O MANUELINHO DE EVORA ROMANCE HISTORICO ( 1637 ) POR António Francisco Barata COIMBRA IMPRENSA LITTERARIA 1873 " ... não ha maior gosto que tratar cõ Philosophos , & cõ homês doutos ; porq estes sabe disculpar a eleição da materia , a brevidade dos discursos , a pobreza dos conceitos , o estilo comu , os erros da pena , os erros da impressão " . FR. Pedro DE s . JOÃO PINTO . Vida espiritual do homem . Ao leitor . AO DISTINCTISSIMO ADVOGADO DE BARCELLOS Rodrigo AUGUSTO CERQUEIRA VELLOSO COMO PUBLICO TESTEMUNHO DE AMIZADE Dizia Thales de Mileto , aquelle dos sete sabios , cuja empreza era o -- conhece-te a ti mesmo -- que nos deviamos lembrar dos amigos ausentes como dos presentes ; porque , sendo a amizade concordia de almas , que a distancia não póde apartar , feio e ingrato fôra esquecel-os , para só lembrar os presentes . Não me conheço : presumo apenas que levantei , haverá bons dez annos , um altar em meu peito , onde sacrifico á amizade do amigo ausente , a quem por mais de uma razão offereço o Manuelinho . Possivel é que nos sobreviva a mim e a elle este livro , sem embargo do pouco merecimento que tem , quer na proficiencia dos conceitos , quer no florído da imaginação , quer nas galas do estylo : se o lograr , como desejo , conheçam nossos filhos , saibam os que depois de nós ficarem , que n ' esta pagina permanece o testemunho do meu animo agradecido á magnanimidade de um grande coração . Evora , Novembro de 1872 . Antonio Francisco Barata . O MANUELINHO CHRONICA EBORENSE O romeiro de Santiago " Ouvi se quereis . " GIL VICENTE . Vagarosamente passava para Portugal o anno do Senhor de 1637 . E vagarosamente passava porque a patria de D. João I desde 1581 era escrava de Castella , podendo e devendo ser a parte mais dilecta dos monarchas hespanhoes na Peninsula . O seu clima , o seu uberrimo solo , seus famosos portos , notoriamente o de Lisboa e o genio esforçado de seus naturaes , não menos que Andaluzia lhe davam jus , se não a reino independente com leis proprias e costumes seus , ao menos a ser a primeira provincia que desde os pyrineus ao Estreito devia merecer os cuidados dos governantes castelhanos . Grave erro foi a administração de Castella com respeito a Portugal , que os Governadores do reino depois que expirára D. Henrique , criminosamente agrilhoaram ao carro triumphante do Demonio do meio dia . É-nos porém lisongeira a ferrea dominação de Castella . Os valentes de mil combates , os dominadores do mar , deviam inspirar serios cuidados ao leão Gastelhano . A raça de Viriato era muito para temer . Acrysolado o patrio amor no longo captiveiro ia prestes rebentar como vulcão destruidor . Breve sacudiria , no mais audacioso feito d' armas que narram historias , o jugo estrangeiro , floreando mais uma vez ao vento da liberdade as quinas de Affonso Henriques . Se mais humana fôra a politica de Gastella quiçá não fosse mister aquelle despertar de gigantes . Ainda hoje podiam viver unidos os dous povos com maior respeitabilidade de seu nome , e sem perda das proprias tradições . Camões e Cervantes , Colombo e Gama hão de bastar sempre a eternisal-as . Mas a politica da Hespanha sobrecarregou Portugal de tributos vexatorios , mandou para Catalunha e Flandres os fortes corpos de seu exercito e poz á frente do governo d' este reino ministros como Miguel de Vasconcellos . Poderiamos ser hoje uma só potentissima nação . Não teriamos tido , é certo , mais glorias militares no reinado de Affonso VI ; mas bastantes haviamos já . Não contariamos os notaveis reinados de D. João V e de D. José ; mas , não presenciariamos a decadencia d' esta esforçada nação depois de 1820 , nem córariamos de vergonha contemplando , inermes , insultos ao nosso brio e ao nosso direito , como o da esquadra do vencedor de Magenta e vencido de Sedan . Deixemos , porém , o destino d' este povo á fatal sequencia dos destinos europeus , e historiemos o primeiro rebate de liberdade portugueza em 1637 , tres annos antes de raiar o 1.° de dezembro de 1640 . Estamos em Evora , na corte dos reis D. João II e D. Manoel , na patria de muitos homens importantes nas letras e nas armas . Sôa na cathedral de D. Paio a ultima badalada das nove botas da manhã do dia dous de fevereiro de 1637 . Pessoas de ambos os sexos começam de entrar para a egreja ao convite do repicar dos sinos da grande cathedral . É o dia em que a egreja eborense celebra a festa da Purificação de Nossa Senhora . Dous homens passeiam á porta do templo , ou , antes , no comprido adro d' elle . O parar contínuo , o gesticular impetuoso dos dous patenteiam discussão acalorada sobre um ponto perfilhado de ambos ou repulsado de um . Vejamos , leitor , como eu curioso , se podemos ouvir suas falas . -- Mas não podemos nós nem devemos consentir em tantos vexames , sr.||_Sizenando_Rodrigues Sizenando|_Sizenando_Rodrigues Rodrigues|_Sizenando_Rodrigues . -- Concordes estamos n ' essa parte , João Barradas . A nós , os representantes do povo , cabe o fiscalizar e zelar seus direitos e interesses . -- Que certeza , porém , haverá no lançamento de tão grande contribuição ? A fé , que pelo exorbitante , não creio em tal . -- Não credes em tal ? pois deveis crer . Lembrae-vos dos mimos de Hespanha já recebidos e não vos será difficil acreditar n ' este e n ' outros com que á politica do Conde Duque apraza mimosear-nos . -- Ignominioso tem sido o proceder d' essa nação para com+nós , é certo ; mas , afigura-se-me que o Corregedor Sarmento será mais humano desta feita com seus concidadãos . -- Assim deveria ser e ter sido já , André de Moraes Sarmento , porém , é um portuguez renegado , um apaniguado de Castella . Referendará e mandará executar qualquer ordem que lhe venha sem attender ás queixas do povo que representamos , e sem lembrar a possibilidade da sua má vontade . -- Se ao menos a filha , senhora discreta e de bom juizo pesasse com seu voto nas deliberações d' elle ! Falae- lhe n ' isso , vós que podeis ... disse João Barradas com intenção . Por suas affeições portugueza me parece ... -- Alludis , bem vejo , ao amor que lhe tenho a ella e ao seu bem me querer . Não falámos ainda em cousas d' essas ; mas creio que demasiado chamôrro é o pae para attender aos dictames do coração da filha e ao amor da patria . -- Propicia occasião tendes para a saudar , sr.||_Sizenando_Rodrigues Sizenando|_Sizenando_Rodrigues Rodrigues|_Sizenando_Rodrigues , e , se tanto vos parecer conveniente , para com ella ajustardes occasião para n ' isto falar . Eil-a que sobe as escadas . De facto , D. Constança Sarmento , a bella filha do Corregedor de Evora , por D. Filippe III , encaminhava-se para a cathedral . Não brilhavam já no rosto de D. Constança as rosas da juventude . De altura mais do que regular , graciosa elegante e bem talhada de fórmas , por ella passára já o maio da existencia florída , a quadra das illusões e devaneios encantadores . Contaria trinta e cinco annos de edade . Se não era a tenra virgem de mavioso olhar e doces modos , era a mulher antevista em sonhos pelo estatuario , a grega viril e esbelta que manda com acenos e escravisa com olhares . Não era o tenro arbusto mal preso á terra que o vento verga a seu bel-prazer , mas a acacia florída e enraizada que o sopro das paixões não curvaria , antes partira e prostára , em seu voluvel soprar . Não era a borboleta inconstante que vôa de flor em flor , era a rosa d' Alexandria aberta ao sol do occidente , que exhalando mil perfumes espera a douda mariposa firme reclinada na haste que a alimenta . Acompanhada de uma creada , D. Constança encaminhava-se á cathedral . Saudando-a cortezmente , Sizenando Rodrigues foi-lhe em seguida ao encontro ; e , depois de breve pratica , curvando-lhe a cabeça se despediu d' ella , voltando a conversar com João Barradas . -- Aproveitei o vosso conselho , disse para este : pedi-lhe uma conferencia e foi-me esta concedida para a meia noite de hoje . -- Não deveis , pois , faltar , como não deveis deixar de a induzir a levar o pae ao não cumprimento das ordens de Castella . D ' este modo poupar-nos hemos a incommodos assegurando-lhe a elle inviolabilidade em sua pessoa e bens . -- Isso tentarei ; mas , receio que o consigamos . Sarmento se não der execução ás ordens do Conde||_Duque Duque|_Duque lavrará a ordem da perda de seu officio , que , como sabeis , é dos mais pingues e rendosos . Isto não fará elle . -- Tanto peior para si , por que nós não poderemos suster a sanha ao leão popular que começa de rugir , como csquivar-nos** a dirigil- o no combate , de que sahirá vencedor . Sabeis o que se trama , e conheceis a habilidade e astucia do collegial Sebastião do Couto , que deve estar commigo esta noute na taverna de Antão Vasques , para continuarmos a dispor as figuras para . -- Falae baixo , que nos podem ouvir . Este peregrino de Sant'Iago que por nós passou agora em direcção á sé , mediu os passos ao passar por nós e pareceu-me prestar muita attenção ao que diziamos . -- Isso é desconfiança vossa , respondeu João Barradas . -- Olhae , olhae , eil- o que nos observa antes de entrar na egreja , disse Sizenando . -- Com effeito , parece intencional aquella paragem e voltar do homem para nos encarar . Convirá observal- o e seguil- o . Antes que os dous tivessem tempo de concertar o modo de se certificar do proposito ou acaso com que tinham sido observados , ouviu-se uma gritaria enorme da banda da rua da Sellaria , e logo em seguida viram desembocar d' ella um rapazio numeroso cercando a um homem alto , meio decentemente trajado , magro , mas de boas feições . Ao chegarem perto das escadas da sé romperam voz em grita : -- Viva o dizidor ! -- Viva o Manuelinho ! -- Viva ! ! Subindo , o homem alto agradeceu correspondendo áquella ovação dos rapazes com esta falla em verso : Nos nossos montados Temos muita caça ; Mas que , por desgraça , Falcões esfaimados , Protervos , damnados , Nos vêm empolgar . Pois bem , meus rapazes , As mãos nos gatilhos ! Avós , pães e filhos De lebres sequazes , Que sois mui capazes De falcões matar : E danças formar , Bailar e cantar E depois gritar , Dizei que eu não sei , -- Viva ! viva ! viva ! -- Viva ! viva ! el-Rei ! -- Nota-se ha tempos nas falas d' este louco uma confusão de ideias maior que de ordinario , disse Barradas para Sizenando Rodrigues . -- Assim é ; e mais para notar são as allusões politicas dos seus amphyguris . Reparastes bem n ' aquelles seus dictos ao rapazio ? -- Sem duvida : e , se não fôra esse desgraçado um truão das praças , um dizidor tresloucado de necedades , afigura-se-me que a justiça de Castella lhe poria cobro na lingua ponteira . -- Não convém , comtudo , malbaratarmos o tempo conversando de um bobo sem imputação . Aquelle romeiro impressionou-me por modo , que mais importa seguir-lhe a pista do que occuparmo-nos do louco . -- Grave injustiça me fazeis , senhores juizes do povo de Evora , disse Manuelinho , que despedira os rapazes , e se approximára , ouvindo que os dous falavam de sua pessoa . Meio attonito com aquella interlocução inesperada , em que havia um tom de reprehensiva seriedade , João Barradas e Sizenando Rodrigues , inquietos e receiosos que Manuelinho tivesse ouvido alguma palavra que os compromettesse , apenas lhe disseram , sorrindo , quasi como egualmente inspirados : -- Não , Manuelinho , não vos quizemos nem queremos offender . Sabeis como vos aprecia toda Evora . Nós , por um costume de annos , insensivelmente fazemos côro com os eborenses , mas sem vos querermos offender , que mais para lastimas sois do que para pabulo ao nosso bom humor . -- Sois homens sérios , senhores juizes do povo de Evora , e na conta de graves tomo as vossas palavras , as mais humanas que me arremeça esta cidade ha não poucos annos . Agredecido as aceito ; e , por vos mostrar minha gratidão , um serviço me proponho fazer-vos . -- Um serviço ! A nós ! exclamou Barradas admirado e sorrindo ao pobre louco . -- A vós , sim , e ao povo d' Evora , que representais no mandato . Nem vós me apreciaes ! Nem vós podeis ver atravez do véo transparente de parvoice que me involve ! Haveis razão , senhores . Mas ha de o louco servir-vos . Dispunheis- vos a observar a um homem que por vós passou ha minutos , bem sei . Quiçá não seja o louco tanto como o suppondes . Quem seguirá esse homem serei eu : eis o serviço que vos farei . Cortejo-vos , briosos representantes da vontade popular . E sem dar tempo ao reflectir dos dous , Manuelinho tomou a direcção da cathedral . -- Que me dizeis a isto , João Barradas ? Manuelinho ouviu talvez que tereis de apparecer na taverna de Antão Vasques esta noite , e póde destruir este louco o edificio que tão bem começado levamos . -- Não sei bem que responder-vos , Sizenando Rodrigues , não sei ! Acaso não será Manuelinho tão demente como o suppomos , nós eborenses , tão faceis em julgar por apparencias ? No entanto recordo-me de falarmos na taverna de Antão Vasques antes da chegada de Manuelinho . Este não podia ouvir o que dissemos . -- Muito bem , disse Sizenando Rodrigues ; mas , se vos apraz , entremos na sé . Aquelle romeiro ... A taverna de Antão Vasques Onde ao domingo o lépido caixeiro co'a loja do Patrão vae dando á sola . TOLENTINO . Devemos agora informar ao leitor da causa do descontentamento do povo eborense e que o levava , talvez a conspirar . Alcançada a fazenda publica portugueza , lembrára um nobre do reino a Filippe IV , ou ao seu valído , o Conde Duque de Olivares , um certo modo de desempenho , baseado em novos tributos . Tão facil se antolhou ao ministro castelhano a execução do plano , que sem demora ordenou por um decreto que Portugal pagasse annualmente quinhentos mil cruzados , havidos do povo por um systema de novos impostos . Por auctorisação das côrtes só podiam ser legalisados esses novos lançamentos ; mas sem a sancção dos representantes portuguezes estes o foram . Havia n ' isto um ataque aos foros e regalias portuguezas . Governando o reino Margarida de Saboya , Duqueza de Mantua , e sendo seu ministro||_Miguel_de_Vasconcellos Miguel|_Miguel_de_Vasconcellos de|_Miguel_de_Vasconcellos Vasconcellos|_Miguel_de_Vasconcellos por cavilações de Diogo Soares , seu sogro , e mui querido do Conde Duque , por fórma tal choveu sobre o povo um sem numero de tributos , licitos ou auctorisados , e não auctorisados , que o descontentamento do povo foi subindo de ponto . Começava a toldar-se o horizonte dos destinos portuguezes : acastellavam-se nuvens negras no céu do Alemtejo e do Algarve : approxima-se a tempestade . Havia já muitos mezes que o povo de Evora murmurava descontente , e que até nas trevas preparava cauteloso o modo de sacudir o jugo castelhano . Em seu decurso o contará esta historia . Não carregando aqui de negras côres o quadro dos vexames que nos fazia Castella , deixando na cathedral magestosa de Evora dous ou mais dos heroes que darão vida ás scenas que descreverei , convido o leitor a acompanhar-me até á Praça d' esta cidade . A funcção acabára e a noile descêra sobre Evora invôlta no manto de estrellas . Não brilhava nos espaços infindos a travessa zombeteira dos amantes , a formosa lua de Portugal . Nas estreitas , tortuosas e mal calçadas ruas de Evora em 1637 não se dá um passo sem um certo cuidado e cautela . Como as demais cidades por aquelle tempo não tinha illuminação . Apenas aqui e além a lampada solitaria do algum nicho ou oratorio , dos que ainda hoje subsistem , espalhava nas sombras uns raios tibios e vacillantes , que mais serviam para apavorar a timidos do que para alumiar a resolutos . Na rua do Raimundo e n ' aquellas lojas onde hoje tem casa de pasto o sr.||_Maño Maño|_Maño , vivia n ' aquelle tempo Antão Vasques , o mais afamado taverneiro da cidade -- Giraldo . A taverna de Antão Vasques era a casa mais frequentada de Evora n ' aquelle anno , não só pela classe mechanica , mas ainda pela media ou burgueza e porventura pela immediatamente superior . Não são as lojas d' hoje as mesmas quo habitára o taverneiro Antão Vasíjues ; mas , semelhantemente , uma serie de casas subterraneas se estendia da rua do Raymundo até á rua dos Touros . Não se ligava n ' aquelle tempo á palavra taverna a significação d' hoje em dia . Aquella era a hospedaria , a estalagem , o hotel , o restaurante , o café , o bilhar mesmo d' aquellas eras . A tudo isto se prestavam as vastas accommodações , as alabyrintadas aposentadorias de Antão Vasques , que n ' um andar superior áquelles lojões abobadados podia recolher pessoas de todos os calibres sociaes . Entremos n ' estas lojarias e vejamos . A um lado vociferam já cinco individuos sentados a uma comprida meza em que , pelos copos e pichel , parecia haverem ceiado . Eram homens do povo . Além mais falavam em máo castelhano tres sujeitos , que pareciam italianos industriosos . Na segunda loja , meio encoberto por uma cortina e sentado a uma outra meza pequena , um só homem apoia a cabeça pensativa nas mãos compridas e ossudas . Quando alguem perpassa , como que desperta para reconhecer , voltando á meditabunda posição . Em volta d' esta segunda loja outros comiam , conversavam ou jogavam as cartas . Um grande lampeão pendente do tecto alumiava escassamente esta casa , da qual havia para o andar superior uma escada de madeira . Uma terceira casa immediata era a adega , e na quarta estava a cosinha . O falatorio de toda aquella gente , o azafamado dos moços servindo aos freguezes , o tinir dos copos , o ruido do ferver das panellas e cassarolas davam tal animação aquella casa , offereciam interesse tão variado , que melhor escola não podia ter para seus estudos o pintor , o philosopho e o poeta . Já entrando por uma já por outra porta das que davam para as duas ruas , viam-se individuos rebuçados nas longas capas , espada á cinta e chapeu de plumas e abas largas sobre o rosto , que , depois de cortejarem aos circumstantes , subiam pela escada de madeira para o pavimento superior . Quando subiram dous , que parecia serem ou conhecidos ou esperados do homem cogitativo , este ergueu-se , e , sahindo do cubiculo onde estava , tomou a direcção da mesma escada que communicava os dois andares . Era Manuelinho , o dizidor de Evora , que nas aposentadorias de Antão Vasques habitava um quarto no segundo pavimento , havia já alguns annos . Ao começar a subir a escada , viu assomar á porta da primeira loja , entrar n ' ella e caminhar para a segunda , em que se achava , um romeiro de Sant'Iago de Galliza , que , dirigindo-se ao dono da casa , lhe pediu em castelhano pousada para aquella noite . Manuelinho desceu , em vez de subir , para voltar ao seu quarto de cortinas , que mais fechou sobre si . Quem attentasse no rosto do famoso dizidor de Evora , notaria n ' elle uma contracção geral e sinistra , a palidez do que sente affluir-lhe ao coração o sangue das veias , um sobrecenho terrivel . O romeiro ou não reparou n ' elle ou não o conheceu . Depois de breve pratica com Antão Vasques saiu , dizendo simplesmente em voz perceptivel : -- Buenas noches . Hasta luego señor mio . Manuelinho saiu do seu esconderijo , viu sair o romeiro e subiu rapido a escada do segundo andar , ou , melhor , primeiro . Um corredor comprido , abrindo portas para dous lados , tal era a divisão d' este pavimento , a que subira Manuelinho . Á luz de um lampeão suspenso do tecto , vejamos , leitores , onde se dirige o notavel bobo de Evora . Chega á porta n.º 6 , escuta e bate em seguida por modo convencional . Aberta , Manuelinho penetrou por ella , fechando-a sobre si . Era uma casa bastantemente espaçosa para conter trinta ou quarenta pessoas . Guarneciam-na cadeiras com espaldas de couro e no meio tinha uma meza grande de pau preto com pés salomonicos . Pouca luz havia n ' ella , porque apenas uma véla , posta na arandela de uma bugia , mais enchia aquelle espaço de sombras indecisas do que de luz . Quando Manuehnho entrou estavam alli oito homens . Temor de um fantasma Que lindas barbas nevadas Aquelle velho não tem ! PALMEIRIM . O famoso convento dos franciscanos em Evora , notavel por sua formosa egreja , onde se admira a resolução de um difficil problema de mechanica , e onde ainda hoje existe a Casa dos ossos , assim chamada porque de caveiras , femures e tibias humanas são feitas suas paredes , tão demudado está , tão privado de muitas fabricas parciaes , que quem alli entrar , e desconhecer o passado d' aquella casa , fará um acanhado juizo das que foram vastissimas officinas , mercês e dadivas de reis . Entremos n ' elle como em 1637 existia . Boa occasião se nos depara . Abre-se a portaria para receber um individuo que açodadamente tocou a campainha . São dez horas da noute do dia 2 de fevereiro de 1637 . -- Dizei a fr. João Palhares que hei mister falar-lhe sem demora . -- Quem lhe direi que sois ? -- O Encoberto . -- Comtudo -- Ide-vos prestes . Não façaes reflexões . Tal foi o dialogo rapido entre o porteiro de S. Francisco e o sujeito que tocára a campainha . Era elle um homem de mais de cincoenta annos , a pesar do alizado das faces e do brilho dos olhos . Com tal imperio mandou aviso a fr. João Palhares , que o porteiro attonito e medroso , ao ouvir annunciar o Encoberto , mais cuidou de lhe mandar ao encontro o frade , do que arrostar elle com a alma de el-rei||_D._Sebastião D.|_D._Sebastião Sebastião|_D._Sebastião , que outrem não suppoz podesse ser o desconhecido que se dizia Encoberto . E razão tinha o porteiro de S. Francisco para suppôr que á porta do seu convento bateria o perdido D. Sebastião ; porque os jesuitas em Evora , nas cadeiras da Universidade , no confessionario , no pulpito , nos escriptos , em tudo , astuciosamente divulgavam a crença do principe encoberto , que viria imperar em Portugal a contento de todos , engrossando d' este modo a seita , já numerosa , dos sebastianistas . Fr. João Palhares não se fez esperar muito : assomando a uma porta que dava para o interior do convento e para a portaria , cara de pascoas , caminhou de braços abertos e passos medidos ao desconhecido , dizendo : -- Bem vindo sejaes á casa dos pobres franciscanos de Evora . Entrae . -- Rica -- virtudes e fiel a seu soberano , respondeu o recemchegado . E entraram no convento . Ao atravessarem a claustra , deserta e silenciosa áquella hora , o Encoberto parou , dizendo para o frade : Acaso haverá n ' esta casa quem nos possa trahir ? quem possa divulgar minha entidade ? -- Por Deus , que não : porém , tal pergunta ... -- Quer dizer que haveis um porteiro de inspirar bem pouca confiança ; curioso , indiscreto talvez ... -- Não hajaes temor , que todos n ' este convento sabem como é punida a indiscrição ... Mas , vós a tal hora n ' esta casa , quando haviamos combinado estardes agora na taverna de Antão Vasques ? ... -- Para vol-o explicar vim . -- Subamos á minha cella , que o írio aqui n ' estas arcadas é sempre intenso . A cella de fr. João Palhares , a começar pela porta estreita , em tudo o mais guardava as proporções architectonicas . Acanhada , com pouco pé direito e escassamente alumiada por uma pequena janella durante o dia , e agora por um grandissimo candieiro de latão branco de tres lumes , pouca mobilia continha . Seis escabellos forrados de veludo antigo , uma cadeira de braços , uma mesa com alguns livros , tinteiros de zinco e pennas de pato bem enramadas , o leito de fr. João na alcova proxima e alguns paineis de santos pelas paredes , tal era a mobilia do Guardião de S. Francisco de Evora . A convite de fr. João Palhares o desconhecido sentou-se na cadeira de braços e elle proximamente n ' um dos escabellos . -- Falae ora sr.||_D._Miguel_de_Salamanca D.|_D._Miguel_de_Salamanca Miguel|_D._Miguel_de_Salamanca de|_D._Miguel_de_Salamanca Salamanca|_D._Miguel_de_Salamanca ; que succedeu ? -- O disfarce que tomei acoberta-me da curiosidade ; mas , ainda assim , fui hoje seguido na cathedral por um homem que eu suppunha morto , por um disfarçado inimigo meu ... -- Que dizeis ? E vos-? Quem é esse ? -- Oh ! o seu nome , o seu nome não devo eu pronunciar , que o recordal- o é ver surgir ante mim o fantasma do remorso , o demonio da vingança ... -- Segredos e mysterios são que devo respeitar ; mas , vos-esse homem ? -- As longas barbas que me desfiguravam , a esclavina que me cobria supponho não dariam logar a ser conhecido , com tudo temo ... -- Importa todavia saber quem é esse homem para , no caso de vos haver conhecido , o peiarmos como convém , ou pôrmos a bom recado . Dae algum esclarecimento de sua pessoa . -- É um homem alto e magro , de feições distinctas , e traz as barbas cortadas . -- Esses signaes ... Dizei-me : elle falou-vos ? o que disse ? Andava só ? -- Nada me disse e sem companhia o encontrei . -- Póde ser , disse fr. João Palhares , porque me disseram ser elle um instrumento perigoso nas mãos dos Collegiaes , mais perigosos ainda . -- Quem é , porém , esse tal ? -- É um dizidor das praças e ruas , um jogral sem juizo que por ahi diverte o rapazio com suas truanices e desconchavos . -- E chamaes perigoso a um homem assim ? -- Sem duvida , e muito ; porque , de envolta com suas boberias , proclama sem imputação doutrinas politicas e subversivas ao sabor das turbas , que folgam ouvil- o . -- Quanto a mim , julgo sem importancia as falas d' esse bobo ; mas , se vós o julgaes de contrario modo , mandae-lhe pôr uma mordaça na bôcca , no que fareis um bom serviço a el-rei . -- Isso faremos quando mister . Agora convém que vades á taverna de Antão Vasques , onde se aloja e esconde o descontentamento popular representado por um borracheiro e por um barbeiro de espadas . Observae bem todos e tudo , e quiçá sereis mais feliz do que eu , que alli tenho entrado disfarçado sem lograr colher á mão o fio da trama . -- Já hoje alli entrei e pedi a Antão Vasques pousada por esta noute . Volto , pois , ao meu trabalho de observação . -- Mas , parece-me que deveis ir disfarçado , porque já nessa taverna topei um dia o Manuelinho . -- E quem é esse Manuelinho de quem falaes ? -- Manuelinho é o truão que supponho haver-vos observado na sé . -- Bom fôra não encontrar mais tal fantasma que , se me não enganei , e de facto me chega a conhecer , ou teremos nós de o mandar de presente a satanaz ou de me bater eu com elle em duelo de morte . Mas , pelo que dizeis , não póde ser elle . -- Singular caso é esse , sr.||_D._Miguel_de_Salamanca D.|_D._Miguel_de_Salamanca Miguel|_D._Miguel_de_Salamanca de|_D._Miguel_de_Salamanca Salamanca|_D._Miguel_de_Salamanca . Ide vós á taverna de Antão Vasques ; e , se com effeito esse homem que vistes for o que não desejaes , o-a este convento , onde seus ossos poderão vir juntar-se aos que ahi temos na capella ; que um duelo , e de morte como dissestes , deve ser impossivel entre um nobre de vosso sangue e um obscuro plebeu . -- Nessa parte vos enganaes , fr. João Palhares : o melhor sangue de Portugal lhe percorre as veias ; de modo que , se por um mysterio para mim inexplicavel , elle for , e me chega a conhecer , não poderei esquivar-me a cruzar com elle as armas , sem quebra do pundonor da nobreza de Castella . -- Pois bem , evitae quanto poderdes esse encontro ; desfarçae-vos e correi lá . E o desconhecido desdobrando as engenhosas vestes que trazia , com espanto do attonito frade , e pondo no rosto umas longas barbas brancas , de prompto ficou transformado em romeiro de Sant'Iago de Galliza , a quem só faltava o bordão e as sandalias . -- Assim disfarçado ninguem vos conhecerá . Tendes armas ? -- Tenho . E o que se annunciára Encoberto ao entrar a portaria do convento de S. Francisco , mostrando um buido punhal a fr. João Palhares , ia sair d' elle por fórma disfarçado que a ninguem seria facil descobrir-lhe a dupla personalidade . -- Falta-me apenas o bordão e as sandalias que tenho nos aposentos que me destinastes , continuou o desconhecido . Se vos apraz entremos n ' elles . Minutos depois d' este dialogo na cella de fr. João , o desconhecido saia a portaria do convento , deixando boquiaberto o porteiro , que não vira entrar similhante individuo , com esta despedida singela : -- Buenas noches , hermano . Em quanto o desconhecido , a quem fr. João Palhares chamára D. Miguel de Salamanca , se dirige á famosa taverna de Antão Vasques , na rua do Raymundo , continuemos nós a urdir o entrecho d' esta breve historia . Amores Dois filhos tinha o bom velho , orphãos do materno amor desde innocentes . THOMAZ RIBEIRO -- D. Jayme . Entre os muitos castellos feudaes , que atalaiavam a raia portugueza antes de D. João II , e que subsistiram depois como sentinellas da liberdade portugueza , que olhavam torvas a orgulhosa Hespanha , via-se em 1637 o castello roqueiro de Pena de Alfange , fundado por Estevam da Gama , nas margens do Guadiana , deshabitado , e já meio arruinado pela acção do tempo e talvez dos homens . Defronte , como a grande ossada de um elefante , erguiam-se e miravam-se no rio as paredes denegridas de um castello hespanhol . Quem assim os contemplasse fronteiros e arruinados , um mais do que outro , parecendo haverem nascido na mesma épocha , amentaria sem duvida os melhores dias d' aquelles guerreiros de pedra , e sonharia talvez para explicar o estado do castelhano alguma reivindicta ou desaffronta dos nossos . E perder-se-ia-n ' um mar de incertezas se quizesse rastrear-lhe a causa . Na verdade , n ' aquelle castello habitaram outr'ora duas familias nobres , eguaes na pureza do sangue mas rivaes nos desejos e nas ambições . Passaram , volveram ao abysmo preterito e não deixaram por ventura representantes nos dous povos . Nada se podia , pois , saber . O Guadiana , na sua constante passagem , murmura talvez a historia d' aquelles castellos em sua linguagem só entendida dos salgueiros das margens . Não fique , porém , o leitor ignorante do passado viver d' aquellas casas . Attenda : Depois do combate de Aljubarrota , Portugal e Hespanha juraram-se rivalidade eterna , se anteriormente o não haviam feito já . Respeitavam-se e temiam-se , fortificavam-se e luctavam , maiormente nas terras da raia . Mas se o amor da patria erguêra uma barreira de odios como linha divisoria dos dous povos , não podera , comtudo , levantar muralhas de indifferença entre os corações portuguezes e hespanhoes . É que para esse fluido , attractivo d' almas e de affectos , não basta para se lhe oppôr a incoercibilidade , o amor do torrão natal , a affeição aos logares que primeiro vimos . Filho da liberdade , o amor da patria tem uma razão de ser na missão de combater a escravidão . Não assim o amor , que na essencia é liberrimo e insubjugavel , e não carece , portanto , de combater inimigos da patria , que não tem , por que é cosmopolita . Dous combates , duas luctas entre o amor da patria e o amor das almas , se feriram sangrentas nas margens do Guadiana pelos annos de 1600 . Tinha o castello de Pena de Alfange , Christovam da Gama , neto do fundador , por el-Rei D. Filippe III , que nos dominava ainda . Viuvo , este fidalgo vivia alli com dous filhos : Mendo e Leonor . Era o filho um moço esforçado e brioso , a quem seus maiores com o sangue haviam transmittido os sentimentos do amor da patria e odio a castelhanos . Amadurecido pela educação guerreira d' aquelles tempos , representava vinte e cinco annos de edade , contando apenas dezoito a vinte . Alto , feições nobres e distinctas , barba preta e macia , maneiras gentis e falas attrahentes , tal era o conjuncto de suas qualidades physicas . Leonor , sua irmã , era mais nova dous annos . Bem talhada de fórmas , rosto sobre o comprido , cabellos louros , olhos azues maviosamente ensombrados por longas pestanas , eis Leonor exteriormente olhada . Moralmente descripta era extremamente boa . Obediente á vontade paterna , docil e meiga , Leonor nascêra formosa para adoçar o viver dos seus , e embalsamar de aromas de ventura a existencia do homem que primeiro lhe tingisse as faces d' aquelle rubor casto , e puro e sem egual , que nas faces da donzella exprime o primeiro bater jubiloso do coração apaixonado . Como o ouro se acendra pelo fogo , Leonor era o typo da mulher goda , esbelta e donairosa , acrysolado por mais de vinte gerações . Além do rio vivia o castellão Manoel de Vilhena , na sua fortaleza de Cheles . Mostrando os dous lados , as duas faces que tudo tem , ao odio das duas raças oppunha-se a affeição de Leonor a Manoel de Vilhena . Era este um galhardo fidalgo -- Castella . Trinta annos contaria de edade . Leonor , que no seu isolamento só via aquelle homem a quem podesse consagrar amor , sem quehra da pureza do sangue , sentiu um dia que se lhe gravára n ' alma a imagem d' elle por fórma , que nas caçadas , nos passeios , na oração , em toda a parte o via sorrir a seu lado . Era-lhe grata aquella doce perseguição , era-lhe familiar já tão querida companhia ; mas , uma nuvemsinha apparecia sempre no céu de sua ventura , quando em devaneios amorosos praticava com elle e chegava a suppôr- se já reclinada em seus braços , como sultana sem rival em diwan fofissimo : era a desaffeição de seu pae e de seu irmão áquelle amor nascente , se chegasse a manifestar-se , e a ser conhecido . E Leonor callava aquella affeição , não manifestava de modo algum , julgava ella , a labareda em que seu peito ardia . Se ás creadas o não communicava , ainda ás mais intimas , se nem em sonhos soltava o nome de Manoel de Vilhena , se aquella affeição de Leonor ao fidalgo castelhano tinha sómente um culto íntimo , se nem ás brisas aromaticas do jardim entregava o doce nome , um certo ar de melancolia , um certo cuidar sem bem se saber em que , uma certa pallidez , que nem as tintas reproduzem , mostrariam ao experiente , ao conhecedor do coração humano a causa verdadeira dos cuidados de Leonor . Rarissima era n ' aquelles tempos a molestia que hoje em dia se inocula , por assim dizer , no germen da vida , e , ao modo de um flagelo de Deus , similhante á peste , alastra de cadaveres as cidades e até mesmo aldeias , enchendo de vidas cortadas ou em botão ou já em flor tantas e tantas sepulturas ! ... A tisica , era rarissima , como disse ; mas , victima sua fôra a mãe da bella Leonor , e tanto o pae como o irmão ao vela assim desbotar , ao verem-lhe assim trocadas as rosas da face pela palhdez do jasmim e pela roxa côr do brio , entristecidos lembravam apenas que a donzella herdasse da mãe a terrivel doença . Outra cousa não lhes podia de modo algum lembrar . A ideia de uma paixão nem fugitiva lhes atravessava a mente . Paixão ? ! Por quem , e como nascida ? se Leonor creada sempre alli nunca falára a homem algum , que lhe podesse fazer vibrar cordas intimas ? A Manoel de Vilhena nunca ella falára , oppondo-se a educação d' aquellas eras a que Leonor podesse ou consentisse em se affeiçoar a qualquer peão , seu servidor . Manoel de Vilhena , por sua parte , vendo todos os dias Leonor , ou assomar ás janellas do seu castello , ou passeiar em seus jardins notára- lhe por vezes a belleza , é certo ; mas , sem que essa attenção fizesse differença do culto que todo o homem dá á mulher linda , como se demora a contemplar a rosa no rosal em cada maio . Após um dia formosissimo de março esplendia uma noute serena , em que os raios da lua alumiavam desvendados as campinas , reflectindo-se nas aguas do Guadiana , que na sua tremente passagem similhavam um rio de prata derretida . Manoel de Vilhena , como todos , ou quasi todos os fidalgos de então , tanto portuguezes como castelhanos , cultivava ainda a poesia . Os dous Cancioneiros o comprovam . Qs seus vilancicos e balladas eram conhecidos nos castellos , cantados das damas , sabidos de todos . Torneios e festas , saraus e danças , amores e prazeres , eis os themas , a inspiração d' aquellas eras , como d' hoje e de sempre . Acompanhado de um pagem , seu confidente , Vilhena entrára n ' um barco para se deixar embalar na preguiçosa corrente do rio , para beber á farta inspiração poetica , na luz da lua , no ciciar da briza , no marulhar das aguas . Não presentira Leonor o vogar do barco nas aguas do Guadiana , nem a seus ouvidos chegaram as harmonias do alaúde que Manoel de Vilhena dedilhava . Estranhando não ver além , de fronte , a costumada luz nos aposentos de Vilhena , sentira-se triste ; e , por dar saida do peito a tristezas , sentára- se a uma janella gemeada de sua camará , e cantára ao som de um bandolim , que tangia , esta sentida canção : Tem a lua no céu companhia Nas estrellas que a cercam ás mil , A avesinha na balsa sombria , Cruas feras no tetro covil . Eu , coitada , aqui vivo sosinha Sem affectos contar de ninguem , Infeliz , desditosa e mesquinha Sem ao menos carinhos de mãe . Tudo em volta de mim tem amores , Tudo dá e recebe affeições , Até mesmo as balsamicas flores Desfazendo-se em exhalações . Aguas claras que amaes murmurantes Os salgueiros , a brisa e a flor , Quanto invejo , ó aguas amantes , Vossa sorte , ventura e amor ! Ouvira Manoel de Vilhena aquelle cantar de Leonor , que para elle fôra como a faisca que põe fogo á mina destruidora . Só lhes faltava , para complemento da sua poetica inspiração , ouvir aquella voz maviosa da donzella . Deixou logo expandir o sentir de sua alma , vibrando as cordas de seu alaúde , nesta ballada sentida : Vês essa estrella que acompanha a lua Ora mais perlo , ora mais distante ? Sou eu que sigo essa imagem tua , Sou eu , ó virgem , teu fiel amante . Tal como ás aves , ás cruentas feras Da mesma especie lhe responde o par , Feliz eu fôra se acceilar quizeras Estes meus versos , este meu cantar . Não te lamentes , infeliz donzella , Tambem eu novo minha mãe perdi : Não te lastimes por que em logar d' ella Tens a minha alma a suspirar por ti . Oh ! não invejes esse amor das aguas Á brisa , á margem , á modesta flor , São ellas symb ' los de cruciantes magoas Feliz não póde ser o seu amor . Logo que a briza do rio lhe trouxe as primeiras notas , e ao modo por que ellas se repetiam , successivamente se desanuveava o peito oppresso de Leonor , que , debruçada no peitoril da janella , hauria , sedenta de affectos , aquellas ondas de harmonia , ouvindo pela primeira vez a voz de Manoel de Vilhena . Tão grande fôra para Leonor aquella surpreza , que , tomada de um tremor nervoso , caira afflicta no assento , ao terminar a derradeira nota do alaúde mysterioso . Leonor não vira a pessoa que cantou , não lhe conhecera a voz e nem podera precisar o logar d' onde ella saira , julgando apenas que sería do sobpé do seu castello . Por sua parte Manoel de Vilhena , ao terminar a canção de Leonor , determinára- se a responder , não tanto por afinar com ella , como por se divertir a si ; não tanto por pleitear amores , como por brincar com a filha de Christovam da Gama . Fatal irreflexão fôra aquella . Póde alguem brincar com o fogo que se não queime ? Um simples passatempo origina e occasiona às vezes grandissimos desgostos . Ainda amores E o barqueiro hia cantando Não sei que saudosas mágoas ... CASTILHO -- Amor e melancolia . Similhante á Hero da Mythologia , Leonor , que suppunha ser aquella voz a de Manoel de Vilhena , permanecera longo tempo ainda sentada á sua janella , ora pairando a vista sobre o rio , d' onde a briza lhe trouxera aquellas harmonias , ora cravando-a no castello fronteiro , onde não via brilhar a costumada luz nos aposentos de Vilhena . Aquelle , por sua parte , recolhêra- se ao castello com a satisfação do homem que julga haver zombado da mulher a quem não dispensa amorosos affectos , antes , orgulhoso , se ufana com a stulta gloria de se crêr amado por ella , e por um platonismo desnatural , despreza os encantos da mulher . Deitára- se tarde , porque estivera longo tempo ainda sentado á sua janella contemplando o vulto estatico de Leonor que , além , defronte , parecia não tirar os olhos dos aposentos de Manoel de Vilhena . Mal pensaria elle que o puro gracejo com a filha de Christovam da Gama fôra a primeira setta que arrancára das mãos do amor para a cravar em seu peito ! Tormentosa lhe corrêra a noite com um pesadelo afflictivo . Afigurára- se-lhe ver debulhada em lagrimas , apaixonada por elle , doente , a bella imagem de Leonor , soltas as tranças bellas , cavadas as faces , pallido e triste o semblante , arguindo-o do mal que lhe causára , pagando-lhe com singular ingratidão aquelle affecto purissimo . Rompêra a manhã . Manoel de Vilhena , para quem o leito fôra tormentosa catasta , erguêra- se quando os primeiros raios do sol lhe penetraram nos quartos . Abrindo as janellas do seu erguido aposento , e crendo que por brinquedo ainda procurava ver Leonor á janella de sua camara , o fidalgo castelhano era já forçado áquelle madrugar , áquelle procurar ver a imagem de Leonor , por uma necessidade de seu coração , que suppunha não existir . Estava apaixonado por Leonor da Gama . Tomou rapidamente proporções enormes aquelle sentimento , que tão singular nascêra , que tão caprichosamente se manifestára . Buscou approximar-se de Leonor , diligenciou falar-lhe , poz todo seu cuidado em dizer á castellã portugueza que a amava , a despeito da rivalidade de raças , a despeito do desagrado de seu pae e de seu irmão , a despeito de tudo . Adiantava-se o dia e as janellas da camara de Leonor permaneciam fechadas . Isto , que para elle seria indifferente no dia anterior , isto em que elle não attentaria antes de responder á sentida canção de Leonor com outra , era agora causa para uma certa inquietação , era agora incentivo para desejar conhecer a causa de não ver assomar Leonor á sua janella gemeada . Homem de expediente , Vilhena chamou um pagem seu amigo e disse-lhe : -- Hei mister saber quanto antes a razão por que a filha de Christovam da Gama ainda hoje não appareceu em suas janellas . -- Porém , observou o pagem , sabeis que não é facil o desempenho de tal missão . Gomo sabel- o ? A quem perguntal- o ? -- Entende-te com alguem d' aquella casa : não tractas com pagem algum de Christovam da Gama ? -- Apenas os conheço de vista . A rivalidade dos senhores exige indifferença , pelo menos , dos servos . -- Ahi tens ouro , acaria um com elle , compra-o : E o fidalgo hespanhol entregava ao pagem uma bolsa com dinheiro . -- Senhor||_D._Manoel D.|_D._Manoel Manoel|_D._Manoel , o negocio que me confiaes é de difficil realização . Notae bem que se não compra um portuguez facilmente ... -- Ide-vos , respondeu Vilhena exaltado . Com ouro compram-se portuguezes e castelhanos , com ouro te compro eu a ti a má vontade . Terás um bom premio quando voltares com a noticia da causa do desapparecimento de Leonor . E ao complemento de um imperioso aceno do fidalgo , o pagem partiu , de facto . Tinha razão Manoel de Vilhena . Tinha razão o castelhano que sabia que uma das armas com mais proveito manejada no decrepito reinado do Cardeal D. Henrique , e depois d' elle no dos Governadores do reino , fôra o ouro com que se compraram vontades e se conseguiu manietar um povo que abraçára dous mundos nos braços de bronze . Duas horas depois , Manoel de Vilhena galardoava os serviços do pagem , que lhe dizia que Leonor da Gama estava doente e de cama ; que passára mal a noite ; que tinha febre ardente e que se havia chamado um physico para atalhar o progresso da doença , que tinha cuidadoso por sua saude seu pae e seu irmão . Entristecêra- se o semblante do fidalgo : e , procurando explicar a doença repentina da bella Leonor , ignorante do que se passava no coração d' ella , julgava que o fresco da noute , a que até tarde estivera exposta sería a causa unica da doença da castellã . Volveu longo para Manoel de Vilhena aquelle dia . Da mesma fórma no dia immediato appareceram fechadas as janellas de Leonor . A doença persistia em sua obra de destruição . Para ter d' isto a certeza ordenou ao pagem que voltasse , levando d' esta vez um papel que devia fazer chegar ás mãos de Leonor , no qual Manoel de Vilhena , não conhecendo a causa do padecimento d' ella , não sabendo se sería amado , ou ao menos não aborrecido , escrevia já com aquella deliberação que só lhe podia dar o amor que sentia á bella portugueza : -- Formosa Leonor ; Costumado a ver-vos todos os dias de manhã ás janellas de vosso quarto , sinto-me triste desde que vos não vejo . Não sei explicar bem a causa d' isto . Sei que tenho o peito em trevas , que é noite em minh ' alma , que só terei contentamento e alegria quando vir apparecer vosso corpo esbelto ás ventanas de vosso castello . E , como se lhe fôra familiar aquella correspondencia , nenhuma desculpa lhe pedia , nenhuma cautela lhe aconselhava . O pagem partiu . Como é natural , Vilhena mais inquieto ficou do que no dia antecedente , mais ancianle pela volta do pagem . Este chegou mais tarde ; demorára- se mais por que lhe fôra custoso levar o pagem portuguez , com quem se entendêra , a dar mais do que informações da saude de sua senhora . Não podia elle levar o papel a Leonor , foi-lhe preciso amaciar , com promessas e dadivas logo , a vontade asperrima de uma aia de Leonor . O pagem voltou , pois , com a noticia de que Leonor continuava doente e de que o seu escripto lhe sería mostrado . Correu similhantemente ao anterior aquelle dia para Manoel de Vilhena . Debalde esperou que se abrissem as janellas dos aposentos de Leonor . Approximára- se a noite ; e , Vilhena , como Leandro d'Abydos , descia ás margens do Guadiana , não para luctar com as aguas tranando o rio para o outro lado , mas para se approximar do castello de Pena de Alfange no seu barco movido a remos . Mandando remar para a margem opposta , o fidalgo castelhano soffria cada vez mais ; por que nenhum ruido , nenhum écho , nenhuma luz percebia no castello portuguez . -- Sinistro silencio ! ... disse elle , e mil conjecturas tristes lhe brotavam da mente fertil , como succede em transes assim . Approximando-se muito das rochas em que pousava o castello , por espantar seus males , começou a cantar tristemente estas coplas portuguezas de Christovam Falcão : Coração , já repousavas , Já não tinhas sujeição , Já vivias , já folgavas , Pois por que te subjugavas Outra vez , meu corarão ? Soffre , pois te não soffreste . Na vida , que já vivias , Soffre , pois tu te perdeste , Soffre , pois não conheceste Como te outra vez perdias . Soffre , pois já livre estavas , E quizeste sujeição ; Soffre , pois te não lembravas Das dôres , de que escapavas ; Soffre , soffre , coração ! Apenas acabára de cantar , apenas as vibrações das ultimas notas se afastavam levadas nas auras embalsamadas dos jardins de Leonor , o ruido de um leve corpo caído no bordo do barco e depois nas aguas o sobresaltou por fórma , que não procurou logo conhecer que objecto era aquelle que lhe caíra sem duvida do alto do castello de Pena de Alfange . Instantes depois , diligenciou procurar o corpo que caíra . À luz da lua viu ir levado na corrente do rio um papel dobrado . Já lhe não chegava , vogou para elle rapido , como sofrego e apressado corre o faminto ao pão que lhe falta , o sequioso á gota d' agua que o alimentará , o naufrago á taboa solta nas ondas encapelladas , á felicidade todo o que se julga desgraçado e a suppõe encontrar . Tomou e leu o papel á luz brilhante da lua , que n ' aquella noite era admiravelmente esplendida : -- Deus vos pague , cavalleiro , o bem que me fizestes . Sede cauto e voltae . Deixemos Manoel de Vilhena feliz com a leitura d' aquelle papel , e penetremos no solar e castello de Pena d'Alfange . Não ha pontes levadiças que nos tolham a entrada . Apenas uma fortissima porta de carvalho , chapeada de grossas cintas de ferro , nos podia vedar o ingresso se não estivera aberta . De um grande pateo quadrilongo para o primeiro pavimento do castello ha uma escadaria de marmore ; subamol-a . Penetremos agora o palacio e fortaleza . O pavimento nivelado com a extremidade superior da escada é já habitação dos nobres Gamas , havendo um segundo andar , mais elevado , onde são os aposentos da bella Leonor , Do primeiro pavimento em que entramos ha uma escada de caracol para outro inferior , e d' este , communicação ainda para um terreo e sem luz , que servia de prisão a refens ou prisioneiros plebeus , e que ficava já ao nivel do Guadiana . Por uma disposição commum a muitas casas fortes antigas , o castello de Pena de Alfange tinha no andar subterraneo uma saida para o Guadiana . Sem duvida para evacuar o castello em caso de cêrco , ou para sortida hostil contra o inimigo , aquella saida estava já como esquecida : apenas um velho servidor conhecia o meio de abrir-lhe a ferrea porta , consistente num segredo de mechanica , que substituia achave . Dividido em tres corpos principaes , os dous mais fortes eram os lateraes do castello : o do meio era a parte nobre e habitada pelos Gamas . Subamos ao andar que habita Leonor . São dez horas da manhã . N ' uma sala anterior á camara de Leonor , conversa o physico d' esta com o fidalgo||_Christovam_da_Gama Christovam|_Christovam_da_Gama da|_Christovam_da_Gama Gama|_Christovam_da_Gama : -- Não tenhaes receio , senhor , que vossa filha melhora ha dous dias consideravelmente . -- Não serão , porém , falsas essas melhoras ? Herdaria Leonor da pobre mãe o mal que tão moça e linda m ' a arrebatou ? -- Quasi vos posso affirmar que não ; e , se discreto fôra manisfestar-vos o que a tal respeito sinto ... -- Nunca jamais sereis indiscreto : falae . -- Vossa filha tem amores a alguém , e antevejo nessa affeição contrariedade que lhe póde ser fatal . -- Ainda tal cousa me não havia occorrido . É possivel ; mas , a quem se affeiçoaria Leonor ? nenhum mancebo aqui entra ... Acaso algum peão abjecto ... oh ! mas ai do louco que se atrevesse a mirar tão alto ! disse Christovam da Gama exaltado . -- Não me parece caso para vos exaltardes : que certeza havemos nós do que apenas é uma conjectura minha ? O que julgo acertado é indagar cautelosamente d' esta minha suspeita , e , em caso affirmativo , dar ao negocio a melhor direcção . -- Pois isso farei ; mas , ai de ambos se esqueceram as leis da nobreza d' estes reinos , os sentimentos de honra de meus antepassados ! Em quanto este dialogo se alterna na sala contigua aos aposentos de Leonor , vejamos se poderemos ver o que se passa n ' estes . Leonor está sentada no leito , soltas as transas bellas , pallido ainda o rosto mas satisfeita e feliz . A seu lado , sentada n ' um tamborete , a velha Joanna Mendes , sua creada antiga , sustem nas mãos uma almofia de fino barro , de que Leonor tirára sufficiente porção de aromatica e substancial assorda , que almoçava com bom appetite . -- Já me soube bem , minha Joanna , esta bella sopa : estou quasi boa . É muito entendido o nosso physico ; não te parece ? -- Ai ! é , é ; e eu também , pois não é verdade ? -- És , sim ; minha boa amiga , disse Leonor , sorrindo formosissima , e como quem alcança a extensão do dizer da velha . -- Queira Deus não se venha isto a saber , Leonorsinha , que não sei o que será de nós todas . -- Ai ! não receies , minha velha mãe , porque quando meu pae souber d' este amor , espero em Deus que esteja meio reconciliado com Manoel de Vilhena , e que o meu casamento com elle acabe de vez com esta rivalidade que , a bem dizer , não tem justificação . -- Mas a menina ainda lhe não falou e não sabe , por certo , que ideias serão as d' elle . Quem nos diz a nós que Manoel de Vilhena queira sómente zombar da menina e de seu pae e de seu irmão ? Ai Leonorsinha , desconfie dos hespanhoes inimigos . -- Tens alguma razão , tens , minha boa Joanna : mas , como lhe falarei eu ? Não te occorre nenhum meio ? Se eu lhe podesse falar , certificava-me do seu intento . Ajuda-me . -- Eu sim ! Só se fosse o Lopo , que me pediu com muito segredo para lhe entregar a carta que sabe . -- E tu pedes-lhe isso , sim ? minha boa mãesinha ? E Leonor , que chamava a Joanna Mendes a sua boa mãe , por esta a ter creado desde menina , abraçava-a e beijava-a com ternura . -- Veremos , veremos . Adeus : nada de tristezas e de scismas . Eu já fui nova e por experiencia sei que não faltam adoradores á mulher linda . Olhe , filha , não sei se digo bem se mal ; mas , parece-me que não é natural gostar a gente de uma só pessoa , como eu sei que não gosta só de uma flor nos seus jardins . Nada de scismas , nada , e adeus até logo . Joanna Mendes saiu e Leonor da Gama ergueu-se , penteou-se e assomou ás altas janellas do seu castello . Ultimos amores " O facho seductor tinha accendido , " Que de meta servia ao terno amante ; " oh ! quantas vezes sibilando o vento " Apagal- o tentou , talvez prevendo " A scena infausta queimminente estava ! NOBREGA -- Rimas . Se restassem duvidas no espirito de alguém ácêrca da influencia do dinheiro , se alguém houvesse que duvidasse do seu poder corrosivo podia aprender n ' esta historia . O ouro do senhor -- Vilhena , habilmente ministrado aos servos da casa de Christovam da Gama , não só lhe abriu as portas do castello , mas approximou-o até de Leonor , como se vai ver . O velho Lopo , combalido por Joanna Mendes , a quem mais do que a affeição que tinha á castellã demoviam a sêde do ouro castelhano e o desejo de o possuir , abriu uma noute a Manoel de Vilhena aquella porta de ferro que ficava á flor do Guadiana e servira talvez em mais antigos tempos para sortidas hostis contra inimigos . Manoel de Vilhena penetrára por ella e subira ao primeiro pavimento do castello immediato ás humidas prisões , ao encontro da fascinada Leonor , da louca mariposa inexperiente que não sabia o perigo enorme que corria indo ao encontro do rival de seu pae e de sua familia . Era aquella casa uma casa forte , cercada de armaduras antigas , de broqueis , espadas , montantes , lanças e toda a sorte de armas offensivas e defensivas , tanto antigas como modernas . Era o arsenal do castello . -- Não comprometia ninguem , sr.||_Manoel_de_Vilhena Manoel|_Manoel_de_Vilhena de|_Manoel_de_Vilhena Vilhena|_Manoel_de_Vilhena , dizia o velho Lopo , que subia adiante . Respeite a innocente donzella , que vem ao seu encontro , e queira Deus que bem cedo eu tenha a satisfação maior de minha vida vendo no enlace de ambos desfeitos estes odios de duas familias tão importantes . Ficae aqui e esperae . E assim falando Lopo desapparecêra por uma estreita escada de caracol para os andares superiores do castello . Á luz de uma véla que lhe accendêra Lopo , Vilhena , comprimido o coração , anhelante , temeroso até , por que a ideia de uma cilada lhe adejou na mente , olhou em volta , approximou-se da escada por onde subira o velho , escutou , e , porque não ouvisse ruido algum , movido d' aquelle pensamento que o salteara de que a facilidade com que se lhe abrira o castello fosse um laço para o colher , desceu pressuroso ás prisões e d' estas correu á porta , que verificou estar aberta . Socegou : arrependendo-se , comtudo , de sua facilidade , e protestando ser mais cauto no futuro . Entrar assim apenas armado de uma espada e só , na casa de um declarado inimigo , levado de uma allucinação que a seus olhos ainda não tinha uma causa conhecida , e que ora lhe parecia zombeteiro brinquedo com a innocente Leonor , ora verdadeira paixão amorosa , era loucura impropria de seus annos . Por vezes , em quanto esperou , lhe occorreu a ideia de sair , entrar no barco , que deixára na corrente preso á porta de ferro , e chamar para o acompanhar um ou mais de seus pagens escolhidos : conteve-se , porém , por que a cada instante lhe parecia ouvir o roçagar dos vestidos de Leonor descendo a escada de caracol , quando , em verdade , nenhum ruido se ouvia . Era a consciencia , ou , melhor , o temor que lhe povoavam a estancia de ruidos de portas que se fechavam , de passos que se davam e ate de armaduras que se moviam . Sentiram-se passos : d' aquella vez não era sonho da mente escandecida do fidalgo castelhano : alguem descia : mas alguem que lhe não parecia poder ser Leonor . Levou a mão á espada , collocou-se perto da passagem para os subterraneos e esperou que na extremidade da escada assomasse a pessoa que descia . -- Recebeis-me de espada na mão , sr. de Vilhena ! ! ... Foram as primeiras admiradas palavras de Leonor ao ver o fidalgo na duvidosa postura ou de querer luctar ou de querer fugir . -- Perdão , perdão , formosa Leonor , exclamou Vilhena , soltando o punho da espada e precipilando-se a ajoelhar aos pés d' ella , murmurando : não me parecia que fosseis vós ... -- Erguei-vos e não temaes , disse Leonor . -- Ó formosura angelica , sonho meu idolatrado ... E , como impellido por uma força electrica , Vilhena e Leonor abriram os braços , e rapidos enlaçaram seus corpos n ' elles , no anciar suffocante de seus corações apaixonados . Occultam-se sempre as scenas amorosas aos olhares profanos . E isto por uma especie de egoismo que mui bem define algures Victor Hugo , o grande poeta , o grande pensador , talvez o grande visionario da França moderna : L'oiseau cache son nid , nous cachons nos amours . Deixemos , pois , gozar aos dous momentos de uma felicidade , que ao céu apraza seja duradoura . Sôa uma hora da noite no campanario de Cheles : Manoel de Vilhena assoma á porta de ferro ao rez do Guadiana , salta no barco , que desprende , estende a mão a um vulto que ainda permanece á porta e diz : -- Toma ; não faltes ámanhã á mesma hora . A porta fechou-se , o barco vogou de mansinho ao brando mover dos remos , e o silencio e a callada da noite áquella hora imperaram nas margens do Guadiana . Repetiram-se aquelles colloquios enlre os dous amantes , não podendo eu informar ao leitor se não dos esforços empregados por Leonor para demover Vilhena a pedir a sua mão ao austero portuguez Christovam da Gama . Findára um bello dia de maio . Descêra a noite balsamica e harmoniosa , com o descantar lindissimo dos rouxinoes das margens do rio . Tocava o tempo com seu dedo invisivel as onze horas da noite . Uma luzinha brilhára além ao lume d' agua na margem opposta ao castello de Cheles , reíleclindo uma cauda de luz nas aguas em toda a largura do rio . Desprendia-se um barco dos muros do castello castelhano e vogava brandamente para o ponto luminoso , evitando na passagem a esteira de luz reflectida . Era já grande o silencio áquella hora : apenas um ou outro rouxinol descantava nos jardins de Pena de Alfange as ultimas canções amorosas . A luz desapparecêra , o barco tocára a rocha do castello portuguez . Quando Manoel de Vilhena saltou em terra e prestes entrava a porta do castello ouviu em cima , nas arvores do jardim , um breve ruido similhante ao esvoaçar de uma ave . Por isso o explicou sem mais reflectir , entrando a estreita porta , que cerrou de manso sobre si . No dia seguinte , por dez horas da manhã , galopava em um famoso andaluz Manoel de Vilhena , seguido de muitos pagens a cavallo tambem , caminho de Pena de Alfange . Em quanto a cavalgada se dirige a Pena de Alfange , tomemos-lhes nós a dianteira , leitores curiosos . Subamos a escadaria de marmore de Estremoz já nossa conhecida ; entremos . como se o castello fôra habitado por estatuas silenciosas , servos e servas , pagens e peões perpassam mudos , aspecto grave e cuidadoso , tristes . Qual será a causa d' esta tristeza , d' este mover de automatos ? Estará gravemente doente alguem d' aquella casa ? morreria alguém ? Percorramos a casa . Leonor está sosinha em seu quarto acabando de se toucar ; na sala dos retratos , fechada por dentro , ouve-se falar . Quem será e o que dirão : Por uma certa presciencia , por um dom de ubiquidade que tem o romancista , com que devassa o mais íntimo , descobre o recondito , gera , cria , mata e , mais formidavel do que o tempo subjuga-o , põe-no a seu serviço , contando a seu talante seculos , annos , mezes e dias , que ora faz correr velozmente , ora tardos e ronceiros como as noites em Lamego , informarei ao leitor do que alli se passa desde o romper do dia . Mendo da Gama não dormira aquella noite : assim o podemos suppôr ao menos sabendo que antes do sol nado já elle vigiava a porta do quarto do pae , esperando que o fidalgo acordasse . Naquelles tempos ainda a noite era noite para o dia ser dia . Não passavam os fialgos as noites em jogos e danças , theatros e tertulias . Nas longas noites de inverno , as historias maravilhosas dos cavalleiros andantes ou vidas de alguns santos occupavam a attenção dos nobres , sentados á lareira como hoje em dia os nossos bons camponezes : de longe em longe havia n ' aquelles palacios um sarau ou festa de annos , que , ainda assim , não acabava noite vellia . Erguiam-se , pois , ordinariamente cedo . Apenas Mendo percebera que o pae tinha acordado , disse de fóra : -- Está acordado , meu pae ? -- Olá ! És tu , Mendo ? Tão cedo ! Isso é que é madrugar ! -- O mesmo digo eu do sr.||_D._Christovam_da_Gama D.|_D._Christovam_da_Gama Christovam|_D._Christovam_da_Gama da|_D._Christovam_da_Gama Gama|_D._Christovam_da_Gama . -- Passei a noite mal . Eu já te abro a porta : estou-me vestindo . E continuando disse : para alguma caçada me vem convidar o sr.||_Mendo_da_Gama Mendo|_Mendo_da_Gama da|_Mendo_da_Gama Gama|_Mendo_da_Gama , o mais esforçado perseguidor de feras d' aquem e d' além Guadiana . Pois vamos lá . Mendo já não respondeu por que ouviu os passos do pae , e , momentos depois , abrir-se a porta . -- Ora Deus lhe dê bom dia sr. meu filho . -- Deite-me a sua bençam . E dizendo taes palavras Mendo abraçava o pae . O senhor do castello de Pena de Alfange estranhou um pouco aquelle abraço ; e , deixando o tom alegre que tomára pouco antes : -- Que me quer meu filho , procurando-me tão cedo ? Mendo , que percebêra a mudança de tom de voz do pae , mandou uma pouca de alegria ao rosto e respondeu : -- Desejo que meu pae hoje almoce mais cedo e que depois venlia dar commigo um passeio no jardim : tenho um segredo a communicar-lhe . -- Ah ! um segredo ? ! ... Sim , senhor , sim , senhor , tem-me ao seu dispôr . Já mandaste fazer o almoço ? -- Já mandei . Uma hora depois entravam nos jardins o pae e o filho . -- Famosa manhã , meu rapaz . E , parando , como costumam os homens depois de certa edade : famosa manhã para me revelares um segredo . Sim , terás o meu sim , se fizeste boa escolha . -- Olvidaria as tradições de nossa familia se o não fizesse , respondeu o filho , mentindo ao pae em quem percebêra intenções mui diversas das suas , e por que não era tempo para lhe expôr o seu segredo . Vê-se das palavras de Christovam da Gama que este esperava do filho o pedido de uma licença para contrahir os sagrados laços do matrimonio com alguma fidalga portugueza de antiga linhagem . Quando se approximaram de um parapeito do muro , d' onde se via da parte de fóra do rio , além o castello de Cheles e na margem de cá as bases graniticas do de Pena de Alfange , Mendo perguntou ao pae : -- Será muito antiga a fundação d' estas casas ? -- A fundação primitiva do nosso castello é muito antiga : ora a reedificação tanto d' este como d' aquelle seria feita ha duzentos annos , pouco mais ou menos . -- Aquella porta de ferro que lá está em baixo rente com as aguas e encravada nas rochas tem communicação com o castello ou tem a passagem obstruida ? -- Não sei : não lhe conheço serventia , e creio bem que não dará passagem para nossa casa , por que não sei que se possa abrir : eu nunca a vi aberta . Mas , para que taes perguntas ? Para que tanto saber , sr.||_D._Mendo_da_Gama D.|_D._Mendo_da_Gama Mendo|_D._Mendo_da_Gama da|_D._Mendo_da_Gama Gama|_D._Mendo_da_Gama ? Por esse modo vos-heis do segredo que me quereis revelar , disse o pae , tomando alegre e prazenteiro modo . -- Ao contrario , só n ' isso penso , senhor meu pae . Aquella porta , que vedes e julgaes obstruida , abriu-se esta noite passada para deixar entrar a um homem que , vindo de lá , d' aquella margem n ' um barco , saltou na rocha e sumiu-se por ella a meus olhos . -- Que dizes ? -- A verdade . -- Attende bem : terias algum mau sonho que por tal guisa te impressionasse ? -- Não tive , digo a verdade . -- Meu Deus ! exclamou Christovam da Gama . E quem era esse homem ? Que fim tinha em vista penetrando aquella porta e introduzindo-se no castello ? Não lhe correste ao encontro ? -- Corri : desci á casa das armas , e d' ella ás prisões subterraneas e não encontrei alma viva : cheguei tarde . -- Eis , pois , o teu segredo ? -- Este é . -- Quem poderá ser então o atrevido , que não mediu a grandeza do arrojo , o audaz a quem mandaremos pendurar no mais alto d' aquella torre ? -- Se quereis ouvir as minhas suspeitas entremos em casa , onde a sós vol-as devo communicar . -- Graves devem de ser . Acaso ... Vamos . E foram . Sigamol-os . Entraram na sala dos retratos . -- O que tenho a dizer-vos é da maior gravidade , sr.||_D._Christovam_da_Gama D.|_D._Christovam_da_Gama Christovam|_D._Christovam_da_Gama da|_D._Christovam_da_Gama Gama|_D._Christovam_da_Gama , meu senhor e meu pae . Ordenae que não sejamos interrompidos . O fidalgo portuguez agitou uma campainha com violencia nervosa , bradando conjunctamente : olá , criadagem ! Appareceu á porta o vulto do velho Lopo . -- Ordeno a todos os meus creados que me não procurem e que digam a estranhos que lhes não posso falar . Lopo voltou-se e partiu a transmittir aos demais domesticos aquella ordem estranha , dada com tão mau modo . O velho ia triste : que lhe adivinharia o coração ? Transmittiu a todos a ordem com tão repulsivo semblante que , involuntariamente , aquelles se deixaram tomar do aspecto do velho Lopo . Era elle o mais antigo criado da casa : o velo triste significava transmissão de cuidados dos senhores do castello . N ' este caso , havia causa para a tristeza do velho ; mas , como explicar a que de nós se apodera , sem motivo algum conhecido , e que só mais tarde se explica n ' um ou noutro acontecimento , que nos prejudica ? Como explicar o subito e dolorido pulsar mais forte do coração , prenuncio certo de uma desgraça que nos fere ? Como o esvoaçar teimoso de um besouro desmedido e feio em volta de um irmão , quando áquella mesma hora outro irmão se lhe suicida ? Tudo isto serão crenças , acaso , superstição ? A sciencia humana ignora muita cousa . Horrores " Só um desaggravo tem o aggravado . " ANTONIO PRESTES -- Comedias . A sala dos retratos do castello de Pena de Alfange era quadrilonga e guarnecida em volta de retratos , representando os ascendentes de Christovam da Gama desde D. Mendo Alão até ao actual possuidor do castello . Pelo lado da arte nada havia que notar , admirando-se apenas o cuidado com que aquella familia alli se representava em ordem não interrompida . Ouçamos o dialogo do pae e do filho : -- Fala prestes , Mendo , que se me atropellam na cabeça as ideias . -- Sem rodeios : desconfio que o homem que penetrou no caslello era Manoel de Vilhena . -- Já o havia lembrado ; mas , com que fim ? Quem lhe abriria a porta ? Esclarece-me , meu filho . -- Quem lhe abriria aquella porta , não sei : o fim com que penetrou em nossa casa foi o de se approximar de Leonor . -- Infame ! Perro castelhano , agora nós ! Consentirá minha filha n ' essa approximação ? -- Assim o julgo , assim o acredito , meu pae . Antevejo em Leonor alfeição amorosa a Vilhena , e por ella explico eu a doença que tem tido . -- Sim , póde ser ; por que já o physico aventou ha dias essa opinião , a que dei pouco peso . Oh ! mas ai de ti Leonor da Gama ! se esqueceste os teus , se olvidaste as tradições de teus maiores ! -- Não se exalte , porém , meu pae . Nenhuma certeza temos ao presente . -- Que convém , portanto , que façamos ? -- Pôr os meios de nos certificarmos . -- Eu vou falar a Leonor . -- Não approvo essa ideia ; por que , se Leonor foi quem deu entrada ao homem que vi , e se esse é Manoel de Vilhena , não o poderemos haver á mão , como é minha vontade , por que ella o avisará para não voltar . -- Sim , mas se elle foi , estou eu deshonrado , Leonor perdida ... Oh ! ja , já um desforço tremendo ! -- Tel- o-heis , meu pae e senhor . Devemos proceder , porém , com a maxima cautela e prudencia . Julgaes que me não cohibo falando-vos assim ? Ardo em desejo de vingança , anceio por colher á mão o infame , quem quer que for . -- Então , breve : que plano tens ? -- Ouvi : desceremos esta noite á sala d' armas e alli , occultos , aguardaremos que alguem abra a porta . Ao infame que entrar pediremos então contas estreitas . Saberemos tudo . -- Será assim , e se for o castelhano não sairá mais ... se for minha filha a que o recebe ... ai , Mendo , que não sei o que farei ! ... Este dialogo corrêra rapido entre os dous . Christovam da Gama sentára- se e ficára silencioso um instante , como entregue a cogitações . Quando Mendo ia para lhe responder , pareceu-lhe ouvir ruido estranho , que não explicava por lhe chegar confuso . Abriu a porta , deixou o pae , que não deu por sua saida , e foi indagar a causa do estrepito e susurro que ouvira . Os creados do castello , recebendo com modo lugubre aquella ordem para se negar a todos a presença do senbor , haviam fechado a porta do pateo . Alli chegára Vilhena com sua comitiva , e batêra . Foi-se-lhe á fala e respondêra- lhe um pagem que não podia falar ao fidalgo portuguez nem elle nem ninguem . Esta resposta estranha exacerbára o castelhano , que rompendo em imprecações se partira offendido , crendo que de proposito se passára para elle aquella ordem , como nem a porta se lhe mandára abrir . O ruido que Mendo ouvira era a mistura do tropel da cavalgada e do altercar da pionagem dos dous fidalgos , que estiveram prestes a passar dos improperios á lucta . Soubera tambem , por lh'o dizer Lopo , que Vilhena viera para pedir a Christovam da Gama a mão de Leonor . Com estas novas Mendo da Gama entrára na sala dos retratos , onde deixára o pae , e onde o foi encontrar na mesma meditabunda postura . Christovam da Gama , que não déra pela saida do filho , mas só pela entrada , quando elle se lhe approximou , ergueu-se dizendo-lhe : -- Então deixaste-me só ? Onde foste ? -- Saber que estranho ruido sería um que me chamára a attenção . -- E que descobriste , pois ? -- Manoel de Vilhena , seguido de numerosa cavalgada , veio ahi para vos falar . -- A mim ! -- A vós ; e para vos pedir a mão de Leonor . -- Então não ha duvida ... -- São realidades as suspeitas que tinha : Leonor está perdida ... Christovam da Gama , com aspecto sombrio e grave , volveu-lhe : -- Está perdida e nós tambem . Ouve-me : ha pouco projectava fazer eu depender da sorte dous caminhos que teriamos de seguir : agora confio-lhe tres : -- ou consentiremos n ' essa união ... -- Nunca ! por vontade minha , atalhou Mendo da Gama . -- Ou puniremos o castelhano sómente , ou Leonor com elle . Responde . -- O juiz é meu pae . -- Altende , pois , e approxima-te . E o pae approximava-se de um movel antigo , especie de armario ou contador de pau preto com muitas gavetas chapeadas de metal amarello , abria uma das gavetas e tirava d' ella tres saquinhos de fio de seda , ou bolsas de troçal , como hoje diriamos , as quaes parecia estarem cheias de dinheiro . -- Aqui temos tres bolsas com ouro : esta tem alfonsins , esta S.||_Vicentes Vicentes|_Vicentes e esta contém espadins . E ao dizer taes palavras , Christovam da Gama tirava do contador uma caixa axaroada , e n ' ella lançava algumas d' aquellas moedas . -- Vamos , continuou , voltando-se para o filho , tira d' ahi uma moeda ao acaso , á sorte : confiemos-lhe o nosso destino . O alfonsim obrigar-nos ha ao casamento de Leonor com Manoel de Vilhena ; o S. Vicente á punição d' ella , e o espadim ao castigo de ambos . Mendo da Gama metteu a mão na caixa axaroada e d' ella tirou uma das moedas . -- Que moeda tiraste ? -- Um espadim . -- Um espadim ! Fatal sentença ! Cumpra-se . Pobre Leonor ! exclamou o fidalgo cedendo ainda a um esto de amor filial , pobre Leonor ... e pobre de mim ! -- Que tencionaes fazer , perguntou Mendo ao pae , ouvindo-lhe aquellas exclamações . -- Cumprir a sentença da sorte . Vaes conhecer um mysterio que existe nesta familia ; vaes ver como teus avós puniam os delictos contra a sua honra . E assim falando foi-se a um quadro antigo , que representava uma mulher moça ainda , tocou-lhe em uma occulta mola e o quadro , ou aro de madeira , abrindo-se , desviou-se para os lados deixando apenas em seu logar aquelle retrato . Mendo observava admirado . Tocou n ' outro ponto e o quadro ao modo de uma porta cedeu , retrahiu-se , e deixou patente ao attonito moço uma porta . -- Achega-te e vê , disse para Mendo o pae severo . Que observas ? Mendo não respondeu ; recuou horrorisado . O que vira era um esqueleto , meio involto ainda em roupas , e por ventura não despido de todo das resequidas carnes , mettido ou entalado n ' uma abertura praticada na parede , cm que apenas podia caber um corpo humano . Ao lado do esqueleto havia na parede outra abertura similhante áquella . -- Alli tens o futuro de Leonor -- Porém , senhor||_Christovam_da_Gama Christovam|_Christovam_da_Gama da|_Christovam_da_Gama Gama|_Christovam_da_Gama , respondeu o filho , afflicto com o que vira , e tremendo pela sorte de sua irmã , que elle muito amava , e a quem desejava punição , mas não como aquelle espectaculo lh'a deixava antever ; porém , meu pae , ainda não obtivemos certeza da falta de Leonor ; e , dado que a obtenhamos , temos ahi casas religiosas onde podemos fazer professar Leonor ... -- Inexoraveis em punir crimes contra a honra , contra o bom nome d' esta familia foram nossos maiores : selo hei eu tambem . Tu , se ao cabo de tantos seculos , tendo o nome glorioso do nosso progenitor , não podes representar-lhe os brios , deixa-me só , afasta-te . Se não sabes ser homem , recolhe-te a um convento . O dia passára triste para todos os d' aquella casa . Leonor , informada pela velha Joanna Mendes das ordens que seu pae déra de não falar a ninguem : da vinda de Manoel Vilhena que não pôde pedir ao fidalgo a sua mão , cuidadosa , afflicta sem atinar com a causa de tudo aquillo que no castello se passava , chorou , mortificando-se , e aguardou a noite com certa anciedade para indagar de Vilhena a causa de tudo o que se passára , se elle lhe podesse dar esclarecimentos . Mal pensava ella que seus amores fossem conhecidos já do pae e do irmão ! ... Eram onze horas da noite : tudo parecia repousar no Castello de Pena de Alfange . Um barco se desprendia da margem esquerda e vogava para a direita : uma facha de luz caudata instantanea alumiou a superficie buliçosa das aguas do Guadiana : Vilhena saltava na rocha do castello portuguez e penetrava a nossa conhecida porta . D ' aquella vez não era o velho Lopo quem a abrira ; era a propria Leonor ; era a timida donzella a quem o cuidado déra valor para atravessar aquellas humi-das prisões do castello . Entraram na sala das armas . -- Ai ! meu querido Vilhena , como eu tenho aguardado anciosa a tua vinda ! E lançou-se-lhe nos braços , de que em breve se desligou . -- Tambem eu desejo saber que proceder insolito foi este de teu pae em me não receber esta manhã : explica-m ' o se sabes . -- Não sei . Meu pae e meu irmão estavam fechados áquella hora na sala dos retratos , em pratica intima , de mim desconhecida , e aquella ordem fôra dada para não falar a pessoa nenhuma . -- Julguei que para mim só fosse ella dada . -- Não foi : antes de tua chegada , que meu pae não podia adivinhar , já a velha Joanna Mendes me tinha annunciado aquella determinação . -- Offendeu-me o proceder de vossa gente , e eu não posso voltar mais a pedir a tua mão . -- Oh ! não digas tal , meu Vilhena ! pede-lh ' a por escripto , se outra vez não queres voltar : bem vez , bem sabes que prendendo-me o coração ao teu destino , que sendo eu tua , força é que nos una a egreja . Depois , o honrado nome de meu pae , se alguem chega a saber d' este fatal amor , d' esta minha allucinação ... Não completou o pensamento . Soltando-se casualmente uma espada antiga da panoplia , e vindo cair aos pés de Vilhena , por fórma aterrou aos dous amantes que Leonor soltou um grito agudo e quasi perdeu os sentidos , e Vilhena , medroso , a custo pôde animar a assustada amante : -- Animo ; foi uma espada que por acaso caiu . -- Levanta-a , e defende-te , covarde ! troou de repente a pouca distancia a voz de Mendo da Gama . Leonor caiu como se a fulminára o raio , e Manoel de Vilhena , gelado de susto e depois de um instante de mortal stupor , voltava-se para fugir aquella casa , quando para elle caminhou uma armadura , e lhe embargou a passagem , bradando : -- Levanta essa espada , villão , e já ! Este insulto , a coragem que às vezes empresta o medo , que dá o instincto da conservação , animaram Vilhena a responder : -- Villão é o homem que acommette outro com armas desiguaes ! E ergueu a espada que o acaso lhe atirára aos pés . Instantaneamente a armadura caiu em peças e Mendo da Gama , apparecendo terrivel de espada em punho : -- Agora nós , infame ! E jogou-lhe um golpe ao peito . Vilhena aparou-lh ' o e a lucta começou . Mais Horrores Em toda a parte soam grandes golpes Despararam-se espingardas , e huma somma De lanças mil de fogo arremessadas . Ouve-se hum grande estrondo , hum gran rugido . CORTE REAL -- Cerco de Diu . Odio e vingança são dous irmãos terriveis : mais velho do que a vingança , o odio é um monstro como o ciume . Póde o tempo , com o seu cortejo de mil varios acontecimentos , abrandar-lhe a catadura , adormecel- o até : extinguil- o , nunca , maiormente entre as pessoas de elevadas jerarchias sociaes n ' aquellas épochas . Debalde a philosophia se propõe melhorar a natureza humana ; debalde procura limpar o peito do homem de maus principios ; debalde cogita purificar-lhe o coração com sãs doutrinas , esmagar a materia , elevar o espirito . Debalde sempre ! O homem é hoje o que tem sido sempre : estudem-no bem , observem-no* profundamente e vel- o-hão capaz de grandes acções como apto para praticar as mais abjectas ! Não se horrorisem os sabios com este modo de pensar : inquiram a consciencia , e d' ella saberão o numero de vezes que praticaram acções de que se envergonham ao recordal-as . Diz algures Victor Hugo que ha hoje e haverá sempre como na antiguidade grega mulheres formosas : diz uma verdade , como eu supponho dizer outra crendo o homem d' hoje como o de todos os tempos . Consultem a historia do passado , folheiem as chronicas dos reis , manuseiem as do feudalismo na edade media , as da nobreza em todos os tempos , as de toda a humanidade , em fim , e toparão sempre o bem e o mal , o vicio e a virtude , a grandeza e a miseria a par . Mas , para que taes considerações , quando o leitor quer saber qual o resultado da lucta na sala das armas do caslello de Pena de Alfange , entre Mendo da Gama e Manoel de Vilhena ? Foi aquelle um notavel combate . Ambos sabiam manejar bem a espada , ambos eram fortes , ambos luctaram muito . Do antebraço de Mendo da Gama saía , através da roupa algum sangue : estava ferido , mas não o sentira ainda : luctava como se começasse . Quando , porém , a primeira dôr o advertiu , o valente moço portuguez , exaspera-se , allucina- se , perde a côr do rosto , redobra de rapidez nos golpes , de força no braço , de pericia no evitar , de temeridade no acommeter ! Era sublime ! como se fôra um gladiador , por assim dizer electrico , não podia achar resistencia em Vilhena , que principiou a ceder , não lhe amparando a tempo o chuveiro de golpes tremendos . De repente ouve-se um estalido agudo e vibrante , voa a ponta da espada do fidalgo castelhano , que se retrahe um pouco , desmaia , cambaleia e cae . Jorrava-lhe o sangue da parte superior do thorax . Parecia ferido mortalmente . Leonor jazia como um cadaver inerte no pavimento frio d' aquella casa ; Vilhena , ensanguentado , caiu-lhe proximo ; e Mendo da Gama , ou extenuado do combate , em que desenvolvêra prodigiosa força muscular , ou extenuado pelo sangue que perdêra , ia quasi a tombar quando para elle correu uma armadura gemente nos gonzos das peças , e o amparou na queda . Era Christovam de a Gama , que , ao modo do filho , se occultára por aquelle meio na sala d' armas , para conhecer o fim com que um homem penetrára de noite o castello de Pena de Alfange . Forte mais talvez do que é permittido a homens , o fidalgo vira caír a filha , começar a lucta , ferir a espada castelhana a Mendo da Gama e permanecêra impassivel , despertando apenas para segurar o corpo do filho , prestes a tombar ! Aconselhava-lhe aquelle proceder o brio de um cavalleiro como elle era : combater conjunctamente com o filho a Manoel de Vilhena fôra infamia villã : dous contra um , sería grande nodoa no brial de um cavalleiro . Era já noite velha quando outro barco se desprendia da margem esquerda do Guadiana , e , remado por dous homens , demandava a margem direita . Aproando á rocha do castello portuguez , os dous homem saltaram n ' ella e se internaram pela porta que já conhecemos . Pouco depois saíam , amparando , ou , melhor , trazendo nos braços , um corpo humano , que depozeram no barco remando para Cheles . No dia seguinte estava de lucto o castello feudal de Pena de Alfange . Morrera de morte repentina Leonor da Gama ... Mendo , seu irmão , estava doente com o desgosto que lhe causára aquella perda , e o pae recolhido e magoado : taes eram as respostas que davam os servos d' aquelle castello aos curiosos perguntadores . Defronte , no castello hespanhol de Cheles , succedia quasi o mesmo . A criadagem d' aquella casa respondia mentindo ao publico que , havia já alguns dias , não vira o feudal senhor . Decorreram mais de dous folgados mezes , em que o publico murmurou á farta , sem comtudo , attingir com precisão a verdade dos acontecimentos . Podiam ver-se o cuidado e a tristeza impressos nos rostos dos habitantes d' aquellas casas ; um ar de calmaria estupida , similhante ao bochorno que precede os furacões , que annuncia os torvelinhos . Era por fins de setembro . Depois de calmoso verão apparecêra manchado de pequenas nimbos a abobada azulada ; engrossaram , tomaram negra côr , uniram-se e fecharam totalmente o vasto céo do Alemtejo em seus crepes lugubres . Uma corda de volumosas gôttas d' agua , ao som reboante de metalico estampido e á luz coruscante de electricas centelhas , caiu instantanea sobre a terra . O vento desencadeou-se em fortissimas rajadas , a escuridão cerrou-se , a noite começava assustadora ... Vejamos o que se passa no vasto pateo do castello de Pena de Alfange . Escudeiros , vassallos e peões , em numero de mais de duzentos homens , armados de diversas armas , com escadas de mão e materiaes inflammaveis aguardam inscientes uma ordem . O grande aguaceiro passára , permanecendo escuro o dia que se approximava do termo . No alto da escada de marmore assomaram então os dous fidalgos portuguezes : Christovam e Mendo da Gama . Armados com todas as peças do cavalleiro d' aquelles tempos , os dous desceram a escada vindo encorporar-se ao grupo armado . Quando Ghristovam de a Gama poz pé no terreno da vasta quadra todas as cabeças se descobriram : pae e filho agradeceram de egual modo a seus amigos . Houve um momento de silencio indescriptivel . Os rostos d' aquelles dous fidalgos tinham alguma cousa da lividez do cadaver . Encerrados , havia dous mezes , só os mais intimos do castello os tinham visto : para os demais individuos que alli se achavam eram elles como se foram pessoas , ou que não conhecessem , ou que ha muito não tivessem visto . Aquella gente abriu alas diante dos fidalgos ; e , Christovam da Gama , internando-se n ' ellas , ergueu por este modo a voz magoada : -- Mais do que vassallos , ou servos , meus amigos ! Convidei-vos a reunir aqui armados , sem vos annunciar o fim para quê . Estranho convite é este ! Ao verdes-me tambem armado vir ao vosso encontro , sem duvida percebereis que se tracta de um feito de armas . Tracta . Tracta-se de uma desafronta com mão armada . Fui offendido por um castelhano ... -- Vós ! exclamaram de repente muitas vozes . -- Eu , sim , o homem que sempre foi vosso amigo , que sempre vos abriu as portas d' esta casa , que sempre vos estendeu a mão , esse , viu um dia uma nodoa escura no espelho que reflecte suas acções , na sua honra ... Esta imperfeita revelação despertou um murmurio reivindicador n ' aquella gente , a que o fidalgo poz termo , continuando : -- Quereis agora saber o para que vos convidei a vir aqui armados ?