D. João DE A CAMARA O CONDE DE CASTEL MELHOR ROMANCE HISTORICO ( ILLUSTRADO ) VOLUME I Segunda edição PORTO Edição d'O PRIMEIRO DE JANEIRO 199 , Rua de Santa Catharina, 201 e Rua Formosa, 232 1903 Todos os direitos reservados Nas casas de Paulo de Carvalho , em Alcantara , expirava o principe D. Theodosio . De nada lhe valeram a sciencia dos fisicos , nem os ares de Palhavã , d' onde voltára . Em sua vigorosa mocidade viera-lhe a morte ao encontro , espesinhando esperanças , aluindo sonhados castellos . Havia duas semanas que nos conventos e freguezias tocavam os sinos afflictivamente . Complicadas drogas nenhum effeito produziam . O Principe , a cada hora , mais na garganta lhe doía o aperto da gélida mão . Um dia , ao romper da alvorada de maio , perfumada e cheia de cantos , ouvindo os sinos a tocarem , pediu que se mudasse de rogativas , que não importunassem a Deus com lagrimas para salvação d' um corpo já sem forças , mas que todos lhe rogassem auxilios efficazes para salvação de sua alma . A quinta communicava com a d' El-rei , para Alcantara se mudára , como era seu costume , pela Paschoa . Elle e a rainha||_D._Luiza_de_Gusmão D.|_D._Luiza_de_Gusmão Luiza|_D._Luiza_de_Gusmão de|_D._Luiza_de_Gusmão Gusmão|_D._Luiza_de_Gusmão e as as duas infantas , a que já tinha a morte no seio e a que mais tarde havia de ser rainha -- Inglaterra , soluçavam , ajoelhados todos junto ao leito do muribundo . As mais altas personagens da côrte , n ' uma sala cá fóra , todas de coração opprimido pela desgraça inevitavel , falavam baixo , apurando o ouvido aos menores rumores , como temendo perceber os passos abafados da morte que viesse entrando . A um canto do vasto salão conversavam baixo os gentis-homens da camara do Principe , Condes -- Miranda , de Valle de Reis e de Villa Nova . O conde de os Arcos e o Barão d'Alvito informavam sobre o estado do enfermo umas senhoras que haviam chegado em suas liteiras . O Conde de Cantanhede e seu irmão D. Rodrigo passeavam ao longo da sala , e ouvia-se-lhes , de quando em quando , o tilintar das espadas . -- Perde-se um homem , meu Rodrigo , dizia o Conde de Cantanhede . Erudito demais , gostava falar latim ; mas ... -- Grego e hebraico tambem sabia , entendia o italiano e o francez , falava o castelhano , observou D. Rodrigo . -- Grandes prendas de principes ! commentou o Conde . Mas ... -- Diziam-o admiravel theologo . Muita vez o encontrei folheando o direito canonico . -- A arte da guerra , porém ... -- Ultimamente dedicava-se ao estudo dos astros , continuou D. Rodrigo , inflammando-se no elogio da omnisciencia que era maravilha no Principe . Dizia o padre||_Cosmander Cosmander|_Cosmander -- eu lh'o ouvi -- que achára n ' elle mais mestre de que aprender que discipulo que ensinar . Sabia direito civil ... -- Lindas prendas ! Mas muito mais me agradou saber que delineava perfeitamente as fortificações . -- Manejava a primor um cavallo , exclamou D. Rodrigo , vendo para onde o irmão , cheio de tendencias militares , desejava levar a conversação . -- Admiravelmente ! Os olhos do Conde de Cantanhede luziram . Mas , logo , todo o brilho lhes apagou a mesma nuvem de tristeza . -- Perde-se um homem , Rodrigo ! D. Antonio Luiz de Menezes , Conde do Cantanhede , fôra dos conjurados de 1640 . Tinha as barbas já cheias de brancas , mas no olho negro ainda toda a viveza e energia da mocidade . Afóra a batalha do Montijo , poucas haviam sido as acções decisivas no Alemtejo . De menos importancia ainda , as da Beira e as de Entre Douro e Minho . D. Antonio de Menezes sentia ferver-lhe o sangue , e não poucas vezes se revelára contra as opiniões pendentes , que com tamanho peso obravam nas decisões d' El-rei . Tivera confiança , um dia , no Principe D. Theodosio , na pobre creança que ali dentro agonisava , abraçada a uma imagem de Christo na cruz , já com o pensamento desviado do mundo e com os labios embranquecidos murmurando : Sicut desiderat cervus ad fontes aquarum , ita desiderat anima mea ad te , Deus ! Brilhou uma lagrima nos olhos do Conde , deslisou devagarinho sobre as faces requeimadas do sol , pelos fios brancos da barba . -- Quando elle fugiu do paço e , sem consentimento , dos pais , atravessou todo o esse Alemtejo ! Calou-se , D. Rodrigo nada lhe respondeu , e ambos , de cabeça baixa , continuaram no passeio , amortecendo os passos e segurando as espadas para que não tinissem . Entretanto , o Condo de Miranda approximava-se das senhoras e contava-lhes baixinho uma historia , que ellas commentavam com exclamações logo refreadas e pequeninos gestos de espanto . -- Foi quando adoeceu Fr. Miguel de S. Jeronimo . -- Do convento da Graça , não era ? Ouvi-o prégar uma tarde , disse uma menina muito nova , muito bonita , que , olhando muito para o grupo de fidalgos , decerto pouco se lembrava do frade . -- Não , prima , era carmelita descalço . -- Varão de singular virtude ! disse uma velha , arreganhando o beiço n ' um sorriso extatico . -- Morreu a dezenove do mez passado , continuou o Conde de Miranda . Mandou-me sua alteza que o visitasse , sabendo de sua enfermidade , e esse varão de singular virtude , como v. ex.ª lhe chama com tanta justiça , depois de agradecer a mercê que o Principe lhe fizera , ordenou-me lhe dissesse poder segurar a sua alteza que depressa se haviam de encontrar ... no céo . A velha benzeu-se , as outras imitaram-a . Vozes devotas ciciavam baixinho . O Conde de Cantanhede retorcia o bigode nervosamente , como embrenhado em pensamentos escuros . -- El-rei||_D._João D.|_D._João João|_D._João , disse por fim , merece-lhe a saude poucos cuidados . Deveria tel-os agora , sem principe que ... D. Rodrigo olhou para o irmão . -- É muito doentinho o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso . -- E tolo ! disse o Conde em voz mais alta do que desejara . Todos os fidalgos se voltaram para elle . Continuou : -- Ha treze annos , que alegria , quando ouviamos D. João da Costa a inflammar-nos com suas falas em casa do Conde de Almada ! Mostrava-nos o perigo e incitava-nos** a elle ! E n ' aquella manhã do primeiro de dezembro , quando ambos nós subimos aos quartos da duqueza de Mantua , o arcebispo de Braga a querer dar suas razões ... -- Traidôr ! disse D. Rodrigo . Não se passaram muitos tempos , fui eu que no paço lhe deitei mão . Traidôr e principal culpado das mortes infames do Marquez de Villa Real , do Duque de Caminha , do Conde de Assumar , no patibulo , a que elle os levou com seus conselhos ! -- Nosso encontro com nosso querido pai , que havia cerrado as portas do tribunal , ignorando o que se tratava ! Como veio gostosamente com+nós , santo velhinho ! Fomos todos buscar o arcebispo de Lisboa , e Christo crucificado despregou da cruz o braço direito , como querendo abençoar o povo ! Calou-se . Havia na grande sala um profundo silencio . Os sinos , ao longe , tocavam em todas as egrejas da cidade . -- Como os sinos repicavam alegres n ' essa manhã ! disse o Conde . E os dois pararam junto d' uma grande janella que dava para os jardins . Lá em baixo , andavam brincando os dois infantes . D. Affonso tinha dez annos , D. Pedro apenas cinco . Ajudado por um rapazola , filho d' um moço de estribeira , D. Affonso , tropegamente , já cançado dos muitos esforços que fizera , tentava subir para um cavallo de baloiço , esculptura tosca de madeira , com as quatro patas sobre duas vigas curvas . Uma pequenina loira , d' olhos azues muito doces , animava o infante , e pôz-se , muito contente , a bater as palmas , quando o viu sobre a sella . D. Pedro ria muito da falta de geito do irmão , do medo que mostrava . O Conde de Cantanhede contemplou o quadro um instante . -- Se El-rei morre cedo , teremos a regencia da rainha por muito tempo . -- É mulher d' animo varonil , observou D. Rodrigo . -- Decerto . Muito nos valeu nas indecisões do Duque de Bragança . Mas é mulher . E pôz-se a olhar para D. Affonso , com um olhar em que havia desdem e tristeza . -- Foi tão doente ! ... A paralisia que teve aos tres annos ... Aquelle lado direito ainda não se concertou . E a cabeça ... alguma coisa deve de ter soffrido . -- Não parece irmão do sr.||_D._Theodosio D.|_D._Theodosio Theodosio|_D._Theodosio , disse D. Rodrigo , vendo o pobre infante cheio de susto porque estremecêra o cavallo . -- O Principe era gentil cavalleiro com effeito . E as armas ... como as jogava ! Deveu-o ao excellente mestre . Ah ! se todos fossem como Diogo Gomes ... ! -- Caluda ! observou-lhe D. Rodrigo , apontando para um fidalgo que vinha entrando . -- E que me ouvisse ? Se digo a verdade ! ... D. João da Costa , nem porque deixa muita vez levar-se da ira , deixou nunca de ser justo . D. João da Costa , desde havia pouco feito Conde de Soure , governadôr da provincia do Alemtejo , vinha entrando acompanhado pelo general de artilharia André de Albuquerque . A observação de D. Rodrigo , mandando calar o irmão , ao ouvir-lhe o elogio ao mestre d' armas do Principe , fôra motivada pelas differenças que sabia desde ha muito existirem entre o governadôr das armas e Dioge Gomes de Figueiredo . O Principe D. Theodosio , nomeado por seu pai capitão general do reino , mandára , a pedido de Diogo Gomes , retirar da guarnição d' Elvas o terço de que era mestre de campo . Replicára o Conde , representando que mal poderia sem aquelles homens guardar e guarnecer as muralhas da cidade . Azedára- se a questão , Diogo Gomes marchou para Evora e o Conde obteve licença para passar a Lisboa . Não lhe faltavam emulos na côrte , que logo acharam meio de malquistar D. João da Costa , alcunhando de desobediencia seu excessivo zelo pela honra do exercito portuguez . O Conde de Cantanhede caminhou para o velho amigo , socio em perigos varios desde a acclamação do duque de Bragança , e cumprimentou-o familiarmente . -- Uma desgraça ! disse D. João da Costa , esquecido de todos seus resentimentos . O Conde e D. Rodrigo cumprimentaram André de Albuquerque . -- Ignoro a conta em que me tinha D. Theodosio . Não sabe um soldado ser côrtezão , nem eu sei se me voltaria seu valimento . Dizem mal de mim na côrte . Mas vós sabeis que não sou de reservas , digo o que penso , e mal visto antes me quero no paço que em minha consciencia . -- Quem póde querer-vos mal ? perguntou D. Rodrigo . -- Quem póde El-rei escolher que dignamente vos substitua ? acrescentou o Conde de Cantanhede . -- Com mais talentos , muitos ; nenhum com maior lealdade . Falar claro é talvez na côrte defeito grave . -- A D. João IV falastes sinceramente e El-rei soube agradecer-vos . -- Sim . Mas falei-lhe em nome de muitos , porque todo o tempo gastava em caçadas e solfas e descurava os interesses do reino . Entre Douro e Minho não tinha quatrocentos soldados pagos ; não tinham soldados a Beira nem a provincia -- Traz-os-Montes ; O Algarve era sem meios de defeza ; não tinham guarnições , Cascaes , Peniche , S.||_Filippe Filippe|_Filippe nem Outão . Como eram os negocios de Angola , de S.||_Thome Thome|_Thome , do Brazil ? Havia anno e meio que El-rei fôra acclamado e nem uma só vez assistira no seu conselho de guerra ! Lembra-me ter-lhe dito que os soldados , além de mal pagos , eram muito desfavorecidos dos ministros , negando-lhes não só os despachos , mas as palavras côrtezes , que obrigam muito e custam pouco . -- Admittiu El-rei o vosso memorial e pouco depois passava ao Alemtejo , disse D. Rodrigo . -- É certo , continuou o Conde de Soure . Mas nunca foi deleite seu formar esquadrões de cavallaria , metter terços em batalha , visitar fortificações , quanto é digno emfim d' um alto coração e approvado com exemplo dos maiores principes do mundo . Mais inclinado á guerra me parecia o sr.||_D._Theodosio D.|_D._Theodosio Theodosio|_D._Theodosio , apesar do muito latim que lhe ensinaram . D. Rodrigo sorriu-se . Já o Conde de Cantanhede se mostrára pouco satisfeito de tanta sciencia . -- Ha-de um dia Castella vêr-se desembaraçada das guerras de Catalunha , de França , de Hollanda , que por emquanto a divertem , e então , com todas suas forças , cairá sobre a nossa fronteira . Excellente nos fôra um principe como este que vai morrer . -- Será desgraça nossa , disse baixinho André de Albuquerque . Sem principe que nos mande , soldados que mandemos ... Uma desgraça ! -- Desgraça ! exclamou o Conde de Soure , parecendo não ter gostado de vêr o general de artiIharia cm tão prompto accôrdo com suas palavras desanimadas . Parece não saberdes que , poucos contra muitos , é costume de portuguezes alcançar victorias . André de Albuquerque empallidecendo , mais visivel se lhe tornou a cicatriz da testa ; tremeram-lhe as azas do nariz ; os olhos scintillaram com um lume de colera . Calou-se . O Conde de Cantanhede pensou : -- Breve te vais despicar , militar dos mais valentes ! O Conde de Soure tinha d' aquelles rompantes . Haviam chegado á janella . -- Devagarinho , Simão ! dizia D. Affonso , emquanto , com o pé na viga curva , o filho do moço de estribeira ia baloiçando o cavallo . E a cada movimento mais rapido , o Infante segurava-se-lhe ao pescoço , todo a tremer . A pequenina continuava olhando para elle , ternamente , e , quando o via assustado , assustava-se . Os quatro fidalgos ficaram observando , pensativos , o quadro de tamanha tristeza . N ' aquelle dia , n ' aquella mesma hora talvez , o desgraçadinho ficaria herdeiro da corôa de Portugal . -- Tenho medo ! dizia o Infante . E no sorriso do pequenino D. Pedro olhando para o irmão , havia desprezo e mofa e por vezes raiva . -- Um sapo escarrapachado ! exclamou alto uma voz . Era o Marquez de Cascaes , D , Alvaro de Castro , que as côrtes estrangeiras nunca tanto souberam polir , que lhe impedissem demasias de lingua , nunca tanto ensinaram na diplomacia , que o obrigassem a mentirosas falas , a caminhos tortos . Pouco a pouco , em bicos de pés , encaminhavam-se todos para a janella , excitados pela curiosidade que provocára a frase do Marquez , quando um ruge-ruge de sedas os fez voltar os rostos para a porta de entrada . Chegava a Condessa de Castel Melhor com seu filho mais velho Luiz de Vasconcellos e Sousa . Todos se inclinaram , que na côrte não havia senhora que maior respeito inspirasse . Vinha offegante , com a mão no peito . Mal pôde dar uma rapida noticia do marido , que breve devia chegar da Bahia , em cujo governo fôra substituido pelo Conde de Atouguia , D. Jeronimo de Ataíde . Seguiu logo para os quartos , onde a Rainha exigia sua assistencia . Luiz de Sousa e Vasconcellos , muito novo , muito gentil com seu fato de côrte , acanhavam-o os seus dezoito annos , em meio dos velhos capitães , conselheiros , diplomatas , que , pouco a pouco , haviam entrado e enchiam agora o salão . Approximou-se d' elle o Conde de Cantanhede . Luiz de Sousa passava a mão pelos cabellos , puxava pelo buço que mal vinha despontando e córou quando , familiarmente , o Conde lhe poz a mão sobre o hombro . -- Tão tarde chegaste ! Tua mãe esteve doente ? Então explicou os motivos da demora : o pae , que esperavam a todo o momento , a mãe , que tudo por suas mãos queria ordenar sempre , negocios nos tribunaes ... E o Conde de Soure , que d' elle não tirava os olhos , dizia para D. Rodrigo de Menezes : -- Que bello sangue gira n ' aquellas veias ! A mãe , fica-lhe o nome na historia . Que nobres sentimentos a heroina deve ter inculcado ao filho ! Como ella soube tudo mover para que se aprestasse o navio que havia de salvar o marido preso em Cartagena de Nova Granada ! Com que prudencia ! Com que valor ! Lembra-vos decerto . E em Monsão ? Era então o Conde governadôr de Entre-Douro e Minho . Estavam no combate empenhadas todas as tropas , á doida . Já era morto o capitão||_Rodrigo_de_Sousa_Coutinho Rodrigo|_Rodrigo_de_Sousa_Coutinho de|_Rodrigo_de_Sousa_Coutinho Sousa|_Rodrigo_de_Sousa_Coutinho Coutinho|_Rodrigo_de_Sousa_Coutinho , quando Christovam Mousinho , saindo com os seus para fóra dos vallados , deu com sua imprudencia maior animo aos inimigos . A Condessa desde Monsão reconhece o perigo que estavam correndo as nossas tropas . Desce ao rio , faz conduzir a toda a pressa duas peças de artilharia e a tempo tão proprio as põe jogando , que maior pressa que as balas para attingil- os , mostraram na fuga os castelhanos . A historia das nossas guerras ha de citar sempre o nome da Condessa . -- Decerto , confirmou D. Rodrigo . -- O Conde é um santo , continuou D. João da Costa . Um heroe tambem . Toda a historia em Cartagena lembra aventuras d' um romance de cavallaria . Arribando áquella terra , depois d' um violento temporal , ali o surpreende a noticia da acclamação do Duque de Bragança ; planeia deitar mão aos galeões castelhanos , carregados de prata ; é traído , preso e posto a tormentos ; condemnado á morte ; com as mãos aleijadas pela tortura , consegue , ainda assim , descer por uma corda desde a fortaleza até á praia , embarcar e fugir ! Com maior prazer em seus governos se tem vingado agora dos castelhanos . Mas ainda mais uma virtude ; todo o dispendio da guerra tem saído de seus cabedaes . -- Um só defeito lhe condemno , disse D. Rodrigo , defeito grave nos que teem de governar . -- Qual ? perguntou o Conde de Soure . -- Urbano de mais , temeroso de offendôr qualquer , duvida sempre , porque a todos quer deixar satisfeitos . -- Tendes razão , disse D. João da Gosta . E como n ' esse instante , o Conde de Cantanhede novamente se approximasse da janella , acompanhado por Luiz de Sousa , D. João , pondo a mão sobre o hombro do herdeiro do Conde de Castel Melhor , e como se este até ali o tivera ouvido , disse-lhe com singular ternura : -- Rapaz , livre-te Deus da virtuosa herança . E poz-se novamente a olhar para o Infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso . Luiz de Sousa approximou-se . E disse o Conde de Cantanhede : -- Houvera um homem em Portugal ! Luiz de Sousa olhou para elle . -- Vês aquella creança ? D. Theodosio está expirando e com elle a melhor esperança de nós todos . Não ha confiar na saude d' El-rei , que o profundo desgosto vae abalar muito mais . Será regente a Rainha por uns annos -- Deus a alumie ! -- depois ... aquelle pobresinho ha-de ser rei . Calou-se . Passados instantes , repetiu : -- Houvera um homem em Portugal , que , a corôa na cabeça , o sceptro nas mãos , segurasse d' aquelle fantasma ! O manto real é largo , e onde se abriga uma sombra ainda póde caber um homem . Luiz de Sousa escutava attento . Passou-lhe um clarão pelos olhos . Reparou no Infante pequenino , que já não sorria , que falava colerico ao criado . Houve um borburinho na sala . Era o arcebispo de Lisboa , capellão-mór , D. Manuel da Cunha , que fôra chamado a toda a pressa . Correram alguns para beijar-lhe o annel . Velhos militares dobraram o joelho , que o arcebispo era de todos estimado . Muito velho , magro , amarello , resequido , de faces amachucadas como pergaminho , com tremulos passos , muito vergado , lembrando uma mumia , atravessou offegante , o salão . E todos então se lembraram da graça que elle um dia dissera a D. Theodosio , quando declarado " Principe do Brazil : -- " Dou os parabéns a V. Alteza de o vêr Principe do Outro Mundo " . E D. Theodosio , rindo , respondêra : -- " Similhante nova só m ' a podia trazer um embalsamado ! " Corria agora a deitar-lhe a ultima absolvição . No encalço do arcebispo entrou o Conde de Abrantes , o mais velho dos fidalgos portuguezes , tão velho que sabia contar o grande alvoroço de Lisboa antes da partida do exercito para Alcacer-Kibir , El-Rei D. Sebastião percorrendo a Rua Nova em meio da mais opulenta comitiva de fidalgos , que jámais se houvera visto , em terras da christandade , e o luto ao chegar a noticia da derrota , e as tropas do Duque d'Alba entrando a ponte de Alcantara , e os negros sessenta annos de captiveiro ; tudo sabia contar o Conde de Abrantes . Atravessára uma noite muito longa ; já muito velho vira raiar uma aurora . Para que darem-lhe na decrepitude uma esperança , se tão curto lhe havia de ser o dia ? Com a mão na testa , ensombrando os olhos contra a luz que entrava em jorros pela janella , com um tremor senil da cabeça toda branca e das pernas já sem forças , hesitava em meio da sala , e a todos doía contemplar-lhe a dôr . -- Dê-me a sua mão , sr.||_Conde Conde|_Conde , disse Luiz de Sousa , approximando-se do velho meio cego . A porta por onde saíra o arcebispo tornou a abrir-se e apareceram os dois medicos , logo por todos , anciosamente rodeados . Só Paio Martins falava . Martim dos Reis , muito mais novo , de mãos cruzadas sobre o peito , ouvia humildemente . Com repetidos signaes de cabeça approvava as opiniões do collega , seu velho mestre , eruditamente salpicadas de latim . -- Provêm os achaques do Principe , sympathice , do grande estillicidio que lhe caíu no peito et , ideo pathice , de haver eleito seus remedios , muitos mezes , por filosofia propria . Ad tempus , se a tempo fôra chamado ... Luiz de Sousa encaminhou o Conde de Abrantes para junto da janella . No jardim travára- se lucta entre os dois irmãos . O Infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso , choroso , não queria largar o cavallo , a cujo pescoço se agarrava desesperadamente . A pequenina choramigava ; o moço , com um ar apatetado , não sabia que opinião seguir , falando a um , falando a outro . Até que D. Pedro , de dente ferrado no beiço , agarrou n ' uma das pernas do irmão e derrubou-o da sella . N ' isto , um grito enorme de dôr horrivel atravessou a casa . -- A Rainha ! disseram vozes assustadas . E todos logo perceberam . Ia descendo o sol do dia esplendido de maio . O Conde de Abrantes e D. Luiz de Sousa , encostadas as cabeças aos vidros da janella , ambos choravam . O final d' uma tragedia seria principio d' outra . Reinava na sala um profundo silencio , como se aquella hora todos esmagasse , todos convencidos da sua gravidade . Lá no jardim , D. Affonso , sentado n ' um degráo de pedra , com o beiço a tremer de raiva impotente , queixava-se á pequenina , que o consolava , passando-lhe as mãos pelo cabello , sorrindo-lhe , mostrando-lhe as suas lagrimas . Luiz de Sousa olhava para elle e sentia o coração a doer-lhe , cheio de piedade . -- O Principe ! mormurou . -- Morreu ! disse o Conde de Abrantes . O sino da capella proxima começou dobrando a defuntos . O pequenino D. Pedro saltou para cima do cavallo , ajudado pelo moço , já todo do lado d' elle , dizendo-lhe segredos , piscando-lhe o olho , apontando-Ihe o irmão que chorava . O sol ia a descer glorioso . Umas nuvens muito altas pareciam de seda purpurina , agaloada de carbunculos e rubins . Passavam pardaes em revoada em busca das arvores que se tingiam d' oiro por toda a encosta . Rolavam pombos no telhado seus amores alegremente , e tudo era paz , tranquillidade , vida na natureza a sorrir-se na tarde esplendida de primavera . A luz do poente circumdou d' uma aureola d' ouro a cabeça muito branca do Conde de Abrantes e o rosto deloridamente inspirado de Luiz de Sousa . Passaram duas andôrinhas voando na brisa que se perfumara roçando as flôres silvestres da Tapada . E o infantesinho victorioso , lindo , de cabellos esvoaçando ao vento , balouçava-se , intrepido , no cavallo , erguendo o braço direito n ' um gesto de triumfo ! Era um encanto sua infancia resplendente , de si mesmo luminosa , e toda banhada pela luz do sol ! Já em todas as freguezias e conventos da cidade dobravam os sinos a defuntos . PRIMEIRA PARTE A REGENCIA Cerco á quadra ! Sentados , atraz d' uns penedos encostados á muralha , muito embrulhados nos capotes por causa do frio , conversavam os dois alferes e o padre . -- Melhor sorte nos traga o anno do Senhor de mil seiscentos e cincoenta e nove , dizia o clerigo , acommodando-se n ' um pedregulho e arrumando as pernas com um gemido . -- Melhor sorte ! exclamou o alferes Pero Rolão , com os olhos azues muito esbogalhados . Apanhaste-me hontem quatro cêrcos a fio ! -- Melhot sorte ! disse a rir Manuel Furtado . Que mais quer elle do que esta doce paz , suavissima tranquillidade , socego infinito , ociosidade bemdita que nos outorga , generoso , D. Luiz de Haro , cercando-nos n ' esta praça d' Elvas ! -- Uma gallinha para o Conde da Torre custou hontem sete mil reis e as caixas de doce já não teem preço ! soluçou o padre . -- Não fales em coisas tristes , interrompeu Pero Rolão . Meu querido estomago , que tão amimado eu sempre trouxe , e agora tão merencorio ! ... Para mim tenho a minha filosofia ; mas elle , coitado , nunca foi dado a humanidades . -- Tendes o pão fabricado com o suor dos nossos soldados , riquissima agua da cisterna , e ainda vos queixaes , patifes Deus nobis haec otia fecit ! E se houve aqui sillabada , o padre||_Ventura Ventura|_Ventura que a emende . Que nos falta ! Bella mesa , lindas mulheres , noites conchegadas em camas fôfas ... E Manuel Furtado poz-se a cantarolar . -- Descalça vai para a fonte Leonor pela verdura . Vai formosa e não segura . -- Cala-te com a cantiga disse Pero Rolão . Mal hontem te puzeste a cantar , veio-lhe a sorte ao reverendo ! Mas o padre erguera-se , horrorisado . -- Chita , diabo ! Todo elle tremia . Os dois alferes puzeram-se de pé e desmaiou-lhes a côr nos rostos . Um cão goso , amarello , chagado , muito magro , passava , com os olhos ferinos , injectados de sangue , levando atravessado na bocca o braço d' um homem . E ' que já não havia tempo nem logar para enterrar os mortos . Os castelhanos que , desde outubro cercavam Elvas , julgavam que eram mais na praça os soldados que os mantimentos , e esperança tão mentirosa os alentava pacientes nos quarteis em volta da cidade e " a fome nol- os entregará " diziam . Mas a peste dizimára a população . De onze mil soldados , que se haviam recolhido entre as muralhas , não chegavam agora a mil os que estavam capazes de tomar armas . Dias houve em que morreram trezentos . Não convinha sepultar os cadaveres fóra das muralhas para não tirar os inimigos do engano em que descançavam ; não podiam abrir-se sepulturas no fosso que era de pedra ; breve se encheram as das egrejas ; nos terraplenos das muralhas já eram mais os mortos do que a terra . Os cães e os corvos padeceram menos fome do que a gente . Durava o cêrco havia mais de dois mezes . D ' onde estavam , viam os alferes o campo castelhano fortificado , a barraca luxuosa que D. Luiz de Haro mandára construir , e as tendas dos generaes . O exercito invasor compunha-se de quatorze mil infantes , cinco mil cavallos , artilharia , munições , mantimentos e grande numero de carruagens . Apenas o valido d' el-rei||_D._Filippe D.|_D._Filippe Filippe|_D._Filippe IV de Castella , deliberou rogar a sea amo lhe désse+esse o commando do exercito com que havia do entrar em Lisboa , conforme arrogantemente affirmava , bandos não foram precisos , nem editaes . Correram , pressurosos e lisongeiros , a cantar victoria os melhores officiaes , a sentar praça o melhor da nobreza . Dinheiro nao faltava : grossos cabedaes de particulares . Era capitão-general do exercito D. Luiz Mendes de Haro , marquez del Carpio , cavalhariço-mór d' El-rei e chanceller-mór das Indias . Todos queriam agradal- o . Governadôr das armas era o Duque de S. German ; general da cavallaria o Duque de Ossuna . -- Formosos quarteis ! disse Pero Rolão mostrando o punho ao arraial castelhano . E nós aqui nem os sete palmos de terra que sao devidos a todo o christão quando morre ! Dente de cão ... e é favor ! Manuel Furtado já sacudira o torpor em que o puzera a visão horrorosa . -- Vamos , Pero , não te queixes do luxo dos quarteis castelhanos , porque havemos de lá entrar um dia que não tarda . O padre resava , benzia-se ... -- A guerra , disse em tom de voz cavernosa , a guerra ... -- Não botes sermão . Senta-te , rapaz . O Pero vai pôr-te quatro cartas de apetite em cima d' esta pedra ... Ainda tens dinheiro ou já o fundiste nas orgias ! A fisionomia do padre illuminou-se . Olhou , tentado , para as cartas que Pero Rolão , deitado de bruços , ia baralhando methodicamente . -- Não me ponhas um conde na mesa , que me perco ! disse , já esquecido de maiores miserias . Ainda os distraíu uma bomba jogada por um dos morteiros do forte de Nossa Senhora da Graça e que lhes passou assobiando por cima das cabeças . -- Saude ! gritou-lhe Manuel Furtado . -- Raios partam os castelhanos ! Nem para um montesinho nos deixam socegados ! queixou-se Pero Rolão . O Padre benzera-se . A bomba estourou . -- Dominus tecum ! disse o Furtado . pero Rolão começou outra vez a baralhar , não houvesse o padre , aproveitando a distracção em que o puzera a bomba , feito malicioso pescanço a alguma carta . Andavam n ' aquella lucta desde o principio do cêrco . O capital não passava de meia duzia de cruzados , que não havia maneira de aquietar n ' um bolso . Padre e militar desconfiavam muito um do outro ; frequentes vezes trocavam as maiores injurias ; mas logo no dia seguinte se buscavam , mais podendo o vicio que o resentimento . Manuel Furtado contentava-se com velos . O dinheiro era pouco e não o tentavam cartas . Sentia entretanto muita vez na alma impulsos e ambições de jogadôr . Mas as paradas tinham de ser outras . Pouco lhe importava arriscar a vida , mas o premio , que às vezes sonhava , a ninguem o dizia . Filho d' um velho capitão da India , morto na fronteira logo ás primeiras escaramuças da guerra da restauração , passara em Lisboa uns annos , vivendo com sua mãe da pequenina pensão laboriosamente conquistada pela viuva , repellida muita vez , voltando ao sotão em que viviam lavadinha em lagrimas . E elle , uma criança , pensava que a lucta na vida não era só expôr-se um homem á morte , a peito descoberto contra balas e partasanas . Outra havia de risco maior e melhor resultado e n ' ella tinha de vencer . Quando ? Como ? ... Fiava-se no acaso , fiava-se na tempera em que horas de miseria lhe haviam posto a energia . Tinha quinze annos apenas , quando a mãe lhe morreu . Embrulhou-a n ' um lençol , deixou-a dôrmindo para sempre no adro da egreja do Salvadôr , e , depois de haver devotamente beijado a pedra que recobria a adôrada reliquia , correu a sentar praça . Andou pelas provincias , sempre a mudar de terço e de capitães , na grande confusão de ordens e de contra-ordens , em que nem governadôres nem soldados se entendiam . Subira postos . Alferes , havia meia duzia de mezes , sonhava dia e noite com as insignias de capitão . -- Jógo ! Jógo ! gritou o padre encantado de ver na mesa um conde de copas . Jógo um vintem contra esse diabo ! Manuel Furtado poz-se a cantarolar . pero Rolão , cheio de agoiros , olhou para elle desconfiado , Tirou vima carta , depois outra ; o padre ganhava sempre . -- Descalça vai para a fonte Leonor pela verdura . Vai formosa e não segura . cantava Manuel Furtado . E o padre , augmentando as paradas : -- Um rei ... um az ... um duque ! Paga , Rolãosinho ! O Rolão furioso pagava . Entretanto , por um caminho superior , vinham-se aproximando o mestre de campo general D. Sancho Manuel e o general de cavallaria André de Albuquerque . Chegaram a tempo em que Pero Rolão d' olhos saídos , raiados de sangue , dizia ao padre||_Ventura Ventura|_Ventura : -- Ladrão , marcaste os condes ! Tinha perdido doze vintens . Manuel Furtado poz-se a rir . -- Culpa foi tambem da tua cantoria . Puzeste-te com ella á ilharga do padre . Que demonio ! Sempre , sempre : Vai formosa e não segura ! Vai formosa e não segura ! -- Que queres ? Quando me vejo triste ... -- Agoiras os teus amigos ! -- Lembro-me d' ella e passa-me a tristeza . -- Custou-me doze vintens o teu remedio ! -- Tristeza remedio de tristes , disse-o Luiz de Camões . Consola-te com ella . D. Sancho Munuel e André de Albuquerque pararam junto da cortina , por cima d' onde os trez rapazes se achavam , sem que nenhum d' estes reparasse na perigosa visinhança . O Padre||_Ventura Ventura|_Ventura contava os vintens ! pero Rolão bufava ; Manuel Furtado monologava ... ou conversava com os amigos , nem elle sabia . -- Maria da Boa Hora ! ... Que linda era ! ... Uns olhos côr da noite com mais luz que uma aurora ! -- Até rimaste ! disse o padre mettendo na bolsa o dinheiro . -- Ai , padre , dei cabo das rimas em ora ! E um signalsinho que tinha no beiço ... Tu , padre , não entendes nada d' isto . Um signal com que um homem , só de vê-lo , se embebedava ! Mais branca do que uma pomba e os cabellos negros como a aza d' um corvo ! Quando , ha dois annos , estive em Lisboa ... Como voaram aquelles quinze dias ! ... Esquecia-me dizer-te que a minha Venus tinha um defeito . -- A tia , disse o padre . -- Como o sabes ? -- Se já me constaste a historia trinta e duas vezes ! -- Mil e uma teremos de atural-a , disse Rolão ao padre||_Ventura Ventura|_Ventura , começando a preparar as pazes , não fosse perder o parceiro . -- Se não posso calar-me ! ... E continuou na ladainha das perfeições da sua dama , em quanto D. Sancho Manuel , cá em cima , explicava a André de Albuquerque como , para introducção na praça do soccorro que esperava do Conde de Cantanhede , lhe parecia acertadissimo o parecer de D. Luiz de Menezes . E explicava , apontando para os quarteis do inimigo , os postos do rio Caia , e o forte de Santa Luzia , como seria facil ludibriar o inimigo . André de Albuquerque não concordava , seguindo o parecer de Diogo Gomes de Figueiredo . O valor dos portuguezes não necessitava de industrias nem a gente , pela maior parte bisonha , dava logar a grandes operações . Era investir as linhas com as espadas na mão , ao favor das baterias da praça , da sortida da infantaria e da misericordia de Deus , Nosso Senhor . Desde que D. João da Costa , Conde de Soure , trocára os campos de batalha pelas missões diplomaticas , não havia em Portugal dois cabos de guerra como aquelles . Fôra D. Sancho Manuel vencido em conselho , mas continuava teimoso em sua opinião . Tornava a explicar . Cá em baixo , d' olhos em alvo , Manuel Furtado redizia as graças da sua bella . -- Uma palavra não trocámos , uma só carta não pude áquellas mãos passar , em que puzera minha ventura . Outro defeito ainda tinha , além da tia muito ciosa de sua virtude ... -- Mais um ! exclamou o padre . Ah ! já me lembra : cantava versos d' esses poetas d' agora ... -- E eu cantei-lhe Camões e Bernardim Ribeiro e Francisco Rodrigues Lobo e versos meus . -- Os quatro maiores poetas que ha visto a nossa terra ! -- Ah ! meus amigos ! Dava-lhe eu de noite a minha musica ... E tanta foi que os visinhos se queixaram ... Que noites ! ... Até que uma vez ... -- Cantou ella o que tu cantavas , interrompeu o padre . -- Unica prova que tive de seu amor ! E , logo a toda a voz , Manuel Furtado poz-se a berrar : -- Descalça vai para a fonte ... Só então deram por elle os dois generaes . E tanto a alegria de tanta mocidade contrastava com a desgraça da guerra , que os dois quedaram-se um momento , olhando para o grupo , como enlevados . Tanto havia que não ouviam cantar ! -- Doido estarei , mas que importa ? A imagem que me acompanha me dá forças . Vejo-a sempre ante meus olhos . Queria encher-me de gloria , para glorioso me ajoalhar a seus pés ! E , se me rodearem os terços castelhanos e uma bala me encontrar em seu caminho , vendo um anjo á hora da minha morte , morrerei contente ! D. Sancho Manuel , a sorrir-se , olhou para André de Albuquerque . -- Em que pensaes ? perguntou-lhe . Sabia que o valente general amava apaixonadamente a noiva , D. Anna de Portugal , filha segunda de D. João d'Almeida . Um sorriso de felicidade despontou sob o farto bigode do velho militar , illuminou-lhe com viva côr as faces queimadas pelo sol , alegrou-lhe o doce olhar , que logo pousou em Manuel Furtado com meiga sympathia . -- Se te rodearam os terços castelhanos ! ... disse Pero Rolão . Quando o trigo se acabar na cidade e todos morrermos á fome , hão de elles rodear-nos , mas é n ' um bailarico . Entrámos para aqui sem dever , já d' aqui não sahimos . -- A culpa foi de quem nos manda , disse o padre||_Ventura Ventura|_Ventura , sentenciosamente . -- Que diz elle ? perguntou André de Albuquerque franzindo o sobr'olho . -- Opiniões de clerigo , respondeu D. Sancho Manuel , rindo e encolhendo os hombros . -- Para que levantámos nós o cêrco de Badajoz ? Para que deixamos chegar os castelhanos a S. Francisco sem ao menos retirar do mosteiro o Conde camareiro-mór expirante ? -- Joanne Mendes breve ha-de ser julgado porque abandonou a empreza de Badajoz ; mas saberá defender-se , disse Pero Rolão . -- E o Conde ? ... Não foi uma vergonha ? ... -- Sempre me ha-de lembrar ... disse Manuel Furtado , repentinamente sério . Foi elle que não quiz recolher-se á cidade ... Com o rosto furado por uma bala ... Um ferimento horrivel ! Sobre veio-lhe a febre ... perdeu o juizo . Tinha a espada á cabeceira ... Gritava que só elle defenderia o convento contra o inteiro exercito de Castella ... Os primeiros que entraram matei-os eu com duas pistoladas ; abri depois caminho á ponta da espada ... -- Manuel Furtado , disse baixo André de Abuquerque a D. Sancho . -- E ainda vi o Conde , com a cabeça envolta em pannos ensanguentados , delirante , a brandir com os braços mirrados uma espada chimerica ! -- Conheceis aquelle alferes ? perguntou D. Sancho . -- De nome , respondeu André de Albuquerque . É um valente . -- E um companheiro enamorado , accentuou o mestre de campo , provando ao general que bem lhe percebera os motivos da sympathia . -- Fallam agora de soccorros ... Alimentam uma esperança , já que o mesmo ás barrigas não sabem fazel- o . Se eu fosse mestre de campo general ... E o padre poz-se de pé , para provar como em dois dias desbaratava o poderoso exercito de D. Luiz Mendes de Haro . -- Olhai ! -- O padresinho é atrevido , disse D. Sancho Manuel ao general . Punhamos-lhe ponto na rhetorica . Mas já Pero Rolão , adeantando-se ao governadôr da praça , com a mão papuda abatêra o gesto eloquente d' aquelle extremado capitão a despontar n ' um clerigo . -- O que tu queres é escapar-te á desforra ! -- O padre sorriu-se . Se apanhasse os seis cruzados inteirinhos ao alferes ... -- Eu ... ! Nunca ! ... Um portuguez de quatro costados nunca foge ! Venham as cartas ! Com os mesmos gemidos queixosos tornou a sentar-se . pero Rolão tirou quatro cartas , que collocou em cima d' uma pedra . Era uma d' ellas a quadra de paus . Sem saber porquê , Manuel Furtado tentou-se . Tinha na algibeira uma moeda castelhana . -- Dás licença ? disse a Pero . Jogo-a de cêrco á quadra . Quero perdel-a , porque é castelhana e porque ... infeliz ao jogo , feliz nos amores ! pero Rolão não teve tempo para voltar o baralho . Contornando o penedo , que occultava os jogadôres , surgiu-lhe pela frente o mestre de campo . O olho muito azul pasmou ; a bocca escancarou-se . Manuel Furtado poz-se de pé e cumprimentou D. Sancho Manuel , como garboso militar . Este franzira o sobr'olho . Trazia na mão direita um junco . Com a esquerda arripiava o bigode . -- Bom passatempo de soldados portuguezes , quando o inimigo ali defronte continuamente nos insulta , quando tantos camaradas nos morrem e não ha mãos piedosas que os enterrem . O padre pensava , e com razão : -- Mas quem ha-de responder ao inimigo ? Mas onde a terra para cobrir os mortos ? O beiço de baixo de Pero Rolão tremia-lhe como em terçãs . Manuel Furtado enfiára . Não se lhe mostrava a fortuna favoravel . André de Albuquerque approximou-se . -- É V. Mercê Manuel Furtado , quem nos primeiros dias do cêrco acompanhou um comboio de mantimentos , o ultimo que entrou em nossa praça ? -- Eu fui , senhor . -- Além do trigo trouxe V. Mercê sete prisioneiros e quatro cavallos ? -- E verdade , senhor . -- Tendes o chapéu enfeitado com um furo de bala ao lado da pluma . Foi dadiva dos castelhanos essa noite ? -- Fôram generosos , agora o vejo , disse Manuel Furtado curvando-se gentilmente . D. Sancho Manuel atalhou n ' este ponto a conversação . Voltando-se para o padre||_Ventura Ventura|_Ventura , disse-Ihe ironicamente : -- Hei-de chamar V. S.ª a conselho , se me quer dar tamanha honra . Os joelhos do padre batiam um no outro como castanholas . D. Sancho voltou-se para André de Albuquerque e disse-lhe : -- Vamos ! E baixinho accrescentou : -- Se eu jogasse , era na quadra . Os tres ficaram silenciosos , extaticos , Pero Rolão , sem fala , d' olho pasmado , o padre a tremer como varas verdes . Outra bomba sibilou por sobre elles , mas , ainda antes que rebentasse , Manuel Furtado , que ouvira D. Sancho , apanhou o dinheiro de sobre a quadra e , mettendo-o na algibeira , disse victoriosamente : -- Ganhei ! As linhas d' Elvas Posto de joelhos , beijando a mão da Rainha , dissera-lhe o Conde de Cantanhede , eleito governadôr das armas para o soccorro da praça d' Elvas : -- Eu parto . Senhora , a Extremoz , a obedecer a V. Majestade , e espero na justiça da causa que defendemos e nos valerosos animos dos vassallos de V. Majestade que brevemente hei-de voltar aos pés de V. Majestade a render-lhe a gloria de vencedôr do exercito de Castella . Havia dois annos que El-rei||_D._João D.|_D._João João|_D._João expirára e a Rainha||_D._Luiza D.|_D._Luiza Luiza|_D._Luiza , ralada de desgostos , vira anciada por negros , irrequietos agoiros , acclamar seu filho D. Affonso rei -- Portugal . Regente , mais que as luctas contra Castella , combates intimos despedaçavam seu coração de mãe . Ferviam as intrigas no Paço , e a mão da Rainha , cançada do esforço com que segurava o sceptro , mal sabia reger o filho . Era D. Affonso quasi um homem ; mas a paralysia de que fôra em pequenino atacado parecia não lhe haver deixado inteiras as faculdades . Já em conselho , antes da acclamação , alguns haviam emittido parecer favoravel ao adiamento da cerimonia . Em torno da creancinha formára- se , crescia a desconfiança . Distraía-se D. Luiza tratando da guerra , em defeza da patria que havia escolhido ao casar com o Duque de Bragança . Desviava assim do pensamento mais espinhosos cuidados . Partira para Extremoz o Conde de Cantanhede . Grandes , complicadas difficuldades venceu , das povoações tirando as levas necessarias para commetter sua empreza . A um fraco exercito de gente quasi toda bisonha juntou as guarnições de Juromenha , de Villa Viçosa , de Borba , de Campo Maior , de Arronches e de Monforte . Na segunda-feira , 13 de Janeiro de 1659 , occupava o exercito as collinas da Assomada , d' onde toda a praça d' Elvas se descobre . Logo disparou a artilharia a dar signal de sua chegada ; responderam-lhe com repetidas salvas a praça e o forte de Santa Luzia . Entrou finalmente a esperança no coração dos sitiados . Doentes e sãos saíram de seus alojamentos , contentes , em alvoroço , dispostos a pegar em armas . D. Sancho Manuel , vestido de galas , com o chapéu ornado de plumas , como costumava em occasiões solemnes , prazenteiro e gentil , montou em seu cavallo de batalha . Avistou Manuel Furtado e disse-lhe : -- Amigo , quereis desenferrajar os braços , para tel- os ámanhâ bem dispostos ? E , sahindo da praça com a cavallaria , carregou furiosamente as sentinellas e companhias da guarda do quartel da Côrte , que lhe nao puzeram resistencia . Voltaram . Manuel Furtado trazia pela redea dois cavallos do inimigo . D. Sancho Manuel sorria . Ao recolherem para dentro da cidade , o mestre de campo voltou-se para o alferes e perguntou-lhe : -- Que nome tem ella ? Manuel Furtado sentiu todo o sangue do coração a subir-lhe ás faces . -- Boa Hora , respondeu . -- Que te queria o mestre de campo ? perguntou Pero Rolão , que trotava ao lado do companheiro . André de Albuquerque parára á porta vendo desfilar a cavallaria . Reconheceu os alferes , fez-lhes um pequenino signal com um riso dos olhos . -- Ando com má sorte ! dizia dolorosamente Pero Rolão . Não ha no exercito cavallo com trote mais duro . Então desde que emmagreci ... Que te disse D. Sancho ? -- Que em boa hora o encontrei , respondeu Manuel Furtado . Boa Hora ! ... Com alegre impulso haviam os soldados do Conde de Cantanhede acclamado a sortida de D. Sancho Manuel . A praça , com seu aspecto formidavel , parecia dominar todos os quarteis do inimigo . Mal sabiam em que cemiterio se tornara , quantos , ainda vivos áquella hora , não veriam amanhecer o novo dia . Ignorantes de tantas miserias , acclamavam a victoria que tinham por certa . Em mais fundada razão confiados , sorriam desdenhosos os castelhanos . N ' esse mesmo dia lhes havia chegado um reforço de tres mil infantes e quinhentos cavallos . Era o exercito portuguez formado de gente nova e mal disciplinada . Passado o primeiro ardôr , nem seria gloria desbaratal- o . Causavam riso ao inimigo as tropas de soccorro ; infantaria toda composta de gente auxiliar e da ordenança ; cavallaria remontada das éguas das caudelarias ; os terços pagos , uns sem mestres de campo , outros sem capitães que os soldados conhecessem e respeitassem . Na barraca luxuosa , ornada com adereços e alfaias de alta valia , D. Luiz de Haro reunira seu conselho , cabos e officiaes praticos e valorosos , saídos da primeira nobreza de Hespanha . Para que discutir planos ? O exercito castelhano em seus quarteis esperaria o ataque das tropas portuguezas , faceis de desbaratar , e , quando Elvas fôsse tomada e guarnecida , sem outra fortaleza que em toda a provincia o detivesse meia duzia de dias , marcharia em facil triumpho , Alemtejo fóra , até á vista de Lisboa , que uma só fortificação não tinha a defendel-a . E o valído de Fillippe IV , despedidos os generaes , adôrmeceu tranquillo em seu leito opulento , recoberto por uma colxa bordada a ouro , e sonhou sonhos de gloria . Em casa do padre||_Ventura Ventura|_Ventura , Manuel Furtado não dôrmia , mas sonhava ; sonhava como Luiz de Haro . E , se houvessem de trocar as visões , não sei dos dois qual perderia . -- Sabes que ámanhã é dia julgado infausto desde toda a antiguidade ? perguntou Pero Rolão , que , desassocegado desde o encontro com D. Sancho Manuel , nunca mais pudera conciliar o somno . Manuel Furtado não lhe respondeu . O padre , que tambem não dôrmia , interrompeu o bichanar das orações . -- Infausto ! infausto ! ... -- Calai-vos , disse Manuel Furtado . -- Infausto foi o dia em que nasci ! -- Calai-vos , repetiu o alferes . Já deram duas e tres quartos na torre e ao amanhecer havemos de estar a cavallo . Se nos virem , com a noite perdida , mais pallidos que meninas , vão dizer que havemos medo . -- Quatorze de janeiro ! Só me faltava que fosse a batalha em quatorze de janeiro ! Que vai ser de nós ? suspirou Pero Rolão . -- Ou dos castelhanos , respondeu-lhe o companheiro . -- E d' ahi deixal- o . Antes uma cova lá fóra que dente de cão cá dentro . Desde aquelle maldito encontro ... O padre suspirou e repetiu : -- Desde aquelle maldito encontro ... -- Ando agoirado . Parece que me vou para o fundo . -- E eu ! exclamou o padre||_Ventura Ventura|_Ventura com um ai tão lá de dentro que Manuel Furtado poz-se a rir . -- Descançai ; eu vos puxarei pelos cabellos , quando fôr general e ministro ! O sino lá fóra bateu tres horas . -- Durmamos ! Sonhemos ! ... Já não temos senão uma hora para dôrmir e sonhar ! -- Nao digas isso ! bradou Pero Rolão cheio de agoiros . Mas nenhum mais dôrmiu . Uma hora depois , quando já vestido e prompto , Manuel Furtado abriu a janella , alegrou-se de vêr a estrella da manhã , branca , muito cheia de luz , a brilhar muita viva no céu purissimo . Lá de baixo , dos campos , vinha subindo , subindo uma neblina . -- Que lindo nome ella tem ! ... Maria da Boa Hora ! murmurou elle . pero Rolão batia o queixo com frio . -- Bebe , disse-lhe o padre , offerecendo-lhe uma gota de vinho branco . -- Devo-te um cruzado , disse Pero Rolão , pegando no copo . Se eu lá ficar , pede-o aos meus herdeiros e dize uma missa por minh ' alma . -- Cá fico rezando por todos nós , respondeu o padre commovido e abraçando os dois alferes . -- Resa por mim , que resas por ti , disse Manuel Furtado a rir . Vamos , Pero , não tremas , que póde alguem cuidar que te põem medo os castelhanos . O alferes sentia , no peito a aquecel- o o calor d' uma esperança . A neblina fôra subindo . Occultara as estrellas do céo . Logo de manha , por mandado de D. Luiz de Haro , saíra D. João Pacheco com alguns batalhões a reconhecer o exercito portuguez . Nem mudara de alojamento nem pegara em armas , á espera que a nevoa se desfizesse , em vez de aproveital-a . Grande erro havia commettido o Conde de Cantanhede , e o mesmo erro o salvou . Voltou D. João Pacheco e segurou a D. Luiz que não haveria n ' aquelle dia novidade , segundo o que observara . O capitão general castelhano mandou retirar da linha opposta ao exercito os terços e cavallaria , deixando apenas guarnecidos os fortins . André de Albuquerque , em trajos magnificos , com suas plumas voando ao vento , impaciente , mordia o bigode . Já Manuel Furtado o cumprimentara de longe . -- Logo estarei a teu lado , pensara . Em dia agoirento ha-de nascer a aurora do meu dia . Pedro Jacques de Magalhães , no baluarte do Principe , commandava vinte peças de artilharia das mais grossas e não ouvindo rumores de batalha , passeava , furioso , praguejando . Mas n ' isto o sol rompeu a nevoa e os sitiados viram o erro dos castelhanos e o Conde de Cantanhede , ao longe , arengando as suas tropas . Tocaram caixas e trombetas , estenderam-se as bandeiras o poz-se em marcha a vanguarda , mil infantes escolhidos , com sons mosquetes , pistolas , partezanas , espadas e rodelas . Todo o exercito portuguez acclamava o Conde de Cantanhede e suas palavras cheias do enthusiasmo e de amor patrio . -- Até que emfim ! exclamou André de Albuquerque . E , pelas Portas da Esquina , saíndo com a sua gente , marchou a formar-se junto ao ribeiro que corre entre a cidade e o forte de Nossa Senhora da Graça occupado pelo inimigo . D ' ali correria em soccorro do exercito , como e quando o tivesse por mais conveniente . Continuavam os portuguezes caminhando em boa ordem , levando cada soldado em sua alma a certeza da victoria . A maior parte entrava em fogo pela vez primeira aquella manhã . Temiam os capitães o effeito que n ' elles obrariam os primeiros tiros e iam-Ihes repetindo , para animal-os , as palavras do Conde . Aos primeiros mil infantes seguiam-se os cinco terços de tres mil homens , commandados pelo Conde de Mesquitella . Guarneciam-lhes os flancos dezaseis batalhões de cavallaria , com mil e duzentos homens . Constava a batalha , a cuja frente marchava o governadôr das armas , de dois mil infantes e de outros dezaseis batalhões com novecentos cavallos . Era a reserva de dois mil infantes . Oito batalhões seguravam as bagagens . -- A ' vante ! ... A ' vante ! ... gritavam os capitães . Retiniam na serra os eccos das caixas e trombetas . -- Olá , vós ! disse André de Albuquerque a Manuel Furtado . Vêdes aquelle outeiro ? É logar muito exposto ; mas na vossa edade o perigo é coisa de tentar . Levai comvosco vinte cavallos e avisai-me do que houver . N ' um só movimento d' olhos escolheu Manuel Furtado os homens que haviam de acompanhal- o no arriscado lance . Metteu esporas ao cavallo e galopou alegremente . Subira Affonso de Mendonça a uma eminencia e , fazendo jogar as peças , levou o primeiro sentimento de terror ao coração de D. Luiz de Haro . Continuava o exercito em seu caminho e ainda não voltara a si da surpreza o general castelhano , reconhecendo o desgraçado engano que padecêra . Rubro de vergonha e de colera , chamou os mestres de campo e os generaes , deu ordens e contraordens , montou a cavallo e subiu ao forte de Nossa Senhora da Graça , d' onde se pôz observando a marcha do exercito portuguez , clamando a todos que viessem defender as linhas , confusa e atabalhoadamente falando da honra da nação . Fazendo marchar os terços e batalhões , que ao acaso iam encontrando , maldiziam da má sorte o duque de S.||_German German|_German e o duque de Ossuna . Já Pedro Jacques de Magalhães começara fazendo troar a artiliiaria da praça , mas ainda mais do que balas sobro o exercito inimigo caíam d' elle as pragas sobre a cabeça de D. Luiz de Haro . Sitiado em Badajoz , nunca se atrevêra a atacar as fraquissimas linhas portuguezas ; não embaraçara , quando o exercito se retirou , a passagem do Caia , o que lhe seria empreza facil ; sitiara Elvas , deixando Extremoz e Evora , logares abertos ; só lhe faltava , para mais desastrado governo , deixar sem guarnição a linha opposta ao alojamento inimigo . -- Que mais quer para uma entrada triumphal em Madrid ? perguntava , ironico , o Duque de Ossuna . E a resposta envolvia-a nas mais sonoras exclamações castelhanas . Entretanto , pouco a pouco , foi unindo os batalhões que marchavam sem ordem , emquanto o Duque de S. German e o mestre de campo general formavam a toda a pressa os terços , que vinham de cada quartel , acudindo . D. Gaspar de la Cueva fez jogar a artilharia com pouco damno contra o exercito portuguez , quando já este ia chegando á linha , lançando as fachinas no fosso , saltando nas trincheiras , emquanto Pedro Jacques de Magalhães , desde a Praça , fazia furiosamente laborar as suas peças . Já dois terços , apesar das cargas repetidas dos castelhanos , se haviam formado dentro da linha . E D. Luiz do Haro , apavorado , perguntava se eram soldados bisonhos , se veteranos os que assim o atacavam , todos clamando victoria . Deu-lhe animo o avistar D. João Quintanal , o qual tendo recebido ordem para se oppôr á sortida da praça , e , por demasiada confiança , passado a noite fóra dos Olivaes para o lado do Campo Maior , vinha a toda a brida , ardendo em furia , á frente dos quinhentos cavallos de seu commando , com o fim de romper a infantaria victoriosa . Avistou-o Manuel Furtado . Encheu-se-lhe o coração de esperança . Tinha visto , a seu lado , caírem-Ihe doze homens dos que levára . O soldado , que lhe ficava mais perto , apontou para o inimigo , ia a falar , mas não chegou a dizer palavra , nem terminou o gesto ; uma bala de artilharia levou-lhe o braço . -- Será hoje ... ? pensou Manuel Furtado . E , emquanto corria a participar a André de Albuquerque a carga de D. João Quintanal , via a imagem de Maria da Boa Hora a sorrir-llie , a dizer-lhe muito amor com o meigo olhar de seus olhos negros . -- Nossa Senhora ! ... Maria da Boa Hora ! ... Ao receber a nova , André de Albuquerque puxou do peito alegre a ordem de avançar . Havia um claro entre os terços portuguezes e os batalhões castelhanos . Por ahi os investiu e , com tal impeto , que , pondo-os em fuga , muitos saltaram fóra das linhas , outros despenharam-se da serra . Em meio do alarido , entre nuvens de poeira , Pero Rolão , de espada em punho , com o olho muito espantado , veio collocar-se ao lado de Manuel Furtado . Respirava alto , inchando as bochechas . Já começavam na carreira a descer a serra , quando acudiu aos castelhanos espavoridos um grande troço de cavallaria , que os obrigou a formar de novo . -- Agora é que são ellas ! disse Manuel Furtado ao amigo . -- Agora ... pensa em tua dama ! gritou-lhe André de Albuquerque . E illuminou-se-lhe o rosto . Era aspera a serra , o sitio estreito . A lucta continuava . Chapou-se o cavallo do Conde da Torre . -- Com mil raios ! ... gritou elle , cambalhotando . Cercaram-o logo os inimigos . -- Acudam áquelle patarata ! gritou André de Albuquerque . E Manuel Furtado e Pero Rolão atiraram-se para a frente . -- Toma ! gritou Pero Rolão a um castelhano . -- Caramba ! exclamou este , e caiu . pero Rolão assoprou . -- Agora eu ! disse Manuel Furtado . E atirou-se intrepido para d' onde mais compactos os castelhanos vinham surgindo . O Conde da Torre recuperára o cavallo . Entretanto , os portuguezes acosssados pelo maior numero , fazendo varias voltas , retiravam devagar , dando logar a que os terços da vanguarda , fôssem , pouco e pouco , ganhando os fortins que guarneciam a linha . O Conde de Cantanhede , fundando esperanças de exito em tão bons principios , marchára com a batalha , todos os terços divididos em varias operações . Acudiu um grande troço de castelhanos a defender um forte ; investiram-o os batalhões da segunda linha . Vinha retirando a cavallaria portugueza , sempre defendendo-lhe á rectaguarda Manuel Furtado e Pero Rolão , animados pelo elogio de André de Albuquerque . Assim recuaram até o alto da serra e já começavam a descel-a , quando lhes acudiram os tenentes-generaes Tamaricourt e Diniz de Mello e Castro . Novamente os castelhanos viraram costas . Todos os fortes íam caíndo nas mãos dos portuguezes . Alastrava o terror nas fileiras do inimigo . O Duque de S.||_German German|_German , furioso , vendo inutil todo o seu valor , tentava reduzir os terços e cavallaria á forma conveniente , enviando seus homens onde mais urgente lhe parecia o soccorro . O duque de Ossuna com um grande grosso de cavallaria resistia tenazmente na linha opposta ao lado direito do exercito portuguez . D. Luiz de Haro , vencido pelo medo , não havendo sabido cuidar da saude do exercito , tratára da propria salvação , abandonando o forte da Graça e no melhor cavallo e mais rapido procurando abrigo nas muralhas de Badajoz . -- Diabos o levem ! disse o Duque de S. German , avistando-lhe as plumas brancas , que pareciam no alto do chapéu ir dizendo adeus pela estrada fóra . E metteu-se no unico forte que ainda faltava vencer . André de Albuquerque susteve a cavallaria na perseguição dos castelhanos desbaratados . -- Ali ! ... A victoria é nossa ! E , á frente dos batalhões , galopou para o forte em que o Duque de S. German se recolhera . Era a defeza desesperada . Caíra mortalmente ferido Luiz de Sousa de Menezes e o terço de que fôra mestre de campo , perdia terreno , já muitos soldados viravam costas ao inimigo , quando André de Albuquerque arrojou o cavallo para o centro do esquadrão exortando os que se retiravam . E , com a furia d' uma onda , todos se atiraram novamente contra a estacaria . Por todos os lados retiniam gritos de victoria . Ouviam-se ao longe os brados afflictos dos castelhanos em fuga , tão precipitada , que muitos morreram afogados nas aguas do Caia . Passavam pelos ares , sibilando , as bombas , que íam estoirar dentro do forte . -- Grande dia para vós ! disse André de Albuquerque a Manuel Furtado . -- Deve sêl- o , visto que m ' o affirmaes , respondeu o alferes . E que sonho de gloria o deslumbrou ! Era pela d' aquelle official valentissimo que havia de , de vencer . J ; á se via na côrte , engrandecido , ... Uma bala matou-lhe o cavallo , já na . Ergueu-se no mesmo instante . Uma lufada de vento abrira um claro na densa . N ' esse momento , Manuel Furtado avistou o Duque de S. German , arrancou a arma das mãos mosqueteiro , apontou devagarinho , deu fogo . O Duque caiu desamparado para traz . -- A ' vante ! A ' vante ! gritou o alferes . André de Albuquerque junto ás estacas e tocando-lhes com a bengala , advertia os soldados de como as haviam de arrancar . Um mosqueteiro castelhano apontava para elle mosquete . -- Derribei o Duque de S. German ! gritou Manuel Furtado . -- Que alegrias vamos ter ... disse André de AIbuquerque . Mas nao terminou a frase . Penetrára- lhe uma bala por debaixo do braço e elle caiu , amparado na queda pelo alferes . As estacas não haviam resistido ao valente impulso dos portuguezes . O ultimo forte estava-lhes nas mãos . Por todos os lados tudo eram gritos de victoria . Manuel Furtado sustinha sobre o joelho a cabeça do valente general expirante . Expirava-lhe tambem o sonho . -- Victoria ! ... Victoria ! ... murmurou André de Albuquerque , com voz desfallecida . Cerraram-se-lhe os olhos um momento . Encheram-se de lagrimas os de Manuel Furtado . -- Escuta ... Custava-lhe a fallar . Veio-lhe aos cantos da bocca uma espuma avermelhada pelo sangue dos pulmões . -- Escuta ... Aqui ... ao pescoço ... um retrato ... Leva-o comtigo ... Dize-lhe ... Abriu muito os olhos já sem luz . Pelos labios ainda lhe esvoaçou um sorriso . Rodearam-o todos afflictos , com os corações enlutados entre alegrias tamanhas . Tocavam cornetas , rufavam tambores . André de Albuquerque arquejava . Caíram-lhe no rosto as lagrimas de Manuel Furtado . -- Como dizias tu ? ... Morro contente ... Vejo um anjo ... na hora da minha morte ! ... Caíu-lhe o braço , percorreu-lhe o corpo um estremecimento , os olhos ainda mais se lhe dilataram , escorreu-lhe pelo canto da bocca um fio de sangue . -- Anninhas ! murmurou . E o alferes , a soluçar , agarrou-lhe nas mãos e beijou-as como doido . D. Sancho Manuel veio fora da praça receber o Conde de Cantanhede , acompanhando-o depois até á Sé , onde foi cantado o " Te-Deum " . Manuel Furtado , com mais tres homens transportando o cadaver do André de Albuquerque , entrou na egreja . Chamou-o D. Sancho Manuel e quiz , com muitas lagrimas , que lhe contasse os ultimos instantes de tão valente soldado . Repetiu o alferes as ultimas palavras do apaixonado general e mostrou a D. Sancho o retrato , formosa miniatura suspensa d' um fio d' oiro . Approximou-se o Conde de Cantanhede e soube por D. Sancho Manuel a derradeira vontade do heroe . -- Ide , pois , a Lisboa , disse o Conde a Manuel Furtado . Cumpri o doloroso dever de que vos incumbiu o vosso general . Eu vos encarrego tambem da mensagem para a Rainha , dando-lhe parte da nossa victoria . -- Volta-me o sonho ! disse entre si Manuel Furtado . O padre||_Ventura Ventura|_Ventura , rouco do enthusiasmo com que entoára o " Te-Deum " , veio ter com o alferes . -- Tanto rezei , que Nossa Senhora ouviu-me ! ... Heide apanhar os ultimos cruzados ao Pero Rolão . -- Hoje mesmo parto ! pensava Manuel Furtado . Atravessar o Alemtejo ... o Tejo ... ver a côrte , El-rei , a Rainha ... Maria da Boa Hora ! ... Encontrou Pero Rolão muito pallido , deitado de bruços nos degraus do adro . Assustou-se ao vêr-lhe o ar abatido , os olhos ainda mais fóra das orbitas . -- Estás doente ? -- Muito ! -- Ferido ? pero Rolão , mal podendo falar , disse que sim , meneando a cabeça desconsoladamente . -- Onde ? pero Rolão , olhou para elle . -- Onde queres que seja ? Diabo de cavallo ! ... Que galope tão duro ! Maria da Boa Hora Batiam onze horas da noite e Manuel Furtado , de capa caída , chapeu para a nuca , subia devagarinho pelas travessas ingremes e tortuosas da Mouraria . Escolhêra para voltar a casa o caminho mais longo . Deixava alto pairar a phantasia , percorrer caminhos luminosos . Sabia-lhe bem o silencio da noite . Nem a quem o accordasse poderia dizer que luz lhe fascinava os olhos , lhe abria nos labios um sorriso encantado . Olhava para as casas , todas silenciosas áquella hora , palacios velhos que um resto de luar branqueava e engrandecia , casarias pobres em que dôrmia o povo . Cruzou os braços e , mordendo o pollegar , ficou-se um instante a scismar , sorrindo sempre . Alguma linda imagem de mulher perpassaria ante seus olhos , alguma visão de gloria . -- Has-de ser minha ! ... murmurou . Sorriu-se ouvindo a propria voz . -- Estou doido . Continou subindo . -- Ou bebado . Chegára n ' aquella manhã com a nova da victoria . Que dia aquelle ! Queria rememoral- o , mas cada um de seus pontos luminosos era fonte de milhões de estrellas , que esfusiavam pelo céu . E já nem sabia o que fôra realmente nem o que a phantasia lhe criára a cada passo . Já a verdade lhe&lhes+o parecia um sonho e cada sonho que sonhara acreditava ser verdade . Dissera-lhe Pero Rolão vendo-o montar a cavallo : -- " Não te esqueças de entrar em Lisboa com o pé direito " . Dissera-lhe o " padre||_Ventura Ventura|_Ventura : -- " Deus vá comtigo ! " Entrára com o pé direito e Deus viera com elle . Quem lhe déra gravar na memoria para sempre cada minuto d' aquelle dia ! Mas como ? Era um sonho ; tudo se emmaranhava ! Mal tivera tempo para correr á velha casa tão cheia de recordações , ajoelhar no adro da egreja do Salvadôr , resar um padre-nosso pela mãe , rogar-lhe que lá do céo o protegesse . Mas só ahi tivera um máo instante . Maria da Boa Hora ! ... Que fôra feito da linda mulher , da que devia ser seu ultimo pensamento , se uma bala o houvesse levado ? Só n ' ella pensara durante a viagem , dia e noite , á redea solta pelas charnecas do Alemtejo , espalhando por villas e cidades a boa nova , sempre de espora nos flancos dos cavallos , rebentando-os , correndo , voando , e sempre com esta ideia : -- Vou vel- a ! ... Vou vel- a ! Que alegria , quando da falua que o transportava de Alcochete á praia de Xabregas , á luz da manhã muito serena , avistou as collinas de Lisboa ! Viu as torres da Sé e as de S. Vicente , e por ellas se guiou de longe , procurando o sitio do Salvadôr . -- Maria da Boa Hora ! Que seria feito d' ella ? Desapparecêra um dia , havia dois ou tres mezes , contara-lhe a boa Lourença . Havia de encontral-a ... Por Deus ! se havia ! Mas o desgosto foi breve , foi como lagrima pequenina no grande brazeiro em que lhe estava ardendo a fantasia . Que dia aquelle ! Decerto no aviso , que o Conde de Cantanhede mandára á Rainha com respeito á victoria alcançada , alguma fraze devia haver que ao portadôr se referia . Que lhe dissera D. Luiza de Gusmão dando-Ihe a mão a beijar ? Palavra a palavra , queria reconstituir o elogio . Estavam El-rei , a Rainha e a côrte assistindo ao sermão do primeiro dia de festa que a nobreza costumava fazer na freguezia -- Santa Engracia ao Santissimo Sacramento , em desaggravo do insulto que n ' aquella egreja lhe fôra feito no tempo do governo de Castella . Prégava D. Prospero doa Martires , e o sermão começado entre lagrimas terminou n ' um cantico de graças . Apontou o frade para Manuel Furtado , n ' um rompante de gongorismos ao divino , e para elle se dirigiram os olhos de toda a côrte . Baixou os seus o alferes , e tanta modestia attraíu- lhe as simpatias das senhoras mais edosas . O sacerdote no altar entoára o Te-Deum , e quando cantou : Sanctus , Sanctus , Sanctus , Dominus Deus Sabaoth , e todos ajoelharam , n ' esse instante , Manuel Furtado deu vista do reposteiro-mór , D. João d'Almeida , que olhava para elle cheio de anciedade . O alferes recordou-se da nova lutuosa , que tambem trazia , e deu-lhe um remorso de havel- o um momento esquecido . Reparou D. João no enleio do moço alferes e apertou-se-lhe o coração . -- Pobre Anninhas ! pensou . E , mal terminou a festa , approximou-se do mensageiro , que o fôra de tão boa nova , e perguntou-lhe : -- E a mim e a minha filha , que novas nos trazeis ? -- O snr. André de Albuquerque , respondeu Manuel Furtado sentindo um nó doloroso quasi a abafar-lhe a voz , andou como soldado valente que o era mais que nenhum . Já todos acclamavam a victoria quando me expirou nos braços . Outros o rodeavam , anciosos de pormenores , quando o Duque de Cadaval , chegando-se ao alferes , lhe&lhes+o ordenou em nome da Rainha . que o seguisse até os Paços da Ribeira . E recordando agora , pelo silencio da noite , os factos que desde então se haviam dado , seu dialogo com o Duque e a recepção que lhe fizera a Rainha , de novo a fantasia lhe fugia da verdade para o sonho , com tintas do sonho já tingindo a verdade . D. Affonso dera-lhe a mão a beijar . Que triste rei ! ... E o que d' elle se contava ! ... Tão novo , parecendo tão pobresinho de forças ... A doença , aquella paralysia que tivera em pequeno ... Como acreditar o que se dizia d' elle , das correrias nocturnas em que andava ? E , de quando em quando , n ' um scenario ou n ' outro , surgia-lhe , luminosa esperança , a imagem de Maria da Boa Hora . Que seria feito d' ella ? Que tristeza em casa do reposteiro-mór ! Quizera D. João d'Almeida que o prpprio Manuel Furtado contasse a D. Anna de Portugal os ultimos instantes do noivo que tanto amára , que sempre via , orgulhosa de seu amor , na aureola de sua nobre fama . De lá vinha agora . Horas e horas ella o retivera junto de si , anhelando tudo saber , a accumular dôres , consolação unica de sua dôr . E nunca Manuel Furtado vira mulher assim tão bella . Vinte e dois annos . Loira como a nossa Senhora d' um quadro velho , que era toda a devoção de sua mãe d' elle . Os olhos azues , cheios de lagrimas , eram pedaços de céo constellado . Offegante , queria saber quanto Manuel Furtado sabia , quanto havia podido adivinhar . Via elle o estofo negro do vestido erguer-se e abaixar-se-lhe sobre o peito em ondas irregulares , inquietas . -- Contai ! ... Contai ! ... dizia , sequiosa dos mais leves pormenores , para mais exasperar saudades de que havia de viver . E Manuel Furtado contou quanto vira , tornou a contar , e o que suppunha , e já , pelas perguntas que lhe ella fazia , adivinhava que resposta esperava anciosa . E foi fallando horas e horas , e ella bebia-lhe as palavras . -- Contai ! ... Contai ! ... Interveio por fim D. João d'Almeida . -- Anninhas , minha filha ! O sr. alferes deve estar morto de cançasso . É tarde . Precisas d' algum repouso tambem . D. Anna de Portugal ergeu- se . Estendeu a mao ao alferes , que , posto de joelhos , lh'a beijou . -- Voltai a minha casa , muita vez , a fallar comigo . Não sei como pagar-vos . Melhor o saberão os meus com sou valimento na côrte . E com longo vestido negro a arrastar , a cabeça angelica inclinada para a frente , pelo braço do pae , sahiu da sala a passos lentos . Um escudeiro acompanhou o alferes até á porta . O valimento d' aquella familia ! Manuel Furtado trazia um remorsosinho a moer-Ihe um cantinho occulto da consciencia . A ' força de tirar conclusões , mentira um pouco , inventára ... Mas a culpa não fôra d' elle ... Um bocadinho talvez ... Aquelle sestro de poesia ! ... Ella dizia o villancete ; que poeta lhe não faria as voltas ? Não havia duvida . Entrára na côrte com o pé direito . Podia a Rainha esquecer-se d' elle ; mas D. Anna de Portugal ... De cada insignificante gesto de André de Albuquerque comporia um tomo para recitar á desconsolada noiva . Que muito era que lh'o ella pagasse , lembrando-o de quando em quando á munificencia regia ? Parou novamente , já perto do Castello , contemplando a cidade adôrmecida , e com a cabeça fez um gesto de triunfo . Via-se , pelo menos , mestre de campo a commandar um terço , tão garboso e gentil como D. Sancho Manuel , triunfante pelas ruas da cidade , olhando para a janella , d' onde Maria da Boa Hora lhe sorria . E , mergulhado no sonho esplendôroso , poz-se a caminhar devagarinho . -- Alto ! gritou-lhe uma voz . Manuel Furtado levou a mão á espada . N ' aquelle rapido movimento , caíram-lhe a capa e o chapeu . Embargavam-lhe o passo tres homens embuçados , de chapeus sobre os olhos . Ouviu estalar o gatilho de uma pistola . Correu para elles . Um ultimo raio de luar descendo pelo vão entre duas altas casarias , illuminou-lhe o rosto . Deteve-se , ouvindo uma exclamação de espanto :