Francisco DE A FONSECA BENEVIDES No tempo dos francezes ROMANCE HISTORICO TERCEIRA EDIÇÃO LISBOA Typographia " A EDITORA " Largo do Conde Barão , 50 1908 Junot Era o dia 8 de junho de 1808 . Era dia de grande festa em Lisboa . Não era , porém , festa para portuguezes . No Castello de S.||_Jorge Jorge|_Jorge , nos arsenaes do exercito e da marinha , no castello de Almada e nas fortalezas da barra , tremulava a bandeira franceza . No Tejo tambem se desfraldava ao vento norte , que temperava os ardores do sol de um bello e esplendido dia , o pavilhão tricolor nas naus Vasco da Gama e Maria I , fragatas Tritão , Venus e Thetis , e mais alguns pequenos navios que , pelo seu mau estado de conservação , ou por não estarem apparelhados , tinham escapado de acompanhar a esquadra portugueza que , em 29 de novembro de 1807 , levou para o Brazil a familia real . D ' estes restos improvisara uma esquadra , de que tomara o commando , o capitão de mar e guerra francez Magendie . Todos os navios se achavam embandeirados , solemnisando a gala do dia em que o exercito francez dava uma festa ao seu chefe . Governava então Portugal , tendo o seu quartel-general em Lisboa , Jean Andoche Junot , commandante em chefe do exercito francez que , no anno anterior , invadira Portugal , por ordem de Napoleão . Andoche Junot era , nesta epocha , um homem de 37 annos , pois tinha nascido , em 23 de outubro de 1771 , em Bussy-le-Grand , departamento de la Cote d'Or . Militar valente , tinha brilhado , pela bravura com que se batera , no cerco de Toulon , em que ainda era simples sargento , e , já como official , nas campanhas de Italia e do Egypto . Não tinha , porém , Junot , talento algum , nem capacidade especial , nem instrucção militar , como precisava ter o chefe de um exercito invasor . Apesar de já ter estado , como improvisado diplomata , representando a França imperial , junto ao principe regente , em Portugal , de 1804 a 1805 , comtudo eram mui escassos os conhecimentos que possuia sobre a geographia e estado politico d' este paiz . Foi no theatro de S. Carlos que se realizou a festa dada pelo exercito francez em homenagem a Junot . Mas antes de tratar d' esse festival , em um golpe de vista retrospectivo darei rapida noticia de alguns acontecimentos , e descreverei alguns episodios , que se ligam com a occupação de Lisboa pelos francezes . Fuga da família real portugueza para o Brazil em 1807 São assas conhecidas as circumstancias em que o exercito francez invadiu Portugal , em 1807 , e , como diante de um pequeno exercito composto de tropas francezas , esfaimadas , rotas , esfalfadas e dispersas , fugiu para o Brazil , embarcando no cães de Belem , no dia 27 de novembro d' aquelle anno , o principe regente D. João , que foi depois o rei||_D._João_VI D.|_D._João_VI João|_D._João_VI VI|_D._João_VI , com sua mãe a louca rainha||_D._Maria_I D.|_D._Maria_I Maria|_D._Maria_I I|_D._Maria_I , sua esposa a princeza , depois rainha e imperatriz D. Carlota Joaquina de Bourbon , e seus filhos os principes D. Pedro e D. Miguel , que foram depois os reis D. Pedro IV e D. Miguel I de Portugal , e suas filhas as infantas D. Maria Thereza , D. Maria Francisca , D. Isabel Maria , que foi depois regente d' estes reinos , D. Maria de Assumpção e D. Anna de Jesus Maria , e as infantas D. Maria Anna , e D. Maria Benedicta , filhas da rei||_D._José_I D.|_D._José_I José|_D._José_I I|_D._José_I e irmãs da rainha||_D._Maria_I. D.|_D._Maria_I. Maria|_D._Maria_I. I.|_D._Maria_I. Além da familia real foram muitos nobres , fidalgos e funccionarios , com as riquezas e valores que poderam transportar para bordo , no pequeno intervallo de tempo que decorreu entre a resolução da partida e o embarque . Os fugitivos embarcaram em uma esquadra , commandada pelo vice-almirante Manuel da Cunha Souto Maior , composta de oito naus : Principe Real , Rainha de Portugal , Meduza , Conde D. Henrique , Infante||_D._Henrique D.|_D._Henrique Henrique|_D._Henrique , Affonso de Albuquerque , D. João de Castro , Principe do Brazil ; cinco fragatas : Golphinho , Minerva , Senhora||_da|_Graça da||_da|_Graça Graça|_da|_Graça , Princeza Carlota , Ulhysses ; duas corvetas : Andorinha , Tirania ; trez brigues : Lebre , Vingança , Voador ; duas escunas : Curiosa , Esperança . Pode-se dizer que foi esta a ultima esquadra portugueza . Quasi todos os navios de que se compunha foram apodrecer nas aguas do Novo Mundo . Depois d' este triste acontecimento , nunca mais a marinha portugueza poude reunir tão grande numero de vasos de guerra . Apezar do embarque se ter verificado no dia 27 de novembro , comtudo o mau tempo que fazia , com vento sudoeste , não permittiu que a esquadra , saisse a barra n ' aquelle dia , nem no seguinte . Foi só dia 29 , que , tendo o vento rondado para o noroeste , a esquadra se fez de vela , e partiu para as terras de Santa Cruz . No dia seguinte , 30 de novembro de 1807 , entraram os francezes em Lisboa . Porque foi nomeado Junot general em chefe do exercito da Gironda Para invadir Portugal tinha Napoleão ordenado a formação de um exercito de 26:000 homens , em Bavona , ao qual dera por commandante em chefe o general Junot . Que razões levariam o imperador dos francezes a escolher para tal empresa Junot , que era então governador de Paris ? Tem-se produzido diversas opiniões a este respeito . Julgaria o imperador que possuia Junot as qualidades proprias para conquistar Portugal ? Julgaria Napoleão facil e importante esta conquista ? Desejaria , como de grande importancia politica , o aprisionamento da familia real portugueza ? Seria a nomeação de Junot para chefe do exercito invasor , um meio para o affastar , bem como a muitos outros officiaes , e batalhões , ainda suspeitos de jacobinismo opposicionista , apezar do seu manifesto enthusiasmo pelo imperador ? ou seria o fim de tal nomeação affastar de Paris o seu muito galanteador governador , o general Junot , tão intrepido no ataque do inimigo nos campos de batalha , como audaz e feliz no assalto ao bello sexo , incluindo nestas conquistas membros da familia Bonaparte , tendo-se tornado muito falado o general como coq des princesses impériales ? Todos estes motivos teem sido julgados , mais ou menos , como tendo influido no animo do imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão ; e todos teem , com eífeito , mais ou menos plausibilidade . É possivel , mesmo , que todos , ou , pelo menos , grande numero d' elles , fossem simultaneamente origem da nomeação de Junot para commandante em chefe do exercito francez invasor de Portugal . Diz Thiers , que o imperador não dava importancia ao aprisionamento do principe regente , mas sim ao da esquadra portugueza . Não ha duvida que a tomada d' esta esquadra pelos francezes , era de summa importancia , pois ia reforçar com alguns bellos navios a esquadra franceza , que d' isso bem estava precisada ; pois as glorias francezas dos annos precedentes , não faziam esquecer o grande desastre experimentado pela esquadra franceza , na batalha naval de Trafalgar , em 1805 . Mas o aprisionamento do principe regente , e da familia real , era tambem um golpe favoravel á politica de Napoleão , e para a vaidade do general francez era o cumulo da satisfação ; por isso foi grande a furia que acommetteu Junot , quando , chegando a Lisboa , soube que , por 24 horas , perdera tão bella occasião para fazer tão grande colheita de illustres prisioneiros , e com pouco trabalho ; fartou-se de praguejar , lançando ao vento repetidas vezes o sacrêment et tonnerre , seu juron favorito . Por este lado a vergonhosa fuga da familia real contrariou deveras o general Junot ; foi o cumulo da pirraça para o galanteador governador de Paris . A campanha de Portugal não augmentou os louros do general Junot ; pelo contrario . Não encontrando opposição alguma da parte dos portuguezes , a marcha das forças francezas foi vergonhosa e desastrosa . É verdade que não menos inepta foi a attitude das povoações . Se no peito do povo portuguez tivesse palpitado o patriotismo que alguns meses depois se manifestou , as forças francezas , dispersas , desorientadas , ignorantes dos caminhos , acossadas por temporaes e innundacões , esfomeadas , enfraquecidas , teriam sido facilmente , e de um modo completo , anniquilladas sem grandes esforços . Os portuguezes , porém , limitaram-se a ver , espantados , os soldados , rotos , descalços , afaimados , que , segundo elles diziam , vinham proteger Portugal , ao mesmo tempo que a familia real e muitos fidalgos fugiam para o Brazil . Marcha do exercito da Gironda para Portugal Foi a 18 de outubro de 1807 que as tropas de Junot começaram a passar o rio Bidassoa , chegando a Alcantara , em Hespanha , em 17 de novembro ; aqui se lhe reuniu o general hespanhol Carafa com uma pequena força , que acompanhou o exercito francez ; no dia 20 entrou Junot em Portugal , pelo Rosmaninhal , com a primeira divisão ; a segunda seguiu a estrada de Salvaterra : a terceira divisão com a artilharia ficou mais atraz ; no dia 21 entrou Junot em Castello Branco , e em 24 estava em Abrantes . Foi quando chegou a Lisboa a noticia de estarem os francezes em Abrantes , que foi resolvida a fuga para o Brazil . A situação de Portugal nesta epocha era bem lastimosa ; não havia estradas ; o estado dos caminhos , em geral , mau ou pessimo , tinha-se tornado perigoso pelo rigoroso inverno ; chuvas copiosas , tresbordo de rios e ribeiras , grandes innundações haviam assolado o paiz , tornando difficil , penosa e arriscada a marcha das tropas ; a administração militar fiava-se em que o exercito invasor se sustentaria , como de costume á custa do paiz invadido ; mas o desapontamento foi grande a este respeito para os francezes . Portugal tinha poucos recursos para occorrer , sem prévia prevenção , ao sustento regular de um exercito que apparecia de improviso . Villas , aldeias , e povoações pobres , viam-se de repente assaltadas pela soldadesca desenfreada . Regimentos dispersos pelo mau tempo , maus caminhos e falta de alimento , pareciam mais bandos de aventureiros indisciplinados do que forças regulares . O povo não se mostrou hostil a estas hordas esfaimadas : a sua attitude era de espanto e de surpresa , mas benevola ; não podia , porém , dar aos soldados o que não tinha , e elles precizavam , que era comida e sapatos : a falta d' este artigo fez immensamente soffrer os pobres soldados , que , descalços , se viam obrigados a marchas longas , através de caminhos impossiveis , com a barriga vazia . Mesmo na cidade -- Castello Branco , como os francezes appareceram de improviso , não foi possivel fornecer ao exercito invasor o mais necessario para o seu abastecimento , o que levou ao seu auge o desespero dos soldados , que mais se indisciplinaram , começando a roubar tudo quanto encontraram nas casas e a debandar pelos campos e pelas aldeias visinhas , á procura de comestiveis , nesta phase da lucta pela vida . D ' aqui se originou um principio de odio dos portuguezes , que , porém , não se traduziu logo , como conviria e seria patriotico , em represalias e hostilidades contra os invasores . Dizia o general Foy que na expedição de Portugal as tropas , a maior parte das vezes , nem tinham onde se alojar para descançar ; já se consideravam felizes quando encontravam arvores copadas , que ao menos lhes fornecessem lenha para o fogo ; o que lhes fazia recordar com saudades as campanhas da Allemanha , em que as tropas francezas sempre acharam casas , ou casaes , com bom fogo para se aquecerem , e comida para se confortarem . Não foram mais felizes as tropas francezas em Abrantes , do que o tinham sido em outras terras de Portugal ; poucos comestiveis e poucos sapatos poderam ser fornecidos . A povoação fez o mesmo acolhimento que o resto do paiz ; estupefacção no povo , e grandes agrupamentos de basbaques a admirarem a passagem dos rotos , descalços e famintos invasores , mas sem manifestação hostil ; tal foi a attitude da recepção . Os francezes continuaram a roubar como nas terras por onde tinham passado ; mas nesta cidade , e immediações , bem como pelas povoações próximas do Tejo , as ladroeiras tomaram uma feição comica , pelo assalto dos soldados aos pés dos portuguezes que passavam ou estacavam a ver os invasores ; descalçavam-nos , tiravam-lhes os sapatos ou botas que logo enfiavam , se lhes serviam ; no caso de não lhes servirem , atiravam com o calçado á cara dos seus primitivos donos . Ainda assim muitos soldados conseguiram apanhar bons sapatos e meias dos campinos . Tudo isto ia semeando odios , que só mais tarde , porém , haviam de dar resultado pratico . O exercito francez invasor em Portugal Apesar da nenhuma opposição que , até então , Junot tinha encontrado no povo , durante a sua marcha em Portugal , comtudo , chegado a Abrantes , procurou logo segurar a passagem do rio Zezere , para o que fez immediatamente occupar Punhete , hoje Villa Nova de Constancia ; porém a passagem do Zezere tornou-se mui difficil , não porque houvesse da parte dos portuguezes quem se oppozesse a isso , mas por causa das grandes cheias , de modo que só se realisou , em parte , a 26 de novembro . No dia seguinte estava Junot na Gollegã , e no dia 28 em Santarem e Cartacho . Vendo que a unica resistencia , que continuava a ter , era a do hinverno , e que a entrada em Lisboa estava segura , procurou reunir na melhor ordem o maior numero de forças , que não attingiu comtudo 8:000 homens , e resolveu marchar a toda a pressa sobre Lisboa , quando , ali mesmo no Cartacho , soube que a faniilia real embarcára na vespera para o Brazil ; já estava deitado o general quando recebeu esta noticia ; o desespero que teve foi enorme ; levantou-se meio nu , começou a dar soccos no ar , e a praguejar ; então , para acalmar o touro , disseram-lhe que , com o vento que estava , não era possivel a esquadra sair a barra de Lisboa , o que de resto era verdade . Pondo-se a caminho com a vanguarda do exercito , Junot julgou poder entrar em Lisboa no dia 29 ; mas não poude passar de Sacavem , onde chegou pelas dez horas da noite ; este facto , das tropas não poderem vencer os 11 kilometros , que medeiam entre Sacavem e Lisboa , mostram bem o estado dos caminhos nos arredores da capital nesta epocha , e o estado de fraqueza em que se encontravam os invasores . Mas se não poude nesse dia chegar a Lisboa , teve , comtudo , Junot a satisfação de receber os cumprimentos das auctoridades portuguezas , que expressamente foram de Lisboa ao seu encontro . Entrada dos francezes em Lisboa Retirando-se para o Brazil , o príncipe regente D. João deixara o governo do reino entregue a uma regencia , composta de : marquez de Abrantes , Principal Castro , Pedro de Mello Breyner , general Cunha e Menezes , general Xavier de Noronha , e na falta d' este o conde Monteiro-mor , e dois secretarios Salter de Mendonça e conde de Sampaio , e na falta d' este Miguel Pereira Forjaz . Os governadores do reino resolveram , logo , mandar ao encontro de Junot uma deputação , composta do tenente general Martinho de Sousa de Albuquerque e Alte , e do brigadeiro Francisco de Borja Garção Stockler , para cumprimentar o general francez em nome da regencia . Ao encontro de Junot foi tambem uma deputação da maçonaria portugueza , composta de Luiz de Sampaio Mello e Castro , Diogo José Victo de Abreu , José Joaquim de Sampaio Mello e Castro , e Francisco Vellozo ; esta commissão declarou que era aos bons officios da maçonaria portugueza , que se devia o acolhimento feito pelo paiz , e nenhuma resistencia , á entrada do exercito francez em Portugal , o que era uma grande fanfarronada ; pois que a acção maçonica era insignificante sobre o povo das aldeias e dos campos , e nem as lojas maçonicas estavam ao facto da entrada dos francezes em Portugal . Junot , ou porque acreditasse no que lhe impingiram os discursos dos pedreiros livres , ou porque d' isso quizesse tirar partido , participou ao imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão , que graças a elle , a maçonaria portugaeza tinha prestados grandes serviços , na conquista de Lisboa , e como recompensa solicitou instantemente para si a nomeação de grão mestre ; mas nunca chegou a conseguir empunhar o malhete maçonico . Apesar dos seus esforços , dos 8.000 homens , reunidos depois da passagem do Zezere , já haviam debandado tantos , que em Sacavem Junot não poude juntar mais de 1:500 , e não se querendo demorar mais partiu para Lisboa , fazendo entrada por Arroyos , ainda com menor numero , porque muitos soldados cairam pelo caminho , uns prostrados de cançasso , e outros porque lhes deu na fraqueza a comida que encontraram n ' esta ultima parte da sua jornada , ou porque cairam de bebedos ; tal foi a entrada , dos enviados por Napoleão á conquista d' estes reinos , no dia 30 de novembro de 1807 , em Lisboa ; e , sem resistencia , a cidade -- Ulysses se entregou aos poucos cavalleiros da triste figura capitaneados pelo general governador de Paris ; a altitude do povo foi benevola ou indifferente , e grande o pasmo da gente que se encontrava por todo o caminho de Arroyos , Intendente , Mouraria e Rocio ; á vista d' aquelles espectros macillentos , esfarrapados e descalços , muitas pessoas se compadeciam dos soldados , e lhes davam boccados de pão e canecas de vinho . Onde morou Junot em Lisboa Os governadores do reino tinham tomado disposições para aquartelar as tropas , que successivamente , durante muitos dias , foram chegando á capital , e fornecer-lhes mantimentos ; e mandaram que no Arsenal de o Exercito , com a maior urgencia , se apromptassem milhares de sapatos . Mandaram pôr ás ordens de Junot as carruagens da casa real , com os respectivos creados , e determinaram que ficassem á disposição do general francez , o palacio da Bemposta , o palacio de Jacome Ratton na rua Formosa , e o palacio de João Pereira Caldas . A regencia desejava alojar no palacio real da Bemposta o general Junot , mas este , que sabia quaes eram os ricos homens d' esta nobre capital , tomou a resolução de ir aquartelar-se no palacio do barão de Quintella , na rua do Alecrim , no que teve bellissima inspiração , pois o barão hospedou-o com a maior magnificencia e esplendor ; apesar d' isso o governador de Paris exigiu que o senado de Lisboa lhe desse por mez 12:000 cruzados ( 4:800$000 de réis ) , e , a titulo de emprestimo , lançou sobre a cidade o tributo de dois milhões de cruzados ( 800:000$000 de réis ) , que foram pagos , principalmente , pelos commerciantes . Depois da entrada de Junot em Lisboa com uma pequena força , tinham vindo chegando todos os dias mais tropas francezas que foram distribuidas pela cidade , e arredores , Cascaes , Cintra , Mafra , Torres Vedras , Peniche , Santarem , etc. Ao mesmo tempo os hespanhoes occuparam parte do Alemtejo e Algarve , Porto , e outras terras . Todas estas forças chegaram a attingir perto de 50:000 homens . Subserviencia da regencia e insolencia de Junot Apesar da subserviencia da regencia , e dos continuados obsequios tributados pelos governadores do reino a Junot e seu exercito , tendo-o até feito acompanhar , de Sacavem a Lisboa , por um esquadrão de policia a cavallo , e recebido em Arroyos com uma guarda de honra composta de um regimento de infanteria , e dois esquadrões de cavallaria , e de lhe darem palacios , quarteis , viveres , dinheiro , etc , o arrogante e vaidoso commandante em chefe do exercito francez , começou a tratar insolentemente os governadores do reino , e a introduzir novos elementos seus , no governo , começando por collocar lá Hermann como commissario , e depois como administrador das finanças , até que por fim , por decreto de 1 de fevereiro de 1808 , foi nomeada nova regencia composta de Junot , Hermann , Pedro de Mello Breyner , Azevedo , Lhuitte , Castro , Vienez Vaublanc e conde de Sampaio . Attractivos da musica Pelas 8 horas da manha de uma segunda feira , 7 de dezembro de 1807 , um grupo de trez officiaes do exercito francez , dirigia-se para o convento da Esperança , para os lados da portaria , com o fim de encommendar uma porção de pasteis , dos famosos bons bocados , que muito lhes tinham gabado , e que eram uma especialidade da conservaria das freiras d' este convento ; primoroso manjar , que chegou aos nossos dias , cuja receita de fabricação se transmittiu através os seculos , sem alteração , até á ultima freira , e que acabou e se perdeu , com a morte da ultima moradora n ' aquelle mosteiro , como se perderam tantas outras , de preciosas gulodices que se faziam em muitos conventos de Portugal , acabando , com a extincção das ordens religiosas , a perfeição com que se faziam aquellas maravilhas , e que a habilidade das mais afamadas conservarias não tem conseguido , até hoje , nem de longe , imitar . Tendo-se approximado da porta da egreja ao atravessar o largo do adro , uma musica suave e encantadora , de vozes femininas , cantando com acompanhamento de orgão , deteve aquelles officiaes : o effeito da musica é , às vezes , surprehendente , e excede até , em certos momentos , o que d' ella pode esperar o auctor que a compoz ; concorrendo , tambem , em grande parte , para a sua acção psychologica , a especial disposição do espirito dos que a ouvem . Attrahidos por aquellas encantadoras melodias religiosas , os trez companheiros entraram na egreja , a qual continha n ' essa occasiào pouca gente . Os trez officiaes eram muito jovens , e pertenciam ao 2.° batalhão do 70 de infanteria da divisão do general Laborde ; o mais velho , já capitão , tinha 24 annos de edade , chamava-se Raoul de Remigny ; os companheiros , de 22 e 21 annos apenas , eram Pierre Dufourcq , e Andre Chéviot . O capitão||_Raoul_de_Remigny Raoul|_Raoul_de_Remigny de|_Raoul_de_Remigny Remigny|_Raoul_de_Remigny Raoul de Remigny era nobre ; seu pae||_Antoine_Henri_de_Remigny Antoine|_Antoine_Henri_de_Remigny Henri|_Antoine_Henri_de_Remigny de|_Antoine_Henri_de_Remigny Remigny|_Antoine_Henri_de_Remigny tinha sido guilhotinado em Paris , com 46 companheiros , entre os quaes sua avó||_Susanne_Thereze_Séguier Susanne|_Susanne_Thereze_Séguier Thereze|_Susanne_Thereze_Séguier Séguier|_Susanne_Thereze_Séguier , veuve Remigny , e outras damas illustres , na praça do Throne renversé , em 4 de thermidor , anno II da republica franceza ; ( 22 de julho de 1794 ) ; elle proprio Raoul estivera detido com sua mãe no convento des Oiseaux . Foi o que lhe valeu . No tempo do Terror , em França , estar encerrado na prisão des Oiseaux , era uma especie de probabilidade de seguro contra a guilhotina . Ali se achavam detidas muitas mulheres de familias ricas , que pagavam largamente a sua forçada hospedagem . Era este interesse , do que rendia o sustento de prisioneiros abastados , com bens fóra de França , que os protegia , conservando-os ali semnelles se falar . Entretanto a fouce da febre revolucionaria já ameaçava os reclusos dos Oiseaux , quando rebentou a revolução do 9 thermidor ( 27 de julho de 1794 ) , que produziu a queda de Robespierre , o qual foi guilhotinado no dia seguinte com muitos dos seus partidarios , ficando anniquillada a Commune de Paris que o sustentava , e victoriosos os seus inimigos da Convenção nacional . Era o fim do terror . Dentro de poucos dias se abriram as prisões , ficando livres muitos dos presos politicos que ali gemiam , receando a todo o instante serem conduzidos ao cadafalso . Assim se acharam livres Raoul de Remigny , contando então apenas 11 annos , e sua mãe . Terminado o terror , veiu o Directorio , com a original e caracteristica indole , que apresentava nesta epocha a sociedade franceza , de allivio e desejos de gozar , como quem sae e desperta de horriveis pesadelos , ao mesmo tempo que , no exterior , a França continuava com as suas victorias , que o genio de Bonaparte ia elevar ás maiores alturas da gloria , que foram o verdadeiro refugio , a que se acolheram todos os francezes amantes da sua patria , e aos quaes não era facil achar outro modo de vida , que não fosse a carreira das armas . Obedecendo a esta corrente , e á sua vocação , Raoul , aos 16 annos , assentou praça ; e no seguimento das campanhas em que , pela sua bravura extraordinaria , obteve rapidamente a subida de postos , tendo feito as campanhas de Italia e Egypto veiu , já como capitão de infanteria do exercito da Gironda , que invadiu Portugal , sob as ordens de Junot . Os tenentes Chévíot e Dufourcq Os seus dois amigos e companheiros eram tenentes : Chéviot , era filho de um commerciante de pannos da rua Meslay , que achara meio de se enriquecer no meio das grandes perturbações da revolução , chegando a comprar varios castellos , confiscados a nobres emigrados , por insignificantes quantias , do depreciado papel moeda ( assignats ) . Quanto a Pierre Dufourcq era difficil dizer d' onde vinha ; era filho das ruas de Paris ; gaiatito de 4 annos na tomada da Bastilha em 1789 , tinha depois seguido todos os movimentos populares e revolucionarios , applaudindo sempre os novos acontecimentos , pois nada tinha a perder , e sempre a ganhar , com grande pena de que a sua juventude lhe não permittisse figurar de guarda nacional , e sobretudo de official municipal e membro da communa ; mas sendo sempre rapaz do seu tempo , apesar dos horrores dos excessos da revolução , conservara sempre um fundo de bom coração , que as más companhias não conseguiram estragar ; assentara praça em 1802 , e vinha como tenente no exercito invasor . Assim a amizade e a camaradagem reuniam o nobre , o burguez e o jacobino , que o genio das Batalhas de Napoleão tinha englobado no mesmo corpo do exercito , e até no mesmo batalhão . Encantos de uma melodiosa voz Entrando-se na egreja pela porta do largo , ficava á esquerda o coro . Havia apenas poucos instantes que tinham penetrado na egreja os trez officiaes , quando cessou o coro , e uma voz de um timbre encantador , pastosa e sentimental , cantou um solo , de uma melodia simples e elevada , que era de incutir um sentimento de extase , capaz de impressionar o mais refractario á acção da musica religiosa . Até o jacobino e antigo gaiato de Paris , Dufourcq , então tenente do imperial exercito de Bonaparte , ficou pasmado de si proprio . Emquanto a Raoul a impressão foi profunda ; affectado o seu coração e a sua alma religiosa , como que se achou , de subito , invadido por um amor mystico , que o fazia ter os olhares fixos sobre a grade do coro , conseguindo descobrir na freira cantora , que se aproximára da grade , á vista do luzir dos uniformes , dois olhos , cujos raios , dardejando sobre os seus , completaram o que a voz tão fortemente começára . Findos os cantares , em louvor da Senhora||_da|_Conceição da||_da|_Conceição Conceição|_da|_Conceição , cuja festa se celebrava no dia seguinte , veiu uma missa para um altar lateral . Com o pretexto de ouvir missa , Raoul , que não podia resolver-se a tirar os olhos da grade , deixou-se ficar . Os dois camaradas , porém , saíram da egreja , e vieram esperal o para o adro . Como os offíciaes francezes acharam no convento da Esperança com quem falar francez Já , porém , havia terminado a missa , e saido as poucas mulheres de capote e lenço , e alguns velhos , e trez ou quatro pobres , que lá estavam , e Raoul não apparecia . Os amigos resolveram então ir buscal- o á egreja , para irem á portaria comprar os pasteis , cuja acquisição tinha sido o fim d' esta visita ao convento da Esperança , e deram com elle ao pé da grade de ferro , atraz da qual estava o iman vivente que o attrahia . Arrastado pelos companheiros , dirigiu-se com elles para a roda , chamando a rodeira , que logo lhes veiu perguntar o que queriam . Nenhum dos offíciaes sabia falar portuguez ; estropiavam algumas palavras do idioma de Camões . Mas logo ás primeiras tentativas , feitas para explicarem o que desejavam , a rodeira , com grande surpreza dos seus interlocutores , lhes respondeu em francez . A rodeira , a quem chamavam a madre||_Brissac Brissac|_Brissac , era de origem franceza ; era uma mulher de 60 annos , gorducha e ainda frescalhota . Seu visavô tinha vindo , ainda muito criança , para Portugal , em 1666 , no sequito da rainha||_D._Maria_Francisca_de_Saboya D.|_D._Maria_Francisca_de_Saboya Maria|_D._Maria_Francisca_de_Saboya Francisca|_D._Maria_Francisca_de_Saboya de|_D._Maria_Francisca_de_Saboya Saboya|_D._Maria_Francisca_de_Saboya . Em vista do inesperado interprete , a conversação , entre os officiaes e a freira , pegou com força e generalisou-se . Não perderam os francezes occasiao de indagar quem era a soror , que tinha tão celestial voz , que , em religiosas melodias , até encantava os filhos da revolução que tinha guilhotinado tanta gente , sob o pretexto de perfilharem um catholicismo mais firme , a que então chamavam fanatismo . Mas o mais singular É que não foi Raoul , o já apaixonado e amoroso , sem saber de que physionomia , quem manifestou essa bem natural curiosidade , mas sim o jacobino amigo Pierre Dufourcq ; ficaram assim sabendo que a maviosa cantora era soror||_Maria_da_Misericordia Maria|_Maria_da_Misericordia da|_Maria_da_Misericordia Misericordia|_Maria_da_Misericordia . Soror Maria da Misericordia No seculo chamava-se , o objecto do repentina amor de Remigny , Maria de Castro , e era filha natural de um fidalgo . Era uma belleza , em toda a extensão de palavra ; physionomia sympathica ; grandes olhos negros ; a tez de uma alvura rara , poucas vezes apresentava algum rubor no rosto ; cabello castanho escuro em muita abundancia e grande comprimento , dentes branquissimos , bem unidos e iguaes ; uns labios rosados e finos , o sorriso com um tom ligeiramente melancolico ; alta e esbelta . O corpo era esculptural . Tinha completado 25 annos . Creada desde pequena no convento , tinha professado naquelle anno , tomando o habito de Santa Clara . Tinha tido uma educação esmerada , que se pode mesmo dizer extraordinaria para a epocha . Falava francez , cantava , e tocava orgão e cravo . Habil nos trabalhos de costura e bordados , não o era menos na arte de conservaria ; os pasteis , que preparava , eram a ultima palavra no genero d' esta gulodice . O que mais seduziu no momento , entre as prendas de soror||_Maria_da_Misericordia Maria|_Maria_da_Misericordia da|_Maria_da_Misericordia Misericordia|_Maria_da_Misericordia , foi o falar francez , o que induziu os tres amigos a pedirem conversa na grade , o que obtiveram nessa occasião sem difficuldade . Como era justificado o bom acolhimento que as freiras fizeram aos officiaes francezes O apparecimento de soror||_Maria_da_Misericordia Maria|_Maria_da_Misericordia da|_Maria_da_Misericordia Misericordia|_Maria_da_Misericordia , na grade , foi um deslumbramento para os ofiiciaes francezes . Se não ficaram todos apaixonados , todos ficaram encantados . A recepção não podia ser mais cordial por parte das freiras . Havia ainda apenas oito dias que os francezes tinham entrado em Lisboa ; o acolhimento com que eram recebidos , especialmente pelas classes mais elevadas , era muito affectuoso . Os governadores do reino e as auctoridades subalternas , bem como o alto clero , á porfia se esforçavam em recommendar aos portuguezes que , de braços abertos , e com o maior enthusiasmo , recebessem os enviados do grande Napoleão , que tudo que fazia era bem feito . As pastoraes do Patriarcha D. José Francisco de Mendonça , do bispo do Algarve inquisidor geral do reino , D. José Maria de Mello , e a do bispo do Porto , D. Antonio José de Castro , sobresaiam entre as dos outros prelados do reino , pela força de enthusiasmo , com que exhortavam as suas ovelhas a bem acolher os lobos gaulezes , que sob o commando de Junot , e por ordem do imperador dos francezes e rei -- Italia , Napoleão o grande , que Deus tinha destinado para amparar e proteger a religião , e fazer a felicidade dos povos , invadiram Portugal para esse fim , promettendo o general Junot até que , de futuro , o Algarve havia de ter o seu Camões , a Beira outro , e assim successivamente cada uma das outras provincias . Dizia-se mesmo que na familia , de que soror||_Maria_da_Misericordia Maria|_Maria_da_Misericordia da|_Maria_da_Misericordia Misericordia|_Maria_da_Misericordia era um ramo illegitimo , havia prelado que se tornára notado , pelos seus excessos a favor dos invasores . Para não assustar as freiras , dizia o bispo inquisidor-mór na sua pastoral , entre outras coisas , que ... a religião e os seus ministros seriam sempre respeitados , e que não seriam violadas as clausuras das esposas do Senhor ... O bispo do Porto , D. Antonio José de Castro , depois patriarcha eleito , que Roma , porém , nunca confirmou , allegando o pretexto de ser filho natural da casa dos condes -- Resende , dizia na sua pastoral , entre outros dythirambos a favor dos francezes ... Os templos estão cheios d' estes militares que edificam , e que por tudo isto nos põem interiormente na necessidade de os amarmos como proprios filhos , e na obrigação de exteriormente darmos testemunho publico da nossa satisfação e do seu merecimento ... Estavam , pois , officialmente justificadas as filhas de Santa Clara , de acolherem , com a maior benevolencia , os enviados de Bonaparte , com os quaes , de mais a mais , podiam conversar em francez , colhendo noticias , que a sua curiosidade avidamente absorvia , e que em epochas agitadas , como as que vinham correndo havia vinte annos , despertavam interesse e emoção no mais alto grau . Em como Cupido pode arremessar as suas setas mesmo através de uma grade Se Raoul de Remjgny estava já apaixonado por soror||_Maria_da_Misericordia Maria|_Maria_da_Misericordia da|_Maria_da_Misericordia Misericordia|_Maria_da_Misericordia , a impressão , que , sobre esta , produziu o joven capitão do exercito francez , foi ainda maior ; foi fatal . As condições da vida ascetica exaltam às vezes , as paixões , levando-as ao paroxismo , sem as distracções mundanas , que muitas vezes as attenuam , e até mesmo chegam a extinguil- as , ou a fazel- as mudar de objecto . Duas horas durou esta primeira grade , em que a conversação se manteve , quasi sempre a cinco , entre duas freiras e trez militares , nos termos os mais dignos e correctos . Por vezes era commovedora , quando Raoul narrava a subida ao cadafalso , no mesmo dia e na mesma fornada , de seu pae , sua avó , com a velha e nobre marechala de Noailles , a duqueza d' Ayen , general De-Flers , e tantos outros ; a prisão de sua mãe e a d' elle ; a vida durante o terror em França ; emfim , os episodios d' essa epocha grande e terrivel , que se chama a revolução franceza ; e , emquanto Cheviot mettia a sua fala tambem , enumerando os abusos da velha sociedade que a revolução demolira , Dufourcq amenizava a conversa com os seus ditos engraçados , procurando mostrar , que se não deviam admirar que a Revolução guilhotinasse os nobres , quando fizera o mesmo aos plebeus , seus proprios filhos , e que as glorias dos exercitos francezes faziam esquecer os males passados . E assim terminou esta primeira entrevista , retirando-se os officiaes francezes , com o seu fornecimento de doces , que generosamente pagaram , o que de certo era um grande contraste com o que devia produzir-se tantas vezes com os seus camaradas , que usavam e abusavam das requisições de comestiveis , bebidas e objectos de uso domestico , com que vexaram os habitantes d' estes reinos . Varias vezes voltaram á grade do convento , Cheviot e Dufourcq . Emquanto a Remigny , todos os dias , quando o serviço o não impedia , se dirigia ao convento , falando á grade , sempre que isso lhe era permittido . E assim , soror||_Maria Maria|_Maria e o capitão||_Raoul Raoul|_Raoul , foram alimentando reciprocamente uma paixão que os absorvia . Muitas vezes , na occasião em que chegava ao convento , não podia soror||_Maria Maria|_Maria vir á grade ; então estava na igreja longo tempo ; era o mais assiduo frequentador ; por isso tambem não tardou a dar nas vistas , não só da communidade , que ficou sabendo que andava mouro na costa , mas de certas mulheres , e mendigos , frequentadores permanentes , então , e ainda hoje , das igrejas . O que fôra antes o mosteiro da Esperança O convento da Esperança onde se escondia esse astro brilhante , que prendia , com as suas amorosas attracções , o filho do guilhotinado da fornada do 4 thermidor , tinha-se tornado celebre e historico , por ali se ter recolhido , em 21 de novembro de 1667 , a rainha I ) . Maria Francisca de Saboya , mulher do rei||_D._Affonso_VI D.|_D._Affonso_VI Affonso|_D._Affonso_VI VI|_D._Affonso_VI , emquanto se preparava a cabala que havia de depor o pobre rei e esposo , dos seus direitos de monarcha e de marido , em favor de seu irmão , que veiu a governar estes reinos , primeiro como regente , emquanto vivo D. Affonso VI , e depois como rei com o nome de D. Pedro II . Primitivamente , o mosteiro fôra apenas um recolhimento de senhoras nobres , fundado no seculo XVI , por D. Isabel de Mendana , e dedicado á Virgem da Piedade , no sitio da Boa Vista , que , nesta epocha , abrangia todo o espaço que corre na encosta do monte de Santa Catharina , junto á margem do Tejo , desde S.||_João_Nepomuceno João|_João_Nepomuceno Nepomuceno|_João_Nepomuceno até Santos . O sitio da Boa Vista No seculo XVI e ainda no seguinte , as aguas do Tejo chegavam á rua hoje chamada da Boa Vista , largo do conde de Barão e rampa de Santos . Havia nesta parte da margem do Tejo grande movimento de construcções navaes . No largo do Conde Barão ha tres casas , ou palacios , que apresentam signaes de muita antiguidade ; o dos Condes-Barões -- Alvito , ( Lobos da Silveira ) , tornejando para a rua dos Mastros , onde moraram durante longos annos os donos , que deram o nome ao largo , que ainda dura , e passou depois a ser habitação dos barões -- Villa Nova de Foscoa ( Campos Henriques ) ; O palacio contiguo tornejando para o lado occidental da rua das Gaivotas , chamada do Outeiro de Santa Catharina no seculo XVII , que pertencera aos Almadas , provedores da Casa da India , foi depois residencia do visconde de Trancoso , ( Bartholomeu da Costa Macedo Geraldes Barba de Menezes ) ; esteve muitos annos nelle estabelecido o Collegio Europeu , e acha-se hoje occupado pelas officinas typographicas da Companhia Nacional Editora , de que é propriedade ; e o palacete que torneja para o lado oriental da rua das Gaivotas , para a qual tem o portão principal e outras portas de entrada , e que foi do alcaide mór de Torres Vedras , D. João Soares de Alarcão , e nelle está hoje a escola central n.° 2. Este ultimo palacete é historico . Tendo rebentado , em 1 de dezembro de 1640 , a revolução que pôz termo á dominação hespanhola e acclamou rei , com o nome de D. João IV , o duque de Bragança ; o proprietario d' esta casa não aceitou a nova ordem de cousas , não querendo reconhecer o novo rei , como alguns outros portuguezes . Logo se armou uma conspiração contra D. João IV . Alguns dos conjurados reuniam-se secretamente , segundo a tradição , em um grande sótão , que ainda hoje se vê , por cima do grande salão do andar nobre da dita casa . O mau exito da conspiração , cujos principaes auctores , o duque de Caminha , o marquez de Villa Real , o conde de Armamar , e outros cumplices , foram executados no Rocio , a 29 de agosto de 1641 , poz termo aos conciliabulos do palacete do largo do Conde Barão . O alcaide mór de Torres Vedras , D. João de Alarcão , um dos conspiradores , conseguiu fugir para Hespanha , onde foi militar nos exercitos de Filippe IV contra Portugal . Em consequencia da conspiração , e fuga de D. João de Alarcão , o predio foi confiscado pelo tribunal chamado da represalia , especialmente estabelecido para os sequestros dos bens dos conspiradores . Rendia este palacete então 54$000 réis , dos quaes abatendo 2$000 réis de censo , que a propriedade pagava , annualmente , á irmandade de Nossa Senhora de Lantigua estabelecida na parochial -- Santa Catharina , ficavam 52$000 réis , que , mais tarde , a rainha regente , D. Luiza de Gusmão , na menoridade de D. Affonso VI , mandou , por alvará de 30 de janeiro de 1658 dar a Francisco de Brito Freire , por serviços prestados ao Estado . Este Brito Freire arrendou o palacete por 100$000 réis annuaes , durante 20 annos ; descontando-se-lhe a tença annual de 52$000 réis . Pelo tratado de paz de 13 de fevereiro de 1668 , assignado entre Portugal e Castella , se estipulou a restituição dos bens confiscados aos portuguezes desde a revolução de 1640 . Em virtude de tal clausula , foram restituidas as casas da Boa Vista a de D. João Soares de Alarcão , bem como os morgados annexos de Torres Vedras , Alemquer e Valle de Cavallos , e , por fallecimento do proprietario , ficou successor seu filho D. Francisco Soares de Alarcão . Pouco gosou D. Francisco , da restituição dos morgados a seu pae , pois se viu logo a braços com uma demanda , que lhes puzeram os condes -- Avintes , demanda que perdeu , passando para estes o predio do largo do Conde Barão . D. Francisco Soares de Alarcão tinha acompanhado seu pae a Castella , e lá servira , e herdara os titulos de conde de Torres Vedras e marquez de Turcifal , conferidos por Filippe IV a D. João Soares de Alarcão 8.º alcaide mór de Torres Vedras . O conde de Avintes , D. Antonio de Almeida , era filho de D. Izabel de Castro , sobrinha de D. João de Alarcão . Reclamava a posse dos morgados , acusando D. João de Alarcão de traidor á patria , e desleal ao rei -- Portugal , e egualmente ao filho D. Francisco de Alarcão , por ter servido o rei -- Castella , e d' este ter aceitado mercês , sem licença do rei -- Portugal , e como tal ser incapaz de succeder nos morgados . Tambem figuravam no mesmo processo , a marqueza de Fuente al Sol , irmã de D. Francisco de Alarcão , reclamando para si os morgados , dizendo ser aleijado e de incapacidade physica seu irmão , e a condessa de S. Miguel , D. Cecilia de Tavora e Soares , allegando ser filha de D. Isabel de Castro , e ter appellido de Soares , que não tinha a condessa de Avintes , e ser natural de Castella a marqueza . Correu o processo pejo juizo e provedoria de orphãos e ausentes , e depois pela casa da supplicação e aggravos , figurando D. Francisco de Alarcão como auctor , porque o conde de Avintes tinha-se apoderado do palacete , pela força das armas , vencendo o conde de Avintes a demanda por sentença de 18 de agosto de 1673 , na 1.ª instancia , confirmada pela casa da supplicação , e regeitados os embargos em 29 de maio de 1677 ; assim conseguiu desalojar seu primo , e annular , judicialmente , os effeitos do tratado de 1668 . O conde de Avintes subrogou este prédio , desanexando-o do morgado de Torres Vedras , por 100$000 réis , em juros de padrões reaes de 20 ao milhar , ao inquilino Francisco de Brito Freire , precedendo licença do principe D. Pedro regente na menoridade de D. Affonso VI , por alvará de 26 de agosto de 1679 . Este predio que teve successivamente muitos possuidores , por heranças e por vendas , sendo comprado por 7:400$000 réis , em hasta publica , em 28 de setembro de 1846 , por D. Luiza Driesel a D. Anna Magdalena Pereira , viuva de Francisco Pereira Paulino ; coube em partilhas a seu filho Francisco Adolpho Driesel , e , por morte d' este , a siia irmã D. Rosalia Driesel , a qual o deixou , em testamento , a sua sobrinha D. Paulina Benevides . Não se sabe quando foi construido este palacete . Sabe-se , porém , que já era velho , e carecia de obras , em 1641 . Apesar de ter , provavelmente , trez seculos de existencia , é ainda , no que tem dos tempos antigos , uma construcção de immensa solidez que tem , como divisorias , valentes paredes mestras , como hoje se não fazem . Os negociantes de Lisboa offerecem um collar de diamantes á esposa de Junot Quando os francezes invadiram Portugal , pertencia o predio ao negociante Francisco José Pereira , por o haver comprado , em hasta publica por 20:700$000 réis , em 28 de fevereiro de 1805 , a D. Isabel Joaquina de Castro , viuva de Martinho Antonio de Castro Alvellos Guimarães . Francisco José Pereira casou com D. Ludovina Benedicta Ciriaca do Carmo , a qual herdou o predio por morte de seu marido , o qual falleceu , sem geração , em 6 de agosto de 1827 , tendo feito testamento , em que instituia sua mulher testamenteira e universal herdeira , com obrigação de varios legados . Logo desde o principio da occupação de Lisboa pelos francezes , se estabeleceram relações amigaveis entre esta familia e algumas das auctoridades francezas , as quaes procuravam , por proprio interesse , como era natural , ligar-se com negociantes ricos , capitalistas , grandes proprietarios , e influentes , com quem desejavam estar em boas relações . Entre outros frequentavam a casa de Francisco José Pereira , na Boa Vista , o general Laborde , o general Thomiéres e sua mulher , o general Foy e sua esposa , Herrmann ministro das finanças de Junot , o capitão||_Remigny Remigny|_Remigny , o coronel Boyer , Geouffre , cunhado da esposa de Junot , etc. No grande salão , por baixo do sótão , onde haviam tido seus conciliabulos os conspiradores de 1641 , então restaurado havia poucos annos , e cujas paredes e tecto tinham pinturas attribuidas a Wolkmar Machado , representando figuras e emblemas musicaes , houve , por diversas vezes , saraus e concertos em que figuraram o tenor Mombelli , as damas||_Esther_Mombelli Esther|_Esther_Mombelli Mombelli|_Esther_Mombelli , Eufemia Eckart do theatro de S. Carlos , a celebre amadora Maria Benedicta de Brito e Cunha , que reproduzia nas salas , o brio e a energia do canto da Catalani , mas , segundo diziam , ainda com mais expressão , o trompa Lenzi , o oboe Ferlendis , o flautista Rodil , rebequistas Galdino e Filippe e o violoncellista Jordàni , etc. Junot , não contente com ter , a titulo de contribuição , obtido da cidade -- Lisboa 800:000$000 réis , pagos pelo corpo de commercio , e uma mesada de 4:800$000 réis paga pelo senado , e da junta real do commercio mais de 80:000$000 réis , ainda , a titulo de agradecimento , por elle ter obtido , do imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão , que fosse permittida a exportação do algodão armazenado neste paiz , conseguiu que a corporação dos negociantes de Lisboa offerecesse , á duqueza de Abrantes , esposa de Junot , um collar de diamantes . Foi o cunhado da duqueza de Abrantes quem , por intervenção de D. Ludovina , induziu o negociante Francisco José Pereira , a angariar , entre os seus collegas , os fundos precisos para comprar o collar , que devia ser offerecido á duqueza de Abrantes , a qual tinha dado á luz um filho , que foi afilhado do imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão . Foi o barão de Quintella , então o contratador geral dos diamantes , em Portugal , e muito entendido neste artigo , quem escolheu as pedras ; eram 21 diamantes grandes e de muita belleza , e que elle poude reduzir no custo aos compradores ; foi no valor de 70:000$000 réis , segundo a avaliação do contraste Roberto de Sousa , ourives de ouro com loja no seu arruamento . Foi esta dadiva remettida para Paris , onde então se achava a mulher de Junot . Diz a duqueza de Abrantes , nas suas memorias , que estas pedras não chegaram a ser engastadas em collar , por que Junot receiava que isso ainda mais atiçasse o ciume das mulheres da côrte de Napoleão , e o odio e inveja dos seus camaradas , que já não eram em pequeno grau . D. Ludovina apenas sobreviveu um anno a Francisco José Pereira , fallecendo em 7 de novembro de 1828 , deixando a sua fortuna , em que se comprehendia o palacete do largo do Conde de Barão , a seu enteado Francisco Pereira Paulino , filho de seu primeiro marido . Belleza do sitio da Esperança em antigos tempos -- o que deu o nome ao Mosteiro Toda esta parte occidental da cidade era , nos seculos XVI , XVII e XVIII , de incomparavel belleza , com uma vista encantadora sobre o rio Tejo , cujas aguas vinham ali bater muito perto , desembaraçada de obstaculos que cortassem o panorama do rio e da outra Banda , com grande movimento ascendente e descendente de pequenos barcos , e muita animação de commercio e construcções navaes . Para o lado de terra , ao noroeste , o sitio da Esperança , Poço dos Negros e S. Bento , com muitas hortas e quintas , formavam um agradavel e aprasivel sitio , que bem mereceu por tudo isso o nome de Boa Vista , que chegou aos nossos dias . Os maritimos da localidade estabeleceram , na egreja do Mosteiro da Piedade , uma irmandade com a invocação de Nossa Senhora da Esperança titulo que prevaleceu sobre o anterior e durou até aos nossos dias , dando tambem o nome ao sitio . D. Joanna d'Eça , camareira da rainha||_D._Catharina D.|_D._Catharina Catharina|_D._Catharina , mulher de D. João III , reedificou a casa , e a rainha addicionou-lhe ou outro corpo de edificio para seu retiro , com porta de communicação para o coro . A ordem era de franciscanas , da segunda regra de S. Francisco . Chamou-se de Santa Clara , por ter sido esta a primeira freira , da ordem , em 1212 . Entrando no largo da Esperança , via-se em frente , olhando para o norte , um pouco á direita , a porta da egreja , com o adro , tendo as paredes revestidas de bonitos azulejos , representando figuras e ornatos architectonicos . Contiguo á egreja , para a esquerda , corria um muro muito alto , tendo no extremo occidental o portão do pateo do convento . Ao poente , na parede lateral de um predio da rua da Esperança , estava , e ainda se conserva , um chafariz construido no seculo XVIII pelo engenheiro militar e architecto Carlos Mardel . Do lado oriental ficavam uns casebres com janellas de sacada , dependencias do convento , que chegavam até á esquina da rua do Poço dos Negros . Na epocha ( 1807 ) em que se passam os acontecimentos que vamos descrevendo ficava ali perto , ao sudoeste , atravessando o caes do Tojo , á esquerda da calçada do Marquez de Abrantes , e ladeando a quinta do palacio do Marquez ao sul , a praia de Santos , com a sua animação maritima de construcções navaes , com uma floresta de fragatas do Tejo , varinos e botes . Mais para o poente , junto ás tercenas , ficava o caes de Antonio Pereira , que apenas havia seis annos que fôra construido , como se vê em uma lapide com a data de 1801 , que ainda lá existe . Este caes e praias acham-se hoje absorvidos pela rua 24 de Julho . Recordações da rainha||_D._Maria_Francisca_de_Saboya D.|_D._Maria_Francisca_de_Saboya Maria|_D._Maria_Francisca_de_Saboya Francisca|_D._Maria_Francisca_de_Saboya de|_D._Maria_Francisca_de_Saboya Saboya|_D._Maria_Francisca_de_Saboya Quando eu entrava na egrcja , ou no mosteiro da Esperança , frequentemente me adejava á lembrança a formosa rainha||_D._Maria_Francisca_de_Saboya D.|_D._Maria_Francisca_de_Saboya Maria|_D._Maria_Francisca_de_Saboya Francisca|_D._Maria_Francisca_de_Saboya de|_D._Maria_Francisca_de_Saboya Saboya|_D._Maria_Francisca_de_Saboya , chamada em solteira mademoiselle -- Aumale , mulher de D. Affonso VI , que a esta casa se recolhera , quando se quiz divorciar do esposo para se ligar ao cunhado , que foi o rei||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro II . D ' este convento escreveu a rainha duas cartas , que enviou , uma ao rei , outra ao Cabido da Sé de Lisboa , em que declarava que D. Affonso VI se não havia satisfeito d' ella , nem consummado o matrimonio , e pedindo , e mostrando hypocritamente desejos , de se retirar para França . Fui encontrar estas duas cartas originaes , assignadas pela Rainha , no British Museum , em Londres , na collecção dos manuscriptos portuguezes . Como iriam parar áquelle precioso archivo de antiguidades , em Londres , estas cartas ? Suppõem alguns que teriam sido obtidas , e enviadas para Inglaterra , pelo embaixador inglez em Lisboa que era então Robert Southwell . Parece que a rainha tinha assignado varias copias das mesmas cartas . No cartorio do mosteiro de S. Vicente , hoje na Torre do Tombo , encontram-se copias d' estas cartas , que fazem , porém , uma pequena differença . É sabido que , depois de um processo escandaloso , se deu por provado , que Affonso VI não consummára o matrimonio com Maria Francisca de Saboya , se lavrou sentença de nullidade em 24 de março de 1668 , proclamando-se o divorcio , e em 2 de abril se realizou o casamento com o cunhado , o principe D. Pedro , que ficou regente em nome de D. Affonso VI , o qual foi deposto e preso , ficando desde 1669 a 1675 encerrado no castello de Angra na ilha Terceira , d' onde o trouxeram para os paços de Cintra , onde ficou detido até morrer em 1683 . Desde 21 de novembro de 1667 até 2 de abril de 1668 residiu a rainha no mosteiro da Esperança , não se casando porém aqui , mas sim na capella do palacio de Alcantara . Demolição do convento da Esperança -- inauguração da rua de D. Carlos em 1889 -- Quadros e azulejos do mosteiro offerecidos , pelo municipio , ao museu de Bellas Artes e ás escolas industriaes . Depois do fallecimento da ultima freira , o convento da Esperança foi demolido , para a abertura da rua de D. Carlos , que liga o Aterro ou rua 24 de Julho , com o largo das Côrtes , e que foi inaugurada em 1889 . Em troca d' esta obra dos edis de Lisboa , o governo deu á camara os restos do edificio , que ficou cortado pela passagem da nova rua , exhibindo-se , por muito tempo , este corte , atravéz da igreja , claustros e dependencias do mosteiro , á vista do publico . Actualmente acha-se ali installado o deposito de material do serviço municipal de extincção de incendios . No interior do mosteiro havia lindos quadros em relevo , um dos quaes representava Santa Clara , no primeiro plano , de corpo inteiro , e muitas figuras ao longe , esculpidos e cobertos de pintura ou esmalte sobre uma massa , especie de alvenaria , na propria parede em que se achavam . Graças aos esforços do architecto da camara , José Luiz Monteiro , foram tirados os quadros , em 1891 , sem maior deterioração , e remettidos para o museu de Bellas Artes . Um d' estes quadros tinha na parte posterior a data de 1560 . Na casa do capitulo havia , sobre o arco , duas bellas figuras de mulheres com azas , tendo uma na mão alguns pregos , e a outra um martello : estavam tambem esculpidas em uma especie de alvenaria , que fazia parte da parede : datavam do anno 1600 . Antes que se perdessem , pela demolição , fiz tirar algumas reproducções em gesso , pelo formador Guido Lippi , as quaes mandei para algumas das escolas industriaes , que estavam sob a minha inspecção n ' essa epocha . Era immensa a profusão de azulejos que havia no interior do mosteiro da Esperança ; muitos formavam quadros , de varias cores , alguns muito lindos , representando figuras , vasos , flores e ornatos diversos . Além d' isso , havia muitos , mais ordinarios , que guarneciam as paredes dos claustros , desde o chão até certa altura . Na maior parte pareciam datar do seculo XVII . Por proposta de Manuel de Castro Guimarães , encarregado dos pelouros das obras e fazenda da cidade , membro da commissão administrativa do municipio -- Lisboa , resolveu esta commissão ceder , ás escolas industriaes , uma parte dos azulejos que guarneciam as paredes interiores do extincto convento . Em harmonia com esta resolução , combinei com o architecto Luiz Monteiro a distribuição a fazer das collecções de azulejos , tanto dos que formavam quadros inteiros e completos , como dos que constituiam as guarnições , nas paredes , e remetti essas collecções , devidamente encaixotadas e embaladas , para as escolas industriaes da circumscripção do norte , e para os museus industriaes e commerciaes de Lisboa e Porto , partilhando assim do donativo municipal todos estes estabelecimentos . Mau procedimento dos francezes -- Reacção popular contra elles -- Portuguezes partidarios dos francezes -- A condessa da Ega -- A legião do marquez de Alorna . O procedimento dos francezes em Lisboa , bem como nas provincias , foi , em geral , antipathico . Destruição de objectos valiosos ; numerosos roubos , á força , ou disfarçados ; implicação com os portuguezes ; troça dos seu habitos , principalmente das praticas religiosas ; violencias , insultos e obscenidades descaradas com as mulheres ; eis uma amostra da attitude dos invasores , para com os que tão benevolamente os tinham acolhido a principio . Por isso tambem a reacção começou logo . Até nas mesmas lojas maçonicas se produziu um reviramento contra os francezes , entre os affiliados , que se tinham a principio mostrado favoraveis aos invasores . Mas antes de se desenvolverem em Lisboa symptomas de animadversão contra os francezes , a qual havia de ir successivamente augmentando , já nos campos e povoações ruraes , por onde elles tinham passado , se tinha manifestado a reacção popular contra os enviados de Napoleão , sendo os campinos do ribatejo os que iniciaram o movimento , isolado e individual , é verdade , mas que não deixava de ter importancia principalmente como-symptoma do despertar do patriotismo . Os roubos dos sapatos , e outras violencias dos soldados de Napoleão , tinham deixado nas victimas o germen do odio , que em poucos dias irrompeu terrivel , sendo espancados e massacrados muitos francezes , que , isolados , ou em pequeno numero , caíam nas mãos dos campinos , e outros populares , dos campos visinhos do Tejo . Esta reacção contra os francezes , por então , só se manifestou no povo . Nas auctoridades constituidas , no alto clero , no Senado , na Academia das Sciencias , nos grandes negociantes , etc , encontravam os invasores a maior subserviencia e adulação . Até a Academia das Sciencias enviou a Junot uma deputação , pedindo-lhe para ser seu presidente ! Junot , porém , não acceitou ; quiz só a honra de ser sócio . Houve mesmo um grupo de portuguezes , que pretendia que o imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão fizesse Junot rei -- Portugal . Era alma d' este partido a condessa da Ega que passava por amante de Junot . A condessa da Ega , Juliana Maria Luiza Carolina Sophia de Oyenhausen e Almeida , era filba do conde||_de|_Oyenhausen_Gravenburg de||_de|_Oyenhausen_Gravenburg Oyenhausen|_de|_Oyenhausen_Gravenburg Gravenburg|_de|_Oyenhausen_Gravenburg , Enviado e Ministro plenipotenciario de Portugal em Vienna d'Austria , e de D. Leonor de Almeida Portugal , dama de honor da princeza D. Carlota Joaquina de Bourbon ; nasceu em Vienna d'Austria a 1 de setembro de 1784 . Era uma bella rapariga , formosa , de olhos azues com muito brilho , e cabellos louros , instruida e espirituosa . Dizia-se que os amores , com Junot , datavam já do tempo em que o general francez estivera por embaixador em Lisboa . Seu marido , Ayres José Maria de Saldanha Albuquerque Coutinho Mattos e Noronha , 2.° conde da Ega , tinha nascido no Funchal a 29 de março de 1755 , e casado em 5 de março de 1786 , em primeiras nupcias , com D. Maria de Almada ; enviuvando em 1795 , casou em 9 de fevereiro de 1800 com D. Juliana de Oyenhausen . Foi o conde da Ega o mais enthusiastico , e activo , agente , do projecto de fazer Junot rei -- Portugal , envidando os maiores esforços para angariar adeptos para o seu partido . Mas logo , n ' este pequeno grupo de portuguezes , se produziu uma dissidencia ; querendo uma fracção , d' esse grupo , que Napoleão desse a Portugal um rei que não fosse Junot , e que , além d' isso , outorgasse a este paiz uma constituição liberal . Contrariaram vigorosamente o projecto , de dar a Junot a coroa de Portugal , entre outros , o negociante francez Lécussan Verdier , o reitor do collegio dos nobres Ricardo Raymundo Nogueira , e principalmente o official de cavallaria Carrion de Nizas , litterato que mandava para França , e para jornaes estrangeiros , noticias dos escandalos das aventuras amorosas do seu general em chefe . Corria que o general Junot tinha , ao mesmo tempo , amores com trez mulheres na mesma casa . Os jornaes inglezes , que não perdiam occasião de falar nos escandalos amorosos de Junot , contando o que havia e o que não havia , em artigos de sensação , sobre o serralho do commandante em chefe do exercito francez em Portugal , disseram , por esta occasião , que o general tinha , em Lisboa , um amor a trez , fogozo e nada platónico ( a lustful and not spiritual love for three ) . O imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão , quando soube de semelhantes artigos , não resistiu ao gostinho de o participar á duqueza de Abrantes , que , com vontade ou sem ella , se poz a rir a bandeiras despregadas . Mas se havia neste assumpto muitas coisas , que se diziam , que eram verdadeiras , muitas havia tambem que eram falsas , ou exageradas . Além de Nizas , houve outros officiaes francezes , entre elles Souci , ajudante de campo do general Kellerman , que muito ridiculizaram ou diffamaram , verbalmente e por escripto , o seu commandante em chefe . Quando , depois da retirada dos francezes de Portugal , a duqueza de Abrantes encontrou , em Paris , a condessa da Ega e suas enteadas , fez-lhes o mais amavel e affectuoso acolhimento . Das duas enteadas , filhas do primeiro matrimonio do conde da Ega , uma , a mais velha , D. Violante Maria , casou em Inglaterra com Thomaz Henrique Stat Miller ; a outra , a mais nova , D. Leonor Anna , casou com o marquez Augusto de Choiseul . O conde da Ega morreu em Lisboa em 1827 . Sua viuva a condessa||_D._Juliana D.|_D._Juliana Juliana|_D._Juliana passou a segundas nupcias , casando em S.||_Petersbourg Petersbourg|_Petersbourg , com o conde de Strogonoff , Gregorio Alexandre Ironwisch , do qual enviuvou em 1857 . Falleceu a condessa||_D._Juliana D.|_D._Juliana Juliana|_D._Juliana em S.||_Petersbourg Petersbourg|_Petersbourg , com mais de oitenta annos de idade , em 14 de novembro de 1864 . Com o fim de diminuir , em Portugal , os elementos de defeza e de revolta , contra os francezes , ordenou o imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão que se organizasse uma legião de tropas portuguezas , para ser enviada para França , e que o resto do exercito portuguez fosse bastante reduzido , licenceando-se muitos soldados e officiaes . A legião portugueza , composta proximamente , de nove mil homens , commandada pelo marquez d' Alorna , partiu para França no principio de abril -- 1808 ; tomou parte importante , fazendo prodigios de valor , em diversas batalhas das campanhas do imperio , ficando Napoleão satisfeitissimo das proezas d' aquella legião , e lamentando não ter mandado ir para França todas as tropas que tinha Portugal , na occasião em que os francezes invadiram este paiz . Posteriormente o imperador quiz augmentar o effectivo da legião portugueza , mas pouco ou nada poude obter . Passado pouco tempo , depois da invasão pelos francezes , não se achava facilmente portuguezes , que quizessem pelejar nas fileiras dos francezes ou a seu lado ; o que mais se encontrava era portuguezes para combater os francezes . Um dos actos , do presumpçoso general Junot , que muito irritou a povoação -- Lisboa , foi a substituição da bandeira portugueza pela bandeira franceza no castello de S.||_Jorge Jorge|_Jorge . Verificou-se esta provocante manifestação , com a maior solemnidade e pompa , no domingo 13 de dezembro de 1807 . A cerimonia da substituição da bandeira portugueza pela franceza , em Lisboa , foi precedida de uma revista de tropas , passada pelo general e Junot no Rocio . O rocio antes do terremoto de 1755 O aspecto da praça do rocio , de Lisboa , era então bem differente do que é na actualidade , posto que já existissem , em grande parte , as casarias que guarnecem as alas do sul , leste e oeste , cuja construcção se verificou depois do terremoto de 1 de novembro de 1755 . A rea do rocio reedificada pelo marquez de Pombal , depois d' aquella catastrophe , era , proximamente , a mesma do rocio que existia antes do terremoto ; mas os limites do antigo rocio , especialmente do lado oriental e occidental , eram differentes , e a forma era irregular e obliqua ; a ala de leste corria da egreja de S. Domingos até á rua dos Correeiros aproximadamente , e a occidental corria do palacio da Inquisição , no local onde está hoje o theatro de D. Maria II e largo de Camões , até ao arco de Bandeira . No lado oriental , onde hoje está o hotel de Francfort , proximamente , ficava o hospital de Todos os Santos , predecessor do hospital de S. José , occupando parte do terreno onde está hoje a praça da Figueira . Entre o palacio da Inquisição e a egreja de S. Domingos havia uma fonte , ou chafariz , com quatro bicas , tendo um pedestal com a estatua de Neptuno , que foi demolido em 1786 . As oscillações do solo , do dia de Todos os Santos de 1755 , derrocaram todas as casas do rocio , fazendo um cahos d' aquella praça : o palacio da Inquisição tambem soffreu muito , ficando grandemente arruinado , posto que não de todo . Foi reedificado , logo depois do terremoto ; mas as obras levaram mais de vinte annos para se concluirem . Era este palacio o antigo paço dos Estáos edificado pelo infante||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro , quando regente d' estes reinos , na menoridade de D. Affonso V , no segundo quartel do seculo XV . Era o paço dos Estáos a principio destinado a nelle se aposentarem embaixadores estrangeiros ; e é tradição que ali se hospedara , em 1451 , a embaixada do imperador -- Allemanha Frederico III , quando veiu negociar o matrimonio d' este soberano , com a infanta D. Leonor , irmã do nosso rei||_D._Affonso_V D.|_D._Affonso_V Affonso|_D._Affonso_V V|_D._Affonso_V ; fazendo-se o casamento em Lisboa , na Sé , em 9 de agosto d' aquelle anno , sendo o imperador representado por Jacob Motz , bacharel em theologia e seu capellão . No palacio dos Estáos habitou algum tempo o rei||_D._João D.|_D._João João|_D._João III em 1542 , e D. Sebastião ali morava em 1508 , recebendo neste anno o poder das mãos do cardeal D. Henrique , em acto solemne , o qual se realisou sobre um grande estrado , para isso expressamente construido , e que ligava a face oriental do palacio ao convento de S. Domingos , ricamente ornamentado , e aberto para o lado do rocio . Desde 1584 passou o palacio do rocio a ser a residencia da Inquisição , tribunal que a solicitações de D. João III , e apesar das resistências e manobras empregadas pelos judeus e christãos novos , foi introduzido em Portugal pela bulia do Papa||_Paulo Paulo|_Paulo III , de 23 de março de 1536 . A Inquisição teve a principio a sua séde no mosteiro da Trindade , e depois no edificio das Escolas geraes , vago pela transferencia da Universidade para Coimbra , em 1537 . O primeiro auto de fé verificou-se no sitio da Ribeira , defronte do Terreiro de Trigo , em 20 de setembro de 1540 . o palacio da Inquisição antes do terremoto de 1755 A area do paço dos Estáos era enorme ; tinha muitos pateos e cárceres ; numerosas salas , quartos , gabinetes e corredores . A entrada principal deitava para leste , para o lado de S " Domingos , com um vestibulo coberto sobre um pateo , em volta do qual corria uma arcada havendo no canto sueste uma larga escada para o andar nobre ; d' este lado de leste continuava a ala do edificio com janellas para diversas viellas estreitas e tortuosas , de que resta hoje apenas o beco do Forno . Entre o palacio dos condes -- Almada , onde está hoje o quartel general da 1.ª divisão militar , e o palacio da Inquisição , havia então trez ruas . Do lado de oeste deitava o edificio para o pateo do palacio dos condes -- Faro , depois do duque do Cadaval , onde hoje está a estação do caminho de ferro , no largo de Camões , e que então encostava a uma parte do muro da cidade . Na frente , do lado do sul , tinha um corpo central , com sete janellas de sacada , ladeado por duas torres , tendo cada uma a sua janella de sacada com outra de peitos por cima . Por baixo do andar nobre , do corpo central , havia cinco janellas de peitos e duas portas lateraes , deitando sobre um pequeno largo . Ao norte , o palacio confinava com as herdades de Valverde , hoje rua do Jardim do Regedor e Avenida da Liberdade , onde corria então o muro da cidade . O Inquisidor mór residia no corpo central e anterior do edificio . Tinha este palacio um andar terreo , e trez andares por cima . Ao centro havia um grande pateo , em volta do qual ficavam os carceres , tanto no andar terreo como nos superiores . Em geral , os carceres não recebiam luz directa do exterior , pois não tinham portas , janellas ou frestas , para o pateo ; apenas alguns situados no terceiro andar , do lado Occidental , tinham janellas para o pateo . Os do andar terreo , communicavam com uma pequena casa , a qual tinha janella e porta para o pateo ; os dos andares superiores tinham porta e alguns também janella , para os corredores , os quaes tinham janellas para o pateo defronte das portas . Alguns carceres do andar terreo , e segundo pavimento , tinham pequenas aberturas , ou vigias , por onde os prisioneiros eram observados , e espionados , nos seus menores actos e gestos , sem o saberem . No andar terreo ficava a casa dos tormentos , com um gabinete contiguo , para os inquisidores que assistiam ás torturas . Neste mesmo pavimento , junto aos carceres do lado oriental , ficava a sepultura dos presos que falleciam na Inquisição . Por cima do andar nobre , ficava a sala publica do tribunal , o thesouro , a mesa grande , o archivo , etc. O palacio dos Estáos , no qual el-rei||_D._Manuel D.|_D._Manuel Manuel|_D._Manuel fez grandes obras em 1520 , foi reedificado depois do terremoto de 1755 . Foi architecto d' esta renovação o engenheiro militar Carlos Mardel . O palacio da inquisição no tempo dos francezes O novo palacio da Inquisição , o que existia no tempo da invasão franceza , tinha na fachada sul , que olha para o Rocio , um pavilhão ao centro , com um portico por onde se entrava , sobre o qual tinha uma espaçosa janella com balaustrada de cantaria , similhante á que ainda hoje se vê defronte na janella que fica sobre o arco do Bandeira ; na parede superior tinha esculpidas as armas reaes portuguezas . No vertice , estava a estatua da Fé , calcando aos pés a herezia , em marmore , de Machado de Castro , a qual só foi collocada em 1773 . A architectura da fachada do palacio era singela , banal , e sem elegancia , como as dos predios fronteiros , que separam as ruas do Ouro e Augusta . Em 1785 , por occasião do consorcio do principe D. João , depois o rei||_D._João_VI D.|_D._João_VI João|_D._João_VI VI|_D._João_VI , com D. Carlota Joaquina de Bourbon , o embaixador de Hespanha , conde||_Fernan_Nunes Fernan|_Fernan_Nunes Nunes|_Fernan_Nunes , que se achava alojado neste palacio , deu aqui festas magnificentes com illuminações deslumbrantes . O tribunal da Inquisição foi extincto pouco depois da revolução liberal , que rebentou no Porto em 24 de agosto de 1820 , a que Lisboa adheriu a 15 de setembro , sendo convocadas côrtes constituintes , que se reuniram em janeiro de 1821 . Logo por decreto de 31 de março do mesmo anno , o Congresso extinguiu o tribunal da Inquisição e Santo Officio ; por esta occasião o povo derrubou , e destruiu , a estatua da Fé , que dominava sobre o frontispicio do antigo palacio dos Estáos . O velho palacio abrigou depois no seu seio o magro thesouro nacional , com o seu abundante deposito de documentos e varia papelada , sendo tudo , porém , pasto das chammas , no violento incendio que destruiu o edificio todo , ficando apenas as paredes mestras , em 14 de julho de 1836 . Sobre as ruinas do antigo palacio da Inquisição foi construido , segundo o risco de Fortunato Lodi , o theatro de D. Maria II , que foi inaugurado em 13 de abril de 1846 , com o drama O Magriço , de Aguiar Loureiro . Em 1807 era no palacio da Inquisição que residia a regencia , nomeada pelo principe D. João quando fugiu para o Brazil ; aos governadores do reino , nomeados pelo principe regente , succedeu , em 1808 , a regencia de Junot , que tambem estabeleceu a sua sede no mesmo palacio . Tambem , alli se installou a intendencia de policia , á testa da qual Junot collocou o antipathico Pierre Lagarde . o Passeio publico Do lado do norte , o palacio da Inquisição tinha um jardim sobre muros muito altos , que deitavam para a rua do Jardim do Regedor ; debaixo d' este jardim havia lojas , como tambem as havia , ainda nos nossos dias , debaixo do jardim dos condes -- Lumiares , na rua Occidental do Passeio publico , jardim que , com o palacio , occupava todo o espaço comprehendido entre a calçada da Gloria e travessa da Gloria ; palacio e jardim hoje desapparecidos , e substituidos por sete bellos predios sobre a Avenida da Liberdade . Em 1808 , o espaço , d' esta Avenida , comprehendido entre parte da praça dos Restauradores e a rua das Pretas , era occupado pelo Passeio publico , nesta epocha encerrado entre altos muros , escuros e cobertos de hera , com 15 janellas gradeadas de cada lado , deitando sobre duas estreitas ruas , do lado do nascente e do poente . O Passeio publico foi estabelecido pelo marquez de Pombal , em 1764 , sobre risco do architecto Reynaldo Manuel , no sitio alagadiço , e baixo , das hortas da Cêra , que tinham pertencido ao conde de Castello Melhor . Havendo grandes difficuldades em encontrar arvores , para as plantações , pois não havia viveiros sufficientes nas quintas reaes , nem o senado os tinha , lembrou-se o celebre industrial e cultivador Jacome Ratton de offerecer numerosos freixos dos seus viveiros da Barroca d'Alva , que o grande marquez , com immensa satisfação , acceitou , dizendo que queria , que o povo tivesse em Lisboa , como os nobres fidalgos nos seus solares , uma quinta com sombra e fresco ; e com effeito não podia escolher melhor local , pois é frequente ali haver fortes correntes de ar ; e o frondoso arvoredo e grandes massissos de buxo , deram ao passeio o aspecto de quinta de velho fidalgo , de ancien régime . Não se póde , hoje , fazer idéa das difficuldades , que teve o marquez de Pombal , para fazer plantar o arvoredo do Passeio publico . Hoje é facil encontrar , nos viveiros da Camara Municipal de Lisboa , ou nos da Companhia Horticola , fundada por José Marques Loureiro , no Porto , ou em outros estabelecimentos analogos , em Portugal , ou no extrangeiro , plantas mais ou menos desenvolvidas , e até algumas de grandes dimensões , para collocar em jardins e parques , que assim se fazem rapidamente , quasi que de improviso , transplantando-se até , por meio de carros e mechanismos especiaes , arvores gigantescas , arrancadas das florestas ou parques onde estão enraizadas . Assim , no principio do inverno de 1894 , foram transplantados , da praça da Alegria para o largo do Conde Barão , em Lisboa , grandes lodãos , pelo pessoal da Camara Municipal . Ainda não ha sessenta annos , que para formar um pinhal era necessario semeal- o , pois não era facil encontrar pinheiros em vasos , em quantidade sufficiente , pequenos ou grandes , para aquella plantação . Assim , o marquez de Pombal , esteve em risco de ter que mandar semear as arvores do Passeio publico ; foi , como disse acima , Jacome Ratton , quem forneceu , dos seus viveiros , para o Passeio publico , freixos , ainda novos , mas já crescidos , que ali pegaram bem , e muito se desenvolveram . O Passeio publico só tinha duas portas , uma ao sul , outra ao norte . Em 1838 começou-se a substituir os muros por grades de ferro e , defronte do portão de ferro do lado do sul , perto da entrada , foi collocado um grande tanque de pedra , com um elevado e abundante repudio , e no extremo norte uma fonte , com um tanque mais pequeno . Por duas vezes , no meu tempo , foram cortadas as arvores do Passeio e substituidas por outras novas e pequenas , com differente traçado de ruas e lagos . Em 1882 começou a demolir-se o gradeamento , bem como o Circo Price , theatro das Variedades e praça do Salitre , predios da praça da Alegria , etc , para se rasgar a Avenida da Liberdade . Em 28 de abril de 1886 foi inaugurado o monumento na praça dos Restauradores , começado em 1875 , e que forma a entrada da Avenida , cuja realização foi principalmente devida aos esforços de Rosa Araujo , presidente da camara municipal . No tempo dos francezes , na rua occidental do Passeio só havia o bosque , quinta e palacio de Castello Melhor , este ainda então por acabar , e pertencente hoje ao marquez da Foz , e o palacio e jardim dos condes -- Lumiares ; na rua oriental havia pequenos predios , perto da rua das Pretas , e em seguida ao largo da Annunciada as ruinas do palacio dos condes da Ericeira , onde hoje estão tres grandes predios , e depois o theatro da rua dos Condes , e algumas pequenas casas . O Rocio depois do terremoto de 1755 Nesta epocha o Rocio não era empedrado . O espaço todo ao centro era accessivel a cavalgaduras e carros . Foi só em 1837 que o recinto central foi guarnecido , todo em roda , de frades ou columnelos de pedra , unidos por correntes de ferro , tendo em certos logares , só frades de pedra mais proximos por cujo intervallo apenas podia passar uma pessoa . Foi tambem neste anno que foram começadas a construir as casas do noroeste , junto ao largo de Camões , apesar de muitas intimações feitas , anteriormente , pela camara municipal , porque o duque de Cadaval , seu proprietario , contentava-se em ir recebendo as rendas de barracas e casebres que possuia nesse terreno . Só ficaram essas casas concluidas em 1845 . O mosaico actual da praça data de 1849 . O actual monumento de D. Pedro IV , ao centro da praça , foi inaugurado em 29 de abril de 1870 ; foi projecto de Robert e Davioud , escolhido em concurso entre varios projectos portuguezes e extrangeiros , tendo antes sido começado , em 1852 um insignificante monumento , que não passou de pedestal , mesquinho e banal , que o publico alcunhou de galheteiro , e que foi demolido em 1864 . As arvores da praça foram plantadas em 1862 , e as dos passeios junto ás casas em 1884 . As duas fontes monumentaes foram inauguradas em 1889 , sendo presidente da camara Fernando Palha de Lacerda e Faria Osorio . A collocação d' estas fontes foi a satisfação de um desejo , por muitos annos nutrido por todas as pessoas de bom gosto . Pena é que as figuras não sejam de marmore , mas sim metalicas . Desde outubro de 1880 , em que foi inaugurado o canal do Alviella , tem Lisboa abundancia de agua com pressão , com o que muito teem lucrado os serviços municipaes de incendios , limpeza , parques , e jardins e arvoredos da cidade e de particulares . Em 1808 , o Rocio , apesar de já ter o traçado actual , estava , comtudo , ainda por concluir . Ao repugnante aspecto que apresentavam os casebres do duque de Cadaval , ao noroeste , vinha juntar-se ás terças feiras , um movimento e reboliço de mobilia velha , ferragens , fatos , chapéos , sapatos e mil outros objectos , usados ou deteriorados , que ali se vendiam , em publico mercado , e que constituiam a feira da ladra . Póde o leitor curioso ver no magnifico livro do visconde||_Julio_de_Castilho Julio|_Julio_de_Castilho de|_Julio_de_Castilho Castilho|_Julio_de_Castilho , Lisboa antiga , como a feira da ladra , que , primitivamente , se fazia no Chão da feira , junto ás muralhas do Castello , pelo lado do norte , perto da rua de S. Bartholomeu e do largo do Contador , veiu , successivamente , estabelecer-se na Ribeira , no primeiro quartel do seculo XVI ; passando no fim d' esse seculo para o Rocio , onde se fez por largos annos , até que , em 1809 , passou para a rua occidental do Passeio Publico , começando na rua do Principe , até á praça d' Alegria , sendo em 1823 mudada para o Campo de Sant'Anna , voltando nesse mesmo anno para o Passeio , sendo mudada em 1835 para o Campo de Sant'Anna outra vez , onde se manteve até 1882 , sendo em abril d' este anno mudada para o Campo de Santa Clara , tornando no mesmo mez para o Campo de Sant'Anna , até que em junho do mesmo anno foi de novo deslocada , e estabelecida , ás terças-feiras em Santa Clara , e , durante algum tempo , aos sabbados no largo de S. Bento , junto ao palacio das côrtes . A illuminação e a policia de Lisboa no tempo dos francezes Em 1807 , o Rocio estava illuminado com candieiros de azeite ; existia este systema de illuminação desde 1801 . Anteriormente já o famoso intendente da policia Pina Manique tinha illuminado muitas ruas de Lisboa , começando em 17 de dezembro de 1780 , anniversario natalicio da rainha||_D._Maria_I D.|_D._Maria_I Maria|_D._Maria_I I|_D._Maria_I ; a rainha pagára os lampeões , mas o azeite era pago pelos moradores das ruas illuminadas , tributo que arbitrariamente imposéra Pina Manique , que , em assumptos de melhoramentos municipaes , estava muito mais avançado do que os seus contemporaneos . O governo então não deu auxilio algum , nem resposta ás repetidas solicitações do intendente ; de modo que este , apesar do seu despotismo tributario , não conseguiu manter a illuminação , além do anno de 1792 , ficando de novo nas trevas a cidade , nas noites sem luar , de 1792 a 1801 . O systema de candieiros adoptado era muito engenhoso ; o lampeão estava suspenso na extremidade de um braço longo e curvo , de uma alavanca de ferro , girando em torno do seu ponto de apoio , sobre uma consola de ferro , montada sobre columna ou frade de pedra , ou nas paredes das casas , tendo no outro braço uma haste de ferro , que descia até entrar em uma caixa com fechadura que se fechava á chave ; assim o lampeão ficava distante da parede para melhor illuminar a rua ; fazia-se descer , para accender , apagar , atiçar , limpar ou introduzir azeite na lampada , e depois de novo se elevava ao seu logar . Os candieiros do Rocio eram poucos ; e o centro da praça não estava illuminado . Alem d' isso , havendo luar , não se accendiam os candieiros . Algumas das ruas menos importantes , do interior da cidade , ainda não estavam illuminadas . As ruas , exceptuando as da baixa , rasgadas depois do terremoto , e algumas outras , eram estreitas , irregulares e sujas , como as de todas as cidades antigas da Europa . Quasi todas estavam mal calçadas . Neste tempo havia em Lisboa muitos jardins , e bastantes terras de semeadura , e muitos terrenos incultos . As casas quasi todas , ou sujas , ou então muito caiadas , fazendo mal á vista , pela reflexão dos ardentes raios solares . O bairro -- Buenos-Ayres era o logar mais aristocratico , especialmente apreciado pelos diplomatas e inglezes ; havia nos quintaes d' este bairro muitas palmeiras das tamaras . Ainda , em certos sitios , se viam minas e monturos , como tinham ficado do terremoto , com algumas barracas e casebres . Nestes monturos lançavam , á vontade , animaes mortos . Para as ruas se lançavam as immundicies das casas . Apesar dos esforços e melhoramentos policiaes do conde de Novion , e de rondarem nas principaes ruas da cidade , patrulhas da guarda da policia , comtudo a segurança era pouca nas ruas de Lisboa , especialmente a altas horas da noite . Só quarenta annos mais tarde , começaram a ser illuminadas a gaz as ruas de Lisboa . Pouco movimento em Lisboa em 1808 O transporte de mercadorias , e outros objectos , neste tempo , em Lisboa , era feito em carros de bois , em padiolas de gallegos , a pau e corda , e em rozarios de bestas , dispostas em columna , a uma e uma , atraz das outras successivamente , levando , cada uma , a arreata atada ao albardão da que , respectivamente , lhe ia na frente , a que chamavam ribeirinhos . No tempo dos francezes , o movimento das carruagens era pequeno dentro da cidade . Ainda não tinham apparecido os omnibus . No Rocio viam-se alguns coches , seges e cadeirinhas , com senhoras dentro , a passeiar ; muitas vezes ali paravam , a conversar com pessoas conhecidas que ali encontravam ; raras vezes , porém , se apeiavam para passeio . O que abundava , no recinto do Rocio , era gente a pé e a cavallo , a passeiar ou a tratar dos seus alfazeres . Nos dias de feira da ladra , então era um borburinho , e um ondear de massa de gente de todas as classes , de envolta com vendilhões de toda a especie de mercadoria . Eram os dias dos ferros velhos . No Rocio estacionavam muitos pretos , a quem se incumbia a caiação das casas , e muitos moços de fretes e aguadeiros gallegos . Durante a occupação franceza , era aquella praça um vistoso amontoado de uniformes , mesclados com o povo , serpenteados pelos classicos costumes das mulheres de capote escuro de panno , e lenço branco de cambraia na cabeça , salpicados , aqui e acolá , por mulheres de capote de cores , em que dominava geralmente o encarnado . Os officiaes e soldados francezes eram prodigos em contender com as mulheres , juntando ás palavras obscenas , que ellas não entendiam , gestos e actos expressivos , que umas vezes eram bem acolhidos , na realidade ou na apparencia , mas que outras vezes eram repellidos , originando-se com frequencia rixas , em que intervinham , muitas vezes , os parentes , amantes ou protectores das ultrajadas . O que a invasão franceza trouxe a Portugal Tudo que dizia respeito ao culto religioso , era objecto de mofa e sarcasmos , da parte da soldadesca napoleonica . O padre e o frade eram , com frequencia , alvo dos apupos dos invasores , que até chegavam às vezes a entrar nas egrejas , e a provocar escandalos , pelo seu indecente procedimento . Sobre tudo , os familiares , e serventuarios do Santo Officio , eram objecto da mais insultante implicação , da parte dos soldados francezes , que dos farricocos e horrores da Inquisição , nada tinham que temer , no que davam não pequena satisfação aos portuguezes , que , se não ousavam entregar-se a similhantes manifestações , sentiam comtudo , no seu intimo , não pequeno odio , ao temido tribunal da Inquisição . O Santo Officio , cuja omnipotencia já tinha sido cerceada pelo Marquez de Pombal , e cuja popularidade tinha constantemente baixado , especialmente pelas idéas philosophicas , que , nos fins do seculo XVIII , tinham irradiado da França para toda a parte , e penetrado tambem em Portugal , era nesta epocha ainda temido , mas de tal modo odiado e impopular , que a sua queda era fatal , para dentro de poucos annos , apesar da Inquisição se manifestar então muito moderada nos seus rigores , comparada com o que tinha sido . O espirito liberal , da revolução franceza , que o exercito invasor , apesar do seu despotismo , e vexações de todo o genero , introduziu em Portugal , ainda mais apressou a maturação da idéa da abolição da Inquisição nestes reinos . A invasão franceza trouxe , porém , independente da vontade dos invasores e dos portuguezes , não só um activo fermento dos principios da revolução franceza , mas tambem a inoculação do atheismo e do jacobinismo , de que o exercito da Gironda , se achava eivado , e que deixou em Portugal idéas que , mais tarde , passadas as guerras com a França , e , constrangidas pelo governo oppressor da regencia , e influencia da Inglaterra nos negocios de Portugal , haviam de germinar , e dar em resultado a revolução liberal de 1820 , por um lado , e por outro haviam de fazer desenvolver , depois , successivamente , a indifferença publica , primeiro em materia de fé religiosa , e depois na administração e governo d' este paiz , dando as maiores largas ao egoismo individual , como se tem exhibido nos nossos dias . Botequins no Rocio no tempo dos francezes No tempo da invasão franceza havia em Lisboa alguns botequins , posto que a vida nos cafés não estivesse muito generalisada . não era mesmo bem considerado estar , por habito , muito tempo nas lojas de bebidas , e as pessoas que tinham esse uso , não eram grandes consumidores . Ainda hoje , em geral , os portuguezes são pouco bebedores . Muitos frequentadores dos cafés , se entreteem largas horas , cavaqueando no meio de atmospheras de fumo , e pedindo , de vez em quando , agua , phosphoros , palitos e jornaes , tudo gratuito . Neste assumpto os costumes francezes e hespanhoes , da vida nos cafés , teem levado muito tempo a aclimatar-se em Portugal . Ao Marquez de Pombal , quando levantou Lisboa das ruinas do terremoto de 1755 , não lhe esqueceu este elemento da vida publica das cidades . Elle proprio provocou o estabelecimento de bem fornecidos botequins , sendo um dos principaes , o de Marcos Filippe , no largo do Pelourinho , do lado do norte , uma loja com duas portas , onde está hoje um estabelecimento de objectos de vidro apesar da reluctancia do dono , para vencer a qual , o proprio marquez foi , no dia da abertura , lá almoçar o bello chá e torradas de meleças com manteiga , o que era então uma magnifica especialidade das lojas de bebidas de Lisboa , que se manteve , com justa reputação , até aos nossos dias , mas que , ha já alguns annos , se tem perdido , inclusivamente nos afamados cafés Martinho do Terreiro do Paço , e do largo do Camões ao Rocio , e Aurea na rua do Ouro . Tudo está muito degenerado . Umas vezes acha-se falsificado o chá , que hoje é geralmente , na maior parte , importado da Inglaterra , ou de França , e algum dos Açores , e que , outr'ora , vinha directamente da China em navios portuguezes . Outras vezes a agua , em que o chá foi posto de infusão , não attingiu o seu ponto de ebullição , de modo que não extraiu ás folhas do chá os seus principios saborosos e aromaticos . Ora o pão é mau , ou mal torrado . O proprio pão de meleças não tem , geralmente , as qualidades superiores , que possuia o fabricado antigamente , e que deram celebridade ao pequeno logar de Meleças , perto de Bellas , onde primitivamente se fabricava e que deu o nome ao pão . Ora a manteiga é em mesquinha quantidade , ou tão má , que denuncia a sua adulteração pela margarina , oleina , e outras drogas fraudulentas . Não é raro reunirem-se todos , ou parte d' estes defeitos , na outr'ora appetecivel e afamada especialidade dos botequins de Lisboa . De resto tem diminuido consideravelmente o numero de freguezes do chá e torrada nos botequins , e augmentado o dos consumidores de cognac , punch , cabazes de vinho , café , etc. Havia em 1807 , no Rocio , dois botequins afamados : o Nicola e o das Parras . O Nicola occupava a loja com duas portas , no lado occidental da praça , perto da rua Nova do Carmo , onde esteve muitos annos depois o Silva livreiro , e está actualmente ( 1908 ) a camisaria Santos com os n.°s 24 e 25. O botequim das Parras ficava-lhe quasi contiguo , tendo apenas de permeio uma porta ; occupava o vão de tres portas , onde está uma succursal da livraria Bertrand , e a loja de modas Mouta & C.ª , com os actuaes n.ºs 27 , 28 e 29 . O Nicola era o botequim muito frequentado pelos poetas ; o famoso Bocage lhe deu a celebridade ; ali trovejou muitos dos seus poemas , o poeta de facil improviso . De Bocage se conta que , sahindo uma noite do botequim , se viu bruscamente detido por uma patrulha de cavallaria , e que , apontando-lhe um soldado a pistola ao peito , lhe perguntára , com modos de arremetter , quem era , d' onde vinha e para onde ia , ao que o poeta cathegoricamente respondera : Do botequim das Parras era dono José Pedro da Silva , alcunhado depois José Pedro das Luminarias , pelas illuminações que fazia no seu estabelecimento , quando chegavam noticias de victorias , ganhas pelos portuguezes e inglezes contra os francezes . Nas illuminações figuravam tambem quadros allegoricos , pintados expressamente para essas occasiões . Além d' isso fazia imprimir , e distribuir gratuitamente versos que encommendava a poetas , que frequentavam o botequim . Este Pedro de as Luminarias , apesar de tantas manifestações patrioticas , e de tanta amisade e protecção aos poetas , foi com frequencia alvo da troça lisboeta : mas mereceu que o visconde||_Julio_de_Castilho Julio|_Julio_de_Castilho de|_Julio_de_Castilho Castilho|_Julio_de_Castilho , no seu já citado bello livro Lisboa Antiga , lhe consignasse algumas paginas , commemorando as suas qualidades de abnegação e patriotico enthusiasmo . Durante a occupaçao franceza ambos estes botequins , mas especialmente o de Nicola , eram muito frequentados por officiaes francezes ; e estes eram bons freguezes ; não se contentavam com agua e palitos ; estavam sempre a beber , de dia e de noite ; ora para se refrescarem , ora para se aquecerem , ora para se disporem a almoçar ou jantar , ou para passarem o tempo . Posto que os francezes nem sempre pagassem o que tomavam , comtudo , fizeram estas lojas de bebidas bom negocio durante a occupação de Lisboa pelos francezes , o que em nada esfriou o enthusiasmo do dono do botequim das Parras , pela expulsão dos invasores para fóra d' estes reinos , em 15 de setembro de 1808 , data em que começaram as festas e illuminações do botequim , e que se repetiram varias vezes , durante a guerra da Peninsula , e marcha victoriosa dos exercitos alliados anglo-lusos , até á sua entrada , em Toulose em 1814 . A bandeira portugueza é solemnemente substituida em Lisboa pela bandeira franceza No domingo 13 de dezembro de 1807 , pelas 10 horas da manha , começaram a formar no Rocio as tropas fruncezas , que se adiavam aquartelladas nos conventos de Lisboa , na força proximamente de 6:000 homens . Pelo meio dia appareceu o general Junot , com o general Laborde , governador de Lisboa e commandante da primeira divisão , e todo o seu estado maior e muitos officiaes a cavallo . Apenas entrado n ' aquelle recinto , o general francez foi recebido com acclamações , pelas forças do seu commando ali formadas . Em seguida Junot passou revista ás tropas , e , acabada ella , collocou-se na frente da força e fez uma fala aos soldados , agradecendo-lhes o terem salvado a mais bella cidade da Europa , da tyrannia dos inglezes , e , congratulando-se pelo arvoramento da bandeira franceza , terminou dando vivas no imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão , que foram enthusiasticamente correspondidos pela tropa , e por alguns portuguezes espectadores d' este acto . Ao mesmo tempo o castello de S.||_Jorge Jorge|_Jorge salvou com vinte e um tiros , a bandeira portugueza foi arriada , e içado , em seu logar , o pavilhão tricolor da França . Entre o povo , porém , produziu-se grande susurro , e , por diversos pontos da cidade , houve tumultos , com morras á França , que foram facilmente reprimidos pelas tropas francezas . Depois de mortos , ou feridos , alguns dos populares , restabeleceu-se o socego , ou , como se costuma dizer , em termos policiaes , a ordem ficou restabelecida . Nesse mesmo dia , deu Junot um grande jantar , para o qual foram convidados os governadores do reino , as principaes auctoridades constituidas e muitos nobres , negociantes e outras pessoas mais ou menos graúdas . Estava o jantar em meio , quando veiu a noticia dos motins ; Junot , porém , não lhe deu importancia , continuou o banquete , e , findo este , foi para o theatro de S. Carlos , com os seus convidados . Para ainda mais accentuar o acto , a que tanta solemnidade quiz dar , Junot , nessa noite , no theatro de S. Carlos , desenrolou do seu camarote para a plateia , a bandeira franceza , no meio do grande vivorio dos francezes , a que corresponderam alguns portnguezes , mas a que muitos outros se envergonharam de associar . Junot quer que continue a haver theatro lyrico em Lisboa Ambicioso e vaidoso , o general Junot , que anhelava ser rei d' este occidental e abençoado torrão lusitano , emquanto essa problematica meta dos seus desejos , não era attingida , procurava gosar de facto , as delicias do summo poder sobre os portuguezes , governando , da unica maneira que sabia , e que era consoante com o seu caracter , despotica e arbitrariamente . Como o espirito publico dos portuguezes não estava para festas , com o patrio solo occupado pelos francezes oppressores , o general em chefe do exercito de occupaçâo resolveu impol- as á força . O theatro de S.||_Carlos_de_Lisboa Carlos|_Carlos_de_Lisboa de|_Carlos_de_Lisboa Lisboa|_Carlos_de_Lisboa attraiu a sua predileção . O barão de Quintella , em cujo palacio se achava installado , tinha naquelle theatro um camarote grande na l.ª ordem , junto ao proscenio , occupando o espaço de dois dos outros camarotes . Tinha sido com a condição de ter , para sempre , para si e seus descendentes , aquelle camarote com varias salas contiguas , escada e entrada independente , que o barão de Quintella , Joaquim Pedro Quintella , dera o terreno para se construir o theatro , o qual foi edificado a expensas de uma sociedade de negociantes e capitalistas , formada por Anselmo José da Cruz Sobral , Jacintho Fernandes Bandeira , Antonio Francisco Machado , João Pereira Caldas e Antonio José Ferreira Solla . Havia apenas quatorze annos , que funccionava o theatro de S. Carlos , quando entraram os francezes em Lisboa , pois fôra inaugurado em 30 de junho de 1793 , tendo começado a construcção no mez de dezembro -- 1792 , sob o risco do architecto José da Costa e Silva . Era copia do real theatro de S.||_Carlos_de_Napoles Carlos|_Carlos_de_Napoles de|_Carlos_de_Napoles Napoles|_Carlos_de_Napoles , que ardeu em 1816 . Eram emprezarios do theatro de S. Carlos em 1807 , Jacintho Fernandes Bandeira e João Pereira Caldas ; tendo começado esta empreza na paschoa de 1805 , e devendo findar no entrudo de 1808 . O primeiro anno d' esta empreza ainda foi brilhante ; entre outros artistas notaveis , contava-se a celebre Angelica Catalani . Mas depois os artistas , que compunham a companhia lyrica , eram muito inferiores . Estava , pois , o theatro decadente , principalmente comparado com o que fôra nos annos anteriores , em que tinham resplandecido na scena lyrica o celebre Crescentini ( castrato ) , as damas||_Catalani Catalani|_Catalani e Gafforini , o tenor Mombelli , o buffo Naldi , etc. O publico que tinha concorrido menos a S. Carlos , pela inferioridade da companhia lyrica , com a invasão dos francezes e os grandes prejuizos que d' ahi provieram , ainda mais abandonou o theatro , de modo que , em vista das circumstancias presentes , e da incerteza , ou antes más probabilidades , do futuro , os emprezarios , Bandeira e Caldas , não quizeram continuar além do praso do seu contracto . Não entrava , porém , nas vistas de Junot que o theatro de S. Carlos se fechasse . Generaes de Napoleão candidatos ao throno de Portugal Posto que o imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão se irritasse muito quando soube que a familia real tinha fugido , e levado tão bella e numerosa esquadra , como então possuia Portugal , increpando o general francez de não ter andado mais depressa , e ter perdido muitos dias em Abrantes , comtudo sempre fez seu effeito á noticia da conquista de Portugal em dois mezes , como se dizia em França , e o imperador deu a Junot o titulo de duque de Abrantes . Para solemnisar tão grande acontecimento , que deu tanto prazer a este filho da revolução que abolira os titulos , que até ao receber a noticia que , em carta , lhe enviou a esposa , se enterneceu , e chorou , resolveu Junot ir á missa , o que ainda não fizera em Lisboa . Foi no dia 17 de abril de 1808 , domingo de Paschoa , que o general assistiu á missa da festa na Sé com todo o seu estado-maior , muitos officiaes e bandas de musica , com grande prwstito de tropas nas ruas . O facto de todos os militares conservarem , na egreja , as barretinas nas cabeças indignou muito o povo , que nunca tinha visto tal coisa . A mais , porém , do que ser duque , aspirava o general francez . Não só esperava obter o mestrado maçonico , mas adejou-lhe tambem a idéa , como já dissemos , de ser rei da Lusitania , desfazendo-se o que se projectára no tratado de Fontainebleu , de 29 de outubro de 1807 , em que se declarava que a casa de Bragança era deposta do throno de Portugal , sendo este desmembrado em tres partes : ao norte , a Lusitania septentrional para a rainha da Etruria : ao sul , o Algarve e Alemtejo para o celebre Manuel Godoy , principe da Paz , conde de Alcudia , amante da rainha -- Hespanha , Maria Luiza de Parma , mulher de Carlos IV , e ao centro Traz-os-Montes , Beiras e Extremadura , para de futuro se lhe dar destino . No povo portuguez , em vista de se vêr abandonado pela familia real , que precipitadamente fugira dos francezes , nos primeiros momentos , não encontrou grande antipathia , a idéa de um rei vindo de França ; de lá tinha vindo o conde de Borgonha , pae de Aftonso Henriques , primeiro rei -- Portugal . Nesse sentido trabalharam muitos . Mas logo houve divergencia , querendo uns Junot , e outros um membro da familia Bonaparte , ou outro que não fosse Junot , e além d' isso que fosse dada a Portugal uma constitiução , em que estivessem consignados os principios liberaes da revolução franceza , como já ficou dito . O governo despotico , intolerante , estupido e espoliador do duque de Abrantes , porém , breve afugentou tal projecto da mente dos portuguezes , o que , juntamente com a acção da Inglaterra , produziu uma formidavel reacção contra os francezes , e assim se evitou que em Portugal se implantasse , como na Suecia , um rei feito por Napoleão . O que parece impossivel é que ainda no anno seguinte , em 1809 , houvesse alguns portuguezes , na provincia do Minho e no Porto , tendo á frente personagens de alta cathegoria da magistratura , que se lembrassem de querer para rei -- Portugal , o marechal||_Soult Soult|_Soult , duque de Dalmacia , que , á frente de um exercito francez , invadira nesse anno a provincias do norte de Portugal . Soult tinha entrado com o seu exercito , em Portugal , pelas provincias -- Traz-os-Montes e Minho ; e , apoderando-se de Chaves e Braga , marchou depois para o Porto , que atacou com 20:000 homens , e tomou no dia 29 de março de 1809 . O Porto estava mal defendido , com as suas baterias a descoberto , sem parapeitos , o que muito amedrontou os defensores , que viam os francezes , abrigados por casas e arvores , dizimarem-nos rapidamente com o fogo de atiradores . A guarnição era de 24:000 homens ; mas de tropa de tinha não chegavam a 5:000 ; o resto eram milicias e populares armados . O bispo do Porto , D. Antonio José de Castro , que tanto tinha adulado Junot , e os francezes , em 1087 , tornara-se seu encarniçado inimigo ; e teve a mania de se arvorar , a si proprio , generalissimo do exercito portuguez no Porto , tendo ás suas ordens os generaes Parreiras , Lima Barreto , Victoria , etc. Durante a noite , de 28 para . 29 de março , os francezes ganharam as baterias da Prelada , Santo Antonio , S. Francisco , Monte Pedral e Agua Ardente . O bispo deitou a fugir para Villa Nova de Gaia , com a caixa militar , sendo seguido , pouco depois , pelo brigadeiro Parreiras . O brigadeiro Lima Barreto , logo que viu tomada uma bateria , na manhã do dia 29 , disse aos seus subordinados , com ares de aterrado , que estavam perdidos , ao que os soldados responderam , dando-lhe uma descarga , que o matou . Foi na extrema direita , no Bomfim , que os portuguezes sustentaram a lucta mais tempo , graças ao valor do brigadeiro Victoria . Apenas entraram os francezes na cidade , muita gente deitou a fugir , dirigindo-se grande quantidade de povo , em correria desordenada , para a ponte de barcas , que , da Ribeira , ligava a margem direita do rio Douro com a margem esquerda , em Villa Nova de Gaia , accumulando-se em massa compacta , sendo os que iam na frente impellidos com grande pressão pelos que vinham atraz . A ponte , porém , a certa distancia da Ribeira tinha os alçapões levantados , ou porque o bispo assim o houvesse ordenado , ou porque a gente que da cidade fugira mais cedo , na madrugada d' esse dia , o tivesse feito espontaneamente , com a ideia de impedir que os francezes pudessem passar . O resultado d' este facto , ignorado pelos atterrados fugitivos , foi uma medonha catastrophe . Os que iam na frente , impellidos pela força irresistivel dos que se seguiam , eram lançados no rio , onde se afogavam . As grades lateraes de madeira da ponte , com a pressão , sobre ellas exercida , pela multidão do povo desorientado , quebraram , caindo tambem muita gente ao rio pelos lados da ponte . A cavallaria portugueza , em fuga precipitada , em breve chegou á ponte , e começou , para abrir passagem , a acutilar a massa de gente ali accumulada . Ao mesmo tempo as baterias da margem esquerda romperam o fogo contra os francezes , que appareceram no caes , mas com taes pontarias , que mataram , e feriram , muitos dos populares accumulados sobre a ponte . Foram os primeiros soldados francezes de infanteria , que chegaram ao caes da Ribeira , e que logo perceberam que horrenda catastrophe se desenrolava em sua frente , que , de subito , de inimigos se tornaram em salvadores do povo , que ainda estava na ponte : e que em seguida lançaram pranchas no vasio dos alçapões , e , restabelecendo a communicação sobre a ponte , foram tomar as baterias de Villa Nova . Nunca se soube ao certo quantos milhares de pessoas pereceram nesta catastrophe . O dia 29 de março ficou sendo , para o Porto , um dia de luctuosa recordação . Quarenta e tres annos mais tarde , em 29 de março de 1852 , o horroroso naufragio do vapor Porto , occorrido á entrada da barra , á vista , e á falla , de muita gente , que , da Foz do Douro , presenciava tão angustioso espectaculo , em que morreram todos os passageiros e quasi todos os tripulantes , veiu accrescentar o horror e a tristeza á memoria do fatal dia 29 de março . Logo que as tropas de Soult se apoderaram do Porto , a cidade foi saqueada , praticando-se toda a casta de horrores , que acompanham de costume , tal acto ; roubos , assassinatos , violação de mulheres , etc. O general quiz obstar a esse medonho e repugnante barbarismo ; não o conseguiu . O saque tomou , mesmo , proporções maiores , porque os soldados francezes encontraram , entre os prisioneiros da sua nação , individuos que tinham sido mutilados , pela plebe armada e desenfreada , sem que as auctoridades o impedissem , antes da cidade ser atacada pelas tropas de Soult . Só no dia seguinte conseguiu o general fazer entrar a tropa na ordem . Em seguida com a intelligencia , bondade , e moderação de que lá dera provas quando occupára Braga , começou a governar de tal modo , que , dentro de poucos dias a cidade do Porto gosava de tranquillidade e bem estar , sob a dominação franceza , como não desfructava havia muito tempo , já quando occupada pelos hespanhoes e francezes no anno anterior , já depois quando governada pela junta , e dilacerada pela anarchia do povo e desvarios do governo portuguez . Soult não lançou tributo algum sobre a cidade conquistada . Além d' isso , conseguiu fazer restituir , a seus donos , muitos dos objectos roubados durante o saque . Os beneficios da administração illustrada e bem-fazeja do duque de Dalmacia , deram animo ao grupo de portuguezes que queriam fazel- o rei -- Portugal . Houve mesmo um jornal , o Diario do Porto , que defendia esse projecto , atacando violentamente a casa de Bragança . Se quando Napoleão mandou , pela vez primeira , os seus exercitos a Portugal , em 1807 , confiasse o commando ao duque de Dalmacia , em lugar de Junot , com a benevolencia com que os francezes foram acolhidos pelos portuguezes , e vendo-se estes abandonados pelo chefe do estado , e por toda a familia real , e com as altas qualidades que possuia o general Soult , talvez que se tornasse possivel a elevação do duque de Dalmacia ao throno de Portugal , não se podendo , então , prover se essa problematica realeza seria duradoura , como a de Bernardote na Suecia , ou ephemera como a de José Bonaparte em Hespanha e tantas outras . Mas em 1809 era tarde . Parece impossivel que o não percebessem os partidarios de Soult . O odio contra os francezes era já tal , entre o povo portuguez , que era impraticavel um rei francez . Além d' isso , fóra da cidade do Porto , o comportamento dos subordinados do general Soult era violento , tyrannico e espoliador . Mas ainda que o não fosse , já não era viavel uma candidatura franceza ao throno portuguez . Mas o que é mais singular , é que a noticia , da pretensão de Soult ao throno lusitano , foi recebida em França com grande chacota e hilaridade ! Taes eram as intrigas , e invejas , que agitavam os generaes de Napoleão , que , cheios de ambição , cegos pelo brilho desmedido do genio do imperador , que , com a sua victoriosa espada , esphacelava thronos pela velha Europa , todos queriam ser marechaes , duques , opulentos e reis ! Foi sonho que pouco durou . -- No dia 2 de abril saiu , de Lisboa , o general Wellesley , o futuro duque de Wellington , que reunindo , em Coimbra , uma força de tropas inglezas e portuguezas , attingindo proximamente 25:000 homens , marchou para o Porto . Soult , julgando que o exercito anglo-luso procuraria passar o Douro junto á Foz , ao abrigo da esquadra ingleza , descurou a defeza do rio para cima da Ribeira , de modo que as forças alhadas foram , em parte , passar o Douro acima , no Prado do Bispo e Avintes , e avançaram sobre o Porto . Soult ainda tentou contrariar o resto do desembarque , mas julgando não poder sustentar-se , retirou do Porto para Guimarães , occupando os alliados a cidade em 12 de maio . Acossadas as tropas francezas pelas forças anglo-lusas de Wellesley e Beresford , e pelos populares , o duque de Dalmacia bateu em retirada , dirigindo-se para a Galiza , e evacuou o territorio portuguez . Depois da retirada dos francezes de Portugal , foram perseguidos , pela inepta e nefasta regencia , que ficou governando estes reinos , muitos portuguezes que tinham sido partidarios dos francezes , e tambem muitos que o não tinham sido , aos quaes , falsamente chamavam jacobinos ; epitheto com que designavam , ou denominavam , as pessoas , contra as quaes se queriam satisfazer odios e vinganças . Junot obriga Francisco Antonio Lodi a ser emprezario do theatro de S. Carlos O duque de Abrantes não conseguiu ter o titulo de rei -- Portugal ; mas de facto foi governando este paiz como rei absoluto . Adorador de tudo que fosse luxo , fausto e apparato , quiz que os espectaculos no theatro de S. Carlos se não interrompessem , e como não encontrasse quem quizesse ser emprezario , em logar de tomar o theatro o proprio governo , nomeando um administrador , que teria debaixo de mao , lembrou-se de obrigar a ser emprezario á força , não a empreza Bandeira e Caldas , que encontrára gerindo o theatro , mas um antigo emprezario do mesmo theatro , Francisco Antonio Lodi . Tinha sido este Francisco Antonio Lodi o primeiro emprezario do theatro de S. Carlos ; o que , de sociedade com André Lenz , o inaugurara em 1793 , e o explorára até 1799 ; depois tinha tido a empreza do theatro outra vez , de 1802 a 1805 . Tinha sido esta ultima gerencia um dos periodos mais brilhantes do theatro . No principio do seculo XIX , a scena lyrica de Lisboa havia sido uma das mais resplandecentes da Europa . Com a filha de Francisco Antonio Lodi , e de sua mulher Joanna Barbara Casimiro Machado , casou mais tarde o filho do barão de Quintella , Joaquim Pedro Quintella do Farrobo , que veio a ser o seguindo barão de Quintella e primeiro conde de Farrobo , e que apenas tinha n ' esta epocha seis annos . Sua futura noiva , a filha de Lodi , Marianna Carlota Lodi , tinha então nove annos . Foi este conde de Farrobo que salvou , em 1833 , a causa liberal , com o emprestimo que fez a D. Pedro IV , e que depois , de 1838 a 1840 , foi emprezario do theatro de S. Carlos , onde perdeu mais de 40:000$000 réis , mas elevou a opera lyrica em Lisboa ao seu maior esplendor . Era este conde muito amador das artes bellas , e de pequeninos pés das mulheres ; d' elle se dizia que escolhia , ou encommendava , mulheres para sapatos e não sapatos para mulheres . Que razões teria Junot , para se lembrar de fazer emprezario á força Francisco Antonio Lodi , não sei . Nas condições em que se achava Portugal , e a Europa , não era possivel mandar vir do estrangeiro artistas ; portanto a companhia lyrica havia de ser constituida com os mediocres cantores da anterior , que ainda se conservavam em Lisboa . O Phenix dos emprezarios pouco poderia fazer , n ' estas circumstancias , em favor da arte lyrica . Além d' isso o theatro era pouco concorrido . O futuro annunciava-se carregado de nuvens , e promettia grandes tempestades . Por todas estas razões , Lodi recusou-se . O general francez , porém , não lhe admittiu a recusa apesar de entre outras razões , allegar Lodi que não tinha o dinheiro preciso para arcar com a empreza ; a isso retorquiu o duque de Abrantes que poria á sua disposição os fundos necessarios , e que queria que o theatro fosse em Lisboa o mais brilhante possivel . Mas pelas razões já expostas , o brilho , no theatro de S. Carlos , durante a invasão franceza , consistiu , principalmente , em espectaculos de gala , mais ou menos impostos por Junot , ou pelos seus officiaes . O culto da arte não lucrou muito com o despotismo lyrico do governador de Paris . O mais notavel que então se executou foi , pela primeira vez , a opera Demofoonte , do maestro portuguez Marcos Antonio Portugal . Processos tributarios -- Junot Apesar , porém , das promessas de Junot , o governo não era prodigo em fornecer fundos para o theatro de S. Carlos . Tambem o emprezario não se ralava com isso : não tinha dinheiro , não pagava aos artistas . Pois não era porque faltasse dinheiro no quartel general ; é verdade que era o producto de extorsões , em dinheiro e outros valores , e violencias de todo o genero . Entre outras preciosidades , que Junot levou para França , figurava a celebre biblia dos Jeronymos , com ricas illuminuras do seculo XV , de que o rei||_D._Manuel D.|_D._Manuel Manuel|_D._Manuel fizera dadiva ao mosteiro de Belem . Feita a paz geral , em 1815 , depois da queda de Napoleão , e precedendo laboriosas negociações diplomaticas , em que tomou parte activa o conde depois duque , de Palmella , e vencidas as difficuldades que apresentava a duqueza de Abrantes , viuva de Junot , em poder da qual se achava o precioso manuscripto , de o ceder , conseguiu-se que o vendesse por 80:000 francos , que foram pagos pelo rei -- França , Luiz XVIII , que em seguida o restituiu a Portugal , sendo trazido para Lisboa e entregue ao convento dos Jeronymos , em Belem , onde esteve até 1834 . Depois de extinctas as ordens religiosas , foi levada para o Banco de Lisboa , e depois successivamente para a Moeda Bibliotheca Publica e Torre do Tombo , onde hoje ainda se acha . Se muitas eram as riquezas que Junot levou , ou mandou , de Portugal para França , muito maior era ainda a fama que d' isso corria . Em Paris , sobretudo , adquiriu proporções inverosimeis a exaggeração dos boatos , que a inveja e as intrigas faziam correr , sobre os valores que tinham tirado de Portugal , e possuiam , os duques -- Abrantes . Entre outros absurdos , dizia-se que a mulher de Junot tinha brilhantes e outras pedras preciosas , tão grandes e em tal quantidade , que não podia com o peso d' essas joias ! Quando o duque de Abrantes se viu obrigado a retirar de Portugal para França , mandou para Paris , a sua mulher , uma caixa contendo 40:000 meias moedas de ouro portuguezas . Ao chegar a casa , a caixa caiu e arrombou-se , começando a sair uma serie de moedas de ouro , deante dos creados , familia e outras pessoas que ali se achavam , e que ficaram pasmadas e invejosas de tanto dinheiro . Durante muitos dias , era o assumpto obrigado da conversação a chuva de ouro , que Junot trouxera de Portugal . Um dos boatos que , com persistencia , corria , era que Junot se tinha apoderado do Bragança , o grande diamante de Portugal , o maior de todos os conhecidos , superior e muito ao do Grão Mogol . O que era este diamante ? que fim levou ? eis o que ainda não pude decifrar . A tradição é constante de que existia desde o tempo de D. João V. no British Museum , em Londres , encontrei , em 1878 , um manuscripto com o desenho do contorno deste diamante , não lapidado , desenho que fiz reproduzir e publiquei , no 2.º tomo das Bainhas de Portugal ; era ovoide , tendo 0m , 11 de comprimento e 0m,053 de diametro : dizia-se que pesava 1:680 karats . Posteriormente , o meu collega , lente de mineralogia do Instituto Industrial e commercial de Lisboa , Alfredo Bensaude , procedeu a novas investigações , sobre o famoso diamante de Portugal ; não chegou porém a obter mais esclarecimentos . sobre a historia e destino d' aquella tradicional joia da corôa portugueza . Consta que o famoso diamante de Portugal existia n ' este paiz em 1805 . A elle se refere a duqueza de Abrantes nas suas Memorias . Deste diamante existia uma imitação , de crystal , de eguaes dimensões e forma , no museu da historia natural em Lisboa . Em uma carta escripta , em Lisboa , pelo general Junot , em janeiro de 1808 , e mandada para sua esposa em Paris , com um presente de Anno Bom , de que foi portador um ajudante de campo do Principe Eugenio , encontra-se uma allusão áquelle diamante , tanto ao verdadeiro , pertencente á corôa de Portugal , como ao falso , imitação em crystal . O presente , que o general mandava a sua esposa , era uma rica parure de saphyras e diamantes , para collar , brincos , pente , e uma saphyra solitaria para alfinete , e uma caixa de jaspe , tendo um camapheu com o retrato do Papa , para o tio abbade de Comnène . Dizia o general na sua missiva , que pagara toda a dadiva da sua algibeira , e , como que alludindo á fama , que já corria , não só em Portugal , mas tambem em Franca , de que se apoderára de grandes valores , no paiz que invadira com as tropas imperiaes , affirma que o principe regente , e sua comitiva , quando fugiram para o Brazil , levaram todos os diamantes da corôa , tanto os lapidados como os que estavam em bruto , e que até não escapara o falso diamante , imitação do grande diamante de Portugal , que elles tinham visto no museu da historia natural , quando estiveram , tres annos antes , em Lisboa , por occasião da embaixada de Junot . Em diversas publicações extrangeiras , sendo a mais antiga a obra de Brückmann , Abhandlung von Edelstein , publicada em 1773 , se encontra noticia d' este diamante . Alguns teem opinado não ser a famosa pedra um diamante , mas sim um topasio branco . Que tal joia existiu até 1807 na posse da corôa de Portugal , parece ser facto incontestavel ; que fôra levado para o Brazil , nesse anno , com a familia real , tambem parece averiguado . O que , porém continua a ser ainda obscuro é se , na realidade , era diamante , e que fim levou . Junot e os seus generaes tinham convertido o governo d' este paiz em uma exploração argentaria . Tinham achado uma verdadeira mina , que procuravam explorar em seu proveito . Era uma especie de syndicato , mas no qual o duque de Abrantes se attribuiu a parte do leão ; porém , nada era sufficiente para o dissipador general . Entre os diversos alvitres imaginados , não sabemos se por Junot , se por Hermann , habil financeiro , que acompanhou o exercito invasor , na invenção , como diriamos lioje , de materia collectavel , houve um engraçado . Os governos da França e da Inglaterra tinham determinado não reconhecer neutralidade , em navios de nacionalidade alguma , para entrar ou sair do porto -- Lisboa . Isto implicava o encerramento d' este porto ; e , para o tornar effectivo , a esquadra ingleza , sob o commando de Charles Cotton , bloqueava a entrada da barra de Lisboa e outros portos -- Portugal . Era nesta epocha grande o numero de navios de diversas nacionalidades , surtos no Tejo . Começaram alguns a tentar a saida , apesar do bloqueia britannico . O duque de Abrantes , porém , exigiu que , a titulo de licença , lhe fosse paga uma certa quantia . Emquanto á questão de neutralidade , inventou duas bandeiras neutras : a dos Estados-Unidos e a de Kniphausen , pequena povoação da foz do rio Elba . Os inglezes , porém , deixaram passar os navios que saiam . Não quizeram usar das vantagens que a sua esquadra lhes garantia , para tornar effectivo e rigoroso o bloqueio , apesar de Junot ter ordenado a confiscação dos bens pertencentes a subditos britannicos , residentes em Portugal , ou por elles possuidos , no que mostravam bom senso pratico . Nenhum mal lhes fazia a saida dos navios . Enfraquecia-se Portugal , e esses navios poderiam ir , como de facto muitos foram , para Inglaterra , levar mercadorias , passageiros e dinheiro . XXXVJII Como era difficil viajar no tempo dos francezes Mas reconhecida a benevolente attitude da esquadra britannica , então tornou-se uma febre a saida de navios , e , sobretudo , de passageiros . Muitos individuos , residentes em Lisboa , e tendo fortuna , antevendo um futuro calamitoso para Portugal , queriam emigrar . A viagem por terra , sem estradas , com más e poucas estalagens , em um paiz devastado e infestado de francezes e de ladrões , não era convidativa . A saida por mar era a unica praticavel . Mas , em vista d' este augmento inesperado da nova materia collectavel , o general Junot augmentou extraordinariamente o quantum do imposto . Completamente arbitraria , a licença para a saida de um navio , que a principio custava alguns centos de francos , elevou-se depois despropositadamente , pela capitação dos passageiros , a quantias exorbitantes ; assim , houve navio que , avaliado em cinco mil cruzados ( 2:000$000 réis ) , para sair teve de pagar pela licença dez mil francos , quasi o valor do barco ! Como Junot se tornou fornecedor de vinho do Porto para os inglezes Outra fonte de receita , que se tornou uma rica mina , explorada por Junot , foi a das licenças para a saida do vinho do Porto , não só para a Companhia dos Vinhos do Douro , como para qualquer pessoa que o quizesse exportar . Por cada pipa de vinho , arbitrou o general francez uma peça de ouro , que valia então 6$400 réis . Mas não foi possivel sustentar o pagamento em metal . Já havia alguns annos , pois tinha começado em 1797 , que existia a praga do papel moeda , cujo descredito ia sempre em augmento , tendo ainda antes da chegada dos francezes , sido determinado que os pagamentos se fizessem metade em papel , metade em metal ; é o que então se chamava pagamento na fórma da lei . Junot não se importava , é claro , absolutamente nada com a tal fórma da lei , mas é que se tornava muito difficil , senão impossivel , obter o pagamento em peças de ouro , do tal bem imaginado imposto . No tempo dos francezes o papel moeda chegou a ter o desconto de 60 por 100 . Depois de terminada a guerra , o agio baixou a 12 ; mas tornou outra vez a subir successivamente , attingindo 75 por 100 em 1833 . Por decreto de 23 de julho de 1834 , durante a dictadura de D. Pedro IV , sendo ministro da fazenda José da Silva Carvalho , foi extincto o papel moeda , obrigando-se o governo a trocar o existente em metal , com o desconto de 20 por 100 . Tal obrigação , porém , nunca se cumpriu . Hoje o papel moeda tem um valor insignificante . Era de prever que os inglezes se não opporiam á exportação do vinho do Douro . Com effeito os navios da esquadra britannica , que deixavam passar incolumes navios que saiam da foz do Tejo com passageiros , e com carga ou sem ella , mesmo com a phantastica bandeira neutral de Kniphausen , com maior razão não oppozeram embaraço algum , á saida de navios com vinho pela barra do Douro , tanto mais que estes navios , na maior parte , se dirigiam para portos da Grã-Bretanha , onde havia os principaes consumidores , para o magico e confortavel licor das alcantiladas penedias da rica região do alto Douro , de que eram tão enthusiastas os filhos da velha Albion , sobretudo nesta epocha , em que ainda se não tinham habituado aos ligeiros vinhos da França . A exportação do vinho do Porto tomou proporções extraordinárias : em pouco tempo excedeu 30:000 pipas ; o que neste artigo produzia para o bolsinho de Junot perto de 200:000$000 réis . Era o cumulo da chuchadeira ; mas acabou-se . Não ha mal que não acabe , nem bem que sempre dure . xxxx O que fez o imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão quando soube das proezas tributarias de Junot . -- Louvavel procedimento dos generaes Travot e Charlot . Chegou , ao conhecimento do imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão , noticia do engenhoso sistema tributario do seu governador de Paris , e do exchisivo d' esta especie de monopolio , a favor da bolsa do insaciavel commandante em chefe do exercito de Portugal , e a irritação que lhe produziu tal noticia foi extraordinaria ; não porque o imperador se importasse , ou lamentasse as extorsões , com que o seu delegado em Portugal opprimia os habitantes d' esta Occidental praia lusitana , pois elle mesmo imperador , de Milão , onde se achava , lançara sobre Portugal , como especie de preço de resgate , uma contribuição de cem milhões de francos , que teve de ser reduzida a metade , pela impossibilidade de Portugal poder pagar a totalidade da somma . O que fez desesperar Napoleão , que já estava zangado com o facto de Junot não ter aprisionado a familia real , e a grande esquadra portugueza , foi o estar o seu delegado , em Portugal , a deixar sair o bello vinho do Porto , que ia quasi todo para a Grã-Bretanha , com grande gaudio dos seus irreconciliaveis inimigos , os inglezes , que tinham encontrado , em Junot , um grande fornecedor d' aquelle adoravel e balsamico cordeal , isto quando o proprio imperador não deixava sair os vinhos pelos portos da França , no seu famoso systema continental , a ponto de ser difficilimo fazer sair de Bordeaux , um barril de vinho d' esta região , custando isto os maiores sacrificios á França , e prejudicando gravemente , em especial , os interesses da vinicultura d' aquelle paiz . Estar o governo francez com grandes prejuizos da sua agricultura , a impedir a saida dos aguados vinhos francezes , para que a Inglaterra os não obtivesse , e estar o seu general Junot em Portugal , a facilitar , aos inglezes , o beberem os alcoolicos e generosos vinhos de que tanto gostavam , e que mil vezes preferiam aos ligeiros vinhos da França , era facto para irritar qualquer outro menos irritavel que o imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão . O imperador deu ordem para cessar a escandalosa chuchadeira . Foi o ministro dos negocios extrangeiros do imperio francez quem o communicou a Herrmann , administrador das finanças junto a Junot , censurando o seu procedimento . Mas as communicações , nesta epocha , eram difficeis e demoradas . Quando chegou aquella ordem a Lisboa , já os navios que havia no Tejo para sairem a barra , na maior parte o tinham feito pagando a licença exigida . Emquanto ao vinho do Douro , tambem já então se havia verificado uma enorme exportação ; comtudo como havia ainda muito nos depositos , com a cessação franca da saida , estancou-se a fonte da receita , que , para o general Junot , d' ahi se derivava . Affirma a duqueza de Abrantes , nas suas Memorias , que Junot não quiz especular com o negocio dos algodões , que lhe poderia fazer ganhar alguns milhões . Em consequencia da prohibição de exportar algodão , de Portugal , imposta pelo governo francez , tinham-se accumulado em Lisboa quantidades enormes d' aquella mercadoria , cujo preço havia por isso baixado extraordinariamente . Aquella prohibição , que muito prejudicava o commercio , tambem eliminava a receita , que dessa exportação poderia caber ao governo , como imposto de exportação . Por isso Junot pediu reiteradas vezes , e por fim o imperador auctorizou , quese levantasse aquelle interdicto . Na vespera de se publicar o decreto , que ia permittir a exportação dos algodões , o secretario Magnien propoz a Junot , que , emquanto se conservava secreta esta resolução , se comprasse muito algodão , pelo intimo preço que tinha rio mercado , para o vender d' ahi a alguns dias , depois de publicado o decreto . Diz a duqueza de Abrantes que seu marido recusou , com indignação , aquella proposta . A ser verdade esta asserção , tal acto contrastava singularmente com o systema espoliador do duque , que tinha , além dos seus vencimentos como general , seiscentos mil francos annuaes como governador de Portugal . Foi com o pretexto de agradecimento ao general Junot , por este ter obtido que se levantasse o interdicto sobre a exportação do algodão , que os negociantes , de Lisboa , offereceram á esposa do general um collar de diamantes , como já ficou dito . Os outros generaes e officiaes francezes , na sua maioria , salvo honrosas excepções , seguiam n ' este assumpto os exemplos do commandante em chefe , em ponto menor forçosamente . Um dos que mais salientes se tornou nas extorsões e requisições violentas foi o general Loison . Foi tambem este quem mais barbaridades e crueldades praticou e ordenou . Deixaram em Portugal saudosa memoria , e fama de bondosos , os generaes francezes Charlot e Travot . Especialmente este ultimo tornou-se muito querido das povoações da margem direita do Tejo e Cascaes . Nunca estes generaes , nem as tropas sob suas ordens , opprimiram os habitantes das localidades , occupadas pelas forças do seu commando , com violencias , abusos ou vexações de qualquer fórma . O general Travot foi até o amparo dos pobres pescadores das visinhanças , e suas familias ; porque tendo , durante certo tempo , o general Junot prohibido , sob penas severas , que os pescadores fossem pescar fóra da barra , para não communicarem com a esquadra ingleza , o general Travot não só fechou os olhos ás infracções d' aquella ordem , deixando sair e entrar os barcos de pesca , que a isso se quizeram arriscar ; mas até soccorreu , com os recursos da administração militar da sua divisão , os pescadores e suas familias , bem como toda a pobresa d' aquellas localidades , que soffriam -- , com a miseria geral do paiz occupado por um exercito extrangeiro , e cujas desgraças ainda mais se tinham aggravado com a prohibição da pesca fóra da barra . Difficuldades de communicações entre a França e Portugal , no tempo dos francezes Em 1808 , as comniiinicações , entre França e Portugal , eram pouco frequentes e muito morosas . Havia , ordinariamente , apenas um correio official ( estafette ) , por semana , entre Lisboa e Paris . O meio mais empregado , para fazer a viagem , de Lisboa a Paris , por terra , era , depois de atravessar o Tejo , tomar , em Aldea Gallega , uma mula , ou antes um grande e bom burro hespanhol , e n ' elle cavalgar todo o caminho . Durava esta viagem pelo menos , quinze a vinte dias . Era incommoda e perigosa , por causa dos ladroes e das guerrilhas . Não era prudente fazel-a uma pessoa só . Nos annos seguintes ainda mais perigosas e incertas se tornaram as viagens , por terra , na peninsula hiberica , por causa das guerrilhas em Hespanha , que adquiriram vastas proporções , pelo numero de homens valentes e atrevidos que as compunham . Frequentes vezes , comboios inteiros de viveres , munições e viajantes , dos exercitos francezes , foram desbaratados . Emquanto aos correios eram frequentes os roubos da correspondencia , e a interceptarão das communicações , entre a França e os seus exercitos que operavam na peninsula . O ajudante de campo Prévost , mandado , pelo general Junot , com uma carta , por este escripta , ao imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão , pedindo a sua demissão , por se ter agastado com o ter-lhe o imperador mandado dizer , pelo general Duroc , que sendo incompativeis os logares de governador de Paris e primeiro ajudante de campo , optasse por um d' estes logares , gastou , fazendo a jornada de um tracto , quinze dias de Lisboa a Paris . Apesar das supplicas da duqueza de Abrantes , mulher de Junot , e da princeza Carolina , o imperador , affirmando que Junot não perdera as suas boas graças , e sua estima , manteve comtudo a sua resolução , e o general ficou sendo governador de Paris , mas deixou de ser o primeiro ajudante de campo . Quando se fez a convenção de Cintra , em 30 de agosto de 1808 , em virtude da qual o exercito francez capitulou , depois de derrotado pelas forças luzo-britannicas , mandou Junot o seu ajudante de Campo , Grave , com o duplicado do tratado ao imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão . Partindo de Lisboa no dia 1 de setembro , teve tão mau tempo que só poude chegar a Paris no dia 3 de outubro . Durante mais de dois mezes , de 1 de julho a 4 de setembro , não houve em Paris noticias do exercito francez que estava em Portugal . No dia 4 de setembro houve um grande baile , no Hotel de Ville , em Paris , em que a duqueza de Abrantes fazia as honras como mulher do governador de Paris , o general Junot , então em Portugal . O imperador não quiz ir ao baile . A imperatriz Josephina appareceu lá apenas um instante . A duqueza de Abrantes , assaltada de tristes presentimentos , foi perguntar ao imperador , se havia algumas noticias de Junot , ao que Napoleão , com muito mau humor , respondeu negativamente . Parece , porém , que , por via de Inglaterra , tivera noticia da derrota de Vimeiro , mas nada quizéra dizer . Tal era a demora das communicações nesta epocha . Segundo a opinião dos camaradas os amores do capitão||_Remigny Remigny|_Remigny não faziam progressos Corria o mez de abril -- 1808 , que ia já na sua segunda metade , e os amores de Remigny e Soror Maria continuavam na mesma altura das ethereas regiões do ideal . A assiduidade do capitão francez , á grade das franciscanas da Esperança , era tanta quanto o permittiam os seus deveres de commandante de companhia de um batalhão de infantaria . O tempo passado perto da freira , apesar de separado d' ella por uma grade de ferro , era para Raoul , por mais longo que fosse , um curto instante ; tào rápido lhe parecia , no extase em que ambos se conservavam , olhando-se pelos intersticios das rotulas , que separavam ali o seculo mundano das esposas de Christo ; separação , porém , só material , porque de coração e pensamento , se achavam fortemente reunidas aquellas duas almas . Nãe era só junto á grade do parlatorio que Raoul se approximava de Soror Maria . Muitas vezes na egreja , quando esta se conservava deserta , ou assim parecia a Raoul , este commettia a imprudencia de se approximar da grade do côro , dentro do qual a freira correspondia com um movimento de approximação analogo . Os dois amigos e camaradas de Remigny , dos quaes um , Pierre Dufourcq , era tenente da mesma companhia , estavam ao facto dos amores com a freira . A sua admiração , porém , era grande , quando , alguma vez , interrogavam Raoul , sobre os progressos da sua amorosa aventura , e em resposta , recebiam a affirmação de que estava sempre na mesma . O que havia era muitos protestos de reciproca affeição e muitas entrevistas á grade ; havia mesmo grade de mais , que dava que falar na communidade , e despertava a curiosidade dos frequentadores da portaria , e em especial dos pobres de officio , que constituiam uma classe caracteristica da vida á porta dos mosteiros , e uma phase dos costumes da epocha , e das relações do interior da vida monastica com o mundo externo . Os camaradas de Raoul não podiam comprehender como um bello rapaz , com tão seductoras qualidades , amado por Soror Maria , e apaixonado por ella , ficasse sempre na mesma ; e estivesse tão adiantado no fim de quatro mezes , quasi como estava no dia da primeira conversa no parlatorio , na vespera do dia da senhora da Conceição ; em quanto que elles , que se julgavam muito inferiores , a todos os respeitos , ao capitão , tinham tido e concluido varias aventuras , de amores faceis e rapidos . É verdade que das mulheres que tinham cruzado a raça lusitana com a gauleza , graças ás seducções dos dois officiaes , nenhuma era freira . Mas para os filhos da revolução , apesar da concordata que Napoleão celebrara em 1801 , com o papa||_Pio Pio|_Pio VII , uma freira era uma mulher , como qualquer outra , apenas com sabor mais aperitivo . XXXXTII A concordata e o atheismo na França imperial Napoleão tinha encontrado , quando senhor do poder , a sociedade franceza , de todas as antigas classes , em um cahos indescriptivel , estando o culto banido completamente das egrejas , apenas conservado , e na maior parte dos casos , ás occultas , pelos poucos fervorosos crentes , que tinham heroicamente resistido á tormenta revolucionaria . A dissolução das crenças religiosas tinha sido grande ; e devida mais ás ideias e escriptos dos philosophos do seculo XVIII , do que á oppressão e tyrannia do governo revolucionario . Assim quando , depois da queda de Robespierre e de ter finalisado o terror , se organisou , no anno seguinte , em 1795 , outra constituição com o directorio , e a França se viu desafogada da tyrannia revolucionaria , um sopro de allivio bafejou o povo francez , e um desejo de vida airada invadiu a maior parte da gente . Os divertimentos e prazeres , sopeados durante o terror , ganharam grandes forças , e generalizaram-se extraordinariamente , juntando-se a isso uma formidavel dissolução de costumes . A religião , porém , continuou a ter poucos adeptos , especialmente na pratica do culto , em uma grande parte do povo . Restabelecer o culto catholico officialmente , e levantar de novo os altares , pareceu a Napoleão ser , para o seu governo , necessidade de primeira ordem , politica e social . Tal é a origem da concordata de 1801 , negociada pelo cardeal Consalvi com Bonaparte , então primeiro consul da republica . Por este acto Napoleão trazia em seu favor o Papa e a egreja catholica . As boas relações estabelecidas entre Napoleão e a curia romana não haviam , porém , de ser muito duradouras . Mas a reacção religiosa foi muito lenta , e nunca se tornou completa . Um povo , ceifado pela foice revolucionaria , não passa assim , de um momento para outro , da incredulidade religiosa , da falta inteira de fé , e do habito de não ter pratica alguma de culto , a ser , de repente , crente convicto , e devoto assiduo . Assim , apesar dos desejos manifestados por Napoleão , ainda muitos annos depois , já no tempo do imperio , não obstante o imperador insinuar aos seus generaes e officiaes , e á sua corte , que deviam frequentar as egrejas , e irem á missa , raras vezes , a não ser em solemnidades officiaes , os imperialistas lá iam . Muitas vezes Napoleão se disfarçava , principalmente durante o consulado , e percorria as egrejas , para vêr se eram frequentadas , e por que pessoas , e as lojas e ajuntamentos para ouvir a opinião publica a seu respeito ; sendo com frequencia reconhecido , o que se umas vezes lhe trouxe grandes ovações , outras vezes lhe deu não pequenos dissabores . Uma vez , em Paris , na noite de natal , Junot e sua mulher , o general Marmont e sua mulher , e Lavallete , depois de terem ceiado juntos , convidados pelo ultimo , foram , perto da meia noite , á egreja de S.||_Roque Roque|_Roque para assistirem á missa do Gallo , que , segundo dizia Lavallete , já se não lembrava como era , por lá ter ido de mui tenra edade , e que os companheiros nunca tinham visto , pois nunca iam á missa , senão em ceremonias officiaes . Dava Marmont o braço á mulher de Junot , e este á esposa de Marmont , indo na frente Lavallete fazendo muitas momices , e dizendo chocarrices , de que os companheiros riam a bandeiras despregadas . Com estes modos , e aranzel , entraram na egreja , quando , de repente , lhes saiu ao encontro um homem , com uma sobrecasaca comprida toda abotoada , e os reprehendeu , dizendo-lhes que na egreja se devia estar com decencia e respeito . Ao reconhecerem , no inesperado censor , o imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão , ficaram os cinco companheiros como que aturdidos , e passando-lhes de todo o desejo de assistirem á missa , voltaram para casa muito maguados , com o desgosto de terem desagradado ao homem que governava a França . Tudo o que fazia lembrar o culto catholico , parecia então ridiculo a muito dos personagens importantes d' esta epocha . Assim , tendo Napoleão creado uma nova aristocracia , e resolvendo fazer duques muitos dos seus generaes , lembrou-se de dar a Junot o titulo de duque de Nazareth . Mas , receiando que d' alli poderia provir o ridiculo de lhe chamarem Jesus ou Junot de Nazareth , mudou aquelle titulo para o de duque de Abrantes . Foi no combate de Nazareth , na Palestina , dado em 8 de abril de 1799 , que mais brilhou Junot . Com trezentos homens derrotou a vanguarda do grão visir , composta de uma força de quatro mil homens , matando com a sua espada Ayoub Bay , que a commandava . Apesar do despotismo imperial , e não obstante a concordata , comtudo as hostes napoleonicas , levavam , aos paizes que invadiam , o germen dos principios liberaes e das futuras constituições dos governos representativos , e a dissolução das crenças religiosas . Não havia de tardar muito tempo , que se começasse a sentir , na propria França , o resultado do funesto influxo da anniquilação das crenças religiosas , e o desenvolvimento do egoismo individual , em uma grande parte do povo . Quando empalideceu a estrella de Napoleão ; quando , em logar de deslumbrantes victorias , começaram os revezes para os francezes , multiplicando-se successivamente as derrotas ; quando , em logar de sempre avançarem , invadindo os povos da Europa , transpondo fronteiras , e conquistando terras , derrubando thronos , e fazendo , dos seus estados , provincias francezas , ou reinos para os parentes ou generaes do imperador , os exercitos francezes começaram a retirar , evacuando os territorios conquistados , ou invadidos , e recuando para as antigas fronteiras , perseguidos pelos inimigos , que , de vencidos , se tornavam vencedores ; quando , já não podendo conservar as fronteiras da republica , as tropas gaulezas se viram obrigadas a recuar , para dentro das fronteiras da antiga monarchia ; quando a França , invadida , ao sul pelos exercitos inglezes , hespanhoes e portuguezes , a leste pelos russos , allemães e suecos , e hostilisada , ao norte e ao poente , pelas esquadras britannicas , se viu apertada por este cinto de ferro das forças da Europa coalisada , os exercitos inimigos , apenas , encontraram opposição na pequena força , com que o imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão lhes poude fazer frente ; no resto do paiz não encontraram grande resistencia . Os francezes , que tão brilhantemente tinham atacado e vencido as nações extrangeiras , não soubeeam defender o seu territorio . Nem o exemplo de Moscow , que os russos incendiaram , lhes serviu de lição e estimulo ! Os exercitos alliados poderam passear , livremente , por toda a França ! O enfraquecimento das crenças trouxe logo o enfraquecimento do patriotismo . O egoismo e os interesses individuaes , predominavam então na maior parte dos habitantes da velha França . Muitos dos principaes influentes , que tudo deviam aos favores , generosidade , e influencia do imperador , até parentes e antigos amigos , não hesitaram em o atraiçoar ; em quanto que , por seu lado , o povo , em grande maioria , se lhe tornava hostil , ou indifferente , depois de tanto o ter adulado e acclamado ! Houve , sim , algumas honrosas e heroicas excepções . Eram , porém , casos individuaes ou isolados , que se deram em alguns pontos do territorio . Não faltaram , é verdade , incentivos poeticos e musicaes , para despertar o patriotismo dos francezes . Assim procuraram resuscitar velhos discursos , e cantos guerreiros , da antiga monarchia , o que , principalmente , deu animo , e esperança , aos realistas , para uma proxima restauração . O immortal Béranger compoz , então , uma canção , para chamar os francezes á guerra contra os invasores , com o titulo de Gaulois et Francs , para repellir os barbaros extrangeiros , aos quaes chamava as hordas de Attila . Uma opera , de occasião , L'oriflamme , com musica excellente , de Mehul , Päer , Kreutzer e Berton , foi dada no theatro du Grand-Opera . Musica e poesia despertaram grande enthusiasmo , mas só na apparencia ; eram espectaculos e divertimentos que agradavam , e distrahiam os voluveis francezes dos horrores da guerra e da invasão . Mas a expansão patriotica , que em 1792 , sob o dominio da crença da liberdade , e do enthusiasmo da revolução , levantou heroicamente , em massa , grande parte da França , contra o extrangeiro , não se repetiu em 1814 . mais de vinte annos haviam passado , e grandes decepções tinham tido os liberaes de boa fé ; liberdade , fraternidade e igualdade , existiam apenas de nome ; em seu logar tinha havido um despotismo de ferro , guerras constantes , e a creação de uma nova nobreza , para substituir a antiga . É verdade que tinha sido um periodo de glorias extraordinarias para a França , que tinham offuscado e assustado a Europa . Mas a esse esplendor seguia-se uma serie rapida de derrotas e revezes . Só a crença robusta e firme na religião , unica que os revezes não abatem , antes exaltam , poderia ter salvado a França , cançada e exhausta , em 1814 . Os exercitos alliados praticaram muitos excessos , barbaridades , violencias , extorsões de todo o genero , em vários pontos da França , o que não era de admirar , com a sede de desforra e vingança que dominava as tropas . O que , porém , é mais extraordinario , é que as proprias tropas francezas , acostumadas a viverem á custa das nações que , durante tantos annos , haviam invadido e assolado , praticaram as mesmas proezas no seu proprio territorio ; dando-se alguns actos de verdadeira selvageria , em que os soldados , por ordem dos chefes , roubaram , violaram as propriedades e as mulheres , e incendiaram as habitações ! E , coisa singular , estes excessos foram publicados nas ordens do dia das divisões militares ! emquanto o jornal official , o Moniteur , segundo o seu costume , occultava , o mais possivel , os revezes soffridos pelos francezes , e a verdadeira situação da França invadida pelos exercitos da Europa coalizada ! Cincoenta e sete annos mais tarde , a França havia de soffrer uma invasão , dos exercitos allemães , não menos terrivel que aquella , aggravada com a ausencia de victorias , e accrescentada , com uma revolução fratricida , e incendiaria , a da communa de Paris , em 1871 . Como uma conquista amorosa do tenente||_Cheviot Cheviot|_Cheviot terminou por um tardio " agua vae " dos costumes lisboetas Para os camaradas de Remigny , as aventuras amorosas em Portugal tinham sido fontes de prazeres e distracções . É verdade que o tenente||_Cheviot Cheviot|_Cheviot , nos seus afortunados encontros , teve uma contrariedade , que quadrava bem com os costumes portuguezes da epocha . Tinha Cheviot feito a conquista de uma creada , da viuva de um chocolateiro , que tinha loja no principio da calçada do marquez de Abrantes . Chamava-se a rapariga Escolastica , nome que o tenente nunca disse , mas que chrismou em chocolat , chamando-lhe son chocolat . Depois de varios encontros e requebros , tinha conseguido ir a casa da patroa , que morava na travessa dos Pescadores , em um primeiro andar , e alli , a horas mortas , completou a conquista . Continuaram estas entrevistas amorosas , com grande aprasimento dos dois , durante algumas semanas . Em uma noite , chuvosa e ventosa , de janeiro , em que o official , segundo previa combinação , entrára para a casa da chocolateira , perto da meia noite , abrindo-lhe a creada a porta com a costumada cautella , evitando maior ruido , e conduzindo o francez para o seu quarto , a patroa acordou , levantou-se , e vendo luz no quarto da creada , espreitou pelo buraco da fechadura , e ficou pasmada do que viu . Como verdadeira portugueza , de antigos brios , em lugar de fazer alarido , occorreu-lhe a idéa da vingança mais original que se póde imaginar . Cobriu-se com um roupão e esperou que saisse o Adonis . Passado algum tempo ouviu-se certo ruido , abriu-se a porta do quarto , e , nos bicos dos pés saiu Cheviot para a escada . Neste momento apparece de repente a patroa ; fecha bruscamente a porta da escada á chave , e correndo o forrolho , e , tirando a chave , abre a janella , e agarrando ás mãos ambas um grande vaso , deposito de immundicias , que a criada desastradamente esquecera de despejar , emborcou-o todo sobre o Adonis da sua sopeira , que ficou em um estado lastimoso , coberto de immundicias mal cheirosas . Durante um instante , emquanto a sua megera fechava a janella com estrondo dizendo agua vae , Cheviot pensou no modo de tirar a sua desforra d' aquella partida . Mas o tenente do exercito de Sua Magestade o Imperador dos francezes e rei -- Italia , era , antes de tudo , bourgeois de Paris ; pensou que o melhor era : prudencia e discrição . Felizmente , que tinha o capote , o qual apanhara o maior da descarga , com alguns salpicos no bonet , tendo ficado encolume a farda . Dirigiu-se para o largo da Esperança , e no tanque do chafariz , que ali , tão a proposito para o nosso official , edificára Carlos Mardel , lavou o bonet e o capote em satisfeito por não ter sido peior a vingança da chocolateira , retirou em boa ordem dando por finda aquella aventura . Remigny rejeita todos os projectos e auxilio dos seus camaradas , para a conquista da freira Por mais de uma vez , Cheviot e Dufourcq , animaram Remigny na sua conquista , offerecendo-se para o coadjuvar na empresa . Mas Raoul sempre rejeitara , não só o seu auxilio , mas até todos os alvitres que lhe suggeriam os camaradas . Estes não reflectiam que a grande paixão que dominava Raoul , junta ao seu caracter religioso , e ao seu brioso pundonor , eram grandes difficuldades , para vencer os escrupulos e os receios de Soror Maria . O tenente||_Dufourcq Dufourcq|_Dufourcq , fertil em expedientes , e de abundante imaginação , para achar processos praticos , para chegar á meta dos seus desejos , exgotou quantas combinações o seu cerebro lhe suggeriu , para proporcionar a Raoul o poder ter entrevistas a sós , e em logar seguro , com a freira . Era um sem nunca acabar , a serie de meios , que imaginava , em favor dos amores do amigo . Penetrar no convento disfarçado , e vestido de mulher ainda era melhor que de homem , segundo a opinião d' elle , e não era empresa difficil , obtida a cumplicidade de alguma das serviçaes da communidade ; ou escalar os muros da cerca , apesar da sua grande altura . Inclusivamente , entre os processos violentos , o antigo gaiato de Paris , até propunha deitar fogo ao convento , o que daria , ao feliz Adinis , a opportunidade de salvar nos seus braços a sua amada . Accrescentava que nenhum d' estes planos era novo , e que todos já tinham a sancção da experiência , em casos analogos , por esse mundo fóra . A Cheviot repugnavam os meios violentos e os arriscados , pelo escandalo que acarretariam , e cujas consequencias se não podiam prever . Remigny ouvia todos esses conselhos , e exhortações , mas nunca se atrevia a falarem semelhantes cousas a Soror Maria . O prudente Cheviot lembrava que o melhor era disfarçar-se Soror Maria vestindo-se de serviçal , e assim sahir do convento , em occasiao apropriada , e vir encontrar-se com Raoul , em entrevistas , em casa especial em sitio retirado ; ou fingir-se doente Soror Maria , e obter do medico a prescripção de sahir temporariamente do convento , o que daria facilidades a poder encontrar-se , livremente , com Raoul . A este proposito Dufourcq lembrava então o rapto , como o melhor expediente a tomar ; obtendo-se previamente o assentimento da freira , que , segundo os amigos de Raoul , era cousa mais que certa . Raoul , porém , não era d' essa opinião , e não approvava nenhum dos alvitres lembrados pelos amigos . Raoul receiava sempre dallar a Soror Maria em qualquer desses planos . Temia não só que ella não se conformasse com os alvitres propostos , mas até que se agastasse com essas conversas . A recusa que ella lhe fez a corresponder-se , por cartas , com elle , uma vez que Raoul lhe pedira isso , ainda mais o entibiou em propor cousas de audacia , ou n ' ellas fallar . Como era difficil promover , em Lisboa , uma sublevação contra os francezes A animadversão contra os francezes , que substituiu logo a benevolencia com que foram acolhidos pelos portuguezes , começando a lavrar , primeiro pelo povo , nos campinos e povoações do Ribatejo , e depois , alastrando pelas provincias , em breve se propagou , mais ou menos , a todas as classes , e penetrou nas cidades . Eram frequentes as rixas entre populares e soldados francezes em Lisboa , e nas provincias ; produzindo-se tambem muitas vezes tumultos de mais importancia , mas sem direcção , nem plano , nem chefe , de modo que eram logo facilmente reprimidos . Não faltava , a muita gente , vontade de provocar uma revolta contra os invasores . Tornára- se , porém a revolução mais difdicil do que teria sido a principio , logo quando se verificára a entrada dos francezes na capital , não só porque parte do exercito portuguez tinha sido mandado para França , na legião do marquez d' Alorna , mas tambem porque o resto , que ficára em Portugal , tinha , em grande parte , sido licenciado , de modo que estava muito reduzido . Além d' isso Junot tinha ordenado , sob penas severas , a entrega de todas as armas , que estavam nas mãos dos particulares ; tendo escapado a esta requisição , algumas , mas não em grande quantidade , e sobretudo em mau estado do serviço , que ficaram escondidas . Os depositos de armas dos arsenaes tinham sido removidos para o Castello de S. Jorge , de modo que só com uma revolução , bem succedida , no Castello , poderia o povo de Lisboa armar-se para uma insurreição . Uma outra medida , tomada pelo duque de Abrantes , difficultava qualquer tentativa de insurreição dos portuguezes contra os francezes . Era a organisação de uma policia propria , á testa da qual estava Pierre Lagarde , o qual estabeleceu a sua installação no proprio palacio da regencia , que era tambem o palacio da Inquisição . Neste palacio quasi que Lagarde governava mais do que o proprio Junot , apezar d' este ir ali presidir ás sessões da regencia por elle instituida , a qual approvava , como era de esperar , tudo o que o seu presidente queria ou propunha . Mas Lagarde tinha toda a confiança de Junot , que lhe suppunha uma habilidade rara para os serviços policiaes , e que lhe deu poderes discricionarios neste ramo de serviço . Á imitação do que fazia o imperador||_Napoleão Napoleão|_Napoleão , que escrevia , ou mandava escrever , no Moniteur , de Paris , artigos politicos , ou pessoaes , a seu gosto , assim praticou Junot com a Gazeta de Lisboa , cujo redactor em chefe era o tal intendente geral da policia Pierre Lagarde . Não se contentou , porém , Lagarde , só com governar na policia . Não se satisfazia em ser um intendente ou prefeito de policia . Quiz equiparar-se , ou antes ainda elevar-se acima , do que foram em França os ministros da policia , o celebre Fouché , duque de Otranto , e o general Savary , duque de Rovigo . Por intermedio dos corregedores móres . Lagarde superintendia , e tinha na sua mão , toda a magistratura d' estes reinos , que geralmente se portou com muita subserviencia . O procedimento da policia de Lagarde foi muito oppressivo , tyrannico e injusto . O povo tinha-lhe um odio mortal . Para honra dos portuguezes , deve dizer-se que foi muito difficil encontrar , na gente do povo quem quizesse desempenhar tão abjectas funcções , para opprimir seus compatriotas . Houve alguns renegados portuguezes , entre os agentes policiaes ; mas na maior parte eram francezes . Lagarde , dispondo do palacio do Rocio , como cousa sua , expulsou , brutalmente , alguns dos serviços da Inquisição , que se achava installada no mesmo edificio , tomando posse , para as operações policiaes , administrativas e judiciaes , das salas , gabinetes e carceres , que lhe pareceram mais convenientes . De modo que os farricocos da Inquisição acharam , nos enviados de Bonaparte , uma concorrencia de competidores não esperados . Os processos da policia de Lagarde eram , porém , mais summarios e menos hypocritas . Não usava , como faziam os inquisidores , admoestar os presos com muita caridade , applicando-os em seguida a variadas torturas . Os seus presos eram julgados summariamente , e quasi sempre em processo só verbal , e applicava-lhe as penas que entendia ; mettendo-os nos carceres , que tinha surripiado ao Santo Officio . O que se dizia , que a policia franceza fazia aos presos , que encerrava nos carceres do palacio do Rocio , era horroroso . Dizia-se que muitos eram entaipados vivos , outros esmagados com pesos de chumbo , outros que eram batidos com saccos de areia , etc. É de suppôr que houvesse muita exaggeração nestes boatos populares . No meio da execração que a policia merecia do povo portuguez , julgou Lagarde que obteria resultados mais energicos e efficazes , contra a eventualidade de uma revolução , com a creação de um tribunal especial , com poderes discricionarios , para julgar , o que elle chamava , crimes contra a segurança publica . Por decreto de 8 de abril de 1808 , Junot creou o tal tribunal especial , composto de um official superior francez como presidente , um capitão relator francez , tres officiaes tambem francezes como vogaes , um juiz portuguez , um escrivão francez ou portuguez , que fallasse as duas linguas , e um interprete . Este tribunal , em que os franeezes estavam em grande maioria , tinha poderes discricionarios , e sem appelação . As suas sentenças eram executadas em 24 horas . Da competencia d' este tribunal era juiz o conselho do governo , ao qual era remettido o processo ou accusação , antes de ser enviada ao tribunal . Posteriormente , foi creado no Porto , um tribunal da mesma natureza . Com um tribunal d' esta ordem , poderia ter havido uma grande carnificina , porque para a maior parte dos delictos era applicavel a pena de morte . Mas o general Junot não era mau . Tinha um genio mau e muito irritavel ; mas bom coração . Como as partes , ou processos , antes de irem para o tribunal , iam ao conselho do governo , o proprio duque de Abrantes , desviou muita vez os presos da competencia do tribunal , ficando assim livres de uma condemnação provavel e severa . Como base do seu organismo policial , tinha Lagarde , como era natural , estabelecido uma vasta rede de espionagem , que penetrava em todas as classes . A primeira necessidade da policia , e particularmente de uma policia que teme a revolução , é ter elementos para saber o que se passa por toda a parte . Vê-se , pois , que não era facil , promover em Lisboa , uma insurreição contra a dominação franceza . Conspiradores pacatos e prudentes Apesar das dificuldades e perigos que apresentava , em Lisboa , a tentativa de uma revolução contra os francezes , comtudo organizou-se uma associação , com esse fim . Os seus membros , porém , eram , em geral , muito pacatos e pouco revolucionarios . Estava á frente d' esta associação o velho José de Seabra da Silva , por cujas diligencias se organizara a associação , com o fim de expulsar os francezes , e restaurar no throno portuguez a casa de Bragança . Os meios para conseguir taes resultados , eram porém , muito escassos : e d' esses mesmos recursos nunca se atreveram a usar . Em geral Lisboa não tem sido forte em iniciativas revolucionarias . Os lisboetas não teem grande queda para virem para a rua fazer sedições a serio .