MARGARIDA SCENAS DE+A VIDA CONTEMPORANA POR Julio LOURENГ‡O PINTO 2.a EDIÇÃO Voir , se souvenir , agrandir , trans- former , c'est a dire imaginer , telle est la loi constante de toute poГ©sie . GUSTAVE PLANCHE . PORTO TYPOGRAPHIA DE+O COMMERCIO DE+O PORTO Rua da Ferraria , 102 a 112 1880 O movimento de renovaГ§ГЈo que se opera na litteratura contemporГўnea e refunde revolucionariamente as formulas consagradas e convencionaes devia de ter necessariamente uma percussГЈo na pacatez do nosso meio litterario : sГіmente as sacudiduras do cataclysmo sГЈo propellidas atГ© nos nos estremecimentos de uma corrente frouxa e tardia . Quando -- O crime do Padre||_Amaro Amaro|_Amaro -- e -- O primo Basilio -- iniciando o realismo na litteratura portugueza , vieram sobresaltar a somnolencia da intellectualidade nacional , jГЎ em FranГ§a o romantismo vibrava os seus derradeiros e mais desesperados golpes ГЎ nova evoluГ§ГЈo litteraria , buscando detel- a na sua marcha avassalladora . O realismo tem uma grande missГЈo a cumprir e ha-de cumpril-a ; Г© uma revoluГ§ГЈo necessaria como correctivo aos excessos da eschola romГўntica , tГЈo necessГЎria como o foi a revoluГ§ГЈo romantica para banir os cГўnones acanhados e esterelisadores do classicismo . O romantismo allucinara-se na mГіrbida aberraГ§ГЈo de falsos ideaes ; ou se embrenhava em um labyrintho de necedades e parvolesas phantasiosas , ou se arremessava no espaГ§o dos devaneios ethereos e das aspiraГ§Гµes mortificantes . Esquivando-se aos limites do real ou do verosimil nem era a expressГЈo do bello , nem desenvolvia uma these , ou synthetisava um ensinamento utilitГЎrio ; nГЈo melhorava os espiritos , esterelisava-os ou amollecia-os engolphando-os na estagnaГ§ГЈo de concepГ§Гµes enervantes e de sentimentalidades perturbadoras . O realismo assumiu a tarefa de restabelecer o axioma tГЈo velho , como frequentemente esquecido -- o bello na verdade . A eschola realista , inspirando-se na natureza e nos factos da vida real , deduz da critica dos phenomenos sociaes as theses , que visam a ideaes verdadeiros e sensatos ; sem subordinar exclusivamente uma obra de arte ГЎs austeridades da moral aspira , pelo ensinamento eloquente da sciencia da vida social , a levantar o nivel da dignidade humana , a melhorar o espirito , e a preparar o sentir das geraГ§Гµes para o gradual aperfeiГ§oamento do viver social . SГЈo estes os intuitos da eschola realista , nГЈo perturbam as imaginaГ§Гµes , nem estragam o carГЎcter sob a influencia de morbidezas sentimentaes . Sendo verosimilhante , sem descahir na trivialidade ou na crueza torpe , escalpellisa o corpo social , e penetra , auxiliada pela observaГ§ГЈo , pela analyse minuciosa , e pelos processos philosophicos e scientificos , nas mais recГґnditas dobras do coraГ§ГЈo humano , depura os defeitos e os ridГculos no crysol do bom senso , e desempenha uma missГЈo altamente educadora . O romance moderno deve ser isto . As revoluГ§Гµes litterarias teem-se operado em nome do verdadeiro e do natural para depois se perderem em largos desvios . Margarida -- Г© uma tentativa da interpretaГ§ГЈo da eschola naturalista : nГЈo presumimos de ter bem comprehendido o naturalismo na arte e o nosso trabalho visa tГЈo sГіmente ao intuito modesto de concorrer para a investigaГ§ГЈo da verdade . OpiniГµes abalisadas divergiram da nossa interpretaГ§ГЈo ; para essas taes o typo de Margarida tem ressaibos a romantismo ; admittindo-o como synthese do bem e do bello , nГЈo concebem todavia a affinidade d' esta creaГ§ГЈo com os modelos da vida real . Para muitos o realismo na arte resume-se em observar a vida sГіmente nas suas manifestaГ§Гµes mГіrbidas e viciosas , arvorada a observaГ§ГЈo e a critica em um pessimismo systematico , a intuiГ§ГЈo artГstica reduz-se a uma maneira de ver falho e incompleto . O artista deve reproduzir na tela o que encontra no immenso reflector da realidade ; mas nГЈo offende os cГўnones da arte , se assimila elementos esparsos para os agrupar harmonicamente na encarnaГ§ГЈo de um typo , ou consubstanciar no vivo relevo de uma criaГ§ГЈo . Г‰ a interpretaГ§ГЈo de que falla Gustavo Planche , e sem a interpretaГ§ГЈo , como a entende o eminente critico , a obra de arte nГЈo tem ideal . E este o lado vulnerГЎvel da geral comprehensГЈo da eschola realista ; sendo verdadeira na theoria e nas suas leis , peca pelos desvios da interpretaГ§ГЈo . NinguГ©m vai mais longe na crueza de escalpellar as enfermidades do organismo social , do que o author do Assomoir , e comtudo os typos de Silverio e de Miette sГЈo adoraveis de suavidade e pureza , que devem ser mais escandalisadoras do que os finos quilates da alma de Margarida , se levarmos em conta as circumstancias e o meio pГєtrido em que desabrocha a candida flor d' aquellas duas almas , que enxertam um verdadeiro idyllio , trasbordante de simplicidade e de naturalidade , por entre as miasmaticas podridГµes dos Rougon Macquart , um idyllio nГЈo arrebicado de falsos atavios , mas que palpita nos latejos potentes da vida franca e larga e exhala as emanaГ§Гµes febricitantes das paixГµes singelas e reaes . O realismo nГЈo pГіde circumscrever-se forГ§adamente ГЎ estreitesa dos vocГЎbulo -- crueza e pessimismo . Em meio d' aquelles mesmos abysmos de putrida esfervilhaГ§ГЈo , em que se engolpha o realismo de Zola , tremeluz de quando em quando alguma cousa de bom e digno , como certas flores mimosas que se alimentam vivazes e esplendidas da putrefacГ§ГЈo dos turaulos . Atravez das torpezas e das abjecГ§Гµes que no Assomoir vГЈo crescendo e avolumando-se como uma marГ© viva , scintilla por vezes a limpida radiaГ§ГЈo da alma do bom Gouget , como uma claridade de ceo azulejando em uma agglomeraГ§ГЈo de crassas nuvens . Nisto ainda ha uma perfeita conformidade com a verdade natural . Margarida nГЈo Г© um typo impossГvel ; Г© verosimil ; nao paira na regiГЈo das nuvens , como as virgens de Raphael idealisadas em uma atmosphera de celestial pureza : mas , como as raadonas de Murillo , tem todos os traГ§os da realidade viva e palpavel . HГЎ uma concepГ§ГЈo susceptivel de vida e movimento no mundo real , e , resumindo a these do livro , Г© a expressГЈo de um ideal sensato e atГ© perfeitamente caseiro . Sem esta faculdade de idealisar uma obra de arte por meio de uma these perfeitamente traduzivel na vida real e positiva , sem a encarnaГ§ГЈo do ideal no real , o realismo reduzir-se-hia simplesmente ГЎ frieza cortante de uma critica ou de uma satyra sem aspiraГ§ГЈo alevantadora dos espГritos e que aponte a um estado melhor de cousas . PoderГЎ ser o aГ§o gelado do bisturi , que na mГЈo do anatomista sonda e retalha , mas nГЈo Г© o remedio que completa a cura ; poderГЎ destruir , mas nГЈo levanta nada no logar das ruinas . Ao positivismo na sciencia succede o realismo na arte : a eschola nascente ha-de ficar , sГіmente em quanto a madureza dos annos nГЈo chega , doudejarГЎ por vezes nos estouvamentos da edade . O mez de abril tinha corrido chuvoso , pouco tivera de primavera , foi um inverno coberto de viГ§osas folhagens . O sol raiava a largos intervallos ; nas alturas sГі de quando em quando luziam claros de cГ©o , atravГ©s das nuvens esfarrapadas , acossadas de um vento fresco ; intercalavase um ou outro dia sorridente ; Vestes intervallos a passarinhada espanejava-se alegre , saltitava nos arvoredos que se iam afogando na espessura das folhagens de um verde fresco e vidrado , como uma porcellana . Mas as ramarias , os ninhos e as plumagens mal tinham tempo de se enxugar ; era uma primavera humida , sem calor ; a natureza apparentava uma frialdade que reГ§uma e pinga ; lufadas de vento sul cortavam o ar crasso de humidade ; nuvens grossas , como fumaradas espessas , rolavam toldando o largo cГ©o ; cordas de agua varejavam a vejetaГ§ao , tenra , e as energiaes immanentes da natureza , ao irromperem vivazes , retrahiam-se logo geladas . Tinha comeГ§ado o mez de maio , o cГ©o por vezes ainda se nublava , cahiam a intervallos grossas bategas de agua ; mas o bom tempo parecia fixar-se . Luiz de Albuquerque e sua mulher tinham acabado de jantar , levantaram-se da meza e sahiram para o terraГ§o em frente do jardim . A tarde cahia com suavidade , a atmosphera clareava , as nuvens adelgaГ§avam-se , rarefaziamse , como fumosinhos alvacentos , diluindo-se na limpidez profunda . No centro do pequeno recinto ajardinado , recortado em canteiros , orlados de um debrum de murta forte e verde-negra , a agua repuxava cahindo em burrifos arripiados pela aragem ; os raios do sol , inclinando ao poente , davam ГЎ agua do repuxo um brilho faiscante , iriado ; cercava o jardimzinho um parapeito de pedra e cal , alastrado de heras e rosas de toucar ; alГ©m do cercado viridente , em socalco mais elevado , debaixo da sombra esverdeada de uma ramada , um bando de patos espanejava-se alegremente na agua de um tanque , banhavam-se folgadamente com requintes de um sensualismo regalado , chasqueando entre si , os alados libertinos , graГ§olas grasnadas ; nas concavidades das folhas de couve brilhavam , como contas de vidro de todos os tamanhos , as ultimas gotas da chuva , que o sol ainda nГЈo sorvera com algum dos seus raios quentes , como sequiosas lingoas de fogo ; nas arvores e nas couves , teias de aranha borrifadas de uma humidade prateada aos raios de sol , brilhavam como filagranas delicadissimas e scintillantes ; uma dupla parede de arbustos de camГ©lias , muito aparados , com a folhagem verde-negra muito reluzente , fazia uma ruasinha , que ia dar a um pomar em flor ; para outro lado mais abaixo espraiava-se a verdura de um lameiro ; ao fundo boleavam-se as espessuras verdes de um bosque de carvalheiras , e para alГ©m contornava-se duramente , a distancia , no horisonte esmaecido a massa negra de serranias escalvadas como dorsos de monstruosos titans curvados . Respirava-se uma frescura balsamica ; o verdor da paisagem , borbolhando viГ§o , com a sua folhagem lavada de poeira , espelhada , dava alegria . Andavam no ar aromas de primavera e effluvios do bom tempo que faz sorrir . Luiz de Albuquerque sorvia com delicia pequenos tragos de cafГ© , beberricava goles de cognac , entre as espiraes do fumo do seu charuto , alternando estas funcГ§oes com methodo , com uma consciencia verdadeiramente artistica , refastelado muito repimpadamente em uma larga cadeira do junco amarellado , balouГ§ando brandamente a perna traГ§ada , na beatitude de uma digestГЈo feliz . As maГ§ГЈs do rosto luziam-lhe com os tons quentes de uma forte coloraГ§ГЈo , animadas pelas dilataГ§Гµes de um chylo socegado ; sentiam se-lhe as intimas alegrias de um estomago contente em toda a expansГЈo da animalidade satisfeita e pachorrenta . Adelina fitava com olhares indecisos as nuvens que se desfiavam no alto , apoiava o queixo redondinho levemente ГЎ mГЈo direita , com o geito de quem se habituou a conservar as mГЈos altas para nГЈo perderem a brancura com a affluencia do sangue , e como quem tem o habito da inacГ§ГЈo , absorvendo-se em vago scismar . Estavam calados ; sГі o grasnar dos patos e o estrepito de azas batendo na agua interrompiam o silencio aldeГЈo . Mas a oscillaГ§ГЈo frenetica do pequenino pГ© de Adelina e um arzinho de zanga , denunciavam que aquelle silencio fora precedido de uma discussГЈo animada que a contrariГЎra . Luiz foi o primeiro a interrompel- o : -- Agora sim , o bom tempo parece que chega ; assim jГЎ se poderГЎ fazer uma jornada ... -- E que nГЈo chegasse , Г© preciso partir quanto antes , Г© uma secca tanta demora , tanta hesitaГ§ГЈo ; nГЈo atas nem desatas , sГЈo sempre as tuas eternas pachorras . Fazes mesmo ferro ... E o pГ©sinho movia-se mais frenetico . -- Mas bem vГЄs o tempo que tem estado , um chover desabalado ... Uma jornada com este tempo ... brr. ... -- como se fosse uma grande viagem d' aqui ao Porto ... Que mulherengo ! Olha se eu precisasse um dia do braГ§o de um homem , estava servida ... -- Mas -- obtemperou Luiz , aconchegando-se melhor na cadeira -- como nГЈo Г© cousa urgente , tanto faz mais dia , como menos dia , e podendo-se fazer uma jornada agradavel , com commodidade ... Ora que diacho ! canceiras nГЈo engordam . -- Que grande tolice fez a natureza , mimoseando-te com esses grandes bigodes ! ... -- E franziu a bГґcca com um risinho ironico , mixto de enfado e desdem . Luiz era immensamente pacifico , muito fleugmatico , remettia-se prudentemente a um silencio discreto , sempre que sua mulher comeГ§ava a imprimir ГЎ conversaГ§ГЈo ares desdenhosos e motejadores . Seu pai , Luiz de Albuquerque CГґrte-Real , envolvera-se nos successos politicos de 1828 a 1834 . Filho segundo de uma casa fidalga da provincia , aparentado com a melhor nobreza de Portugal , mas affastado da corte , sequestrado da influencia palaciana , inclinou-se ГЎs ideias liberaes . Arrastado na corrente dos acontecimentos , foi impellido ГЎ emigraГ§ГЈo e acercou-se da bandeira has В¬ teada na Ilha Terceira . Desembarcado o exercito libertador nas praias do Mindello , distinguiu-se pela sua bravura durante o cerco do Porto e no decurso da campanha . Sobretudo a brilhante acГ§ГЈo de Ponte de Ferreira valeu-lhe grande renome de bravura , e ao finalisar da campanha tinha conquistado para as suas amplas espaduas as dragonas de coronel e para o largo peito a commenda da Torre e Espada . A sua constituiГ§ГЈo vigorosa e temperamento impetuoso tornaram-o apto para as lides e fadigas da guerra . Impellido pela opulГЄncia de um sangue ardente , dava-se aos exercicios fortes : a caГ§a , a equitaГ§ГЈo , o jogo de pau e da barra eram os seus prazeres dilectos . Nos arraiaes o seu vulto assumia aos olhos da turba papalva proporГ§oes imponentes e pyramidaes de pimpГЈo de feira ; em mais de uma romaria o seu varapau ferrado , zunindo em redemoinho vertiginoso , fizera em redor larga praГ§a , e por ultimo quando a voz " Г‰ o snr. Luizinho da Quintarella a dar lambada " percorria , como uma corrente electrica , atravez da massa compacta dos romeiros , a multidГЈo largava desarvorada em tropel . Esta expansГЈo luxuriante de vigor physico teve o inconveniente de abafar na sua abundancia a vitalidade intellectual . O sangue que lhe latejava fremente nas veias nГЈo se resignava com a immobilidade dos bancos escholares , agitava-se irrequieto , bocejava e a phantasia travessa divagava-lhe em projectos de diabruras . Mandado para um collegio do Porto , sentiu-se nos primeiros dias acanhado , constrangido , deslocado , como um peixe fГіra d' agua ; os camaradas de collegio chamavamlhe o " lГґrpa " ; na aula desfechavam-lhe bolinhas de papel , pespegavam-lhe rabos picarescos , faziam-lhe arrelias ; no recreio faziam roda , mettiam o " urso " no meio , havia troГ§a , risadas . O sangue fervia-lhe nas veias , mas sentia ainda dentro de si alguma cousa de invencivel que o abatia e impedia de dominar esta situaГ§ГЈo nova da sua vida . Um dia , um dos collegiaes mais galhofeiros e alentados intimou-o peremptoriamente a dobrar o dorso equino para uma cavalgata ; Luiz arregalou uns olhos furibundos , a cara de bull-dog enfurecido passou da cor de lagosta cosida para a lividez cadavГ©rica , e o farГ§ante , ao executar o jovial proposito , rolou estatelado no chГЈo , esmurraГ§ado , a rebentar sangue do nariz , e elle quedou-se solidamente escarranchado , de punho fechado , a relancear olhos flammeiantes , carranqueando o semblante grotescamente , na attitude comica de um javali assanhado . Os collegiaes ficaram petrificados em presenГ§a do homerico sopapo e da catadura formidavel do pimpГЈo provinciano , que se affastava magestosamente , sem que ninguem se atrevesse a perturbal- o na sua retirada triuraphante . Desde entГЈo o provinciano aparvalhado assu В¬ miu um aspecto grandioso aos olhos dos alumnos , fascinados pelo prestigio da forГ§a , que sempre se impГµe a imaginaГ§Гµes juvenis . EntГЈo , engrandecido e metamorphoseado em heroe de collegio , sacudiu de si todas as peias do constrangimento ; desafogado dominou as perturbaГ§Гµes provenientes da brusca mudanГ§a da vida , e , inebriado com novos triumphos , foi arvorado em chefe do bando estroina . Em pouco tempo , no terreiro de folga ou nas aulas , o casmurro aldeГЈo converteu-se em umaespecie de pequeno Atila , e denunciado como elemento incorrigГvel de desordem e mau exemplo , regressava ГЎ casa paterna . Devolvido ГЎ vida sadia do campo , cresceu e medrou , como os grandes carvalhos nodosos ; brigava com os caseiros , trepava ГЎs arvores , saltava vallados e corria pelas bouГ§as . Foi assim que se formou a matГ©ria prima que ministrou um bom cabo de guerra ao exercito libertador . Terminada a lucta civil com a convenГ§ГЈo de Evora-Monte , e volvido algum tempo , o desgosto que o affectou por occasiГЈo de uma promoГ§ГЈo , que na sua opiniГЈo offendia os seus direitos e desattendia os seus serviГ§os ; levou-o a retirar-se da actividade militar , requerendo a sua reforma . Um velho tio celibatГЎrio , affeiГ§oado ГЎ causa liberal , tomando-se de enthusiasmo pelos feitos brilhantes do bravo coronel , instituiu-o herdeiro da quinta da Cortega , que com mais algumas geiras de terra lavradia arredondavam um modesto rendimento para o viver de provГncia . O coronel , saudoso dos logares onde se expandiu a sua potente mocidade , depois da sua reforma foi residir na quinta da Cortega . A idade tinha-lhe serenado os impulsos ardentes de uma juventude impetuosa , o sangue que lhe girava fГ©rvido nas veias calmava-se , sentia um goso ineffavel em contemplar , na serenidade da vida aldeГЈ , o seu passado turbulento , aprazia-lhe a quietaГ§ГЈo do lar , sentia a necessidade de uma existencia serena e confortГЎvel , aspirava ГЎs alegrias suaves da farailia . Ferido no seu amor proprio , dava-se uns ares despresadores da sociedade e dos homens , affectava uma descrenГ§a philosophica e cogitava em se aconchegar egoistamente na existencia . Ainda moГ§o , namoriscГЎra- se de uma prima , uma excellente rapariga , com uma cara insinuante de uma alvura pallida , que , sem possuir uma belleza irreprehensivel , tinha na physionomia alguma cousa de bom e sympathico , que captivava . A prima Carlota estava ainda solteira . A falta de meios , que em tempo fora um obstaculo ao casamento , desapparecera ; com o soldo da reforma e a renda dos bens herdados nГўo o assustavam os encargos matrimoniaes , podia viver folgadamente na aldeia sem receio de que a sombra de um cuidado viesse desluzir a limpidez da felicidade phantasiada para o resto da sua existГЄncia . Podia casar e casou com a prima Carlota . Teve um filho . O Luizinho depois veio a ser o retrato do pai em miniatura ; em diГўmetro e altura era metade do coronel , mas em compensaГ§ГЈo no rosto era a vera effigie paterna : uma caraГ§a marcial , uns bigodes de artilheiro , uma cabeГ§a de tambormГіr encimando uma corporatura de corneta . O coronel vexava-se , vendo-se tГЈo mal reproduzido e representado . Sua mulher era debil , lymphatica , anemica e sГі depois de se rever na sua obra reconheceu que as allianГ§as entre parentes prГіximos degeneravam as raГ§as . -- Diacho -- dizia-lhe um dia um amigo na liberdade de uma conversaГ§ГЈo intima -- teu filho Г© exactamente o teu retrato , mas parece que fizeste a tua prГіpria caricatura . O filho Г© uma parodia do pai . -- Os homens nГЈo se medem aos palmos ; bem pequeno era NapoleГЈo -- respondeu o coronel com ar descontente . Esta ideia quisilenta da caricatura ficou-lhe no pensamento como um espinho ; por vezes cГіrava de repente , era o espinho que o magoava . Lembrava-se entГЈo dos granadeiros de Frederico da Prussia e dizia de si para comsigo : -- Porque nГЈo casei com o maior arganaz dos arredores ? ... Mas estes pensamentos perpassavam-lhe pelo espirito velozes , fugazes , como um rГЎpido voo de ave , e para logo lembrava-se da sua Carlota , que lhe fizera a existГЄncia boa e facil , e agradecia-lhe no intimo d' alina o affecto extremoso que lhe assegurava uma felicidade serena no remanso tepido do lar . O coronel dissaboria- se , vendo as proporГ§Гµes mesquinhas do filho ; todo o seu regalo seria vГЄl- o crescer e menear na extremidade de uma estatura avantajada aquella cabeГ§a de granadeiro , como no jardim os girasoes ostentam a sua flor repolhuda e flammejante ; era esta a sua mais ardente aspiraГ§ГЈo paternal ; mas sem embargo da corporatura tacanha , acariciava a ideia de o lanГ§ar na carreira militar . A ternura matermal , pelo contrario , era hostil a este projecto ; sonhava uma formatura em Coimbra , uma cadeira de deputado , posiГ§Гµes eminentes , horisontes largos . Prevaleceu a vontade materna . O Luizinho nГЈo tinha robustez bastante para as durezas da vida militar , e demais nГЈo era elle tГЈo espertinho ? Era uma pena perder-se aquella vocaГ§ГЈo . Cercado de uma atmosphera de mimos , como filho unico que era , costumado a fazer a sua vontade , a ser escutado attentamente , o menino intromettia-se nas conversaГ§Гµes , bacharelava impertinentemente e permittia-se uma infinidade de inconveniГЄncias . Este desembaraГ§o e tagarellice passavam por espertezas e agudezas de espirito , reveladoras de uma grande capacidade . D. Carlota revia-se com desvanecimento na creanГ§a phenomeno e o proprio coronel dizia muitas vezes comum sorriso de bonhomia approvadora : -- O diacho do pequeno tem lume no olho . Aos doze annos comeГ§ou os estudos ; entrou em um collegio no Porto , sob a vigilГўncia de um tio materno , juiz na RelaГ§ГЈo do Porto , que , por ser filho segundo , procurГЎra na formatura e na carreira judicial uma independencia . A principio o Luizinho recalcitrou , houve scenas lacrimosas entre a mГЈe e o filho , o menino pedia ГЎ mamГЎ com prantos soluГ§antes que o suffocavam , que o deixasse ficar com ella , D. Carlota confrangia-se toda , abraГ§ava commovida a cabeГ§a do filho , exhortava-o e explicava-lhe entre lagrimas que era para a sua felicidade , para o seu futuro . O coronel interveio com energia , trovejou umas phrases peremptГіrias -- " o collegio ou assentar praГ§a " . O Luizinho a principio perdeu as cГґres no collegio , emagreceu , andava atordoado , sentia no peito uma desconsolaГ§ГЈo , como se lhe tivessem entornado lГЎ dentro um copo de agua fria , a cabeГ§a soava-lhe a oco , por vezes os ouvidos zumbiamlhe como o resonar de um piГЈo adormecido , e tinha uns olhares espantados , pizados de chorar ГЎs furtadellas pelos cantos da casa . Accommodou-se por fim aos hГЎbitos collegiaes : em pouco tempo ninguem manejava melhor o piГЈo , nem era mais dextro no jogo do fito . De vez em quando o tio levava-o de passeio ao jardim de S.||_Lazaro Lazaro|_Lazaro ou ГЎs Fontainhas , apontavalhe o convento da Serra do Pilar , instruia-o ГЎcerca das campanhas da liberdade e dos feitos mavorcios do cunhado . Quando sahia com o collegio , que serpeava pelas ruas da cidade como um reptil negro , ou com o tio||_Felisberto Felisberto|_Felisberto , observava tudo attentamente , com grandes contensoes de espirito , sentia-se devorado de curiosidades . O ruido das ruas , os cafГ©s , os bilhares , os cartazes pomposos impressionavam-o , presentia no ambiente que o cercava o que quer que fosse de vagamente inebriante que o penetrava deliciosamente . Ao cabo de tres annos o Luizinho fizera sГіmente o exame de instrucГ§ГЈo primaria . O coronel exasperou-se , D. Carlota interveio e o atraso do pequeno foi levado ГЎ conta da insufficiencia do collegio . Mas o menino adoecera levemente e escreveu uma carta muito dolente a sua mГЈe , com muitos queixumes . Faltava-lhe tudo , os caldos eram um vomitorio , a roupa da cama nГЈo se mudГЎra ha quinze dias , era um esfregГЈo , o colchГЈo era duro como uma taboa , estava para alli estirado como um cГЈo , ninguГ©m se importava com elle ; como se lembrava com saudade do tempo em que , ao mais leve incommodo , via o rosto bom de sua mamГЎ debruГ§ado carinhosamente sobre o leito ! E acrescentava : " Olhe , mamГЎ , atГ© quando peГ§o agua a um criado , responde-me que me levante e vГЎ buscal-a ! " D. Carlota e o coronel acudiram alvoroГ§ados , Luiz foi retirado do collegio , acabou a convalescenГ§a na hospedaria e foi restabelecer-se no ar sadio do campo . Mas era preciso tentar outro estabelecimento de educaГ§ГЈo , pediram-se informaГ§Гµes , solicitaramse conselhos . O collegio de S. Bento em Coim В¬ bra gosava de grandes creditos , estava em voga , a excellencia d' este instituto de educaГ§ГЈo era garantida deslumbrantemente pelo grande numero de preparatorios feitos pelos alumnos com pleno exito , e apregoados pomposamente no fim do anno pelos orgГЈos da imprensa . Com provas tГЈo triumphantes quem duvidaria dos primores de educaГ§ГЈo que a mocidade recebia n ' este instituto privilegiado ? E o coronel nГЈo era homem que se recusasse ГЎ evidencia de cousas tГЈo intuitivas e palpГЎveis . Pois o que era a educaГ§ГЈo ? NГЈo era exactamente aquillo que se pretendia , o melhor laboratorio onde se formasse a matГ©ria prima de um doutor , onde se talhassem habilmente os modelos de um burocrata , de um funccionario , de um legista ? o que era uma casa de educaГ§ГЈo senГЈo a melhor officina onde se ensina a mocidade a jungir-se automaticamente ГЎ nora de uma profissГЈo ? E decidiu-se que Luiz entrasse no Collegio de S. Bento . Quando se viu n ' aquelle casarГЈo conventual , sentiu calafrios ; os sombrios corredores , as arcarias dos claustros , o grande refeitorio , escassamente allumiado , muito desguarnecido , com as paredes nuas que davam o frio da cal , desconsolador como uma casa vasia , esbatido na uniformidade de uns tons de luz escurentada , tristonha , toda aquella magnitude soturna do ediГicio com o seu aspecto de algidez monacal , davam-lhe desfallecimentos , amargos desalentos . O regimen collegial era entremeado de praticas monasticas . Os alumnos levantavam-se , no pino do inverno , de noute , ainda nГЈo repontava o dia . Elle acordava estremunhado ao badalar de uma sineta , que lhe vibrava no coraГ§ГЈo um ecco triste , como uma fisgada dolorosa ; vestia-se apressadamente , atarantado , tiritando de frio ; a sineta continuava a badalar com desespero , e este som agudo , metallico , arrepiava-o , corria-lhe pelos nervos como gumes afiados de aГ§o gelado . Atravessava os corredores silenciosos , mergulhados na penumbra , aos quaes os primeiros pallidos alvores emprestavam uma luz descorada , que desconsolava a alma ; caminhava atordoado , enfiado , atГ© ao coro , onde os . alumnos agglomerados cabeceavam com somno . ГЃ noute psalmodiavam-se ladainhas , ГЎ luz mortiГ§a de dous candieiros de latГЈo , que os prefeitos punham em cima da grade do coro , fumegando e exhalando um cheiro fГ©tido a morrГЈo ; os recreios eram curtos , as refeiГ§Гµes nojentamente cosinhadas embrulhavam-lhe o estomago . ГЃs Ave-Marias a luz crepuscular que se espalhava no edifГcio tinha umas tristezas que lhe davam vontade de chorar , parecia-lhe que o granito do edificio se abatia sobre elle e o esmagava , e aquella luz soturna infiltrava-lhe na alma uma melancolia sem fim . ГЃquella hora ouvia-se o tanger triste de um sino na SГ© , entremixturado com o som monotono , roufenho , da cabra . Era para elle de uma tristeza indizivel essa toada do sino da SГ© ; semelhava um queixume dolente , um amargo lamento e aquelle bronzeo soluГ§ar , de uma larga melancolia , repercutia-se-lhe nas profundezas do seu ser com um som cavo e lugubre , que lhe dava estremecimentos gelados . Vinham-lhe entГЈo uns rebates saudosos , umas nostalgias profundas da casa paterna , dos affagos maternaes , da liberdade da sua aldeia , a imaginaГ§ГЈo exaltava-se-lhe , evocava-lhe imagens sorridentes , dulcissimas reminiscencias , aspirava ГЎ alegria e ГЎ frescura sadia dos campos do Minho . Depois a noute cahia , a sineta vibrava estridulamente , como voz irada do pedagogo que ralha ; as visГµes ceruleas da sua aldeia fugiam espavoridas ; os alumnos encerravam-se nos quartos , que foram celias de frades ; os prefeitos deslisavam pelos corredores , como sombras , chocalhando molhos de chaves , arrastando nos pГ©s sapatos de ourelo , serenos e subtis , como espiГµes que nГЈo fazem ruido , e ouvia-se o estrondear de portas que se fecham , rangidos de chaves que giram nas fechaduras . Ficavam encarcerados de noute ; Luiz experimentava a sensaГ§ГЈo de uma louza tumular que cahisse sobre elle , sentia um arrepio pela espinha dorsal , lembrava-se que podia adoecer , ter um accidente , e a imagem meiga de sua mГЈe apparecia lhe , como uma visГЈo , quando ia acarinhai-o antes de adormecer , ou debruГ§ada sobre a cabeceira do leito , quando estava doente . Abancava-se para estudar , as lettras bailavam-lhe diante dos olhos , sentia na cabeГ§a o zunido de um atordoamento , o quarto povoava-selhe de visГµes , de sombras funebres , a alma abriase- lhe em um abysmo de angustia , tinha como que uma sensaГ§ГЈo de frio que engelhava o coraГ§ГЈo . Mas a noute caminhava calada , indifferente , sГіmente de quando em quando se ouvia algum ruido perdido n ' aquelle silencio dormente , o resonar fГєnebre das corujas na torre da igreja ou o latido de algum cГЈo vadio , e estes rumores eccoavam-lhe na alma com estrondo lugubre , como um ruido nocturno que retumba pavorosamente em algum casarГЈo abandonado . E refugiava-se na cama , cheio de desolaГ§ГЈo , atufava a cabeГ§a no cobertor , soluГ§ava longamente e a liГ§ГЈo ficava por estudar . Emagrecia , a economia perturbava : se-lhe , as cores sadias desmaiavam , a frescura da pelle alterava-se na transparГЄncia de tons biliosos . Mas vinha o habito e amaciava estas asperezas do seu novo viver , como os attritos desfazem as saliencias pedregosas de um caminho ; acamaradou-se com alguns dos seus companheiros de clausura ; aprendia com elles a aligeirar o tempo e a suavisar o regimen duro do collegio fradesco , asso В¬ ciando-se ГЎs tropelias dos estroinas . Havia a roda dos grandes , dos valentes , que formavam grupo ГЎ parte ; infringiam por vezes impunemente o regulamento collegial , faziam forГ§as , proezas athleticas , com grande pasmo da arraia miuda ; eram respeitados da communidade , e os proprios prefeitos nГЈo se eximiam , com disfarce , a uma certa deferencia receiosa . Luiz admirava-os , aspirava com vehemencia a engrandecer-se atГ© ГЎquelle formato grandioso , de que se sentia tГЈo distanciado ; dous sobretudo eram fortes como alcides de circo , e aos seus olhos d' elle assumiam o aspecto da encarnaГ§ГЈo de um ideal . SГі os dous rolavam um grande penedo , que os outros , tantos quantos podiam metter-lhe hombros , nГЈo logravam sequer mover . A roda dos grandes constituia uma sociedade de resistencia ГЎs auctoridades collegiaes , um fГіco permanente de conspiraГ§oesinhas , de estroinices arreliosas , de projectos atrevidos . Umas vezes eram os candieiros de latГЈo , fumegando na grade do coro com os pavios tristes , cheios de morrГЈo , que eram alvo de certeiras pedradas , cahindo no pavimento da igreja com estrondo , e algum cachaГ§ГЈo na regiГЈo lombar dos prefeitos , no meio da balbГєrdia e das risadas ; outras vezes eram os lampiГµes , espalhando nos corredores sombrios uma claridade bruxuleante de carcere , que voavam em lascas , e logo da treva profunda surdia um alarido infernal , um vozear de uivos estridulosos , de roncos sibilantes , um tilintar de ferrinhos , uma algazarra mais estridente do que um charivari de gongs chinezes . Por vezes a sociedade deliberava quebrar os jejuns claustraes , e aos ouvidos de Luiz chegavam uns rumores mysteriosamente segredados de comezainas introduzidas clandestinamente pelos criados subornados , daregabofes nocturnos com licores , vinho do Porto alcoolisado como polvora , trГґchas de ovos do Marques e empadas do PaГ§o do Conde . E depois , ouvia ainda fallar confusamente de escapadas furtivas pela calada da noute , lenГ§oes pendurados das janellas , escaladas de muros , folganГ§as alegres e tresnoutadas ГЎ luz crua do gaz , faiscando nas garrafinhas dos licores e das bebidas fortes e ao som do tic-tac das bolas de bilhar , excursГµes pelos becos lamacentos e escorregadios da cidade baixa , em cuja escuridГЈo mysteriosa havia fremitos de saias engommadas e fascinaГ§Гµes de cousas ignoradas , que appareciam ГЎ sua imaginaГ§ГЈo excitada . E elle tinha deslumbramentos no cerebro e no corpo os estremecimentos do instincto da carne . Nutria no intimo da sua alma um culto admirativo pelos -- grandes -- sentia-se pequeno , affligiase que nГЈo o distinguissem na turba dos insignificantes , aspirava , como uma honra , a ser iniciado na roda dos notГЎveis , desejava ser grande , fazerse homem , e dormia agitado , tinha sonhos febris . Sempre que podia subtrahir-se ГЎ vigilancia dos prefeitos , chegava a uma janella que dava para a rua e olhava curiosamente , com grande contensГЈo de espirito , as tricanas e serventes que passavam com o chaile traГ§ado catitamente , saracuteando-se alegremente , com um quebrado de quadris sensual : soavam-lhe ao ouvido risos frescos , vozes com inflexГЈo adocicada , muito cantada . As tardes , grupos de estudantes caminhavam jovialmente , trocando risos namoriscados e dictos bregeiros com as tricanas bonitas , e via-os a elles , livres , folgazГµes , banhando-se fartamente nos ares lavados , espanejando-se ao largo sol pelas ruas areadas do pittoresco jardkn botГўnico , aspirando voluptuosamente os aromas dos lilazes , dos magnolios , dos laranjaes em flor , que se abrem ГЎs brisas tepidas da primavera , e sorvendo sensualmente por todos os poros os effluvios de uma natureza suave e melancholica , que renasce . E elle , o encarcerado , via todo aquelle mundo exterior sobredourado pelos ardimentos da sua imaginaГ§ГЈo juvenil ; fitava-o com uma avidez profunda , illimitada , que o inebriava , e sentia uns vagos aturdimentos cheios de seducГ§ГЈo e anhelos ; tinha vontade de ser como os outros , que traГ§avam a capa acadГ©mica com ares estouvados , e de se engolphar n ' aquelle mundo de cousas para elle desconhecidas , que lhe iam despertar no fundo da sua natureza curiosidades adormecidas , e tinha sonhos agitados , appareciam-lhe visГµes de mulheres que lhe sorriam , que roГ§avam por elle lascivamente , relanceando olhares sympathicos de commiseraГ§ao , mas que passavam logo ГЎvante , estouvadamente , enlaГ§adas em braГ§os masculinos e desappareciam nas dobras dГ© uma capa academica que se agitava . II Decorrido o anno , tentou os exames das disciplinas estudadas , mas com o mesmo inalteravel exito negativo . D ' esta vez o coronel ficou apopletico de colera , foi surdo a todas as supplicas de sua mulher , foi energico , inabalavel , estava decidido que Luiz assentasse praГ§a e que partisse , acto continuo , para Lisboa , que se alistasse no regimento de lanceiros -- o seu regimento predilecto . Passados os primeiros momentos de confusГЈo , Luiz exultou com a nova phase da sua vida . Ia respirar a vida a peito cheio , libertava-se do enclausuramento e dos livros , d' aquelles livros mofinos , que , sГі de os ver , lhe davam esvahiinentos de cabeГ§a . Em Lisboa estava como o peixe na agua ; bem recommendado , aparentado com a aristocracia , relacionou-se facilmente , acamaradou-se com bons companheiros de vida alegre e airada . A existГЄncia agora rolava-lhe sobre nuvens douradas , dispendia-se pelos theatros , pelo Gremio , pelos cafГ©s , beberricando golinhos de bebidas alcoolisadas ; organisavam-se brodios finos , em que faiscavam os olhos travessos de hespanholas e trasbordava o champagne espumejante entre fervuras de grГўnulos dourados , ou entГЈo celebravam-se bambochatas nocturnas , em que os convivas , com fatos afadistados , abancavam ГЎs mezas gordurosas das tabernas sГіrdidas , como esfregГµes de cosinha , emborcando grandes cangirГµes de vinho de Torres , ao som dos fados cantarolados com uma dolГЄncia langurosa e tangidos na guitarra , que geme , com suspiros muito quebrados , todas as indolencias morbidas , todos os spasmos do vicio e da baixa crapula . Entre os aturdimentos d' esta existencia estagnante veio fulminal- o a noticia da morte repentina de seu pai . O coronel , que fora excellente cavalleiro , continuava , apesar da idade , a entregar-se ao exercicio de cavalgar e dera uma queda desastrosa de um cavallo , que montava pela primeira vez . Esta noticia lutuosa , avivando e revolvendo tudo o que ainda havia de bom na alma de Luiz , arrancou-o bruscamente ao lodaГ§al orgiaco em que se entorpecia deleitosamente ; a dГґr sobreexcitou-lhe todas as energias dormentes , todos os sentimentos bons do seu caracter frouxo , que uma invencivel indolencia desviava de toda a actividade honesta e inГpellia fatalmente para as lassidГµes provocantes dos sentidos . Mas agora , na exaltaГ§ГЈo da dor , representava-se lhe a imagem do pai moribundo , de sua mГЈe afflicta , lavada em lagrimas , doia-lhe a consciencia de ter pensado tГЈo pouco n ' elles , chegava a ter pejo de si , e abalou para a casa paterna com a alma a trasbordar de angustias e pensamentos bons . Entrou na villota natal ao som do dobre a finados , caminhava automaticamente , como um homem que cambaleava atordoado , viu-se impellido para dentro de uma sala mal allumiada , onde era difficil distinguir os objectos e as pessoas , que estavam alli a desanojar sua mГЈe , sentiu-se cahir nos braГ§os d' ella e durante algum tempo no silencio concentrado d' aquella sala cahia apenas um arquejar de soluГ§os . Atravez das lagrimas , que lhe embaciavam a vista , entreviu um porte esbelto de mulher , um sorriso gracioso a irradiar frescura e mocidade e uns olhos de um castanho-escuro , orlados de compridas pestanas sedosas , uns olhos de uma viveza avelludada que o contemplavam cheios de uma curiosidade penetrante , descahindo depois para uma languidez expressiva , que os velava de um fluido suave . Era Adelina , a filha unica do snr. Antunes . A ultima vez que a viu , quando foi para o collegio portuense , era ainda creanГ§a e agora apparecia-lhe na plena florescencia da mocidade e da belleza , como uma primavera formosa , que comeГ§a a enflorar-se . A morte do coronel veio operar uma transformaГ§ГЈo na existГЄncia de Luiz . Sua mГЈe avelhentada e debil nГЈo podia ficar no isolamento , sГіsinha com a sua viuvez ; nГЈo queria agora separar-se do filho . Demais era preciso velar pela administraГ§ГЈo da casa , cujo rendimento jГЎ de si pouco importante , minguaria , quando confiada a mГЈos negligentes ou menos probas . Agora o seu posto era alli , na sua casa , ao lado de sua mГЈe : forГ§a era fechar os olhos ГЎs fascinaГ§Гµes da capital e trocar as fulguraГ§Гµes dos theatros , dos bailes , das soirГ©es , os ruidos animados da cidade , das corridas de touros , os desenfados alegres , os cavacos scintillantes ГЎ luz brilhante do gaz entre libaГ§Гµes excitantes pela bisbilhotice caturra na botica da terra ao som da cadencia monotona dos dados chocalhados no copo de couro . Nos dias immediatos ao fallecimento do coronel o snr. Antunes vinha todos os dias na qualidade de amigo e respeitador da casa ; trazia consolaГ§oes e punha o seu prestimo ao serviГ§o dos doridos . -- Olhe , snr. Luizinho -- dizia o Antunes enfiando com importancia as mГЈos Гіsseas nos largos bolsos de um amplo casaco -- o tempo Г© que cura esses achaques . Eu tambГ©m sei o que jsso Г© : quando morreu a minha Joanna -- era uma santa , oh , se era , Deus lhe falle n ' alma -- andei meio apatetado , a principio o coraГ§ГЈo parecia que me inchava como este punho , a comida entalava-me , parecia que o estomago se encolhia e nГЈo havia meio de empurrar o bocado . Depois isto vai indo , pouco a pouco , sem a gente saber como ... E vai ao depois ... por fim de contas um homem tem a sua vida , nГЈo pode ficar para ahi sempre de espinhela cahida , como um eremitГЈo ... NГЈo ha-de andar a cahir de lazeira , precisa de substancia , e o caso estГЎ em comeГ§ar , depois ... engrola , engrola e tudo acabou . E vai , snr. Luizinho , tambГ©m Г© preciso cuidado com a mГЈesinha , sempre foi assim fraquita . Que nГЈo vГЎ ella adoecer , o snr. Luizinho , que Г© homem , Г© que deve dar aquella ... Г‰ preciso espairecer ; a pequena , a Adelina , ha-de vir por ahi dar dous dedos de cavaco . E olhe que aquillo pode-se ouvir , nГЈo Г© por ser milha filha , mas a verdade ha-de dizer-se , aquillo dГЎ gosto a um pai ! Sabe pintar para ahi uns casos que Г© de ficar a gente banzada e entГЈo , oh , snr. Luizinho , como ella toca no piano umas cantigas que Г© mesmo de dar volta cГЎ por dentro . AbenГ§oado dinheiro ! -- Sua filha estГЎ interessantissima , snr. Antunes , e dou-lhe os meus parabens . Mas de certo nГЈo foi aqui que a educou , mandou-a para algum collegio ? -- Ah , Г© verdade , o snr. Luizinho ainda nГЈo sabe . Puz a pequena em um collegio no Porto , sim senhor -- E o Antunes com as mГЈos traГ§adas atraz das costas , com o corpo ligeiramente arqueado para diante , meneava a cabeГ§a assumindo um aspecto grave -- o melhor que achei , nГЈo olhei a despezas . O que eu queria era uma educaГ§ГЈo fina ... porque eu nГЈo penso cГЎ como essa gente que deixa para ahi as filhas , que mal sabem lГЄr , os tempos sГЈo outros e hoje a educaГ§ГЈo ... Mas isso sГЈo contos largos ... Quando honrar aquella sua casa verГЎ uns quadros com umas passarolas bordadas a cores , aquillo pelos modos sГЈo as araras -- passaros do Brazil , Г© de ficarem os olhos n ' elles ... e outras cousas ... snr. Luizinho . VerГЎ e agora o que lГЎ vai , lГЎ vai ... E quanto ao mais eu cГЎ estou para o que for prestavel , Г© sГі mandar o Antunes ... ou nГЈo tivera eu trazido o snr. Luizinho ao collo . O snr. Antunes tinha sido caseiro na quinta da Cortega . Economico , laborioso , activo , o seu pensamento fixo fГґra sempre adquirir uma fortunasinha , que lhe dГ©sse+esse uma independencia abundante . Em poucos annos devia ГЎ energia da sua vontade e a uma severa economia um peculio de algrimas moedas , preciosamente guardado no fundo da caixa . Demais o snr. Antunes era um homem essencialmente pratico e positivo . Pensou em tomar estado , relanceou o seu olhar por instincto calculador pelas redondezas e as suas vistas fixaramse sobre a Joanna do PadrГЈo . Era filha unica e pela morte da mГЈe , que jГЎ era velha , levaria em dote algumas geiras de terra com alguns centos de cruzados em dinheiro . Outras moГ§as havia mais bonitas , mas a respeito de olhos e cores sadias em umas faces trigueiras de uma carnaГ§ГЈo quente , como um pecego em plena maturaГ§ГЈo , nenhuma outra lhe levava as lampas . NГЈo teve a velleidade de aspirar aos grandes dotes cubiГ§ados e disputados pelos lavradores graГєdos , contentavase com a mediania , e assim mirando sГі ao que nГЈo estava muito fГіra do alcance do seu braГ§o , dava mais uma prova do seu bom juizo e tino prudencial . A Joanna nГЈo entrava no casal mal petrechada , era sadia e robusta para as canceiras da vida , elle tambem nГЈo ia com as mГЈos a abanar e tinha dous braГ§os que valiam uma fortuna . O trabalho faria o resto . N ' estas condiГ§Гµes teve artes de agradar ГЎ cachopa e ГЎ mГЈe , casaram e para logo o Antunes entrou de mourejar e mostrar que nГЈo era homem para ficar na cepa torta . Com as suas economias e o dote de sua mulher tentou com exito algumas operaГ§Гµes em gados ; depois da morte da sogra teve ensejo de vender a um lavrador opulento , por preГ§o superior ao seu valor , os campos contiguos a uma herdade que se pretendia alargar ; accresceu ainda a heranГ§a de alguns centos de mil rГ©is de um tio de sua mulher , parocho de uma freguezia prГіxima e d' este modo entrou o Antunes na posse de um capital importante , que o habilitou a entrar no negocio dos gados em larga escala . O Antunes medrava e a sua importancia crescia de anno para anno . Em pouco tempo , a nГЈo ser o brazileiro , era elle o maior capitalista da terra , emprestava dinheiro a juros , subia de ponto a consideraГ§ГЈo pela sua pessoa , fez-se influente eleitoral , foi eleito vogal da junta de parochia , depois nomeado regedor . NГЈo havia outro como o Antunes para vencer uma eleiГ§ГЈo e a politica veio cercal- o de uma consideraГ§ГЈo ainda maior . Pessoas importantes escreviam-lhe , sollicitavam-no , festejavam-no* e uma vez , nos apertos de uma eleiГ§ГЈo , em que elle estava pouco inclinado ao candidato ministerial , conseguiram leval- o ao governo civil ; voltou com a nomeaГ§ГЈo de administrador substituto ; o effectivo , um bacharel de recente data , que estava ha pouco tempo no concelho , retirou-se com licenГ§a e o candidato governamental foi eleito . Este caso da nomeaГ§ГЈo levou o Antunes ao apogeo da sua gloria . A fortuna comprazia-se em afagal- o por todos os modos ; nГЈo cabia em si de contente ; a estatura parecia que se lhe tinha avantajado com mais algumas pollegadas . O Antunes era a personificaГ§ГЈo da felicidade na terra , as faces tinham cores sadias e vinha-lhe , como uma cousa boa que o regalava esta nutriГ§ГЈo que Г© indicio de robustez , sem demasias incommodas de gordura balofa . Em casa dava expansГЈo ГЎ alegria e ГЎ vaidade que o dilatavam interiormente ; explicava ГЎ mulher e ГЎ filha a importГўncia da sua nova posiГ§ГЈo ; o governador civil recebera-o no gabinete com grandes civilidades ; fallara-lhe dos seus merecimentos ; apertara-lhe a mГЈo ; acompanhara-o atГ© ГЎ porta do gabinete , e enchia a boca explicando que , segundo o codigo , era um magistrado administrativo e como dizia o governador civil -- Vou collocal- o ГЎ frente da administraГ§ГЈo do concelho , estou certo que corresponderГЎ ГЎ confianГ§a que mereceu ao governo de sua magestade , e que os seus serviГ§os lhe darГЈo direito a ser recommendado ГЎ munificencia regia . O circulo das suas relaГ§Гµes alargou-se , os horibontes da sua influencia dilataram-se , continuou a prestar relevantes serviГ§os eleitoraes e o Antunes nГЈo era homem que desaproveitasse as vantagens da sua nova situaГ§ГЈo . AlcanГ§ou que lhe fosse concedida uma comarca na administraГ§ГЈo do tabaco ; com este subsidio os seus cabedaes engrossaram ; entrou de comprar inscripГ§Гµes , e para cumulo de ventura o ditoso Antunes viu a sua ultima aspiraГ§ГЈo realisada -- foi agraciado com o habito de Christo . Uma vez teve uma ideia que lhe atravessou o cerebro , como um raio de alegria ; este pensamento sorridente e . seductor preoccupava-o , perseguia-o como a prГіpria sombra ; fazia-lhe negaГ§as ; bailava-lhe diante dos olhos com tentaГ§Гµes diabolicas , e Г s vezes o bom do Antunes quedava-se a sorrir para dentro de si , abstracto , aparvalhado , embevecido na contemplaГ§ГЈo de uma visГЈo que o fascinava . Um dia -- nГЈo pГґde conter-se mais tempo -- abalou para o Porto . Passado algum tempo desdobrava-se sobre a cama de Antunes , estatelada pomposamente , uma farda de administrador de concelho , com o chapГ©o armado e o espadim ao lado . Porque emfim -- dizia -- podia passar o monarcha em viagem ao norte do paiz , e em todo o caso sempre dava a um homem uma certa aquella ... Quando mais nГЈo seja serve para as procissГµes e fica a gente com a alma consolada . Foi uma grande surpreza a appariГ§ГЈo da farda , a famГlia chamada com solemnidade teve deslumbramentos , e o ditoso Antunes revia-se nos bordados dourados , que lhe davam fascinaГ§Гµes e nГЈo podendo resistir a uma tentaГ§ГЈo envergou a casaca , pavoneava-se sorridente na bemaventuranГ§a abundante , que lhe inundava a alma de bemaventuranГ§a jubilosa . A snr.a Joanna do PadrГЈo estava uma suspensГЈo , a pequena Adelina , entГЈo com dez annos de idade , assistia deslumbrada a esta exhibiГ§ГЈo apparatosa , fazia um conceito elevado de seu pai , e sentia-se feliz com a importancia paterna . -- Г‰ o que os meus olhos teem visto -- dizia a snr.a Joanna arrastando as palavras admirativamente -- Quem havia de dizer , oh , Antunes ! Que voltas o mundo dГЎ ! ora nГЈo ha ... -- Г‰ para que saibas . NГЈo que os tempos hoje sГЈo outros . Г‰ como diz o dr.||_FabiГЈo FabiГЈo|_FabiГЈo , que aquillo Г© um evangelho a fallar , hoje um homem de merecimento nГЈo sabe onde pГіde chegar , o caso Г© saber trepar -- E o Antunes anediava com o canhГЈo da manga a seda do chapГ©u armado , e levantando em seguida os olhos dilatava a vista vagamente , como se abraГ§asse um horisonte imaginГЎrio no enlevo de uma larga aspiraГ§ГЈo . Quando Adelina completou doze annos a posiГ§ГЈo social e monetaria do Antunes attingira um grau elevado de importancia , tinha atordoamentos ambiciosos , devorava-o uma sede de engrandecimento , e queria que a consideraГ§ГЈo de que era objecto se desdobrasse e reflectisse na filha unica que estremecia . A instrucГ§ГЈo que Adelina recebera da mestra rГ©gia , e depois as liГ§Гµes de francez e de piano , que lhe dava o padre||_Pinheiro Pinheiro|_Pinheiro , tocador de orgГЈo em festas de Igreja , nГЈo podia satisfazel- o . -- Na sua posiГ§ГЈo , com a fortuna de que dispunha , bonita e esperta como Г© a pequena , quem sabe onde ella poderГЎ chegar ? Mas era preciso educal- a para lidar com gente fina . Era atГ© um caso de consciГЄncia , se nГЈo fizesse da rapariga uma senhora . E aos doze annos Adelina foi para o Porto , entrando em um collegio , dirigido pelas boas irmГЈs de uma corporaГ§ГЈo religiosa . III Nos primeiros tempos habituou-se facilmente ao regimen do collegio , viera com grande desejo de aprender , soavam-lhe no ouvido as exhortaГ§Гµes enfatuadas de seu pai . Era preciso que se distinguisse pelo esmero da educaГ§ГЈo , que se fizesse senhora , para entrar na convivencia da boa sociedade e das fidalgas . NГЈo conhecia esse mundo privilegiado , que entrevia na projecГ§ГЈo de uma perspectiva cheia de seducГ§Гµes , mas estimulava-a um anceio ardente de a conhecer . Os bordados da farda de seu pai tinham-lhe deixado no cГ©u azul do seu espirito juvenil uma scintillaГ§ГЈo fascinante , como um rasto luminoso na crystallinidade de uma noute limpida , e pelo effeito d' esta impressГЈo que se lhe projectava no cerebro , como as grandes sombras na claridade prateada de um vivo luar , conjecturava cousas grandiosas d' esse inundo brilhante , cujas portas parasidiacas promettiam abrir-lhe ; um fumosinho de vaidade estonteava-a , excitava-a uma for В¬ te curiosidade . Sob a pressГЈo d' este pensamento fixo , aguilhoada pela vehemencia d' esta aspiraГ§ГЈo intensa , foi docil , aprendia facilmente , instruia-se com avidez , distinguiu-se pela sua applicaГ§ГЈo e comportamento exemplar . A directora e as mestras estimavam-na , sГіmente por vezes estranhavam certos impulsos de uma grande vivacidade , mas como , quando tentavam reprimil-a , cedia facilmente aos conselhos e reprehensГµes , desculpavam-se aquellas subitas impetuosidades do temperamento , continuavam a consideral-a e esperavam que as doГ§uras da religiГЈo lograriam acalmar as exaltaГ§Гµes , que , de quan В¬ do em quando , irrompiam , como uma lava , d' aquelle caracter irrequieto . N ' este intuito as boas irmГЈs applicavam-lhe em maior doze , como cauterio ГЎ parte fraca e morbida d' aquella alma , as leituras religiosas e recommendavam-na com particularidade ao director espiritual , que a retinha mais tempo na somnolencia ciciante do confessionario , espraiando-se em grandes exhortaГ§Гµes mysticas , em que elle pintava com viveza de cores a perversГЈo dos homens , as tentaГ§Гµes da carne , os perigos que para a salvaГ§ГЈo da alma resultavam dos prazeres mundanos e do peccado e forcejava por inclinal- a para os aspectos calmos da religiГЈo , para os deleites celestiaes , para o amor divino do doce Jesus , para as promessas de ineffaveis arroubos reservados ГЎquellas , que nГЈo conheciam outro esposo senГЈo o filho de Deus . A linguagem mystica do padre dava-lhe perturbaГ§Гµes , enlevos de uma vaga voluptuosidade ; havia certas phrases que a preoccupavam , o mysterio , em que se velavam , ia despertar-lhe nas pro В¬ fundezas do seu ser curiosidades adormecidas , que a irritavam e lhe suscitavam o desejo imperioso , irresistivel de saber o que significavam as palavras esposo , prazeres mundanos , tentaГ§Гµes da carne . Mas a sua sentimentalidade , que nГЈo tinha outra valvula de respiraГ§ГЈo , expandia-se nas vagas fluctuaГ§Гµes do mysticismo , debatia-se em um oppressivo anceio de se transportar nas azas luminosas de uma aspiraГ§ГЈo fremente , de voar para alguma cousa que lhe faltava , mas cuja existencia ella pressentia vagamente , para um ideal ainda confuso , encoberto da densidade de uma nevoa , que a sua alma tentava penetrar . As palavras do confessor , impregnadas de uma dulcГssima uncГ§ГЈo religiosa , as phrases -- amor divino , arroubos ineffaveis , prazeres celestiaes , sacudiam-lhe o coraГ§ГЈo em palpitaГ§Гµes anciosas , lanГ§avam-lhe no fundo d' alma commoГ§oes fortes , sentia-se banhada em ondas de ternura , experimentava uma necessidade irritante de desdobrar para fГіra de si a exuberГўncia de vida , que se lhe comprimia dentro da organisaГ§ГЈo opulenta , e amava a meiga Virgem , que a contemplava com olhar dolorido , sonhava cГіros celestes , nuvens de anjinhos com azas douradas e luminosas , compungia-se diante do pallido Jesus , que pendia da cruz macerado , e cantando com muita devoГ§ГЈo hymnos religiosos , em coro com as outras alumnas , ao som plangente do orgГЈo , a sua alma vagueava na exaltaГ§ГЈo de um extasi infinito , que lhe imprimia a todo o seu ser a vibraГ§ГЈo de uma irritabilidade nervosa . No fim do anno foi premiada . Era costume organisar uma festa escholar para distribuiГ§ГЈo dos premios com assistГЄncia das familias das educandas . O programma constava da representaГ§ГЈo de pequenas comedias de uma candura de lyrio , da recitaГ§ГЈo de poesias de um lyrismo mystico e de exhibiГ§oes artisticas de canto e piano . Era um aspecto novo , que veio sobresaltar Adelina , na atonia do seu viver freiratico , uma diversГЈo ao enervamento em que se estiolava o seu temperamento avido , e lanГ§ou-se logo com toda a impetuosidade de um enthusiasmo soffrego nos encantos da nova sensaГ§ГЈo . As divagaГ§Гµes pelo cГ©u , os anjinhos de azas douradas , harpejando lyras celestiaes na harmonia dos cГіros angelicos , os deleites do paraizo , tudo foi logo esquecido e trocado pelos anhelos de uma delicia simplesmente terrena e mundana . Aquella festasinha , a que a sua imaginaГ§ГЈo ardente dava colorido e relГЄvo na projecГ§ГЈo de uma fГіrma grandiosa , era um raio de alegria na tristeza do seu tedio , como um raio de luz enfrestando-se na escuridГЈo de um subterraneo . Antes de entrar no collegio fГґra uma vez ao theatro , tivera um grande deslumbramento e essa impressГЈo gravara-se-lhe indelevelmente no cerebro , julgГЎra- se transportada da estagnaГ§ГЈo insulsa da sua aldeia a um paiz encantado ; no meio d' aquelle esplendor de luzes , faiscando nos ornatos dourados da sala e nas toilettes vistosas e assetinadas ; aquelle panno que subia e descia tinha para elles mysterios e fascinaГ§Гµes . E que de emoГ§Гµes quando se erguia ! Que de impaciencias em quanto se nГЈo levantava ! E vinham-lhe vagos desejos de passar a sua vida na embriaguez d' aquella atmosphera cГЎlida e luminosa , tinha uns sonhos confusos , indefinГveis e atravГ©s dos estrepitos dos applausos , que pareciam imprimir ao ambiente uma vibraГ§ГЈo ondulosa e aos seus nervos um estremecimento sonoro , affigurava-se-lhe que nГЈo podia haver melhor vida do que a de actriz . Adelina logo nos primeiros ensaios collegiaes mostrou uma grande aptidГЈo artistica , por isso confiaram-lhe na festa um papel importante . Estava radiante , aguardava com avidez o momento ditoso de se exhibir em publico , sonhava ruidos de festa , murmurios de admiraГ§ГЈo , coroas de triumpho , estrГ©pitos de bravos e palmas . Recitava sГіsinha pelos cantos da casa , gesticulava para um publico phantasiado , estudava diante do espelho da sala de visitas , sempre que podia introduzir-se alli furtivamente , attitudes e requebros gentis , e quando chegou o dia solemne , em quanto algumas tremiam e vacillavam , ella vibrava de enthusiasmo , estremecia electrisada , sobreexcitada de uma energia nervosa . Adelina causou sensaГ§ГЈo e sobretudo fez um contraste frisante com as suas companheiras . Diziam , quasi todas , os seus papeis monotonamente , constrangidas , acanhadas , declamando quasi sempre na mesma toada insipida , sem cadencias , sem relevo e colorido . Ella nГЈo , apresentou-se em scena com um franco desempeno ; ora era languida , ora energica ; tinha uma voz harmoniosa que se malleava a todos os accentos de sentimento ; nos grandes olhos escuros fulgurava-lhe um brilho , desusado e nos lances patheticos chorava verdadeiras lagrimas de commoГ§ГЈo . O auditorio tinha uma attitude admirativa , um sussuro de approvaГ§ГЈo percorria a turba dos espectadores , havia pedaГ§os de phrases encomiasticas que se extinguiam na prolongaГ§ГЈo de uma reticencia exclamativa ; cabeГ§as meneavam-se com uma longa admiraГ§ГЈo no olhar , descrevendo uma comprida linha perpendicular como um grande ponto de exclamaГ§ГЈo ; as senhoras idosas tinham nas faces expansГµes jubilosas e bonacheironas ; havia mesmo algumas boccas femininas , que se escancaravam com sorrisos pesados no goso de uma satisfaГ§ГЈo papalva e burgueza ; as palmas estalavam e ella agradecia com sorrisos muito assucarados , meneios de cabeГ§a galantes e reque В¬ bros graciosos de cintura . O Antunes agitava-se no seu lugar , tinha na physionomia uma radiaГ§ГЈo alegre e triumphal , quizera que todos soubessem que era sua filha e dizia mentalmente -- Ou nГЈo fora eu seu pai . Depois , Adelina recitou uma poesia , em que se exaltava o Creador e a creaГ§ГЈo com grandes raptos de lyrismo , e a sua voz tinha suavidades e accentos meigos , quando fallava do murmurio das veias crystallinas , do gorgeio das aves , do candido lyrio do valle , ou entГЈo os olhos reviravam-se ao cГ©u na doГ§ura do extasi , referindo-se ao azul do cГ©u , ГЎ scintillaГ§ГЈo das estrellas , ГЎs meiguices do luar , ao concerto harmonioso das vozes da natureza . As impressГµes d' esta noute de festa deixaram no espirito de Adelina como que os vestigios de uma embriaguez suave , entrevira a vida por um prisma novo e seductor , entremostrara-se-lhe uma nesga d' esse mundo a que aspirava , vira um concurso brilhante de senhoras com toilettes da moda , a moda ... essa palavra magica que tinha para ella mysterios e curiosidades febris , e tinha reparado em um grupo de rapazes que tinham pequeninos bigodes muito frisados , com uma rosa a flamejar ao peito , e que a fitavam com uns olhares , que a penetravam de uma sensaГ§ГЈo indizivel , sorrindo e segredando entre si . Desde entГЈo as energias do seu temperamento , que se espraiavam preguiГ§osamente nas exaltaГ§Гµes do mysticismo desviaram-se , como um rio que muda de leito , para as perspectivas de outro mundo que comeГ§ava a revelar-se-lhe . Adelina tinha-se affeiГ§oado a uma outra alumna mais idosa , sentiram-se attrahidas no magnetismo da mesma sympathia . Ernestina erasemi-interna , vinha pela manhГЈ e sahia ГЎ noute , estava em contacto com o mundo externo , Adelina interrogava-a com muita curiosidade , e as revelaГ§Гµes da amiga eram o fio de Ariadne que a guiava em um dedalo de cousas , umas pouco cognosciveis , outras inteiramente ignoradas ; trocavam as suas confidencias , Adelina esclarecia-se . Um dia Ernestina levou-lhe um livro com uma encadernaГ§ГЈo reluzente de arabescos dourados sobre cartonagem branca e polida : era um presentinho de annos que tinham dado ГЎ sua mamГЈ , quando era pequenina . Narravam-se ahi uns amores contrariados e desditosos de uma castellГЈ e de um formoso cavalleiro ; o romance dos dous infelizes namorados era illustrado com gravuras e as duas amigas extasiavam-se na contemplaГ§ГЈo d' aquellas estampas que as impressionavam . Umas vezes era a castellГЈ que se reclinava ao balcГЈo de um castello gothico , encostando a face de um oval correcto a uma das mГЈos com um geitinho leve e gracioso , e seguindo com os olhos ternos uma pombinha , que levava pendente do pescoГ§o uma missiva amorosa ; outras vezes a dama e o cavalleiro deslisavam mysteriosamente pelo carreiro assombreado de um bosque , a cabeГ§a d' ella pendialhe melancholicamente para o peito , caminhava com ademanes languidos e desfallecidos , em quanto que o cavalleiro , abraГ§ando-lhe brandamente a cintura com a outra mГЈo apertava suavemente a mГЈosinha branca d' ella contra o coraГ§ГЈo , ou entГЈo era o cavalleiro que mais alГ©m cahia de joelhos aos pГ©s da sua amada , sentada em um banco rustico ГЎ sombra de um caramanchel , em quanto o rouxinol , escondido nas ramagens , exhalava as notas sentimentaes de um canto terno e apaixonado . Em outra occasiГЈo Ernestina levou-lhe muito em segredo um romance , que a mamГЈ tinha acabado de ler , Adelina leu-o com avidez , ГЎs furtadellas , escondendo-se sobresaltada , amedrontando-se ao menor ruido , estas perturbaГ§Гµes confundiam-se com as commoГ§Гµes da leitura , e toda ella era uma vibraГ§ГЈo , como uma tolha estremecendo ao vento . ApГіs este romance vieram outros , que a Ernestina subtrahia da collecГ§ГЈoda mamГЈ . A imaginaГ§ГЈo povoava-se-lhe de imagens e visГµes excitantes , e desde entГЈo comeГ§ou aterosomno agitado , cortado de sonhos em que lhe appareciam as formosas castellГЈs brancas como sudarios , banhadas na luz phantastica do luar , suspirando de amor e requebrando-se para o pallido menestrel , que dedilhava um alaude melodioso e suave como uma harpa eolia , na serenidade de uma noute tepida e perfumada . Ou entГЈo eram mulheres decotadas , que lhe appareciam com a sua bella nudez scintiliando de brancura , como um polido marfim ГЎ luz dos candelabros , envolvidas na atmosphera calida e acre dos bailes , como plantas tropicaes em uma estufa vaporando aromas exquisitos , e arrastadas no turbilhГЈo da valsa , enlaГ§adas nos braГ§os de homens fataes que teem scintillaГ§Гµes magneticas no olhar . Tudo eram amores , suspiros , mulheres e homens extraordinarios , amantes bellos , como Adonis , grandes como heroes , com musculos de aГ§o debaixo de uma cutis branca e assetinada , meigos e humildes com as damas , altivos e formidaveis , como Sforza , diante do perigo , e impellida n ' este turbilhГЈo de phantasias perturbadoras as liГ§Гµes descuravam-se e entrou de perder aquella docilidade , que a principio tinha feito o encanto das boas irmГЈs religiosas , em cujo conceito comeГ§ou a decahir . Por este tempo teve a noticia do fallecimento de sua mГЈe e pranteou-a com as manifestaГ§Гµes ruidosas de uma dor intensa . Era o primeiro halito mau da vida que lhe crestava o viГ§o exuberante do coraГ§ГЈo , esta ideia de morte , que pela primeira vez lhe roГ§ava a alma banhada no fluido ceruleo da sua puberdade , como um sopro pestilente e sinistro abalou-lhe todo o ser , e Adelina entregpu- se a essa dor com toda a intensidade da irritabilidade nervosa , que ha tempos a dominava . E depois observГЎra como eram vehementes todos os sentimentos dos heroes e heroinas dos romances , que conhecia ; o goso , como a dor , explosiam n ' aquelles coraГ§Гµes privilegiados e calcinavam como lava . Por isso ella malleava-se aos seus ideaes . As religiosas condoeram-se de tamanha angustia , e assentaram entre si que Adelina tinha um grande coraГ§ГЈo e sГіmente era pena que a cabecinha fosse um tanto leve . Nervosa como andava , e excitada pela intensidade da sua dor , enfermou e recolheu-se ГЎ cama com uma pontinha de febre . O Antunes foi informado da doenГ§a e acudiu ao leito da filha , logo que prestou as ultimas homenagens ГЎ finada . A companhia da filha era-lhe indispensГЎvel agora que se via tГЈo sГі , e tanto mais lhe era necessГЎria n ' esta occasiГЈo em que precisava d' ella para o governo da casa . Levou-a comsigo : tinha entГЈo dezeseis annos . Nas festas escholares o Antunes tinha-a visto representar comedias em francez , recitar poesias em inglez e sob a pressГЈo dos seus dedos o piano cantava ruidosamente . Que mais queria elle ? Na terra ninguem apresentava uma filha com tГЈo esmerada educaГ§ГЈo . Adelina deixou o collegio com grande contentamento ; a obediencia , a disciplina e o regimen collegial repugnavam ГЎ sua natureza a um tempo fogosa e indolente , morbida e excitavel ; as suas aspiraГ§Гµes eram para uma ambiente livre e bem desafogado ГЎs phantasias que lhe agitavam o cerebro . O seu espirito tinha uma actividade frenetica e o corpo uma indolencia morbida , aprazia-lhe recostar-se , muito repousada , na prostraГ§ГЈo de um suave languor e o pensamento perdido em devaneios , agitando-se febrilmente ao sabor de imaginaГ§Гµes perturbadoras . Os romances que lГЄra no collegio foram apenas um estimulante , que lhe ateou uma sede ardente , e trazia o desejo avido , irritante , de se dessendentar no manancial d' estas leituras , pediu livros e o Antunes approvou esta vocaГ§ГЈo litteraria , que lhe dava uma ideia elevada da filha . A principio Adelina tinha-se voltado para os aspectos calmos da natureza , para a serenidade das paisagens pittorescas , deliciava-se na perspectiva das pradarias virentes ; impressionava-se com as sombras rumorosas , com os silencios melancolicos dos bosques , com as agulhas arrojadas dos montes alpestres e alterosos ; extasiava-se com as descripГ§Гµes poГ©ticas dos quadros aldeГµes ; sonhava pastorinhas bucГіlicas como as de Florian , uma cabana com um fumosinho na chaminГ© , espreitando entre alfombras de verdura ; devaneiava com a frauta do pegureiro e mais o seu rebanho com o badalar melancolico do chocalho , que acorda os eccos tristes da montanha . Fazia excursГµes ao campo , madrugava para vГЄr nascer o sol , gostava de beber uma chavena de leite quente , mugido de fresco , esquecia-se a lГЄr ou a scrsmar , ГЎ sombra das arvores , tranquillamente repousada no seio voluptuoso da natureza , inebriada das serenidades dulcissimas do campo , ou , surprebendendo o poetico despertar da natureza , ficava-se a contemplar o deslumbrante espectaculo de uma aurora gloriosa , aspirava com delicia as frescas auras matutinas e de envolta todos os arroubos de um lyrismo exaltado . Mas por fim a contemplaГ§ГЈo da natureza nГЈo bastava ГЎ frenetica actividade do seu espirito , tinha o campo muito ГЎ mГЈo , a nota pastoril entrava-lhe por demais nos hГЎbitos , esta sensaГ§ГЈo com a diuturnidade do uso continuo gastava-se depressa e d' este modo o perfume poetico do campo converteu-se em um estimulo ГЎs exigГЄncias febricitantes do seu temperamento . Voltava-se entГЈo com mais ardor para o tumultuar das scenas romanticas , que lhe fervilhavam na cabeГ§a e lia novos livros com uma soffreguidГЈo gulosa . E na sua phantasia tudo eram mysterios de amor , aspiraГ§Гµes apaixonadas , amantes delirantes de paixГЈo , decididos aos maiores sacrificios para realisarem a uniГЈo de duas almas que se comprehendem e attrahem -- jГЎ antes de se conhecerem -- nos effluvios de uma magnetica sympathia , como se o destino os fadara a viverem enlaГ§ados para todo o sempre , e sonhava com rivaes que se batem como leГµes em duelos de morte , donzellas que desmaiam ou soluГ§am com os cabellos soltos pelos hombros , vestidas de amplas e alvissimas musselinas , prostradas , como martyres , sob a vehemencia d , as cГіleras paternas , e depois encerradas em conventos e castellos , encostando as faces pallidas ГЎs grades frias , na soturnidade da algidez monacal . Outras vezes appareciam-lhe nas suas visГµes mancebos de grande belleza , ora enfuriados como Orestes , ora cahindo nos braГ§os das suas amadas , meigos como pombos , depois de terem trepado pela escada entranГ§ada de seda , ou entГЈo era a toada secca do galopar de dous cavallos perdendo-se ao longe em uma nuvem de poeira , e a confusГЈo e o espanto cahindo , como um raio , no meio do esplendoroso turbilhГЈo de um baile , ao correr de bocca em bocca a noticia do rapto da formosa Alonza . Adelina vivia intimamente com todas estas visГµes do romantismo , sensitiva e nervosa , abrazava-se na chamma de morbidos anceios e o sentimentalismo invadia-a , penetrava-a fibra a fibra como um rio que trasborda do leito e alaga os campos infiltrando-os de humidade atГ© ГЎs profundezas dos seus seios ubГ©rrimos . Por vezes ficavase prostrada de uma languidez sensual a contemplar o vacuo com ura olhar avelludado e humido ; mergulhando a vista no deslumbramento profundo do cГ©u julgava-se banhada nas ondas sonoras de ura fluido azul e o seu pensamento voava nas espiraes de um devaneio vaporoso para um ideal fascinante de amor . Depois sorria , com a alma suavemente dilatada , ГЎs suas illusГµes luminosas , embalando-se toda fremente ao canto magico desses dous passarinhos azues e cor de rosa , que se lhe aninhavam no coraГ§ГЈo -- o amor e uma mocidade ardente -- e todos estes dourados reflexos do prisma da sua viva imaginaГ§ГЈo projectavam-se em um iris esplendido sobre o mundo exterior . O Antunes tinha-lhe entregado o governo da casa , mas passado algum tempo sobresaltava-se do rumo que as cousas levavam -- Diacho ! a casa anda ГЎ matroca ... Que falta me faz a minha Joanna ! ... TambГ©m nГЈo admira , para que dei educaГ§ГЈo ГЎ pequena ? ... NГЈo era para ser uma senhora ? E depois nГЈo tem ella uns instinctos mesmo finos ? Tinha que ver andar agora mettida entre as panellas ! Ora nГЈo estava mГЎ , seccar a pequena com cousas grosseiras ! Mas entГЈo lГЎ ia tudo quanto Martha fiou e adeus delicadezas do collegio e aquelles ares que parecem mesmo de uma fidalga ... E o dinheirГЈo que se gastou ? Vispere ... lГЎ ia tudo pela agua abaixo ... EntГЈo ! ... nГЈo a chamou Deus para os azeites e vinagres , Г© outra a sua tineta . Ora adeus ! Faz ella muito bem . As mГЎs linguas ladram ? Pois que ladrem ГЎ lua , que rebentem de inveja . Sim senhor , estou no meu direito , hei-de fazer o que quizer ao meu dinheiro , faГ§o gosto n ' isso , acabou-se . E o Antunes , pouco a pouco , ia-se intromettendo no governo domestico e Adelina , com a cumplicidade do pai , ia declinando a tarefa de dirigir a casa -- Que aborrecimento ! havia lГЎ nada mais estupido do que interromper uma situaГ§ГЈo interessante de um romance para ir aturar a velha Thereza , que era capaz de seccar uma figueira -- E que estava tudo pela hora da morte , que d' antes a vida era um louvar a Deus de barata -- Ora que se avenha , com esta secca aos ouvidos em pouco tempo estava mais estГєpida do que um peixe -- E estirava-se preguiГ§osamente na sua poltrona , que fora um presente do Antunes . A mobilia do Antunes era muito espartana , Adelina appetecera uma cadeira ГЎ Voltaire e o apetite fora immediatamente satisfeito . Era alli muito refastelada que ella lia os seus romances , ou contemplava ГЎ janella as perspectivas cambiantes das nuvens , dilatando a alma na fluctuaГ§ao de vagos desejos , na sua attitude favorita , com o rosto apoiado ГЎ mГЈo esquerda e o dedo indicador estendido , fazendo pressГЈo na maГ§ГЈ do rosto de uma carnaГ§ГЈo tenra e polpuda -- Como seria bom amar , encontrar uma alma irmГЈ da sua , realisar a uniГЈo de dous coraГ§Гµes que se comprehendem ! Romeo e Julieta vГЄem-se uma vez ... uma vez sГі , um olhar bastou , um olhar de uma attracГ§ГЈo magnetica e fatal e eis as suas almas fundidas na mesma volupia de amor para todo o sempre ! ... Onde estava essa outra alma irmГЈ da sua ? ! ... Este pensamento envolvia-a em uma atmosphera intensamente amorosa , que ella respirava como um perfume mordente que estonteia . E sentia um desejo intenso de reclinar a cabeГ§a no hombro do amado , aspirando o poГ©tico perfume de uma noute tepida de luar , repassada de uma serenidade suavemente melancholica , quando sobre as perspectivas da natureza se espalha uma tenue nebrina , que esfuma a paisagem na transparencia . de um vГ©u finissimo , como se dedos de fadas tivessem esparzido no ar um pГі prateado e muito leve . O collo arfava-lhe com uma ondulaГ§ГЈo larga , aquelles olhos de um castanho escuro , que tinham reflexos negros , velavam-se humedecidos de uma profunda languidez e um estremecimento delicioso percorria-lhe o corpo , como se pelas veias se escoasse um licГґr calido e dГґce . IV A filha do Antunes fazia sensaГ§ГЈo na terra e era requestada . Г‰ verdade que tinha suas excentricidades , cousa atГ© entГЈo nunca vista no lugar ; algumas chegavam a escandalisar os soalheiros , mas nГЈo faltavam tambem os juizos benevolos e complacentes . Aquillo por fim havia de passar com o tempo , verduras ! Nem era para admirar , se o Antunes estragava a rapariga com mimo e era pena , porque a Adelina era devГ©ras linda , linda , e um dos melhores partidos da terra . E o filho do tabelliГЈo , que tinha escripto uns versos na -- Aurora do Minho -- acrescentava -- E tem um nГЈo sei quГЄ de acirrante na physionomia , o que quer que seja de vago e indefinivel que impressiona e perturba . Adelina relanceou a vista pelo circulo dos seus adoradores . Evidentemente o Ernesto , o filho do tabelliГЈo distinguia-se , as suas fallas eram alambicadas , era poeta e tinha uma voz de tenor . Nunca estudГЎra canto , mas era uma vocaГ§ГЈo , todos o diziam . ГЃs vezes elle passava-lhe pela porta -- a cantar com um timbre de voz muito terna a romanza do Trovador -- Deserto sulla terra -- acompanhando-se ao som dolente de uma viola . Aquella voz chorosa , vibrando no ar calado da noute , tinha para Adelina um sabor romГўntico , vinham-lhe ГЎ imaginaГ§ГЈo trovadores , menestreis , pagens formosos com a pluma a ondear na gorra de seda . Ernesto tinha ido uma vez ao theatro lyrico , no Porto , estudГЎra com muita attenГ§ГЈo os modelos do dandysmo , conseguindo distinguir-se entre os seus conterrГўneos nos ares , nas attitudes , e tinha uma maneira chic de pГґr o chapГ©u . E depois havia n ' elle um ar interessante de melancholia , sobretudo quando , no silencio da noute , ГЎ luz da lua , soltava a tremula toada da sua voz sentimental . Adelina comeГ§ou a interessar-se pelo seu trovador nocturno e envolvia-o , sempre que o encontrava , na meiguice de um olhar sympathico . Acceitou lhe uma carta , era uma poesia muito lyrica em que os vocГЎbulos -- imagem querida , anjo de brancas azas , pomba dos meus anceios , tada dos meus sonhos , se atropellavam com as phrases coraГ§ГЈo desolado , suspirosos anhelos , tristezas sepulcraes . Ficou muito lisongeada vendo-se cantada em verso . E elle tinha umas attitudes tГЈo scismadoras , tГЈo tristes ! Parecia infeliz , coitado ! E inte В¬ ressava-se pelo Ernesto . Era alto , delgado ; de noute e nas romarias usava de jaleca com alamares e fechos de prata , calГ§a estreita muito repuxada ГЎ perna , facha azul de seda , e na cabeГ§a punha um chapГ©u desabado amarellado com uma inclinaГ§ГЈo que ihe dava um ar interessante . Agradava-lhe aquella figura , que tinha flexuosidades no porte esbelto , sobretudo quando o viu assim trajado , arrastando a voz em doГ§uras apaixonadas , muito quebradas de uma tristeza languida , com a sombra do chapГ©u a esbater-se-lhe no rosto pallido , que sobresahia entre os tufos de uma caforina riГ§ada . Approximava-se o dia da romaria da Senhora||_da|_Athouguia da||_da|_Athouguia Athouguia|_da|_Athouguia , na proxima freguezia da Abelharda ; era um arraial afamado , havia baile em casa das Menezes , costume tradicional que passava de geraГ§ГЈo em geraГ§ГЈo , raras vezes interrompido . Concorria tudo o que havia de melhor nas convisinhanГ§as , sahiam das arcas as casacas , que a diuturnidade das dobras zebrava com grandes vincos ; as barbas escanhoavam-se atГ© ao sangue ; espanejavam-se vestidos espaventosos com grande profusГЈo de laГ§arias ; ia-se de todos os modos , a cavallo , em todo o genero de vehiculos ; as senhoras empilhavam-se em char- Гѓ bancs escancellados , soltando gritinhos aos solavancos da carriola ; organisavam-se burricadas ; havia risadas e pilherias com as peripГ©cias joviaes da jornada . Adelina resolvera ir a cavallo , era uma ideia que a seduzia e que , ha longo tempo , lhe trabalhava na cabeГ§a -- cavalgar com as pregas abundantes do seu longo vestido de amazona a cahirem com elegancia e a gaze azul-ferrete a fluctuar ao vento . Ensaiava-se com reiterados exercicios equestres na azemola russa , em que o papГЎ se bifurcava muito escarranchado , quando em tempo fazia as suas excursГµes aos mercados de gado , encommendГЎra no Porto um vestido de amazona e insinuГЎra ao Ernesto que fosse tambem a cavallo . Como seria bom encontrarem-se na estrada , segredarem palavras de amor , galoparem ao lado um do outro , sentindo nas faces os beijos tepidos da aragem ! Ernesto empallideceu -- Montar a cavallo , hein ! Eu que nГЈo sei nada , que entalaГ§ГЈo ! Mas nГЈo ha remedio ... O dia tinha chegado ; Adelina saltГЎra , radiosa , sobre a sella da egua russa , sentia-se engrandecer dentro d' aquelle trajo , dilatava o peito , como se quizesse aspirar ideias grandes . O dia amanhecera quente , ameaГ§ando calor abafado e dormente ; o disco solar que se erguera muito afogueado ia incandescendo o ar immovel , sem uma nuvem , peneirado apenas de uma nevoasinha muito diaphana que lhe dava uns tons baГ§os , com o aspecto de um metal fosco que faisca . Adelina encontrou-se com Ernesto ha estrada . Estava mais pallido , um suorsinho humedecia-lhe a raiz dos cabellos , caminhavam de vagar , echoava a sonoridade descanГ§ada das patas dos cavallos , o couro das sellas rangia . Iam calados , Adelina interrompeu o silencio . -- E se nГіs galopassemos ? Galopar ! sentir a brisa acaricial-os , como o roГ§ar de azas invisiveis . E ao pensamento juntou a acГ§ГЈo , mettendo a egoa a galope . Ernesto tinha enfiado , uma contracГ§ГЈo nervosa opprimio-lhe o ventre , mas automaticamente , meio atordoado , seguiu Adelina . O cavallo teve uns movimentos bruscos , sacudidos , que o abalaram , atarantou-se , os estribos saltaram dos pГ©s , ia perdendo o equilГbrio , enevoou-se-lhe a vista e encolhido , estonteado , agarrou-se freneticamente ГЎs clinas do animal . Houve gargalhadas , e Adelina , que a principio se afogueГЎra de vexada e colerica , soffrendo uma desillusГЈo penosa , tambem riu depois com o caso alegre . -- E entГЈo nГЈo estivera quasi a apaixonar-se por aquillo ! Que figura tГЈo ratona ! ... Tambem que ideia desastrada , namorar-se do filho do tabelliГЈo ! Tontinha ! que podia ella esperar d' alli ... uma familia relles ? ... Era bem feito , quem a mandГЎra descer tГЈo baixo ? ... E enchia-se de um grande desdem pelo Ernesto , sentia-se enjoada d' aquella inclinaГ§ГЈo de genero chinfrim , fazia-se corada atГ© ГЎ raiz dos cabellos e promettia de si para comsigo ser mais cautelosa para o futuro . Impregnava-se no perfume de aspiraГ§Гµes grandes , absorvia-se nas perspectivas deslumbrantes da vida elegante , nas suas leituras comeГ§ava agora a preferir as scenas da moderna vida parisiense , e extasiava-se diante das pallidas mulheres do faubourg Saint Germain , de uma fina elegancia , de uma distincГ§ГЈo irreprehensivel , que pisam com o seu pequenino pГ© de curva aristocratica os tapetes molles e avelludados , ou devaneiava com os homens fascinadores , umas vezes montando com garbo cavallos de fina raГ§a , guiados na apparencia com uma negligencia toda fidalga , mas realmente domados vigorosamente com uma mГЈo de redea firme , outras vezes surgindo com soberana fascinaГ§ГЈo entre as pregas abundantes dos reposteiros assetinados . E sonhava com todas as energias do amor , que rescende aromas caros e se aninha maciamente entre rendas de Chantilly e as fofas tapeГ§arias dos boudoirs acolchoados de setins opalisados , vaporando as febres da paixГЈo e o aroma das violetas . V Decorreram assim dous annos acalentandose ao fogo de todos estes sonhos excitantes , nutrindo vagas ambiГ§Гµes , accumulando desejos nГЈo satisfeitos , sedenta de sensaГ§Гµes . Tivera ainda outras desillusГµes , nГЈo se illudira sГі com Ernesto e jГЎ sentia desalentos . -- Tinha uma mГЎ estrella -- dizia -- nao fora fadada para ser feliz , tambГ©m como havia de realisar o seu ideal de ventura na mesquinhez d' aquella vida aldeГЈ . E desesperava de realisar alli os seus rosados sonhos de felicidade , sentia-se suffocar n ' aquelle meio insignificante e a sua alma dilatavase para mais largos horisontes . Mas Luiz de Albuquerque fallecera , o filho tinha chegado de Lisboa . Lisboa ! ... como lhe soava bem ao ouvido esta palavra ! Parecia-lhe que lГЎ ao longe , no sul , se reflectiam uns esplendores da vida parisiense . Luiz alguns dias depois da morte do coronel veio visitar o Antunes , Adelina appareceu nasala , fitava-o com uma grande contensГЈo de espirito , estudava-o . Que grande differenГ§a de todos os outros ! Tinha um certo desempeno e uma apresentaГ§ГЈo facil , estava ГЎ vontade , sem a grosseria burgueza dos seus conterraneos ; e tinha umas falias cheias de importГўncia , fazendo deslisar a conversaГ§ГЈo atravez das seducГ§oes da vida da capital , faiscando-lhe a cada instante nos labios o nome de algum parente illustre , ou referencias pomposas a uma prima condessa . Adelina tinha deslumbramentos e insensivelmente pensava que aquella mГЈo fidalga podia abrir-lhe as portas de uma existГЄncia , para que se sentia fadada . Luiz pelo seu lado achou esplendida a filha do Antunes , -- Quem havia de dizer , hein ! que aquelle lГґrpa fosse o pai de uma creatura tГЈo apetitosa ! -- Mas Г© admiravel esta pequena ! -- dizia com os olhinhos pequenos a faiscar desejos -- Olha se a vissem em Lisboa ! Ha por lГЎ nada que se lhe compare ? ... Fallavam da Vimeiro ... uma delambida ao lado d' esta . E passava em revista as perfeiГ§Гµes de Adelina . Que frescura respira esta mulher deliciosa ! E depois aquelle corpo tГЈo bem talhado , aquelle pulso que denuncia um braГ§o roliГ§o e bem feito , a curva saliente e firme do seio , o pescoГ§o muito redondinho , de uma alvura baГ§a , macia , ligando-se na harmonia de uma suave ondulaГ§ГЈo a uns hombros cheios e bem contornados , deixam adivinhar o desenho correcto de umas formas de modelo , sem demasias de nutriГ§ГЈo . SГі aquelles beiГ§os carnudinhos e vermelhos fazem apetite . O Antunes continuava a apparecer frequentemente na quinta da CortegГЈ . -- Porque emfim -- dizia -- um homem era para as occasiГµes e era muito obrigado ГЎquella familia . Estreitavam-se as relaГ§Гµes , o Antunes e a filha instavam com a mГЈe de Luiz para que sahisse , era preciso passear , espairecer , ella andava fraquinha , abatida , e a saude primeiro que tudo . E sahiram todos a passear , o Antunes caminhava pausadamente pela estrada , ficava-se atraz com D. Carlota , parava de quando em quando para accentuar uma passagem do caso interessante que ia relatando e animando com largos gestos ; contava a sua vida , os bons negocio s que tinha feito . GraГ§as a Deus tinha sido muito feliz . Que elle , por si , nГЈo se importava com riquezas , mas pela filha , isso sim , estimava-as . E nГЈo era por se gabar , mas a sua Adelina havia de ficar cheia como um ovo , levava para a cova esta consolaГ§ГЈo , podia fazer figura e gastar como uma fidalga . Luiz e Adelina adiantavam-se insensivelmente , a principio havia uns silencios enleados , sentiam debaixo dos pГ©s o rangido da areia do macdam ou o estalido de alguma folha secca pisada . Era no outomno , as arvores comeГ§avam a perder a redondeza ramulhada e verde ; o afogado das ramagens adelgaГ§ava-se ; para alГ©m grandes massas negras de montados boleavam-se em verduras escurentadas de pinheiraes ; os ultimos raios do sol , espalhando uma cor alaranjada , faziam um resplendor de ouro muito vivo nas folhagens rareadas , de uma amarelidГЈo tostada , e depois o horisonte afogueava-se em vermelhidГµes que percorriam todas as gradaГ§Гµes de colorido , e nas alturas o cГ©o esbatia-se na uniformidade de uma cГґr opalina . Adelina sentia-se penetrada de todas as suavidades em que se reflectiam as meias tintas outonaes , ouvia com recolhimento os rumores melancolisadoresdo dia que expira , o fremito das folhas que cahiam como lagrimas , o chiar triste de algum carro ao longe , o latido de um cГЈo , o toque dolente de Ave-Marias . As vezes ouviam-se os sons longinquos de algum campanario que repicava festivamente , os foguetes estalavam com um estrepito secco , abafado na distancia , largando uma fumarada , como novellos de algodГЈo enlameado , e ella mergulha va a vista na profundidade calorida do poente com um olhar docemente quebrado . No horisonte agglomeravam-se nuvens violaceas sobrepostas de massas plumbeas , e orladas em baixo de manchas sanguineas e uma melancolia suave e feliz da va-lhe uma sensaГ§ГЈo de bem-estar ineffavel . Passaram assim muitas tardes , Г s vezes havia durante o passeio peripГ©cias imprevistas ; de repente surdia de um atalho uma manada de bois , Adelina soltava um grito de susto , instinctivamente chegava-se para Luiz , ficavam muito juntos , as mГЈos apertavam-se , Adelina purpureava-se e sentia o sangue escaldar-lhe as veias . Na volta do passeio o Antunes e a filha acompanhavam D. Carlota atГ© ГЎ porta de casa , e vinham as instancias para descanГ§arem , passarem um bocadinho da noute . E foi assim que nos contactos d' aquelle galanteio Luiz se foi apaixonan В¬ do . D. Carlota deixava-os , nГЈo lhe desagradava que o filho casasse rico , o Antunes esse esfregava de contente as grossas mГЈos com saliencias nodosas nos dedos . Um dia Adelina foi pedida em casamento pela mГЈi de Luiz . O Antunes procurava dissimular essa alegria e Adelina interrogada deu uma resposta afirmativa . E porque nГЈo ? NГЈo era Luiz um marido com todas as condiГ§oes para realisar o seu ideal de felicidade ? Que mais podia ella desejar ? Luiz era fidalgo , ella rica , gosariam a vida , reflectirse- hia de seu marido uma grande consideraГ§ГЈo sobre ella . Ter um marido , um homem que se apossaria de toda a sua pessoa , como esta ideia a perturbava ! Os novos aspectos que iam transformar a sua existencia excitavam-lhe curiosidades latentes e sentia nos nervos uma vibraГ§ГЈosinha deliciosa , o seio dilatava-se-lhe na sensaГ§ГЈo de uma vaga voluptuosidade . E nГЈo era isto amor ? Na noute anterior ao casamento teve um somno agitado , acordou muito cedo com um grande quebranto e tinha os olhos pisados . O dia amanhecera morrinhento , cahia uma chuvasinha que penetrava o corpo de humidade , sentiu calafrios , parecia-lhe que aquella humidade nevoenta se condensava na sua alma , e ficou de muito mau humor por nГЈo ter muito sol , muita luz para o seu casamento . Mas esta sensaГ§ГЈo desconsoladora dissipou-se depressa e teve uma sensaГ§ГЈo de jubilo e orgulho , ao entrar em casa de Luiz , quando viu dous retratos a oleo , que pendiam da parede sobre o sofГЎ , encaixilhados em molduras douradas muito apparatosas , com brasГµes sobrepostos . O retrato do coronel aprumava se marcialmente ; o farto bigode grisalho , terminando na espessura de umas guias compridas , dava-lhe uma catadura mavorcia ; pousava arrogantemente a mГЈo esquerda sobre os copos da espada , e a direita pendia segurando um par de luvas muito estiradas cahindo inertes sobre a perna ; a cabeГ§a alteava-se sobre um pescoГ§o de touro entalado na gola da farda . Na outra moldura apparecia a figura esguia de D. Carlota , de pГ© , com um ar de morbidez anemica , o cabello em bandГіs collavase ГЎs faces emagrecidas , a mГЈo direita cahia delgada , escorrida sobre a redondeza superabundante do vestido de seda , a outra apoiava-se levemente com as pontinhas dos dedos sobre uma mesa , coberta com um panno verde e no corpete do vestido preto , em volta do pescoГ§o , destacavam alvuras de um colleirinho liso , largamente espalmado , d' onde se escapavam dous fios , cor de gemma de ovo , prendendo-se a um pequeno relogio pendente da cintura , que se adelgaГ§ava atГ© terminar em bico . Viveram contentes os primeiros tempos . Luiz estava radiante , decididamente sua mulher era adoravel , descobria-lhe todos os dias novos encantos . Sentia-se bem e tratava de se accommodar regaladamente na existГЄncia . O Antunes dotГЎra a filha bizarramente , o dote levara a fartura ГЎ casa da CortegГЈ , depois da morte do sogro ainda seria melhor , o futuro nГЈo dava cuidado , tinha uma mulher bonita , agora era sГі conchegar-se n ' este ninho macio e gosar . NГЈo seria isso difficil para elle , era de genio accommodaticio , gostava de boa mesa , mas nГЈo comia muito . Trazer a pansasinha contente , isso sim , sobretudo o seu regalo era beberricar bebidas muito alcoolisadas e um cafГ©sinho forte e depois gostava de nГЈo fazer nada e taramelar muito , nГЈo que elle tivesse cousas sГЎbias a dizer , ou fosse difficil na qualidade das palestras ; mas era expansivo , de humor alegre e igual , o que queria era espraiar-se em cavaqueiras , atordoar-se nos ruidos da parolice e em tendo quem lhe ouvisse attento a sonoridade Гґcca do seu palavriado balofo , estava contente . Usava trajos vistosos com muitas cores , toda a sua pessoa reluzia e respirava um bem-estar sereno e pachorrento na expansibilidade de uma nutriГ§ГЈo moderada , que dava uma ideia consoladora de uma carne folgada e uma acГ§ГЈo cerebral pacatinha . Costumavam montar a cavallo , Adelina gostava muito de galopar , sentia uma impressГЈo voluptuosa em aspirar , com as narinas levemente dilatadas , o ar agitado , que lhe fustigava as faces , ficando depois offegante com o sangue muito agitado , que lhe punha uns tons quentes na carnaГ§ГЈo das faces . Depois mettiam os cavallos a passo . Adelina relanceava pelos aspectos tranquillos da natureza ura olhar , que se dulcificava sob o influxo sereno de uma tarde amena , que vai cahir nas melancolias do crepusculo . As patas dos cavallos faziam um echo sonoro e pausado na calada serenidade da tarde . E Adelina , na felicidade da sua lua de mel , sentia que o pensamento se lhe abria , como d' antes , aos encantos da natureza ; communicava ao marido as suas impressГµes e queria admirar com elle as nuvensinhas nas alturas , de uma grande suavidade rosada , ou a lua que emergia phantasticamente muito afogueada na sua rotundidade por traz das montanhas , em quanto que em baixo , nos valles , os vapores da terra e os fumosinhos dos casaes se alastram , como um lago de transparencia lactea . Luiz relanceava para tudo com os olhos mornos e desbotados a vista inexpressiva . -- Era bonito -- dizia -- parecia uma vista de theatro . Em S. Carlos , na Norma , havia uma scena de luar , tambГ©m era assim a lua a sahir por traz de uns montes , era muito bem feito . Adelina achou a resposta chata , mas as palavras Norma , Bellini , deram-lhe aos nervos uma titillaГ§ao , e as suas ideias mudaram de rumo com exaltaГ§ГЈo , como a garimpa de uma torre que vira ao vento bruscamente , e comeГ§ou a inquirir o marido ГЎcerca das bellezas da musica sentimental do melodioso cysne siciliano . Luiz informava largamente , com emphase , contente de poder exhibir uma sciencia banal de noticiГЎrio , conservada no ouvido como um echo das palestras de botequim ; e cantarolava trechos da opera para melhor elucidaГ§ГЈo do assumpto . -- Mas gostava mais do fado , era exquisito ? ... Mas entГЈo ... Era uma telha , tinha-lhe dado no goto , para elle nГЈo havia nada como um fado do Vimiozo , bem choradinho , bem repenicado . E depois estava muito na moda , haviam de cantal- o ao piano . E os olhinhos baГ§os e frios espertavam , como uma braza mortiГ§a , que se aviva com um sopro . Adelina cahiu em um silencio meditativo . O crepГєsculo descia , a lua mais alta , com uma cor de phosphoro , espalhava uma luz muito lavada , as estrellas comeГ§avam a tremeluzir pallidamente no azul que desmaiava em uma uniformidade cor de perola , a nevoa dissipГЎra- se , alГ©m o rio descobriase como um reptil serpeando entre arvoredos arripiados pela aragem , e a lua entornava-lhe sobre a superfГcie encrespada uma fusГЈo de diamantes , que se alargavam em uma prolongaГ§ГЈo trГ©mula , como uma couraГ§a de escamas prateadas . Approximavam-se de casa . Adelina ia um tanto seccada , com uma fadiga nervosa que a azedava . Morcegos esvoaГ§ando quasi- lhe roГ§avam as azas pela cara ; ao passar pela Igreja as corujas soltavam o estridor leve das suas piadas surdamente arripiadas ; aldeГµes derreados pelo trabalho passavam saudando humildes , pateando os tamancos com um som triste . Passaram dous mezes . Luiz envolvera-se commodamente em uma atmosphera de habitos egoistas , dispendia-se em cavacos pela loja de tabacos da Jacintinha do brazileiro e pelo botequim , jogando partidas de bilhar e saboreando licores e Adelina presentia que a sensaГ§ГЈo nova do casamento se ia gastando como um vestido que perde a frescura com o uso . A vida convertia-se outra vez em uma regularidade monotona que a fazia bocejar , formava-se em volta d' ella um circulo de hГЎbitos pautados que a opprimiam , como um aro de ferro , que lhe suffocava a vitalidade do espirito e todas as expansГµes da intelligencia ; o seu viver affiguravase lhe seccante e somnolento , como o movimento incessante e modorrento de uma nora , irritante como pingos de agua que cahem na cabeГ§a com uma regularidade monotona e compassada , e a existГЄncia assim continuada apparecia-lhe como uma comprida estrada chata e arida , sem os relevos do pittoresco , sem o colorido da paisagem . Surdiam as revoltas do temperamento ; o seu humor perturbava-se , azedava-se , tinha impaciencias , movimentos desordenados no caracter . Umas vezes o teclado do piano cantava vibrantemente ; pelas janellas abertas , illuminadas , soltava-se uma torrente atabalhoada de notas engalfinhadas , que deixavam cahir uma grande sonoridade no silencio aldeГЈo , outras vezes decorria uma temporada sem pГґr as mГЈos no teclado . Se ella tivesse um auditorio , um auditorio brilhante ! Mas tocar sГі para ella ! ... Luiz adormecia muitas vezes ao som do instrumento . E sentia dentro de si um vacuo profundo , uma grande desconsolaГ§ГЈo inundava-lhe a alma , sentia-se invadir de um tГ©dio , como se um nevoeiro espesso lhe envolvesse o cerebro . E sentava-se ГЎ janella , banhando-se no luar , fitando o espaГ§o docemente illuminado e dilatava o peito , com um suspiro sentimental , na vehemencia de um vago anceio . A principio Luiz parecia-lhe apaixonado , cercava-a de attenГ§Гµes carinhosas , mas Adelina ia notando que o enthusiasmo arrefecia , queixava-se , vinham os amuos ; os seus bellos olhos , orlados de grandes pestanas , que lhe realГ§avam o brilho negro , velavam-se de humidade , como uma luz que amortece atravez de um vidro coalhado ; uma lagrimasinha tremeluzia ao canto do olho , como uma gota de orvalho na extremidade de uma folha , rolava pela face e , atravez dos beiГ§os vermelhos , infiltrava-lhe um sabor amargo . Era o primeiro fГ©l da vida . Estas scenas repetiam-se , Luiz protestava a energia inalterГЎvel do seu affecto , mas ia dizendo mentalmente , que sua mulher era impertinente e extravagante com as suas exigГЄncias de adoraГ§ГЈo perenne . Mas as desillusГµes continuavam , e ella queixava-se do seu destino , era muito infeliz ! Que mГЎ sina a sua nascer em uma aldeia ! Como havia de encontrar alli uma alma capaz de a comprehender , de se elevar atГ© ГЎ sua ? DecepГ§Гµes sobre decepГ§Гµes ! Illudira-se tambem com seu marido , as apparencias enganaram-na , comtudo tinha desculpa , elle vinha de Lisboa , como havia ella , n ' aquella terra de rusticos , de comparar , escolher ? ... Mas tambГ©m jГЎ era infelicidade , quem havia de prever que um homem educado em Coimbra e Lisboa fosse tГЈo insignificante , tГЈo chato ? De musica nГЈo entendia senГЈo o fado , letra redonda nem a podia ver ! ... o parvo ... Que mГЎ sorte ! era a fatalidade que a perseguia ... E Adelina sentia-se elevada a grande altura , comparando-se ao marido , olhava-o com certa desconsideraГ§ГЈo , vinham-lhe umas vaidadesinhas que a enchiam de um enjoo desdenhoso . Mas no intimo da sua alma sentia que seria para ella muito mais agradavel estimar , respeitar seu marido . Como seria bom se tivesse um homem , um verdadeiro homem que se lhe impozesse irresistivelmente , que ella adorasse ! ... -- Mas agora nГЈo tinha remedio ... pois que remedio havia de ter ? ... agora era soffrer , conformar-se ... Mas era triste , triste ! ... viver assim toda a vida , renunciar ao amor para sempre ... nГЈo estava mГЎ ... E revoltava-se contra o seu destino , sentia umas fadigas e um mal-estar que lhe dava um quebranto no corpo e um desfallecimento desconsolador no espirito , procurava distracГ§ГЈo na leitura , lia muito , com ardor , com febre , mas o amor cada vez maislhe doudejava de redor com as suas azas luminosas , como uma borboleta em volta da luz . A casa , onde vivia , estava soterrada em um lugar soturno , era uma baixa , cercada de serranias , que se contornavam duramente a distancia ; das janellas do seu quarto , para alГ©m do muro da quinta , via-se a casa do juiz de paz , acaГ§apada , de aspecto avelhentado e carunchoso , com uma varanda de pau alpendrada , pintada de azul , ГЎ qual ia dar uma escada de pedra tosca . O snr. Casimiro tinha nos seus habitos a monotonia inalteravel de um relogio que regula bem , apparecia invariavelmente na varanda ГЎ mesma hora , punha uns grandes oculos , com grossos aros de me tal , e sentava-se a soletrar a gazeta com attenГ§ГЈo demorada e o labio inferior pendente . Era um velho baixote , atarracado , feito de uma sГі peГ§a , tinha movimentos lentos , um andar vagaroso , muito descanГ§ado , dava umas passadas pezadas , seguras , que nunca escorregam ; na gravidade tinha o aspecto de um boi , e de verГЈo ou de inverno usava invariavelmente um jaquetГЈo comprido , amplo , de panno forte cor de pinhГЈo , muito surrado . Ao lado do prГ©dio de habitaГ§ГЈo havia outra casinhola , que servia de abrigo a uma azemola e a um porco , tinha uma porta larga com muitas teias de aranha no batente que se nГЈo abria , e o snr. Casimiro costumava fazer visitas , a horas certas , aos seus animaes , interessava-se , identificava-se com elles . Era elle mesmo que conduzia o burro pela arreata a beber no tanque proximo , assobiava-lhe , e levava o porco a espairecer , chamava-lhe -- rГ©co -- e acompanhava-lhe os grunhidos com outras phrases adequadas , como se os dous se entendessem , com um timbre de voz arrastada de uma gravidade roufenha , como o som de uma caldeira rachada . Aquelle homem apparecia-lhe todos os dias como a mais completa encarnaГ§ГЈo da vida burgueza de provГncia , e esta imagem irritava-a . Este viver mesquinho da aldeia opprimia-a cada vez mais , parecia-lhe que se lhe alargava de redor uma solidГЈo sem fim . Exasperava-se n ' aquella atmosphera de mediocridade que a envolvia , esta vida no meio de camponios imbecis , de pequenos burguezes insignificantes irritava-a como uma injustiГ§a . TГ©dios profundos revolviam-na , como enjГґos que lhe embrulhassem o estomago e para desviar a vista d' estes aspectos irritantes , voltava a imaginaГ§ГЈo avida para as existГЄncias brilhantes das grandes capitaes , que tumultuam em um turbilhГЈo de prazeres e fluctuam em um ambiente ardente de paixГµes . Por vezes fatigada de lГЄr , apoiava a a mГЈo ГЎ testa , cerrava os olhos , e as fulguraГ§Гµes dos theatros e dos bailes , as ruas resplandecentes de bicos de gaz e do crystal illuminado das vitrines , as mulheres decotadas com hombros de jaspe , enlaГ§adas nos braГ§os de sujeitos elegantes de uma pallidez fina e aristocratica , passavam em um redemoinho atordoante . E Adelina sentia que a carne lhe estremecia , como se realmente se sentira afagada de todas as febres do prazer , de todos os delirios da paixГЈo e requintes do luxo . Outras vezes sentava-se ao piano , percorria o teclado com uma indolencia fastidiosa . Mas insensivelmente os dedos animavam-se , o piano vibrava uma phantasia da Lucrecia Borgia . Entrevia Veneza com os seus palacios illuminados a exhalarem as harmonias das festas e dos saraus , a espargirem claridades atravez dos vidros coloridos , que se reflectem em tremulas scintillaГ§Гµes nas aguas escuras e mansas dos canaes mysteriosos ; as gondolas deslisavam serenas , decorativamente illuminadas , atracando em cardumes ГЎ escadaria de algum palacio ducal ; outras escapavam-se silenciosas , por baixo da Ponte dos Suspiros ; abrigando no seu interior acolchoado de seda o mysterio de uns amores . Perdia-se n ' estas phantasias , em que os dominГіs passavam discretamente , segredando-se de passagem na solidГЈo de alguma sala mais afastada do foco da festa ; ou entГЈo eram paixГµes vehementes que se debatiam nas trevas de uma noute sem lua nem estrellas , entre perigos e sobresaltos , punhaes de sicГЎrios que scintillam na escuridГЈo , suspiros flebeis que expiram no silencio da noute e frГ©mitos de beijos longos , apaixonados ... Mas a realidade voltava com toda a sua desesperadora monotonia , os dias succediam-se e o dia seguinte era sempre o mesmo , com a mesmissima physionomia descolorida ; procurava distrahir-se , recitava ao piano uma poesia , mas a sua voz fazia-lhe o effeito de um echo no deserto , n ' aquelle deserto da sua vida , onde ella procurava , com desespero , um oasis , uma nesga de verdura alegre , em que amenisasse a vista fatigada , mas debalde ... e ella sentia como que a sensaГ§ГЈo que experimenta uma pessoa a quem falta o ar . Sahir da aldeia , viver em Lisboa , ou no Porto , era agora o seu pensamento fixo , o caracter azedava-se-lhe , tornava-se de um humor difficil e desigual , tratava o marido com repentes asperos , com dictos cГЎusticos , escarninhos . Luiz deixava passar estas rajadas de mau humor ; como era de uma indole sereninha e fleugmatica , escudava-se na mudez de um estoicismo estudado , installarase commodamente na vida , e o seu maior cuidado agora era nГЈo se deixar perturbar na doГ§ura dos seus gosos tranquillos . E era d' este modo que Adelina ia assumindo uns ares de superioridade dominatoria e incontestada . Um dia Adelina aventurou a sua ideia fixa . Os olhinhos de Luiz luziram avidamente , era bem melhor viver em uma terra grande , mas nГЈo se atrevia a deixar sГі a mamГЈ e ella , coitadinha ! nГЈo queria deixar a casa , a que se tinha habituado com o apego proprio da velhice , e a qual lhe dava tГЈo saudosas recordaГ§Гµes do marido . E depois vinha a questГЈo de meios ; a mezada do Antunes era excellente na provincia , mas insufficiente para se viver folgadamente em qualquer das cidades . A esse respeito elle podia dizer alguma cousa . O Antunes foi ouvido e acolheu com boa sombra o projecto da filha . Elle , porГ©m , optava pelo Porto , nГЈo os queria muito longe . -- Adelina tinha razГЈo , ella nГЈo nascera para apodrecer toda a vida na pasmaceira de um burgo chГґcho . E para que era o dinheiro ? A questГЈo de meios ficava por sua conta , accrescentaria a mezada . Mas louvava os escrГєpulos do genro , approvava que se fizesse a vontade da snr.a D. Carlota , era uma senhora idosa , com uma saude delicada , era preciso nГЈo molestal-a e depois estavam novos , tinham o futuro por si . Esta nova contrariedade ainda mais exaspeperou o mau humor de Adelina , encarava sua sogra como um obstГЎculo aos seus planos , um empecilho , e os azedumes accumulados comeГ§aram tambem a fazer uma surda explosГЈo sobre a mГЈi de Luiz . Tratava-a com dureza , fallava-lhe pouco e quasi se limitava a responder a perguntas ou sГі abria a bocca para soltar phrases descortezes e acrimoniosas . D. Carlota doia-se , mas devorava em silencio as suas lagrimas . O caracter de Adelina apparecia-lhe agora sob um aspecto que a assustava , tinha apprehensoes pelo futuro do filho . A sua saude comeГ§ou a alterar-se , desmedrava a olhos vistos . Uma vez , no fim do jantar , a conversaГ§ГЈo descahiu para o sempre debatido projecto de Adelina ; Luiz , quente dos vapores da comida e do vinho do Porto , animou a discussГЈo acalorandose em defender o adiamento da mudanГ§a para o Porto . Ella levantou-se da mesa com arremesso , deixando atraz de si a impressГЈo desagradavel de umas phrases descortezes e o ruido de uma porta impellida com forГ§a . D. Carlota , toda nervosa , com os olhos a rebentar de lagrimas , atirou-se aos braГ§os do filho , e com a voz embargada de soluГ§os pedia-lhe , que tratasse de satisfazer a vontade da mulher , porque ella ficaria ou talvez os acompanhasse . Luiz tinha ficado atarantado , e com um atordoamento imbecil procurava desculpar a mulher . -- Tinha assim uns repentes , mas no fundo era boa , cahia logo em si , e de certo viria pedir-lhe desculpa ... Mas a saude de D. Carlota peiorou e alguns dias depois soltou uma golphada de sangue , Luiz assustou-se muito , o medico veio e receitou recommendando socego , muita tranquillidade . Um dia sentiu-se mais desfallecida , deixouse ficar na cama , e quando a criada veio com um caldo , encontrou-a banhada em sangue ; uma das maos sobre o peito emagrecido torcia a camisa em uma crispaГ§ГЈo de agonia ; cora os olhos vidrados , a bocca torcida para um lado , tinha a cabeГ§a arremessada para traz sobre as almofadas , a que estava encostada , em uma contracГ§ГЈo rigida . Estava morta . VI Adelina commoveu-se com o fallecimento da sogra , os aspectos da morte perturbavam-na e a compuncГ§ao veio fazer uma diversГЈo ao estado da sua alma . Condoia-se do abatimento de Luiz , fezse terna , consolava-o com muito carinho , com uma exaltaГ§ГЈo dolorida ; acompanhava-o ao cemiterio , e , espalhando flores sobre a campa , sentia como que uma voluptuosidade amarga em affectar uns requintes de condolГЄncia sentimental . Mas a verdade era que desapparecera o unico obstaculo ГЎs suas mais fervidas aspiraГ§Гµes , o sentimentalismo da dor e as perspectivas seductoras de uma vida melhor chocavam-se entre si , como duas imagens que se encontram e confundem no cerebro , das quaes a mais viva absorve a mais pallida , ГЎ similhanГ§a de uma claridade forte que dissipa uma sombra . Tinha passado um mez , estava satisfeito o preito de dor ; aquelle successo luctuoso parecialhe jГЎ recuado em um horisonte muito longГnquo , achava exagerado o acabrunhamento de Luiz e attribuia-o a um torpor imbecil do seu caracter . A ideia fixa -- sahir da aldeia -- estimulava-a nervosamente . Mas Luiz nГЈo se movia , era indolente , tardo e difficil na execuГ§ГЈo , estas pachorras exasperavam-na e Adelina precisou de ser energica , conseguindo por fim que o marido fosse ao Porto procurar morada . As viagens repetiram-se , depois ella tambГ©m foi com o Antunes e fixaram a escolha em uma casa , que um brazileiro tinha deixado , obrigado pelos negocios a vol В¬ tar ao Rio de Janeiro . Queriam uma casa com boa apparencia , vistosa , que dГ©sse+esse uma ideia vantajosa das suas pessoas e aquella estava ao pintar . Tinha dous andares , com azulejo lavrado , frisos dourados nas janellas , batibanda com balaustres muito bojudos e nas extremidades dous vasos de pedra com catos de ferro pintado de verde . Comprou-se alguma mobilia ao brazileiro , o resto depois , o principal era partir e comtudo Luiz nГЈo desatava , apparecia sempre um obstГЎculo , pretextara-se o inverno e depois a primavera ia chuvosa . Mas o tempo melhorou e Adelina tomou uma attitudesinha , que nГЈo admittia replicas . Fixou-se o dia da partida . Fizeram-se preparativos , Adelina remexeu as gavetas , acondicionou nas malas as joias , a laГ§aria , as golas rendilhadas , muito rijas de gomma e todas as suas cousinhas de toilette dentro de caixas de cartГЈo , cobertas de estampas muito coloridas , lustrosas , onde se requebravam meninas de finГssima belleza sobre as quaes ella deixava cahir Г s vezes olhares pensadores e que tinham requintes de elegancia na cintura , sorrisos irresistiveis , muito despeitoradas , com os vestidos levantados mostrando o comeГ§o de pernas bem torneadas e pГ©sinhos ideaes . Revolvendo as gavetas encontrou ramilhetes seccos , atados com fitas bolorentas , e um pacotesinho de cartas apertado com uma fitinha azul desbotada , desatou o embrulho , do fundo da gaveta sahiu um perfume enjoativo , mixto de mofo e pat-chouly , leu alguma carta ao acaso , encolheu os hombros desdenhosamente , muito nauseada -- Que nojo ! ... E correu ao jardim , fez uma fogueira d' estas reliquias amorosas , a lavareda devorava as folhas de papel que se torciam , como membros que se debatem em convulsdes de dor em uma fogueira , e ella olhava contente para aquelles fragmentos carbonisados que se espalhavam no ar ao sabor do vento , como se o passado , que ella renegava com tГ©dio , voasse n ' aquelles folliculos negros , imponderaveis , para as regiГµes do nada . Chegara o dia da partida . Resoava o rodar da carruagem dentro do pateo , parando junto da escadaria de pedra abalaustrada , que se bifurcava em dous lanГ§os atГ© ao primeiro e unico andar da casa apalaГ§ada . Os caseiros e criados faziam roda . O snr. Casimiro e o boticario , na qualidade de visinhos mais proxiraos , vieram fazer os seus cumprimentos de despedida . Adelina desceu a escada rapidamente e saltou para dentro da carruagem com modos sacudidos de quem tinha pressa . Estava desesperada com a estopada dos visinhos . -- NГЈo estava mau o desproposito ! Que massadores com as suas despedidas ! Haviam de perseguil-a atГ© ao fim estes alarves ... Luiz despedia-se dos visinhos muito descanГ§ado , com ar repousado e riso bonacheirГЈo . O boticario , entresecco , alto , esgalhado , prodigo de civilidades , rasgava a bocca atГ© ГЎs orelhas na expansГЈo de um cumprimento amavel , e o snr. Casimiro , com um ar de excellente pessoa , apertava a pequena mГЈo de Luiz na sua mГЈo grossa e callosa . -- Que tenha muita saude , snr. Luizinho , para o que fГґr preciso aqui ficamos . Boa viagem e que se divirta e mais amadama , aquillopor lГЎ sempre sГЈo outros ares ... Mas Adelina batia o pГ©sinho com impaciencia , enfadada , e com a voz aguda de um tremulosinho de cГіlera gritava dentro da carruagem -- Que se aviasse , fazia-se tarde , chegariam ao Porto de noute ... O Antunes ia e vinha afanoso , dava ordens , era elle que pensava em tudo , em quanto que Luiz nГЈo fazia nada , dirigia a collocaГ§ГЈo de uma grande mala na concha da carruagem , dispunha dentro do trem a manta para embrulhar os pГ©s , o sacco da noute c a cestasinha ГЎ ingleza , bem atochadinhade viandas -- Uma petisqueira para o que dГ©sse e viesse , nada de cahir na fraqueira . Tu tem-me cuidado com os animaes por esse caminho . LГЎ para o fim do dia toca a abafar , as tardes ainda estГЈo frescalhonas ... E atГ© breve , um dia lГЎ caio como um raio ... A carruagem rolou , pisando o saibro do pateo com um rangido , Luiz e Adelina debruГ§avam-se pelas portinholas e acenavam o ultimo adeus ; desappareceram em uma volta da estrada o ruГdo das rodas esmoreceu ao longe . Os dous visinhos recolhiam calados a suas casas . O boticГЎrio caminhava com as mГЈos atraz das costas , o vento fazia fluctuar as abas do seu casacГЈo , coГ§ado , muito escorrido , com grandes prГ©gas , como se estivesse pendurado em um cabide . -- E que lhe parece , oh snr. Casimiro , a tal serigaita ? ! Aquillo Г© lГЎ criaГ§ГЈo ! ... -- E parava de repellГЈo , ao erguer a cabeГ§a , o nariz arrebitado deixava ver umas largas fossas nasaes , e punha a descoberto um pescoГ§o encarquilhado com grossas cordoveias . -- Hum ... hum ... um bocadinho no ar ... o tempo ... com o tempo vem a assentar . -- E depois com que ares anda esta espevitada , depois que casou com o fidalgo . Traz o rei na barriga . Ora atГ© o diabo havia de rir ... -- Novidade , snr. Balthasar , novidade , aquillo estГЎ ainda com o sangue na guelra . -- E o snr. Casimiro , com as mГЈos nos bolsos do seu jaquetГЈo , ia caminhando pesadamente , com o olhar baixo , o dorso boleado , mostrando a sua pescoceira anafada e vermelha . A carruagem rodava veloz pela estrada , deixando atraz uma nuvem de poeira . Adelina ia muito refastelada , extasiava-se a olhar para os campos e para as paisagens que se iam desenrolando , levava no coraГ§ГЈo uma sensaГ§ГЈo de alegria , como se tivesse lГЎ dentro uma chilreada jubilosa de passaros , e aquella successГЈo de quadros dava-lhe como que um atordoamento voluptuoso , que a lanГ§ava no goso de uns devaneios deliciosos . Nuvensinhas tenues esbatiam se na transparencia azulada , como musselinas muito esfiadas ; os campos batidos do largo sol brilhavam com todos os cambiantes da verdura ; passavam as casinholas rusticas , de largas pedras tisnadas , cobertas de colmo , com as suas hortas de couves gallegas azulejadas ; nas pequenas janellas , sem vidraГ§as , o barro das panellas , em que florejam os cravos , contrastava com o frescor e colorido das flores , sombreadas pelas ramadas , cujas hastes pendiam como grandes cachos ; ГЎs portas as velhas fiavam paciticamente emquanto as crianГ§as nuas se retouГ§am na poeira da estrada ao lado das gallinhas que se espanejam e cacarejam . Succediam-se as tabernas com o seu ramo de loureiro secco agitado pelo vento , as casas alpendradas dos ferradores , os nichos do purgatГіrio , o campanario rustico , as cruzes no adro e o arco festival , ornado de murta e flores murchas , que dГЈo ainda uns rebates da ultima festa , e depois ainda o verde incomparavel dos campos de linho , que dГЈo alegria , e as searas de trigo com as suas ondulaГ§Гµes largas e suaves , como se estremecessem voluptuosamente cheias de vida aos afagos da aragem , similhando , aos raios do sol , um lago de ouro muito pallido . Adelina contemplava esta natureza , que renascia por toda a parte exhuberante e sensual ; vinham-lhe os perfumes acres do campo ; o calor da carruagem amollentava-a ; afofava-se mais languidamente no fundo acolchoado , penetrada de uma sensaГ§ГЈo narcotisadora , com os olhos meio cerrados ; os aspectos da natureza iam-se apagando da vista pouco a pouco , como um quadro dissolvente , o pensamento voava-lhe para outro mundo , e vagueava pelas perspectivas deslumbrantes da vida elegante , sentia-se mergulhada no ambiente excitante dos theatros , dos bailes , como em um banho de leite aromatisado . a-se depois no Palacio de Crystal , em noute de illuminaГ§ГЈo , com os arcos alinhados na avenida a scintillar a luz crua do gaz ; debaixo d' aquella abobada de luz sentia-se radiosa , arrastando uma cauda elegante ; os accordes dos cobres , na banda instrumental , vibravam no ar sonoridades , que iam despertar-lhe no intimo d' alma harmonias occultas , que a penetravam de doГ§uras ineffaveis , e a vida assim apparecia-lhe boa , sorridente , luminosa , como se caminhasse por uma galeria sem fim , cheia de luz e flores . Luiz sumido ao canto da carruagem resonava e ella olhava-o contrahindo os labios polpudos no azedume de um sorriso desdenhoso e pensando -- Que materialГЈo ! Quando se approximavam do Porto a tarde cahia com muita serenidade . Havia na atmosphera uma frescura suave , o horisonte corava-se de uma cor viva , e no alto alargava-se uma serie ondulante de pequenas nuvens , agglomeradas , como se aquella parte do firmamento estivesse acolchoada de algodГЈo luminosamente rosado . De quando em quando as vozes , de uma energia rude , dos trabalhadores , caminhando em rancho , aГ§odados , pressurosos , ou a chiada de algum carro , gemendo sob o pezo da carga , cortavam o ar calado ; manadas de bois recolhiam aos curraes com placidez ruminadora , melancholica ; ouvia-se ao longe o som indistincto de um repique festivo ; foguetes relampagueavam a distancia desfazendo-se em novellos de fumo , e os ralos punham no ar a vibraГ§ГЈo macia de um zunido prolongado . Mas aos ruidos pacatos do campo ia succedendo a agitaГ§ГЈo murmurosa da cidade , um burburinho longinquo ia crescendo , e emquanto branquejavam as primeiras casas , as nuvemsinhas rosadas no firmamento faziam-se violaceas , desbotavam para uma cor plГєmbea , os tons de luz apagavam-se no horisonte , iam apparecendo uns pontos luminosos , que mais perto se transformavam em pequenos leques de luz nos candieiros do gaz e a atmosphera cahia na uniformidade do crepusculo . Entraram na cidade , ouvia-se o rodar de trens e a algazarra de rapazes ; assomaram ao alto da rua de Santo Antonio e o extenso lanГ§o de ruas apparecia como uma galeria illuminada , os candieiros do gaz e as vitrines resplandecentes alargavam na calГ§ada grandes claridades , vozes agudas de rapazes apregoavam jornaes , senhoras de manta na cabeГ§a sergenteavam pelas lojas , dando passinhos saltitantes sobre os tacГµes altos com uma frivolidade burgueza , costureiras de olhar petulante , ladino de chale ou capa comprida , iam em ranchos com um estouvamento alegre ; sugeitos empertigados , outros com ar relaxado passavam com modos estГєrdios ou caminhavam muito repousados , relanceando olhares indolentes para as vitrines , bambaleando o corpo , e Adelina sentia um atordoamento n ' esta transiГ§ГЈo do quietismo da sua aldeia para este movimento , que tinha uma percusГ§ГЈo sonora na limpidez da atmosphera . A carruagem parava ГЎ porta do Louvre , e pouco depois estavam sentados ГЎ meza redonda . A luz do gaz , cahindo na superficie polida da porcellana e dos crystaes , dava uns reflexos fortes , que lhe pareciam mais brilhantes do que os do sol no burgo onde nascera , os homens fitavam-na com insistencia , os criados de jaqueta branca serviam-na* com modos discretos e respeitosos e ella sentia-se contente , feliz n ' este mundo novo e promettedor . O jantar terminara . Luiz levantou-se da meza e Adelina foi sentar-se ГЎ janella com um quebranto molle da jornada ; parecia-lhe que os nervos retesados se distendiam em uma lassidГЈo deliciosa , o ar estava immovel e sereno , havia luar que espalhava suavidades de uma luz pallida em contraste com as sombras dos predios , que se projectavam duramente nas calГ§adas , mas uma nevoasinha muito diaphana amaciava a dureza dos contornos da casaria , o seio arfava-lhe suavemente , sentia um bem-estar ineffavel e a vida desdobrava-se-lhe agora boa e meiga , como a diaphaneidade tranquilla e luminosa d' aquella noute que a envolvia . VII Tinham batido cinco horas da tarde com ura pequenino som agudo no grande relogio de ebano preto com incrustaГ§Гµes de bronze dourado , pompeando magestosamente , ladeado de serpentinas de prata dourada , no rebordo do fogГЈo , coberto de um lambrequin com borlas , igual ГЎs cortinas e reposteiros , e remirando-se no espelho enquadrado em uma moldura sem verniz de pau santo , primorosaraente lavrada . Nas janellas abertas de par em par cortinados muito rendilhados , aos quaes se sobrepunham outros de um estofo de complicados arabescos , que imitavam os desenhos dos chales de cachemira , agitavam-se brandamente ao sabor de uma brisa tepida , que penetrava no aposento levando as emanaГ§Гµes penetrantes dos ultimos lilazes e glicinas , que abriam no jardim as suas urnas de aromas . O piano irradiando as scintillaГ§Гµes negras da sua madeira envernizada , com um caderno de musica aberto entre os reflexos metallicos dos castiГ§aes bronzeados , estava aberto , sorrindo com a sua bella dentadura de marfim , como quem ainda ha pouco tinha soltado a melodia da sua voz tagarella . A viraГ§ГЈo , de quando em quando , impellia os cortinados das janellas e refrescava a temperatura abafada que o calor do dia tinha concentrado no interior ; pelos intersticios dos cortinados entreabertos escoavam-se por vezes claridades , que aviventavam a luz discreta da sala e se projectavam no tapete de um amarello tostado , como relampagos em cГ©u nublado . Em frente das janellas begonias carnudas e uma avenГ§a ramulhuda , de um verde vivo de esmeralda , em vasos de porcellana , sustentados em pedestaes bronzeados , reviravam para fora as folhas avidas de ar e luz . Gravuras de preГ§o pendiam das paredes , entremeavam-se com as jarras da Гndia sobre etageres esculpturadas ; contadores de pau preto , incrustados de marfim , mezas com pГ©s torneados , poltronas flacidas , convidativas confundiam-se e harmonisavam-se para dar um aspГ©cto gracioso a esta sala elegante , e o seu aspecto expressivo , caracteristico , como um rosto sympathico e intelligente , retratava-nos logo , como que nos traГ§os seguros de um esboГ§o fiel , a physionomia dos donos da casa . Havia alli vida e animaГ§ГЈo no meio d' aquella sumptuosidade . Mas nГЈo era o luxo que himpa na banalidade da seda amarella ou encarnada das salas insulsas , onde os moveis se perfilam com aquella severa rigidez e vulgaridade symetrica , que nos dГЎ uma sensaГ§ГЈo de frio , de constrangimento e de somno , com pretensГµes a imitar a solemnidade enfatuada , os aprumos hirtos das altas recepГ§Гµes diplomГЎticas , cheias de morgue e de rigidez engommada , como um parvenu que imita grotescamente os ademanes das classes superiores a que aspira . A disposiГ§ГЈo d' esta sala era uma confusГЈo harmoniosa , harmГіnica sem insipidez symetrica . Como uma bella paisagem com um raio de sol a alegrar a frescura verde , era a harmonia no meio de um mixto desordenado , uma mescla de cousas diversas , artisticamente combinadas , que nos suggerem impressГµes suaves e calmantes . NГЈo havia cГґres arreliosas ; as tintas do papel e dos estofos eram tranquillas ; o bom gosto suavisava a opulencia , corrigia a sumptuosidade , como os estores na doГ§ura de uma penumbra amaciam a crueza da luz de um dia banhado no sol de julho ; o luxo nГЈo tinha o brilho que fere , nГЈo irritava com pompas pretenciosas , tinha as suavidades de um colorido placido , como o encanto doce de um panorama , em que se esbatem a meias tintas de um occaso outonal . NГЈo era a arrogancia da opulencia boГ§al , mas a manifestaГ§ГЈo intelligente de um espirito de eleiГ§ГЈo . Cadeiras de todos os feitios , desemparelhadas , tamboretes de formas diversas espalhavam-se em uma confusГЈo que era a harmonia ; affectando desarranjo era uma symetria graciosa ; sobre o fogГЈo , mezas , consoles e Г©tageres entre mixturavam-se com as jarras da Гndia , as porcellanas de Saxe e de SГ©vres , as faianГ§as , os bronzes , os crystaes da Bohemia em uma confusГЈo cheia de subtilezas engenhosas , que nos davam uma ideia elevada da mГЈo feminina , leve e delicada , que com tГЈo fino tacto tinha presidido ao arranjo d' este ninho confortГЎvel , em que o corpo se sentia bem e o espirito se deleitava . Era a sala de passar as noutes na serenidade das alegrias caseiras , das palestras faceis nas horas de desenfado , uma sala elegante , nГЈo da elegancia que acceita a soberania indiscutivel de todas as phantasias , de todas as frivolidades da moda , mas d' aquella elegancia subordinada ГЎ direcГ§ГЈo intelligente , que discorre e discerne . Respirava-se alli uma alegria boa e tranquilla , que convida ГЎ vida do coraГ§ГЈo e do espirito no repouso intimo do lar , que sabe envolver-se na atmosphera do bello e afugentar as nevoas do tedio nas palestras que borboleteiam francas , estimulantes do bom humor , entre a leitura de um livro honesto , ou um trecho de boa musica ao piano e as concentraГ§Гµes do pensamento sem a morbidez das perturbaГ§Гµes nervosas . Fernando de Azevedo , recostado em uma poltrona , lia O Primeiro de Janeiro com desenfadada distracГ§ao e tomava os ultimos tragos de cafГ© no gГґso de uma serenidade descuidosa e feliz . Pousou o jornal , levantou-se e foi encostar-se ao espaldar da cadeira , em que estava sentada sua mulher . -- Bonito bordado ! ... E para que Г© isso ? -- Nem sei ainda bem ... PГіde ter diversas applicaГ§Гµes , pГіde ser , por exemplo , para o enxoval do nosso pequenino ... quando o tivermos . -- E Margarida , sorrindo e pondo a descoberto toda a alvura do pescoГ§o , inclinava para traz a cabeГ§a olhando para seu marido , que mergulhava a vista na pureza d' aquelle olhar azul , que o fitava . -- Sempre essa ideia fixa . Por fim has-de acabar por me tornar ciumento , parece que jГЎ nao te basta a affeiГ§ao do marido . Pois olha , eu nГЈo sinto , mesmo absolutamente nada , a falta de um filho . Se vier , conheГ§o que terei uma grande alegria , que serei ainda mais feliz , que adorarei o meu filho ; mas tambem nГЈo me ralo com a sua falta . Sou tГЈo feliz sГі com a minha mulhersinha ... -- E roГ§ou de leve os beiГ§os pela testa lisa de Margarida . -- Ora , jГЎ se vГЄ . Os senhores maridos faliam muito bem , mas eu queria-os ver no nosso lugar . TГ©em os seus negocios , a sua politica , a sua palestra no Club , uma infinidade de cousas que os interessam , que lhes occupam a actividade ; nГіs temos sГі o governo da nossa casa , e , diga-se a verdade , nГЈo Г© uma missГЈo agradavel em todas as suas partes . Os senhores do sexo forte vivem mais pelo espirito , e nГіs pelo coraГ§ГЈo , sentimos aqui thesouros de aГfecto , exuberГўncias de amor que chegam de sobra para o marido e para os filhos , e nenhum poderГЎ com razГЈo queixar-se da mesquinhez do seu quinhГЈo . E demais eu sinto alguma cousa de superior a mim mesmo ; o amor de mГЈe , a maternidade Г© uma forГ§a viva da natureza , aninha-se no coraГ§ГЈo , penetra-nos todo o ser , rebenta espontГўnea e irresistivel como uma seiva de primavera . Г‰ uma necessidade da nossa organisaГ§ГЈo , um impulso providencial , desconhecer isto Г© desconhecer o coraГ§ГЈo da mulher e decididamente eu teria um grande desgosto , se nГЈo tivesse um filho ! . . -- E vinha-lhe ao rosto pallido e branco uma animaГ§ГЈo , mas as faces nГЈo tinham o rubor vivo dos temperamentos fortes , nacaravam-se apenas , ГЎ similhanГ§a de uma gota de carmin que se espalha em uma taГ§a de leite . -- Bravo ! Que enthusiasmo ! Dir-se-hia que Michelet fallou pela tua bocca . Mas nГЈo te impacientes tanto , para que havemos de estragar a vida sem motivo , aferrando-nos a contrariedades e dissabores imaginarios ? . . Ainda nГЈo Г© tarde , estamos casados apenas ha dous annos ... -- Bem sei , e o doutor disse que ha casos de muito maior demora , Г s vezes se muitos annos . Mas Deus me livre de esperar tanto , e depois um regimen hygienico , os banhos de mar ... -- Г‰ verdade , os banhos de mar ... EntГЈo vamos para a Foz , hein ? Eu acho excellente , quando vamos procurar casa ? -- Mas quanto antes , a tarde estГЎ linda . Se nГіs fossemos hoje ? Em vez de passear para outra parte ... Mas ha-de concordar commigo , senhor meu marido , que Г© uma grande alegria , uma grande felicidade ter uma filho ; estremece-se de prazer sГі de pensar no nosso pequenino , louro como um cherubim , deitado no seu berГ§o com a carinha fresca e cГіrada entre roupas brancas , como uma rosa em leito de neve , e depois o seu chilrear de passarinho , as suas pernitas roliГ§as a sarilhar , os primeiros sorrisos a brincar nas bochechas gordinhas , as suas primeiras travessuras , e elle a bamboar-se nas grandes pernas do grande papГЎ , e depois as suas arrelias , a desfazer com as pequeninas mГЈos polpudas o frisado artistico do bigode . Pense em tudo isto o meu marido e diga-me , se este coraГ§ГЈo nГЈo palpita mais apressado pensando no seu bebГ© . -- Menos isso , bebГ© isso Г© que nГЈo , nГЈo lhe chames bebГ© pelo amor de Deus . BebГ© Г© o producto de uma educaГ§ГЈo delambida e falsa , o petit-crevГ© da infancia , um dandy em miniatura com opulГЄncias de vestuГЎrio e pobreza de sangue , Г© um entesinho infeliz , estragado , cheio de anemia , de perrice e de lambugens . O nosso filho nГЈo ha-de ser nada d' isso , havemos de fazel- o vigoroso , sadio , com umas bochechas rechonchudas e rijas . Primeiro que tudo ha-de ser um homem , antes de ser bacharel formado ; nГЈo serГЎ um sabio pelo formato dos nossos doutores , mas terГЎ uma instrucГ§ГЈo mais prГЎtica e util , e saberГЎ nadar , dar saltos , trepar a uma corda , montar a cavallo e supportar as fadigas ... -- Devagar ... devagar , castellos no ar , meu amiguinho , tudo isso era muito bom , se fosse um rapaz , mas eu reclamo que seja uma rapariga ... Um creado de casaca e gravata branca , batendo discretamente ГЎ porta , annunciava a visita da snr.a D. Guiomar de Athayde . E ao mesmo tempo entrava com semceremonia , movendo-se com muita vivacidade , a pequena e magrinha pessoa da snr.a D. Guiomar . Era pallida , franzina , de olhar vivo , nariz grande e afilado , queixo saliente , tinha trinta e oito annos ; era orphГЈ de mГЈe , havia muitos annos , filha unica e vivia sГі com o papГЎ , o snr. FabiГЈo da Rocha , digno funccionario publico , que contrahira o laГ§o matrimonial por inclinaГ§ГЈo , e tambem um poucachinho por vaidade , com a filha segunda , sem dote , de uma familia afidalgada . Desenganada de nГЈo poder contrahir mais vantajosa allianГ§a , decidiu-se a acceitar a mГЈo do snr. FabiГЈo , com annuencia da familia . Por fim era uma bocca de menos . A snr.a D. Guiomar , que se dizia aparentada com muitas familias blasonadas do reino , por parte de sua mГЈe , tinha por costume fazer esforГ§os desesperados para se collocar sempre no pleno foco do brilho da sua parentella illustre . Ainda menos feliz do que sua mГЈe chegara a uma idade , em que o coraГ§ГЈo se sente premido pela desesperanГ§a de um casamento , e este desengano cruel , esta decepГ§ГЈo amarga nas illusГµes da sua mocidade fizera-lhe uma revoluГ§ГЈo profunda no caracter , e ГЎ similhanГ§a das tempestades , que revolvem nos lagos os limos depositados que- sobem a turbar a superficie serena , e nos mares os sargaГ§os que vГЈo escurentar os tons de um verde limpido nas vagas encapelladas , o desgosto de ficar solteira convulsionava-lhe todo o ser , fazendolhe fermentar ГЎ flГґr do coraГ§ГЈo a espuma biliosa de um fel venenoso . Queixava-se silenciosamente , com muito azedume , de si para comsigo da crueldade da sorte , da cegueira dos homens , insensatos ! -- dos quaes nem um sГі suspeitou os thesouros de affecto e virtudes que o seu coraГ§ГЈo escondia , e este desgosto , que lhe cachoava constantemente no peito , dava-lhe ao caracter um sabor amargo , como uma agua muito refervida que faz mau chГЎ . Sempre que ao seu conhecimento chegava a noticia de um casamento expremia- se-lhe do coraГ§ГЈo um azedume ; a sua leitura predilecta no jornal , a primeira que buscava soffregamente , era o registo dos casamentos , commentava-os satyricamente , sentia uma amargura deliciosa em se revolver n ' este fel . A actividade do seu espirito necessitava vasto campo para se exercer , mas reduzida ГЎs esterelidades do celibato e ГЎ insignificГўncia do singelo governo da sua pequena casa , buscava nas casas e nos negocios dos outros o alimento essencial ГЎs exigencias do seu espirito . Visitar as suas numerosas amigas e relaГ§Гµes era uma das suas mais constantes occupaГ§Гµes e preoccupaГ§Гµes . De uma actividade infatigavel , de uma assiduidade e pontualidade irreprenhensivel , causticante , no cumprimento rigoroso de todas as etiquetas e exigГЄncias de boa sociabilidade , a sua vida era um movimento continuo de visitas , de cumprimentos , de cousinhas amaveis ; segura , como uma consciГЄncia forte , illibada , d' esta irreprehensibilidade , desafiava que lhe atirassem a primeira pedra e era inexoravel para as faltas dos outros . Este theor de vida permittia-lhe estar ao corrente do viver intimo de todos , das novidades , mexericos e casos escandalosos ou simplesmente facetos . E insinuava-se por toda a parte com modos adocicados , a irritaГ§ГЈo do seu caracter azedado , como um vinho que fermenta , sabia dulcifical- a com as suavidades de uma palavra unctuosa , de uns sorrisos assucarados , que accusavam apparentemente os finos quilates de uma boa alma . Verdade Г© que a um ou a outro causava estranheza a insistencia d' esta excellente senhora em se occupar com tanto afinco das fraquezas do proximo , mas os seus propositos malevolos eram repassados de tanta compuncГ§ГЈo , penetravam-se de tanta uncГ§ГЈo religiosa , de tГЈo compassivo e magoado interesse pelos peccaminosos desvios da humanidade , que as verdadeiras intenГ§Гµes escapavam ГЎ penetraГ§ГЈo do maior numero , e d' este modo todo aquelle mexericar de alto soalheiro era levado ГЎ conta da fina tempera de uma alma de eleiГ§ГЈo , que chora sobre as fraquezas do proximo , e arde na aspiraГ§ГЈo de ura ideal levantado e no santo zelo da regeneraГ§ГЈo dos costumes pervertidos . E esta crenГ§a tanto mais se radicara , quanto eram conhecidos os seus fervorosos sentimentos religiosos . Toda a genta sabia que a snr.a D. Guiomar tinha o seu director espiritual , a quem se confessava frequentemente , trazia sempre comsigo um rosario benzido pelo Santo Padre e tinha na alcova do seu quarto um pequeno sanctuario , herdado da mamГЎ , com muitas imagens de santos , com pequenas figas de azeviche e moedas furadas , suspensas do pescoГ§o em fios e fitinhas de seda ; alli costumava fazer as suas oraГ§Гµes e alli ardia perennemente uma lamparina entre jarras de flores , alГ©m das velas que se accendiam era castiГ§aes de prata , scintillando sobre as alvuras das toalhas engommadas e debruadas de largas rendas nos dias solemnes e n ' aquelles , que eram consagrados a cada um dos santinhos da sua pequena corte celestial . Com todos estes predicados D. Guiomar devia necessariamente ser acolhida em toda a parte com uma cordealidade sympathica . E depois era esperta , bem fallante , sabia narrar ; esmaltava a bisbilhotice com ditos acerados ; polvilhava-a com o dourado pГі do riso epigrammatico , e tinha uma voz meliflua , muito quebrada nos accentos de uma melopГЄa arrastada , como quem se delicia na musica da prГіpria palavra . Tirava um contentamento vaidoso d estes dotes , que a tornavam apreciГЎvel , requestada , festejada , sobre tudo era recebida com prazer nos interiores , em que a sua conversaГ§ГЈo picante ia fazer uma diversГЈo ГЎs longas horas do tedio , que se aninha em tantas casas privadas dos elementos de vida propria . Ora tinha um lugar em um camarote , ora jantava com uma amiga , outras vezes repimpava-se em um landГі luxuoso , e a ditosa solteirona , em cuja indole as fascinaГ§Гµes do luxo exerciam uma influencia irresistГvel , comprazia-se em roГ§ar pelos confortos macios da vida elegante , que nГЈo podia ter , ainda que este gГґso de emprestimo lhe mortificasse a vaidade invejosa . Era insinuante , uma boa rapariga , dizia-se . SГіmente era pena a expressГЈo de seccura e azedume , que a physionomia revelava , quando a nГЈo alegrava a animaГ§ГЈo da conversa ou do riso ; entГЈo os beiГ§os delgados , desbotados , com rugasinhas finas ao canto da bocca , comprimiam-se e davam-lhe ao rosto um aspecto de dureza hostil . -- Apezar de vГЄr o trem ГЎ porta , fui entrando , como nГЈo sou de ceremonias ... Mas nГЈo quero demorar-te , saio jГў , queria sГі vГЄr-te , saber como estГЎs , ha quanto tempo nГЈo te vejo , jГЎ tinha saudades ... -- Mas vens muito a proposito , vamos ГЎ Foz , e se nГЈo te desagradam o passeio e a companhia , tens um lugar no trem . -- Com mil vontades , d' aqui ia ainda prГ©gar a outra freguezia , mas em primeiro lugar a minha boa amiga -- E erguia-se na ponta dos pГ©s para beijocar pela terceira vez a sua boa amiga . -- E como estГЎ o snr. FabiГЈo ? -- Atalhava Fernando . -- O papГЎ nem por isso tem passado muito bem , jantou ha dias em casa do conselheiro Silvestre , e nГЈo lhe fez bem . Era dia de annos , Г© costume velho , o papГЎ Г© sempre convidado , e depois o conselheiro isso nГЈo larga o papГЎ , sГЈo uns frenesis que parece se nГЈo faz a festa sem elle , nГЈo havia remedio ... E depois o papГЎ pelos amigos ... isso Г© mesmo uma cousa por demais . -- Mas isso nГЈo pГіde ser , levar a dedicaГ§ГЈo atГ© ao ponto de sacrificar a saude ... e por causa de um jantar ! O snr. FabiГЈo jГЎ nГЈo estГЎ novo , nГЈo pГіde com esses sacrificios ... -- Isso tenho eu dito ao papГЎ , mas entГЈo ... os amigos nГЈo o deixam , jantar aqui , jantar acolГЎ . Por fim Г© um habito e jГЎ nГЈo passa sem aquillo , diz que Г© a sua maior distracГ§ГЈo , estarrecia se isto lhe faltava ; tem aquelle genio e depois onde estГЎ melhor Г© na convivencia dos amigos . Effectivamente era na companhia dos seus numerosos amigos que o digno funccionario sentia o mais completo bem-estar da sua existencia , quando jantava com elles . Era este o seu fraco , ou antes era n ' este campo que se accentuava mais energicamente a parte forte da sua individualidade , a sua superioridade typica e caracteristica era o estomago , e o seu fraco verdadeiramente era a desproporГ§ГЈo entre as exigГЄncias descommunaes do ventre pantagruelico e os recursos do seu magro orГ§amento ; o estomago de FabiГЈo , isto Г© , todo o seu ser , todas as suas sensaГ§Гµes , toda a sua vitalidade resumia-se , concentrava-se n ' esta viscera poderosa , aspirava aos bons bocados , aos piteos saborosos , aos pratos succulentos , como qualquer outra pessoa pГіde aspirar ГЎs honras , ГЎ gloria ou ao amor . Elle sentia estremecimentos abdominaes , requintes de deleite , voluptuosidades refinadas sГі de aspirar os aromas de um prato predilecto , adubado com um molho fino ; toda a sua carne palpitava contente , como a um rapaz ferve nas veias o sangue dos vinte annos ao contacto perfumado de uma mulher amada . Nao era um homem , era um estomago . Um bom jantar com acepipes exquisitos , que lhe acirrassem todos os pruridos do paladar , vaporando perfumes estonteadores entre o colorido das flores e as scintillaГ§Гµes dos crystaes , regado de vinhos deliciados , era para elle um poema , um hymno , um cantico , que subia do fundo das suas entranhas agradecidas atГ© ГЎ sua bocca gulosa em phrases expansivas e sorrisos aduladores . O bom FabiГЈo conseguiu insinuar-se na estima de muitas familias , desempenhando o papel de -- amigo da casa -- a sua presenГ§a era apetecida sobre tudo pelas senhoras idosas , tinha um bom humor que inspirava alegria , na sua presenГ§a ninguГ©m podia estar triste . O semblante aberto , radioso , como umas paschoas , era de uma tranquillidade satisfeita , com um sorriso Г§hronico , cheio de bonhomia , de complacГЄncias approvadoras para todas as opiniГµes . Ninguem como elle tinha mais a proposito uma anedocta , a historia de um caso succedido , em que elle era o primeiro a dar o exemplo do riso ; ninguem como elle estava mais bem informado da ultima novidade e das datas dos anniversarios natalicios . E sabia dar uma descripГ§ГЈo correcta de uma toilette complicada , informar quem guiaria este ou aquelle andor nas procissГµes , esclarecia com incontestada authoridade ГЎcerca dos cantores e das operas cantadas em todas as epochas theatraes e era sempre o primeiro a dar relaГ§ГЈo dos casamentos projectados . Rematava-se sempre o seu elogio -- Г‰ uma pessoa muito prestГЎvel . Sobretudo era apreciabilissimo para desempenhar pequeninas commissГµes femininas ; em summa , um regalo sГі de ver a sua pequena pessoa obesa expandir-se , do mesmo modo que uma papoula desabrocha as cores rubras e flamantes aos raios do sol , e purpurear-se como uma lagosta cosida , em tons luzentes e jubilosos , sob a acГ§ГЈo dilatante das iguarias condimentadas e dos vinhos generosos . Entretanto Margarida tinha subido ao seu quarto e pondo o chapГ©u dava a ultima demГЈo ГЎ toilette . D. Guiomar passarinhava em volta d' ella . -- JГЎ visitaste a Adelina ? -- Que Adelina ? -- A Adelina de o Litiz de Albuquerque . -- Ah ! , ainda nГЈo ... Se ella chegou ainda ha tГЈo poucos dias ... E tu jГЎ foste ? -- Hoje mesmo . Eu cГЎ n ' estas cousas sou pontualissima , como sabes , de mim ninguem pГіde queixar-se . NГЈo posso eu dizer o mesmo de muita gente , ha pessoas entГЈo que fazem mesmo ferro . Imagina as Carvalhaes , que me devem uma visita ha um rГґr de tempo , faz hoje exactamente tres mezes . Assim nem sei se ainda somos visita . Pois estas cousas sГЈo sГ©rias , ou se anda na sociedade ou nГЈo ... -- Mas Г s vezes ha um motivo justificado , uma doenГ§a ... um desgosto ... -- Qual ! ... Pois Г© exactamente d' isso que eu me queixo , aquellas presumidas andam a sergentear por toda a parte , e depois tudo sГЈo desculpas , palavrinhas doces , parece mesmo uma cassoada , ha gente que nГЈo sei como tem cara para tanto , fazem mesmo raiva . E nГЈo ha ninguГ©m mais passa-culpas do que eu , mas nГЈo posso ver desmazelos , cabeГ§as no ar ... E entГЈo estas Carvalhaes ! ... Que trapalhice ! ... Sempre mettidas nas lojas e nas modistas e sempre mal vestidas , uma farrapada ... E depois que modos tГЈo despegados ! ... nem sei o que me parecem ... DГЎs licenГ§a ... esta haste prende-se nos cabellos ... Assim agora estГЎ bem . Г‰ mesmo chic este chapГ©u , lindo , lindo , como tudo o' que usa esta menina , se todas fossem assim ! ... -- E mais uma vez a snr.a D. Guiomar escalava o porte elegante de Margarida para desafogar a sua ternura na sonoridade cantante de um beijo cordeal . -- E que telha ! Que desarranjo ! Como aquillo nunca vi ... Imagina que a ultima vez que as visitei surprehendi a mais pequena a fugir pelas escadas com as meias esburacadas e os cotovelos rГґtos ! Tenho mesmo pena de gente assim ... O vГ©u ficava melhor mais acima , eu prГ©go ... assim . Mas Г© verdade , estavamos a fallar da Albuquerque , estГЎ mais nutrida , lembras-te quando veio ao Porto pouco antes de casar ? Galantinha , mas magrita , agora estГЎ melhor assim . Fallou-me muito de ti , diz que foram muito amigas no collegio . -- Amigas ! ... Precisamente amigas , nГЈo . Da . vamo-nos bem , mas os nossos genios nГЈo se ligavam muito . Eu Г s vezes no recreio atГ© fugia d' ella , como era muito forte , viva , tinha umas travessuras ! ... Eu nГЈo gostava de brincar assim ... -- E Г© verdade . Olha que parece mesmo uma estouvada , basta ver aquelles modos , parece-me que o juizo nГЈo lhe ha-de pesar muito ... -- NГЈo , eu nГЈo quero dizer que ella seja isso . Era alegre , traquinas , gostava de brincar , muito expansiva . PodГ©ra , se tinha boa saude , mas boa rapariga . -- TambГ©m nГЈo digo que nГЈo , isto sahiu-me da bocca assim como uma cousa vaga , que jГЎ ouvi dizer nГЈo sei a quem ... Mas fallamos muito de ti -- e jГЎ se vГЄ , dissemos muito mal -- da tua vida feliz , da tua casa elegante , de teu marido que te adora . E Adelina interessava-se muito por ti , parece muito tua amiga , e quem nГЈo o ha-de ser d' esta menina ? Eu por fim disse-lhe -- Se aquella nГЈo Г© feliz , rica como Г© ... -- Feliz sim , mas nГЈo pela riqueza , a mediania nГЈo exclue a felicidade . -- Mas has-de concordar , quando se Г© rico parece que atГ© a felicidade acode mais depressa ... ? Iam descendo a escada . Magarida calГ§ando a luva tinha-se adiantado para passar pelo quarto de Fernando , D. Guiomar ura pouco atraz , affastada para nГЈo pisar a cauda , remirava-a toda , da cabeГ§a ГЎs pontas dos pГ©s , com um olhar duro , em que parecia transparecer uma perfidia invejosa e malquerente . VIII Margarida adorava seu marido , este affecto era a sua alegria , a sua felicidade , a mais querida preoccupaГ§ГЈo na paz da sua vida limpida . Os dous eram filhos unicos , herdeiros de uma grande fortuna . Os pais , socios da mesma firma commercial , uma das casas mais consideradas da praГ§a do Porto , tinham affagado desde muito longe o projecto d' este casamento . AlГ©m de lisongear a intima amisade que sempre os unira , tinha para elles a grande seducГ§ГЈo de verem realisado o mais querido sonho da sua vida , transmittindo-se em globo aquelles cabedaes , grandemente accumulados nos ultimos annos com transacГ§Гµes em larga escala e bem succedidas , que os fizeram crescer e medrar , sempre associados , como a propria amisade que os trouxera unidos . D ' estemodo esta allianГ§a apparecia-lhes , a um tempo , como um fito digno de um trabalho honrado , e como uma supervivencia na pessoa dos filhos d' aquella inquebrantavel amisade que se robustecia na sua longa diuturnidade . Subordinados a este pensamento trabalharam para o realisar , mas era preciso que as cousas se passassem de modo , que os filhos abraГ§assem espontaneamente as ideias paternaes . Este ponto era essencial e sobretudo Leonardo da Cunha , que bebia os ares pela filha , era intransigente , a vontade da filha era tambГ©m a sua , e especialmente em caso de tanta ponderaГ§ГЈo sentia-se incapaz de a contrariar . O thema do casamento por amor debatia-se por vezes na roda dos Cresos bancarios e Leonardo da Cunha fazia escandalo no grupo dos nababos de carteira com as suas ideias excentricas . -- Homem ! deixemo-nos de modernices -- regougava com a exaltaГ§ГЈo de uma convicГ§ГЈo inabalavel o snr. Joaquim de Araujo . Eu cГЎ vou indo com os calГ§as de couro que leem pela cartilha velha ; uma filha quer-se obediente , redeatesa , o poder paternal primeiro que tudo , esse Г© o nervo das familias e por conseguinte dos estados . Quando nГЈo , anda tudo ГЎ matroca . Menina educada no temor de Deus e da religiГЈo recebe o marido que lhe dГЈo ; desengane-se , snr. Leonardo , nГЈo ha nada como um casamento ГЎ portugueza , e olhe que havia mais moralidade , agora Г© o desaforo que se estГЎ vendo , mesmo uma choldra ... -- Mas ponha os olhos em tantos casos infelizes ... Que se aconselhe , que se encaminhe a escolha dos filhos , lГЎ isso nГЈo digo que nГЈo , Г s vezes , com a inexperiencia da idade , dГЈo com as ventas em um sedeiro . E tambem quando a asneira Г© muito calva que a gente ponha os pГ©s ГЎ parede , sim senhor , tambem lhe digo que sim ; mas agora mais do que isso , oh , snr. AraГєjo , isso Г© atГ© um caso de consciГЄncia . -- Historias ! patranhas de novelleiros , modos viventes para armar ao pintasilgo , para mim veem de carrinho . AtГ© me admira que o snr. Leonardo se deixe levar pela beiГ§a com essas cantigas , o que se quer Г© juizo no miolo , Г© com essas e outras que as minhocas lhes entram na cabeГ§a . Em se lhes dando por marido um homem de bem que mais querem ? Tudo o mais Г© farelorio , romancices de uns valdevinos de mГЎ morte ! Eu cГЎ , filha que me andasse com a cabeГ§a ГЎ roda a choramigar amoricos com pintalegretes , que sГі miram ao dote , parece-me que a desancava , desancava-a , snr. Leonardo , e ou o juizo lhe entrava na boia ou convento te valha . Mas Leonardo de a Cunha era de pedra e cal , impor marido , forГ§ar-lhe o coraГ§ГЈo , isso nem para a casar com o rei , e demais -- concluia triumphantemente -- a sua Margarida tinha juizo para escolher , educar sensatamente para formar bem o coraГ§ГЈo , levar a luz ao entendimento para verem claro e saberem o que fazem , esse Г© que Г© o segredo . -- E tudo o que nГЈo fГґr isto , snr. Araujo , pГіde limpar as mГЈos ГЎ parede , que Г© uma obra aceada e sobre o caso temos conversado . Foi a mГЈe de Margarida que assumiu a tarefa de ir lanГ§ando no espirito da filha vagos vislumbres do brilhante projecto de familia , como uma semente que se lanГ§a ГЎ terra e rodeada de cuidados germina , brota , braceja e fructeia . Repetia-se o elogio de Fernando , faziam-se confrontos vantajosos para elle , alludia-se ГЎs alegrias de familia , ГЎs commoГ§Гµes jubilosas dos dous velhos que levariam do mundo esta consolaГ§ГЈo . E foi assim que esta ideia , cahindo no cerebro de Margarida , produziu uma perturbaГ§ГЈo na sua vida calma e descuidosa , como um acido que se dissolve produz uma effervescencia . Desde entГЈo a filha de Leonardo entrou de reparar em Fernando de um modo differente , via-o sob um aspecto novo ; nunca pensara em casar e esta ideia apparecia-lhe de repente no cГ©u azul dos seus dezasseis annos , como o esplendor de uma aurora triumphal na transparecencia de um horisonte limpido , e parecia-lhe que via mais claro na vida , que lhe tinham tirado um veu dos olhos , que havia mais luz e mais colorido em volta d' ella e que essa claridade se projectava mais intensa sobre Fernando . NГЈo sabia mesmo muito bem o que era o casamento e contemplava-lhe , toda alvoraГ§ada , perturbada de curiosidades , as perspectivas seductoras , como que esfumadas nos veus de uma nevoa translГєcida . Fernando apparecia-lhe agora , como se a estatura se tivesse engrandecido nos destaques de um relevo ; nГЈo estava costumada a velo sob este aspecto desusado e impressionador , e sosinha no seu quarto , com um olhar intuspectivo , punha-se a observal- o com muita attenГ§ГЈo em todos os aspectos da sua vida . Tirava dos albuns alguns retratos d , elle , photographados em differentes epochas , examinava-os com grandes contensГµes de espirito , comparava-os , cravava a sua vista curioso n ' aquelle olhar de uma viveza varonil , como se quizera devassar-lhe a alma , perscrutar-lhe o interior , sorria e depois sentia-se estremecer na vaga sensaГ§ГЈo de uma doГ§ura infinita . E avocava o passado , transportava-se em pensamento ГЎ sua infancia ; perpassavam no seu espirito com admiravel nitidez , como quadros qtie se succedem em um haleidoscopo , as scenas d' esse tempo . Via o pequeno Fernando , vivo , agil , nervoso , com um pescoГ§o branco como uma sopa de leite , as maГ§ГЈs do rosto coradas como um pecego , e o cabello louro annellado ; recordava-se das travessuras d' aquelle vivo diabrete , terrivel para os companheiros e bom para ella , defendendo-a sempre com um cavalheirismo quixotesco em miniatura . Uma vez com um movimento brusco e desastrado quebrara um braГ§o ГЎ sua boneca predilecta , a grande , que ella vestia com toilettes de um gosto muito aprimorado , a sua amiguinha , com quem conversava muito , a quem confiava todos os segredinhos do seu coraГ§ГЈo pequenino , em uma doce intimidade , aquella mesmo que era linda , linda , lourinha , rosada , com uns oihos vidrados de uma claridade muito azul , grandes , dilatados como se estivessem a comprehender o que se lhe dizia . SГі lhe faltava fallar . E a pobresinha ficara nas mГЈos de Fernando com o braГ§o a dependuro , desengonГ§ado , inerte , e ella sentiu uma grande dor , fez-se branca , despediu um grito de terror , como se a sua boneca fosse cousa viva . Fernando ficara pallido , aterrado , deixou cahir a boneca que se estatelou no meio do chГЈo , desmanchada , como uma pessoa morta ou desmaiada ; ella com uma affiicГ§ГЈo ajoelhou diante da sua pequenina amiga , levantou-a com carinho , conchegou-a ao seio , saluГ§ava . Fernando , cheio de remorsos , pedia-lhe perdГЈo muito desolado , abraГ§ava-a . Lembrava-se ainda da imagem de Fernando em uma das circumstancias mais solemnes da sua infancia , a qual se lhe gravara no espirito com uma impressГЈo indelevel . O altar resplendia , elevava-se um pequeno throno de lumes e flores , os lumes tremeluziam com uma cor amarellada , vaporando fumosinhos que punham na sala uma nevoa muito diaphana , ella e muitas das companheiras de collegio , alvissimas , como grandes pombas brancas , formavam circulo , esperando cheias de anciedade e compuncГ§ГЈo religiosa ; presos da cabeГ§a pendiam , cahindo pelos hombros , veus de tarlatana , como se tivessem nas costas a sensaГ§ГЈo de umas azas brancas . A sala regorgitava de espectadores , havia uma atmosphera espessa , quente , respirava-se um ar appressivo , impregnado do aroma das flores e do cheiro da cera , sentia-se um romorejar de sedas , de leques que se agitam , de vozes que ciciam baixinho ; as professoras iam e vinham , com modos discretos e passos leves , subtis , dispondo tudo para a cerimonia ; a alvura do linho em volta do pescoГ§o contrastava com o negrume dos habitos monachaes e dava-lhes um aspecto seraphico .