam a erguer as pétalas húmidas do orvalho da noite para o sol que desponta no horisonte ! -- Se a poesia nos seduz o espirito , disse a viscondessa , raras vezes a podemos suppôr sincera ! Quando é que os lábios de um poeta revelaram o affecto que sentia o coração ? -- Então concede só aos homens de inferior intelligencia o privilegio do amor ? -- É que nós , as mulheres , temos ciume das paixões que engrandecem a nossos olhos o homem que preferimos . Aspiramos a reinar no seu coração , exclusivamente : é que quando vêmos no seu rosto qualquer pensamento que nos não pertença , o nosso sentimento fica offendido ! -- Que pensamento descobriu em mim que lhe desagrade ? disse Mauricio afastando os cabellos que lhe caíam sobre a fronte . -- A ambição ; e para o homem dominado por essa paixão insaciável , o amor não poderá ser senão uma preoccupação passageira e ephémera ! Quando a vida política afrouxa , quando as luctas se moderam no seio da tranquillidade e da paz , amam talvez para darem pasto á energia das suas faculdades , -- mas qual será a mulher que poderá apoderar-se inteiramente da sua alma , e tornar se a mais suave esperança da sua existência ? -- E não será a ambição da mulher , n ' esse caso , ainda mais exclusiva , exigindo o nosso sacrifício tão completo ? A viscondessa nada respondeu : depois , como accommettida d' uma idéa , apoderou-se do braço de Mauricio , e fallando lhe com voz pausada e maviosa , disse-lhe : -- Como se póde crêr n ' um amor , que desde o principio se mostra sem fé : na firmesa de um coração , que accusa a mulher que ama : e que em vez de repellir , acolhe as horríveis calumnias com que teem amargurado a sua vida ! -- Ha momentos em que toda a dúvida desapparece , quando se ouve a voz de um homem que se estima devéras , repetindo nos com tom solemne cousas , que outra bocca não podia proferir sem que nos arrancassem primeiro a vida ! Quando a mulher que acreditávamos pura e santa , perde a sua auréola de virtude , que nos resta senão deplorar a perda das illusões , que nos encantavam a imaginação ! -- Ha muiio que me teria afastado do mundo , se esta resolução não podesse confirmar as ignóbeis accusações com que ousam ultrajar-me ! As mães hão de fazer justiça ao meu coração . -- Talvez -- exclamou Mauricio . -- A minha dignidade prohibe-meo revelar-lhe a infamia d' esse homem que quizeram transformar em Victima dos meus caprichos ! -- Pois não o amou ? Um movimento de cólera tornou lividas as faces da viscondessa . Depois contendo este primeiro e involuntario movimento , caiu sobre o sophá suffocada em lagrimas . Mauricio enterneceu se , e pegando-lhe na mão , levou-a aos lábios com uma piedosa ternura -- A sociedade é implacavel e infame -- disse ella com voz afogada em pranto -- e quando uma vez offendeu uma reputação , embora injustamente , repelle tudo quanto a possa rehabilitar . Minha filha se nos ouve , bem sabe se estou ou não innocente , as lagrimas que derramei sobre o seu miseravel destino , as tentativas que fiz para a reconciliar com esse infame que a abandonou ! E fechando os olhos , deixou cair com languidez a cabeça sobre o hombro de Mauricio . Depois , as lagrimas caíram-lhe como pérolas fio a fio pelo rosto . Mauricio sorveu aquellas lagrimas em sôfregos beijos . A sinistra visão da filha immola- da ao ciume d' aquella mulher desvaneçeu-se-lhe da imaginação . As chammas da sua paixão purificaram-a ; e entre inebriantes caricias esqueceu os seus sinistros presentimentos ... Anjo , Mulher , e Demonio . Mauricio A D. Affonso Pegando na penna para te escrever , cedo á irresistível sympathia que desde os meus primeiros passos na vida me aproximaram de ti , á necessidade de vasar n ' um coração amigo os pungentes pensamentos que me agitam e devoram ! Se a ambição , para algumas almas , é uma lenta agonia , ao menos é animada pela esperança , e as illusões não desfallecem , quando os acontecimentos mais ou menos favorecem essa insaciavel paixão . Supplicio sem nome , nas luctas tremendas da vida , é sentir um vacuo immenso dentro d' alma , é vêr a dúvida roendo-nos as crenças , como os vermes os cadaveres no fundo dos sepulchros : é quando o nosso espirito diz ao coração que as suas ardentes aspirações são absurdos delirios , que os pensamentos de felicidade pertencem ao mundo dos vagos sonhos . Feliz época era aquella em que os homens podiam empregar a actividade do seu espirito , explorando os mares ignorados do Oceano , ou penetrando com aventuroso heroísmo nos desertos do Novo-Mundo . Amo agora de novo , com apaixonado delirio , com supersticiosa adoração . Déra todo o meu sangue para alcançar um olhar piedoso dos seus olhos : todos os perigos affrontaria , para beijar com santa veneração a orla do seu vestido , quando ella serena e devotamente ajoelha , elevando as mãos ao céu , e orando ! Mas é possivel porventura amar com confiança , quando se rião acredita na eternidade das affeições humanas ? E todavia como é suave o perfume dum puro amor ! Como é doce repousar dos cuidados da Vida sobre um coração terno e fiel ! Mas poderá ella amar-me algum dia ? Milhares de obstáculos nos separam : a minha coragem desfallece , quando contemplo os preconceitos , as mesquinhas considerações , as fofas e ocas soberbas , que tendem a afastar-nos um do outro . Deus ter-nos hia prohibido saber e amar ao mesmo tempo ? Será necessário destruir as aspirações da alma para dar energia á intelligencia ? Deveremos calar a voz da rasào , para nos entregarmos , imprevidentes e confiados , ás delicias do amor ? Embora os mares estejam embravecidos , affrontarei a tempestade : embora os baixos se levantem no seio das ondas hei de largar as vélas ao meu frágil baixel ! Oh ! não receies , mulher , que verteste , na minha solidão , o balsamo de um divino sentimento : não o deixarei perder : o-hei no coração , como uma preciosa essencia ! O espírito hesita perante estas crueis dúvidas . Embora o affecto nos rebente poderoso no peito , os céus da esperança tornam-se sombrios e anuveados . É necessário suffocar as nobres ambições que o mundo não comprehende . E quem me pode assegurar -- ái de mim ! -- que a hora da posse , não venha destruir as minhas férvidas illusões ? Quantas vezes o leito aonde encontramos o prazer não se converte no tumulo da adoração , que absorvia a nossa alma ? Alente-me o orgulho , este orgulho que se alimenta de acerbas dôres , como o dos anjos decaídos , que a cólera de Deus fulminou ! Talvez estranhes a minha inconstância , a prodigalidade excessiva d' estes affectos , que variam ao sabor de uma caprichosa sensibilidade . Quem póde adorar um idolo abatido e aviltado pela infamia ? Amar , sem que o objecto do nosso culto , se eleve pela grandesa do espirito , pela excellencia do coração , é a mais horrivel das abdicações moraes Quando já nada temos a invocar no céu , deseja-se que na terra não desappareça de todo a luz da crença . É a alma do impio , que com maior fervor é attrahida para as illusões de um vago ideal . As estrellas apagam se no azul do firmamento : espessas sombras roubam-nos o esplendor dos astros : o vento devastador da tempestade despe os campos das flores que o matisavam : mas a nossa Vigorosa esperança resiste a estes quadros de fúnebre desolação ! Julgas acaso que não tenho remorsos , quando a imagem de Paulina se ergue no meio das minhas meditações ? Não nos podiamos comprehender . Nem as agonias da minha alma , nem os delirios da minha intelligencia exacerbada encontravam écho no seu coração ! Fui cruel , fui de certo egoista : abandonei a sem unia palavra de piedosa despedida -- sem um adeus sequer ! Vi-a chorar , e não lhe enxuguei o pranto que das faces lhe corria : vi a succumbir á dôr , pallida , quasi moribunda , e não a apertei ao coração para a reanimar ! N ' esse momento solemne , o desespero apoderára se da minha alma com Violência , os meus olhos não tinham lagrimas para derramar : os instinctos da humanidade eram absorvidos pelo meu proprio soffrimento . Gelara se-me o sangue nas Veias : as artérias já não palpitavam , a minha mente estava entorpecida : convertéra- me n ' uma dessas estatuas , arrefecidas por uma fria rajada de vento . Quem me déra poder consolal-a , obter o perdão do meu crime , e saber que se resignava ao seu martyrio ? Teria talvez , n ' esta nossa fatal união , um papel sublime a representar . Porque não poderia eu abraçar a existência modesta , que Paulina podia viver comigo ? Porque não pude eu repelir as esperanças que me abrasavam a mente ? E de que lhe Valia , a ella , esta ignorada lucta com as ambições da minha alma ? Oh ! maldigo o instante em que fascinado pela sua belleza e candura , pela innocencia das suas meigas palavras , lhe repeti protestos ai dentes entre inflammados beijos ! Como o voraz abutre , despedacei nas minhas garras a frágil pomba ; e arrancando a ás caricias de uma mãe adorada , não pude com o meu amor substituir o mais extremoso e exclusivo de todos os affectos -- o amor maternal ! A quem devo eu accusar d' esta tremenda decepção ? Cingia ao meu peito uma mulher , e não a companheira das minhas penosas Vigílias ! A cruz éra muito pesada para as minhas debeis forças : prostrado e abatido , não havia mão piedosa que tornasse mais suave o meu caminho entre as ingremes e asperas devesas . Nos meus sonhos ainda a contemplo como quando lhe disse o ultimo adeus , e a Vi cair aos meus pés fulminada pela dôr ! Mas que podia ella fazer por mim ? Aonde havia de encontraram coração que saciasse os meus ambiciosos desejos ! o que queria eu ? Uma alma que se absorvesse com a minha n ' uma mesma adoração . Tal alma não existe nem póde existir n ' este mundo . O anjo melodioso que comigo canta e padece , ha de voar para o céu solitário e triste ! O amor da viscondessa , que despontou no meu peito delirante e phrenetico , veiu exacerbar a febre que me devorava ! Tive a audacia de despresar os teus conselhos , e de contemplar as suas mãos , manchadas pelo sangue , e as suas faces aonde se via ainda impressos os beijos dos seus amantes ! E não córei . de mim mesmo , e acreditei nos meus devaneios , que as estatuas , frias e inanimadas , se poderiam animar de vida como a Galateia ao sôpro omnipotente de um apaixonado artista ! Se a visses , como eu a vi , ao clarão das luzes de um baile , dirias que era bella , divinamente bella essa mulher ! Nos olhos negros scintillaVa esse raio de intelligencia que aviva e completa a formosura . O perfil que tinha alguma cousa de imperioso e arrogante denunciava uma d' essas organisações energicas , creadas para os amores vulcânicos . Quando as tranças do seu cabello lhe caíam em grossos anneis pelo collo altivo e esbelto tomava o seu vulto o aspecto de uma dessas antigas romanas , em cujo robusto coração ardia o sentimento da patria a par da ternura da mulher ! Desmaiar de íntimo e voluptuoso prazer aos pés de uma amante querida , estremecer bafejado pelo seu hálito embalsamado , sentir as lagrimas vertidas peio amor enxutas pelos seus cabellos , e acordar nos braços de uma mulher insensível , tornar-me instrumento de um ephémero capricho , contentar os bastardos desejos dos seus sentidos ... Adorar a estrella , e não poder beijar senão o seu pallido reflexo nas aguas negras do lago embravecido pela tormenta ! Fuja me do pensamento esta recordação impura ! Elevarei o pensamento até ás religiões ethéreas aonde adejam as esperanças divinas ! Era n ' um dos dias da semana santa . Divagava sem destino pela cidade . Nas egrejas celebravam se os officios divinos . Entrei . As abobadas resoavam com o som de harmoniosas vozes . Apezar da semi-obscuridade que reinava n ' aquelle recinto , em breve os meus olhos começaram a distinguir a multidão ajoelhada e contricta . Sobre um dos degráus da teia estava um vulto de mulher , de vestidos negros , com os olhos em alvo , com as mãos erguidas , com os labios entreabertos e orando . Não poderia ter mais de dezesete annos : e a sua formosura seria só comparável a essas virgens com que o pincel arrojado de Murillo povoou os templos da sua encantada patria . Não t ' a posso descrever miudamente . Tenho-a retratada na memória , contemplo a sua imagem em sonhos , e todavia vaga e indistincta . É a cabeça de um anjo sobre o corpo de uma fada . Amei a apenas a vi , e que cousa ha no mundo que possa substituir a exaltação e a embriaguez do amor ? Quando essa divina chamma nos illumina , que valem os pensamentos de gloria , as acclamações que se perdem sem écho , na immensa amplidão do espaço ? Agora nasceu para mim um supplicio intenso , contínuo , devorador- a incertesa ! Se eu me soubesse amado , se ella lançasse sobre a minha vida um olhar de piedade , que me Valia morrer depois , com o presentimento da felicidade no coração ? ... A morte é ás Vezes a mãe terna , que vem cerrar os olhos ao filho abatido pelo cansaço , e que sorri no somno ás suas caricias extremosas ! Terei eu , como os personagens de Byron , a sciencia do desespero unida á mocidade da Vida ? Já estará a minha alma desencantada e esteril , antes de se haver banhado nos delírios sublimes do sentimento ? Oh ! não ! o que pesa sobre mim é a fatalidade das paixões , mais poderosa que a fatalidade do destino . Eu tenho o espirito devorado de cruento scepticismo , e o coração ainda viçoso de illusões e de esperanças . Se elle me palpita insoffrido no peito ! ... Se elle quer despedaçar a cadeia que o prende ao finito da matéria , para se elevar aos espaços infinitos da idealidade , e do amor ! E não queres que acredite que a mulher é uma religião tão santa , tão sublime como a da immortalidade -- que se um homem a perde um dia , cáe lhe da fronte essa corôa soberana , que lhe concedeu a realesa na terra ? A gloria não basta para satisfazer as ambições do nosso espirito ! As suas coroas murcham breve ! O écho das acclamações rapidamente expira no silencio . E de que vale o enthusiasmo , quando não parte espontâneo do coração ? A todos os grandes feitos apenas sobrevive um nome : Alexandre a Arbelle , Cesar a Pharsalia , Bonaparte a Austerlitz . Sei que nunca terei a coragem de lhe revelar este segredo : ha entre nós um abysmo -- é o meu orgulho . Se o seu nome é nobre , o meu poderia tornar se illustre , se porventura o destino me tivesse feito nascer n ' uma terra propicia a animar as vocações esperançosas . Embora ! Ha encantos no padecer , e os tormentos teem em si o proprio lenitivo . Felizes os que soffrem porque já contemplaram as perspectivas da felicidade ! Só os olhos que viram a luz se cerram dolorosamente , quando as trevas se aproximam ! E não é acaso venturosa a flôr que arrancada da haste delicada e fluctuando na corrente impetuosa do rio , teve lábios que a aspirassem um momento , embriagando-se nas voluptuosas emanações do seu perfume ! Sem estes desejos de que valeria a vida ? Vegetava-se estupidamente : arrastava-mos nos sobre o rasto de mesquinhos interesses :