A. M. DE A Cunha E SÁ DE+A PARTE D' EL-REI ROMANCE HISTORICO DE+O SECULO XIV Todo aquelle que jouver com manceba que viver com seu senhor , qne moira porem . E esto se entenda assy nos fidalgos como nos villãos . ( Lei de D. Diniz . ) LISBOA HORAS ROMANTICAS 102 -- Rua dos Calafates-102 O que vae ler-se , e a que se deu o nome de romance historico , é apenas uma desambiciosa tentativa d' alguem obscuro em coisas litterarias . Constantemente encarregado das traducções dos romances historicos publicados por uma das primeiras empresas editoras do meu paiz , muitas vezes tenho sentido verdadeiro pezar de ver que os factos da historia alheia , bem ou mal estudados , obtêem extraordinaria vulgarisação , emquanto que os factos da historia patria continuam desconhecidos para o vulgo , porque o vulgo não quer , e muitas vezes não pode aprender historia nos livros que d' ella tratam exclusivamente . Escrevendo este volume nos minguadissimos momentos roubados ás minhas não poucas horas de trabalho quotidiano e indispensavel , não tive a louca pretenção de lançar um jorro de luz sobre a epocha de que elle trata , jorros de luz que illuminem em cheio uma epocha , só podem partir d' homens da estatura do auctor do Monge de Cister ou da Mocidade de D. João V , mas apenas passar para o romance , cujo gosto está hoje tão generalisado , um facto que ainda não fôra , segundo me parece , tractado d' esta forma . Muitas vezes , ao consultar um ou outro livro que me podesse guiar no meu trabalho , deplorei a abstenção litteraria a que se condemnou o illustre auctor da Historia de Portugal , e outras tantas reconheci que os factos e os costumes portuguezes do seculo VIX , como da maior parte dos seculos que se seguiram , ainda estão por estudar , que o caracter do rei que se chamou D. Diniz , como de muitos de seus successores , ainda está por conhecer . O romance Da Parte D' El-Rei não pode , nem poderia nunca preencher similhante lacuna , em relação á epocha de que trata , nem com similhante intento foi escripto ; lançado aos ventos da publicidade , poderá , o muito , attestar a boa vontade de quem o escreveu . Aquelles porem , que mais felizes , tiverem tempo e talento , que emprehendam n ' este sentido mais audazes commettimentos , e ensinem ao povo a historia patria , na forma que lhe é mais grata , o romance , porque hoje , mais do que nunca , seria conveniente que o nosso povo soubesse a sua historia . A. M. da Cunha e Sá . O final de oiro Guarde-vos Deus , Señor e lume d' estes olhos meus . Al vos quero dizer De que sejades ende sabedora . ( Trovas do seculo XIV ) Corria uma noite triste e sombria dos fins do anno de 1361 da era de Cesar . Reinava profundo silencio nas ruas da velha Lisboa , a escuridão era completa , e só por vezes a lua , espreitando por algum rasgão aberto nas nuvens grossas e pardacentas encastelladas no firmamento , illuminava frouxa e instantaneamente as ruas da cidade , cuja casaria se apinhava pelas ingremes ladeiras da Alfama e da Alcaçova ou monte do Castello , e que mal cabendo no estreito recinto da muralha velha , galgara esta , espraiara-se com desafogo da banda do Occidente pelo terreno que hoje occupam as freguezias da Magdalena e S.||_Julião Julião|_Julião , e já começava a trepar pela assomada do monte chamado então da Pedreira , e onde presentemente aiada campeiam as ruinas do gothico mosteiro do Carmo , edificação devida á piedade do grande condestavel Nuno Alvares Pereira . Eram porém raros esses momentos , a lua desapparecia bem depressa por detraz do negrume das nuvens , e a escuridão tornava-se profunda e tenebrosa nas viellas e encruzilhadas da velha cidade , porque ainda então ninguem se lembrara de substituir o pallido astro das noites por um systema qualquer de illuminação publica , embora mais pallido , melhoramento que só muito tarde , no seculo XVIII , segundo rezam as chronicas , o intendente Pina Manique se lembrou de introduzir na cidade -- Lisboa , cuja policia estava então a seu cargo . Reinava , pois , silencio profundo , porque havia muito que nas torres da Sé tangera o sino de correr , que era n ' aquelles velhos tempos o signal para todos os habitantes , peões ou fidalgos , bésteiros do concelho ou cavalleiros da casa d' el-rei , se recolherem aos seus lares , e dormirem sob a guarda e vigilancia das roldas que percorriam as ruas , e dos velas ou vigias , que das muralhas e torres do Castelo velavam attentos a cidade adormedda . Através das frestas e janellas dos vetustos edificios não brilhava uma unica luz , e , o que ainda é mais para admirar , apesar do senhor||_rei|_D._Dinis rei||_rei|_D._Dinis D.|_rei|_D._Dinis Dinis|_rei|_D._Dinis estar então com a sua côrte mo velho palacio da Alcaçova ou paços do Castello , como se chamava o alcaçar de Lisboa , era tambem tão absoluta a escuridão , e tão profundo o silencio na vivenda real como no albergue do mesteiral mais humilde ou do galiote mais brigão que por aquelles tempos servisse sob as ordens de Micer Pezagno , almirante das galés de sua senhoria el-rei . De repente , porém , quando a noite já ia adiantada a avaliar pelo tempo decorrido após as ultimas badaladas do sino da cathedral ouvia-se um ruido de passos , e d' uma das viellas proximas do palacio real sahiu um vulto . Como já dissemos , o alcaçar real chamava-se paços do Castello por ficar situado dentro do castello de Lisboa , e n ' um sitio não muito distante e quasi fronteiro á porta hoje principal do castello de S.||_Jorge Jorge|_Jorge . Pela maneira como parecia , apesar da escuridão da noite , querer esquadrinhar todos os recantos onde se podesse abrigar algum observador curioso , o vulto mostrava ter grande interesse em não ser visto n ' aquella excursão feita sob o mysterio das horas mortas . Cosendo-se o mais possivel com a parede , o vulto assomou á esquina da rua que corria ao longo do alcaçar , e espreitou . Esta rua era formada d' um lado pelo alcaçar e do outro pela capella real . A meio da rua havia um passadiço que punha o palacio em communicação com a capella . Depois de se certificar , quanto as trevas lh'o permittiam , que d' aquelles lados não vinha viv ' alma , o desconhecido metteu pela rua em direcção á embocadura opposta . Mas , ainda bem não tinha chegado ao passadiço , quando do fundo da rua soaram passadas , que pelo ruido pareciam de maís d' uma pessoa . Então o mysterioso transeunte hesitou , parou e quasi fez menção de voltar para traz . Mas , como que inspirado por subita idéa , em vez de retroceder , avançou depressa , metteu-se n ' uma especie de portal que havia por baixo do passadiço e esperou . Não tardou muito que as pessoas que vinham pela rua fóra chegassem em frente do portal . Eram dois vultos de homem . Vinham tao embuçados em fartos capeirões e com os rebuços tão puchados para o rosto , que ainda que fizesse muito luar , seria impossivel reconhecel-os . Um dos vultos trazia uma lanterna . Passaram tão proximo do portal , que se este não fosse muito profundo , teriam por certo divisado o vulto que se abrigava nas suas sombras . Quando já iam a distancia do passadiço pararam ambos . O desconhecido animou-se então a sair do portal , e poz-se em observação . Os dois vultos tinham-se desembuçado um pouco e trocavam n ' aquelle momento algumas palavras entre si . A distancia não permittia ouvir-se o que diziam ; porém a luz da lanterna illuminou em cheio um d' elles , e o que se occultara no passadiço , exclamou com uma voz sumida e em que se revelava alguma commoção : -- El-rei ! Era effectivamente el-rei||_D._Diniz D.|_D._Diniz Diniz|_D._Diniz , mas os receios do desconhecido bem depressa se desvaneceram , porque sua senhoria , aconchegando mais o rebuço do seu capeirão , tornou-se a pôr a caminho e desappareceu d' ali a pouco voltando a esquina na direcção da porta da cerca chamada da Alfofa . Assim que o mysterioso rondador noctunno se convenceu de que sua senhoria el-rei e o seu companheiro iam já longe , atravessou mais affoito a rua , e dirigiu-se para baixo d' uma janella gothica , que n ' aquelle sitio , para além do passadiço , era a unica do alcaçar . Momentos depois de se ter aproximado da janela , ouviu-se um como ruido de uma adufa , que se abria , e uma vez mimosa e juvenil que dizia n ' um tom que o receio parecia reprimir : -- És tu , Affonso ? -- Sou , Ermezenda . Ha muito que me aguardavas ? -- Não , Affonso , n ' este instante cheguei e por certo não esperava ver-te já . -- É que o meu coração , Ermezenda , faz por abreviar o mais que pode as horas quando anceia por te ver . -- Horas que o meu coração acha bem longas quando está triste de te não ver . -- Ermezenda ! -- Affonso ! -- A tua promessa . -- Insistes ? -- Imploro . -- Oh ! meu Deus . -- Recusas ? -- Não , receio , mas não é por mim . Que valia o amor se hesitasse ante o sacrificio ? É por ti , por ti só que tremo . -- Por mim ! E dizes que não hesistas ante o sacrificio ? Hei de eu hesitar ? Olha , Ermezenda , tenho muito , muito que te dizer , e a roda está prestes a passar . E quem sabe ? talvez peor que a rolda . Gemeu no silencio da noite um fundo suspiro e passados momentos descia da janella ao longo da parede uma escada flexivel , uma escada de corda . O mancebo , pois que a voz do desconhecido era fresca , sonora e varonil , depois de se assegurar de que ninguem apparecia , trepou com a agilidade só permittida aos verdes annos , e em poucos instantes galgava o peitoril e achava-se da banda de dentro da janella , tendo o cuidado de recolher a escada de corda . O aposento onde o mancebo entrou por modo tão estranho , era de limitadas dimensões . Allumiava- o escassamente a frouxa luz d' uma lampada que ardia em frente da imagem d' uma Virgem collocada em cima d' uma especie de bofete . Ao longo da parede fronteira ao bofete corria um estrado alcatifado . Era n ' este estrado que se achava o vulto de mulher que assomara ao peitoril da janella , e que dava pelo nome de Ermezenda . Estava sentada , apoiava os braços nos joelhos e sobre as mãos apoiava o rosto . A luz da lampada dava-lhe em cheio no gracioso busto , mas não era possivel ver-lhe as feições . Occultavam-lh ' as não só as mãos , mas tambem os bastos e louros cabellos , que divididos ao meio , e apenas seguros por uma estreita faixa de seda azul enfeitada de perolas que lge circumdava a fronte , lhe caiam , segundo a moda do tempo , soltos e ligeiramente annelados em volta do collo e por cima das pequeninas mãos que da maneira como estavam pareciam querer occultar senão as lagrimas do remorso , pelo menos as rosas do pudor . Era entretanto um vulto gentil , o airoso sainho de seda que lhe envolvia o tronco accusava , apesar de muito discreto que queria ser , umas formas de delicados e morbidos contornos , e d' uma graça e d' uma flexibilidade capazes de causarem desesperada inveja á mais espartilhada beldade dos nossos tempos . Por baixo da roda da sua faldrilha ou saia refegada de festos comprimido n ' uma especie de sapatinho de marroquim vermelho terminando em bico , assomava um pésinbo curvo , delicado e tentador . Ao dar com os olhos na donzella sentada no estrado , o recemvindo estacou . Como que os movimentos se lhe paralysaram subitamente . Talvez fosse effeito do deslumbramento , talvez effeito d' um remorso repentino que lhe invadisse a alma ao ver tanta formosura como que vergando ao peso de vago soffrimento . E de feito aquelle vulto assim curvado não parecia senão o de um anjo que houvesse descido á terra a carpir sobre a celeste flor da innocencia prestes a desfolhar-se . Foi porem mais forte a fascinação do que a duvida ou o receio . A passos vagarosos , o mancebo dirigiu-se para a donzella e ajoelhando-lhe aos pés , disse-lhe n ' uma voz suave como um murmurio , sentida como um suspiro : -- Porque estás assim triste , Ermezenda , quando n ' este momento o meu coração tresborda de alegria e de felicidade ? Ao ouvir esta voz em cuja entoação vibrava toda a doçura e todo o affecto d' uma alma apaixonada Ermezenda ergueu a fronte . Era uma fronte mimosa e de celestial expressão ; na franja das aureas pestanas scintillava-lhe a humidade de duas lagrimas recentes . Encarando no mancebo que lhe jazia aos pés exclamou com um gesto em que se traduzia toda a ancia amorosa de que é susceptivel a alma d' uma virgem . -- E ainda m ' o perguntas ? Oh ! nao me perguntes pela minha tristeza , mas pelo meu desespero , pelos remorsos d' este crime que estou commettendo ... que ambos estamos commettendo . -- Crime ! que palavra tão dura , tão severa estás ahi a dizer ? -- Crime , sim . O que nós estamos fazendo não tem outro nome . Pois não attentas , Affonso , em que estes aposentos fazem parte dos da rainha minha senhora ? Oh ! nem pensar quero nas horrendas consequencias que proviriam de se descobrir que tu , Affonso , entraste de noite a occultas , no aposento d' uma donzella do paço . Oh ! demasiado sabes quanto sua senhoria el-rei é severo com similhantes faltas . -- Vãos receios , Ermezenda , quem havia de adivinhar que Affonso Fernandes , o escudeiro mais amado da rainha , entra por altas horas no aposento de Ermezenda Sanches , donzella de mui nobre linhagem ao serviço da mesma senhora ? -- Difficil seria adivinhar , por certo , Affonso mas que impede que algum rondador nocturno veja casualmente sair um vulto de homem d' uma janella d' esta parte do palacio e acusasse a rainha ... Oh ! nem quero pensar n ' isso . E a donzella tornou a occultar o rosto nas mãos ; pelo convulso ondular do seio parecia chorar . -- Ermezenda , redarguiu o mancebo com voz repassada de ternura e um pouco commovida , quem faz o milagre de transformar em rosas o dinheiro e o dinheiro em rosas , pode muito melhor fazer o milagre de emmudecer a lingua d' um vil calumniador . como se um tal argumento lhe calasse o animo , a donzella abaixou as mãos ; estava já mais serena e uma vaga alegria começava a illuminar-lhe o rosto . -- Isso pode , Affonso , e a senhora rainha é uma santa . Ao acabar de proferir estas palavras a donzella da rainha já chamada á realidade da situação , agarrou nas mãos do escudeiro que ainda estava ajoelhado e fez uma doce violencia para o levantar . O namorado mancebo beijou-lhe as mãos com ardor , e obedecendo decil e pressuroso aos desejos da amante , ergueu-se e sentou-se-lhe ao lado . Foi então que reparou na imagem que lhe ficava em frente . Tirou por isso devotamente a sua gorra de veludo negro que até ali conservara na cabeça . Ainda não tivemos occasião de descrever o personagem que primeiro figura no nosso romance . Vamos fazel- o , mas em traços muito ligeiros , agora que a luz indecisa que illumina o aposento nos permitte ver-lhe um pouco as feições . Era um mancebo alto , robusto , e na flor da edade . O comprido cabello castanho escuro que lhe cabia solto até aos hombros , segundo o uso d' então , os olhos escuros e o rosto um pouco moreno accusavam a sua origem meridional . Tinha uma physionomia franca e expressiva que denunciava animo leal e resoluto . Trazia , como dissemos , uma gorra ou birrete de veludo negro , e só temos a accrescentar que era ornada por uma pluma branca presa ao lado por um broche de prata . Por baixo do capirote via-se-lhe um jubão de côr escura , mas farpado ou golpeado de côres mais vivas . Por unica arma cingia uma adaga presa n ' um cinto de coiro ornado com alguns singelos lavores de prata . Pelo que se vê não vinha muito armado , mas a avaliar pela sua robusta corporatura , e pela energia que revelava no rosto varonil , devia ser adversario temível , se alguem se lembrasse de o atacar na solidão das vielas e encruzilhadas da tenebrosa Lisboa d' aquelles tempos . Como dissemos , sentou-se ao lado de Ermezenda . Agarrando-lhe uma das mãos com a mão direita e rodeando-lhe com o braço esquerdo o corpo airoso que cedeu flexivel sob tão suave pressão , o moço escudeiro aconchegou-a a si . Formavam um grupo encantador , os longos e aureos cabellos de Ermezinda confundiam-se com os cabellos negros de Affonso Fernandes . Depois de permanecerem em silencio por algum tempo , silencio em que talvez dissessem mais do que se trocassem as palavras mais fervidas e apaixonadas que o amor inspirasse , o mancebo exclamou : -- Que bom seria , Ermezenda , se isto podesse assim durar sempre . -- Mas não pode , Affonso ; é esta a primeira vez que entras n ' este aposento , e será a ultima . -- Que dizes , volveu o mancebo com voz commovida ; pois serás tão cruel , que mal eu toco com os labios na taça da suprema ventura , m ' a arranques e com ella a esperança que tão fundas raizes tem creado na minha alma ? -- Não , a esperança , não , atalhou a donzela ; quanta meus labios te podem dar , quanta meu coração te pode offerecer , tel-a-has tu ; mas não vês , Affonso , quão terriveis seriam as consequencias , se el-rei soubesse do feito que esta noite praticamos . Quem seria fiador da innocencia dos nossos amores , da lealdade das nossas promessas ? Não é por mim , Affonso , que receio . Que me poderia acontecer ? que castigo me poderiam dar porque o amor me desvairou a ponto de admittir no meu aposento o mais nobre e leal dos escudeiros que n ' esta côrte se crearam ? A perpetua solidão do claustro ? E o que valia um tal castigo para quem tivesse a alma solitaria de todos os affectos , despojada de toda a esperança , attribulada pela dor mais cruel de quantas podem opprimir a alma d' uma donzella , a perda do ente amado , d' aquelle que constituia toda a sua illusão , todo o seu porvir ? O claustro não seria castigo , seria consolo ; quando as esperanças da terra nos fogem , levantam-se os olhos ao ceu , e raro será que ás almas puras e crentes não desçam as esperanças do ceu , como as gotas d' orvalho descem , nas trevas da noite , ao seio das flores . Não é por mim , repito , que tremo , é por ti Affonso . Se el-rei soubesse d' este feito , que é um attentado contra a honra do alcaçar , como a tem o mais tredo villão , fosse o castigo da tua culpa . -- Mas quem poderia , Ermezenda , adivinhar que eu estou aqui ? -- Na côrte as paredes têem olhos e têem ouvidos . N ' estes paços fervem as intrigas , e para prova ahi vemos as constantes discordias que reinam entre el-rei e seu filho D. Affonso , intrigas a que nem a propria rainha tem escapado apesar de ser tão boa e virtuosa . E demais bem deves saber o rival que tens em Fernão Froyão , hoje valido de sua senhoria el- sei , rival terrivel , não pela graça que ache ante meus olhos , mas pelo favor que el-rei lhe dispensa , e sobretudo pelos tenebrosos recessos da sua alma depravada . Se elle soubesse estarias perdido . O moço escudeiro não pôde deixar de estremecer ; lembrou-se do encontro que tivera havia pouco . Nada disse porém a similhante respeito para não assustar a donzella . Passados poucos instantes , em que permaneceu em grave cogitação , exclamou : -- Tens razão no que dizes , mas por hoje estou certo que Fernão Froyão não me pôde nem me poserá vêr . Sei que a estas horas está com el-rei na torre de Albarra , el-rei só voltará tarde ao alcaçar . Por hoje todos os receios são infundados . -- Mas não é so por elle que tens a recear , volveu a gentil donzella . Já todos suspeitam do nosso amor . Como te disse , a côrte é toda olhos e ouvidos , mas ouvidos muito apurados e olhos muito penetrantes . Ainda no outro dia , no ultimo serão que el-rei deu no paço , a poucos passaram desappercebidas aquellas trovas de tua composição , em que fallavas de fios de oiro em allusão aos meus cabellos . Todos me fitaram ; não pude deixar de sentir a mais viva commoção ; as faces escaldaram-me . Levada de instinctivo terror olhei para o teu rival ; estava pallido e o olhar que para ti dirigia , foi mais de que um olhar de morte , foi um olhar de odio vil e covarde que não hesita em recorrer à mais baixa intriga , à traição mais vil para satisfação dos seus maus impulsos . -- O covarde , volveu o moço escudeiro com voz tremula de colera , já não ousa medir-me face a face ; tem medo , incommoda-o a minha generosidade . Lembra-se com rancor d' aquella lucta em que eu , fazendo-lhe saltar da mão a espada , lhe apontei a minha ao coração e o tive á minha mercê . Não o matei , não quiz esterilisar a terra com a peçonha d' aquelle sangue . Fiz melhor , cuspi-lhe nas faces o perdão . Hoje , mal podendo engolir a affronta , quer recorrer á intriga só propria de villões para tirar a desforra . Não receio ; confio em Deus e no teu amor que para mim está logo abaixo de Deus . -- Não blasphemes , Affonso ; não juntes o santo nome de Deus ao nome d' um sentimento tão mundano e tão mesquinho . -- Enganas-te , alma da minha alma ; o amor tem uma natureza divinal . Que valeriam , sem o amor , a inspiração dos poetas e a espada dos cavalleiros ? É o teu amor que dirige o meu braço na lucta das armas , é o teu amor que me inspirou um meio seguro de alcançar a minha ventura , de realisar os meus ardentes sonhos , mas de modo que nada possam contra nós , nem as intrigas da côrte , nem as odientas machinações d' algum rival indigno . -- Mas que meio é esse ? exclamou Ermezenda com uma voz em que se manifestavam a anciedade e a duvida , o receio e a esperança . -- Eis o meu plano , Ermezenda . Como sabes , o ciume com que o senhor||_infante infante|_infante D. Affonso , filho legitimo e primogenito d' el-rei , e futuro successor d' estes reinos , vê sempre as provas de entranhado affecto que sua senhoria el-rei dá constantemente ao seu filho natural D. Affonso Sanches , tem sido continuada origem de graves desordens na côrte e até de luctas á mão armada entre el-rei e o infante . Ultimamente estas luctas e dissenções estavam um pouco acalmadas em razão do senhor||_infante infante|_infante D. Affonso Sanches se haver retirado para Castella ; mas como o senhor infante voltou novamente a esta côrte , o infante legitimo , o senhor||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso vendo com maus olhos o regresso de seu irmão natural , poz-se outra vez em campo contra el-rei seu pae . Tomando por pretexto não lhe haver satisfeito certas pretenções , acaba de sahir de Santarem á frente dos cavalleiros da sua casa e de turbamulta de peões e de malfeitores , e vem , caminho de Lisboa , resolvido a obter pelas armas o que de bom grado não logrou obter da real munificencia . El- ra está , como das mais vezes , resolvido a ir ao encontro do filho e a reprimir-lhe a ousadia . Da irritação de animo em que se acham os dois augustos contendores é de esperar que a lucta seja renhida é sanguinolenta . Como escudeiro fidalgo da creação d' el-rei , pertence-me acompanhal- o e pelejar em prol de sua causa . É por esta occasião que espero , Ermezenda . Se for a lide renhida , como é de crer , hei de forçosamente ter occasião de mostrar , quanto pode o gume da minha espada , quanto vale a rijesa do meu braço . Então , no mais acceso da lucta , tal proeza hei de praticar , tamanho feito d' armas hei de commetter , que el-rei , meu senhor , recompensará por certo o meu valor , armando-me cavalleiro . E eu , Ermezenda , terei conquistado pela nobresa das armas o direito de desposar uma donzella de tão nobre linhagem como tu , e não hesitarei mais em declarar a sua real senhoria o segredo do nosso amor , e pedir-lhe consinta na realisação das minhas , das nossas mais doces esperanças . Oh ! e el-rei que é de animo justiceiro não me recusará por certo a legitima posse do teu amor , e tu , Ermezenda , serás minha , só minha , embora pese a covardes e traidores que me invejam a ventura de ser amado por ti . A commoção fazia arfar o seio da donzella , cujas seductoras ondulações o sainho a custo recatava na sua prisão de seda . Com o fulgor da esperança a rutilar-lhe nos olhos , contemplava n ' uma especie de embevecimento o garboso mancebo que na força da exaltação se pozera de pé . Quando a commoção a deixou um pouco mais desenleada , Ermezenda exclamou : -- Participo das tuas esperanças , applaudo o teu temerario projecto , mas ... -- Mas , o que , Ermezenda ? -- É incerta a sorte das batalhas , ao braço mais robusto fallece às vezes a força . E se tu morresses ? accrescentou a donzella com a voz tremula de receio . -- Morrer ! oh , não , não hei de morrer ; confio em Deus , confio no teu amor , confio nas tuas orações . E foi para t ' as pedir , e foi para te participar os meus projectos que vim aqui . Oh ! e por isso puz em perigo a tua honra , a tua virtude ! Que hei de fazer , meu Deus , para ser perdoado ? E n ' isto o mancebo ajoelhou-lhe aos pés . A donzella não redarguiu , fitou-o apenas com olhos em que se lia na profundidade d' uma alma a immensidade d' um affecto . Nos olhos do mancebo , viu ella outro abysmo ; não pôde resistir á attracção , curvou-se , e pousando os seus labios nos labios do mancebo , formou assim mais um elo á cadeia que já unia aquelas duas almas sequiosas de ventura . Foi um extase ; ao accordar d' elle , Ermezenda teve uma como inspiração . Mettendo os dedos na alva gorgeira que lhe cingia o pescoço , tirou do seio um pequeno objecto que pela cor e pelo brilho parecia de oiro , e que trazia pendente do collo por uma fita de veludo negro . Era um firmal , especie de veronica que por devoção muito se usava n ' aquelle tempo extremamente religioso . Tinham similhantes objectos muitas vezes gravada uma imagem , outras vezes continham alguma santa reliquia . Ermezenda desatou a fita e cingindo-a no pescoço do escudeiro , disse : -- Olha , Affonso , quando fores á lide com el-rei leva este firmal . Não te esqueças de o trazer sempre comtigo . deu-m ' o a nossa santa rainha quando estive doente de perigo ; mal m ' o poz sarei logo . Tenho-o sempre trazido desde então . Se o levares quando fores á lide , fio que não te ha de succeder mal . Eu fico sem a sua milagrosa protecção , mas tenho ali a virgem e ella ha de amparar-me . Affonso Fernandes levou aos labios o precioso objecto ; estava ainda tepido com o calor do seio d' onde sahira . Mas apenas tinha beijado a devota reliquia , no rosto de Ermezenda pintou-se o mais vivo terror . No aposento proximo ouviu-se o ruido d' alguem que se aproximava . Ermezenda ergueu-se vivamente , e exclamou com voz tremula : -- Por Deus , retira-te ; é a rainha ! O ruido dos passos tornava-se cada vez mais proximo ; Não havia tempo a perder ; cheio de terror o mancebo dirigiu-se para a janella , salvou o peitoril e segurando-se nas mãos deixou cahir o corpo ao longo da balaustrada . Mas no mesmo instante a maior angustia se apoderou d' elle ; faltava-lhe a escada de corda , e já não era tempo de a ir buscar ; a rainha , assomara á entrada do aposento e parecia dirigir-se para a janella . Com a vista allucinada mediu a altura ; não lhe pareceu muita . Enchendo-se de coragem , e enmendando-se a Deus , largou as mãos . Caiu , de pé , mas fugiu-lhe a luz dos olhos , teve uma especie de vertigem , cambaleou e baqueou de chofre na calçada . N ' aquelle momento vinham pela rua fora os mesmos dois vultos que tempo antes haviam passado e que não eram outros senão el-rei e seu valido . Ao sentirem o baque correram ao sitio onde o corpo cahira , e viram um homem por terra . As vigilias do rei e as vigilias da rainha Esta torre era muito forte e non foi porem acabada . Fernão Lopes , chr. de D. Pedro . Como soubemos no capitulo antecedente pela exclamação que o amante de Ermezenda Sanches soltou quando pôde ver do seu esconderijo os dois vultos , graças á luz da lanterna que um d' elles levava , el-rei achava-se áquellas horas fora do alcaçar real . Segundo dissemos , el-rei parara , e se o bom escudeiro podesse a tal distancia ouvir o pequeno dialogo que sua senhoria travara com o seu companheiro , teria serios motivos para graves aprehensões . Nós porem a quem as distancias não servem de obstaculo e temos o rigoroso dever de não perder o fio d' esta veridica historia , fio que laboriosamente vamos seguindo , em meio da confusão das velhas chronicas e manuscriptos que rezam d' este caso , julgamos conveniente pôr o leitor ao facto das poucas palavras trocadas entre os dois rondadores nocturnos na rua ou viella que corria entre os paços da Alcaçova e a capella que lhes pertencia . Quando já iam a distancia do passadiço um dos embuçados voltou-se para o que levava a lanterna e disse eu de repente : -- Quiz-me ha pouco parecer que sentia passos d' alguem . Percebeste algum vulto ; Fernão Froyão ? -- Saiba vossa real senhoria que não appercebi nem ouvi coisa alguma , se bem que não seria para admirar , porque me lembro agora de ter ouvido dizer que já alguem por horas mortas viu rondar um vulto por aqui , por baixo da janella ... -- De que janella ? accudiu o outro vulto que não era outro senão el-rei||_D.Diniz D.Diniz|_D.Diniz . -- Da janella da senhora rainha , respondeu Fernão Froyão , escudeiro que andava então muito no valimento de D. Diniz . -- Attenta nas tuas fallas , Fernão , atalhou el-rei com a voz um pouco alterada , a senhora rainha é tão austera de sua pessoa que difficilmente alguma das suas donzellas poderia illudir-lhe a vigilancia , ou conceber sequer pensamentos ruins tendo constantemente á vista os exemplos da sua virtude . Deixemos porem esses boatos absurdos e sigamos nosso destino que já vae adiantada a hora . E sua senhoria el-rei aconchegando mais o rebuço do seu farto capeirão , poz-se de novo a caminho , não sem primeiramente relancear um rapido olhar para o fundo da rua . Mas o silencio era absoluto e a escuridão completa , porque nem mesmo por onde vimos entrar o namorado escudeiro , irrompia n ' aquelle momento pelas rotulas da adufa a mais frouza claridade que despertasse suspeitas a el-rei . Chegados ao fim da rua , el-rei e o seu escudeiro voltaram á esquerda , e depois de atravessarem quasi diagonalmente o terreiro que havia em frente do paço , desceram pela rua ingreme que ia ter á porta da Alfôfa , que d' aquelle lado era a primeira da cidade , e devia ficar no cimo da calçada , hoje chamada de S.||_Chrispim Chrispim|_Chrispim . Pela direcção que el-rei levava , pareca que ia sahir da velha cerca . Antes porem da porta da Alfôfa , que era aberta na muralha da cidade e olhava para o poente , havia então a porta principal do Castello , que ficava muito proxima da Alfôfa e olhava para o Sul . Por cima da porta principal do Castello elevava-se uma torre que não estava concluida e a que chamavam torre Albarrã ou do Haver . Era n ' esta torre que se guardava o thesouro d' el-rei e se arrecadavam todas as quantias que constituiam os rendimentos da nação . Ao chegarem á porta do Castello el-rei e o seu privado em vez de a transporem , desappareceram pela pequena porta que ia dar á torre Albarrã . Não seguiremos el-rei ao interior da torre ; o estado de guerra em que se achava o reino por causa da ultima rebellião do infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso motivava algumas visitas amiudadas á casa do Haver , onde el-rei provavelmente ia consultar o seu thesoureiro-mór , o judeu D. Judas , sobre os recursos de que podia dispor para a sustentação da lucta com seu filho o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso . Nao affiançamos comtudo que este fosse o motivo que levava n ' aquella noite el-rei á casa do thesouro , mas o que nos atrevemos quasi a affiançar É que elle a devia visitar muitas vezes , porque D. Diniz foi um rei muito zeloso e miudo em questões de dinheiro , como parecem proval- o as discordias que houve entre elle e o filho por causa do augmento dos rendimentos que D. Affonso exigia varias vezes . Não sabemos qual dos dois teria razão , nem se este motivo , entre outnos que D. Affonso allegava para se pôr em campo contra o pae seria ou não verdadeiro , comtudo affigura- se-nos que se o infante herdeiro se valia d' esse pretexto é porque elle não peccava por absurdo . Se este livro estivesse destinado a chamar a attenção de alguem talvez fosse motivo de reparo o dar-mos a D. Diniz qualidades tão chatas e burguezas ; nós , porém , fazendo , não uma apreciação de historiador , porque temos o folego curto para tamanhos sopros litterarios , mas uma simples confissão de homem sincero , dizemos que ao encarar bem de frente o rei que nos dão a conhecer nas escolas pelo cognome de Lavrador , não nos parece que fosse pessoa a quem se devam erigir altares , nem de santidade , nem de gloria . Uma outra qualidade que não o honra foi a demasiada tendencia que sempre mostrou para atraiçoar a fé conjugal . N ' isto teve muitos modelos e imitadoras , mas n ' elle são talvez mais para se notar similhantes faltas , porque tendo posto em vigor a lei que serve de epigraphe a este livro , era o primeiro que pelo seu exemplo induzia os vassallos a esquecerem-n* ' a. Fechando porém este pareathesis , reatemos o fio da narração e vejamos o que mais fez el-rei fóra dos paços da Alcaçova ou do Castello n ' aquella noite fatal . Depois de bastante demora na torre Albarrã , el-rei voltou pelo mesmo caminho por onde fôra e tornou a entrar na rua que ladeava o palacio real . El-rei vinha cabisbaixo , e não dava palavra ; parecia que profundos e talvez tristes pensamentos o preoccupavam . Fernão Froyão , pelo contrario , vinha de cabeça erguida , olhando sempre em frente , e parecia prescutar o que quer que fosse em meio das trevas . E de feito , no momento em que ambos sahiam de baixo do passadiço , a vista inquieta do escudeiro , graças á viva claridade do luar , que n ' aquelle momento conseguira infiltrar-se por uma fenda aberta no nevoeiro , descubriu um vulto que tendo galgado o peitoril da janella e deslisado pela balaustrada , se conservava suspenso e immovel ao longo da parede . Ao aperceber o vulto , o escudeiro sentiu uma tal commoção que esquecendo-se por assim dizer da qualidade da pessoa a quem acompanhava , não se pôde conter , e parando de repente , apontou para a janella e exclamou em voz baixa , mas que deixava transparecer certo alvoroço : -- Eil- o . D. Diniz , ao ver parar tão de subito o seu companheiro , parou tambem , e attentando no gesto que elle fazia , olhou na direcção indicada . Quando D. Diniz distinguiu o vulto , que evidentemente sabia da janella dos aposentos da rainha , soltou uma exclamação de colera . N ' este mesmo momento el-rei e Fernão Froyão viram com bastante assombro o vulto despenhar-se da janella , em vez de descer suavemente por meio d' alguma escada de corda , ou por outro qualquer modo . Como relatamos no capitulo antecedente , Affonso Fernandes vacillou e cahiu de chofre sobre a calçada . Tão fatal circumstancia veiu auxiliar el-rei a descoberta do criminoso . Ao ver o vulto por terra , correu logo para elle exclamando . -- A elle , Fernão Froyão , precisamos de saber a todo o transe quem é o traidor . O escudeiro foi no seguimento de el-rei , e não se mostrou menos pressuroso do que o seu real amo no reconhecimento do criminoso , que o coração já por certo lhe segredara quem fosse . Affonso Fernandes tinha perdido os sentidos ; jazia de costas , inanimado , com a cabeça descoberta . O luar banhava-lhe frouxa e tristemente o rosto pallido e demudado . Ao reconhecerem-n* ' o , commoções bem diversas se manifestaram no rosto de cada um dos que o contemplavam . No rosto d' el-rei via-se a contracção d' uma colera terrivel , emquanto que no rosto do escudeiro , se divisava , mesmo á luz dubia que illuminava aquella scena , certa alegria que elle na sua bem entendida prudencia forcejava por dissimular . El-rei , depois de contemplar por alguns momentos com fixidez sombria o mancebo que lhe jazia aos pés , exclamou em tom colerico : -- Que vejo ! pois será possivel que Affonso Fernandes de quem tanto fiava , me atraiçoasse d' um modo tão infame ! Se Deus não acabou de fazer justiça tirando-lhe a vida no momento em que vem de perpetrar tão nefando crime , fal-a-hei eu , e segura e rapida como deve ser feita n ' um traidor ! O mancebo continuava immovel ; parecia que el-rei não teria necessidade de exercer o sea tremendo papel de juiz sobre aquelle reu . Fernão Froyão , apesar de ser o mais interessado na solução naturalmente terrivel d' aquella scena , continuava mudo espectador . Subira a tal auge a colera do rei que não era preciso coisa alguma que a excitasse para que ella produzisse seus terriveis effeitos . Entretanto Fernão Froyão , com os seus olhos de lynce fez de repente nova descoberta . No pescoço do prostrado escudeiro viu brilhar um objecto . Movido por inspiração diabolica baixou a lanterna para melhor examinar o objecto , que lhe feria a vista . Dirigida por este movimento a attenção de el-rei convergiu para o mesmo ponto . Então poderam ambos ver o firmal que Ermezenda deitara ao pescoço do seu desditoso amante . El-rei fez-se horrivelmente pallido , -- no firmal reconhecera uma devota reliquia que pertencia á rainha . No mesmo instante tirou debaixo da capa um punhal . Fernão Froyão estremeceu ; julgou que el-rei ia ali mesmo por suas mãos fazer justiça ao criminoso . Foi de curta duração o engano ; em vez de cravar o punhal no coração do mancebo , el-rei dispoz-se a cortar a fita que segurava o firual . Mas n ' aquelle momento , profundo suspiro solevantou o peito de Affonso Fernandes , signal de que elle ia tornar em si . Então D. Diniz recuou com vivacidade . Voltando-se para o seu valido , disse : -- Affonso Fernandes deve bem depressa recuperar os sentidos . Ficará com o firmal , o que de pouco lhe ha de valer , porque não o porá a salvo da minha justiça o sagrado influxo de tão devoto objecto . Acabando de proferir estas palavras , el-rei e Fernão Froyão affastaram- se e desappareceram por detraz do angulo que fazia o palacio ao fundo da rua onde se achavam . Assim que elles se retiraram , Affonso Fernandes levantou-se com alguma difficuldade , passou a mão pela fronte , e depois que pareceu reconhecer a situação de que sahia , contemplou demoradamente a janella d' onde se despenhara , e afinal partiu vagaroso e meditabundo para a banda opposta áquella por onde haviam desapparecido o rei e o seu confidente . Tornou tudo a cahir no mais profundo silencio , a escuridão continuou a ser quasi absoluta como até ali ; só a janella dos aposentos da rainha , em razão de ter aberta a adufa , estava mais illuminada de que no começo das scenas contadas no capitulo antecedente . Como fieis narradores , vejamos o que lá se passava . Quando a rainha entrou no aposento já o escudeiro , que era objecto da predilecção de Ermezenda , havia desapparecido . Porém , ou fosse porque sentisse ruido ou porque já andasse desconfiada , o facto é que a rainha , apenas entrou , dirigiu em roda do aposento um olhar prescutador . Em cima do estrado estava ainda o gorro que o escudeiro ali pozera e que na sua precipitação se esquecera do levar . Ao dar com os olhos no gorro , o semblante da rainha tomou uma expressão terrivelmente severa . Adivinhou toda a verdade ; o dono do gorro de veludo só podia ter sahido pela janella . D. Izabel dirigiu-se immediatamente para ali . Então Ermezenda , cheia de terror , suspeitando que a rainha tudo adivinhara , preferiu ella só incorrer na colera da sua senhora , e salvar o amante que ainda por certo não tinha tido tempo de descer . Atravessando-se diante da rainha , lançou-se-lhe aos pés , e desfazendo-se em sentido choro , abraçou-a pelos joelhos . Similhante procedimento era uma confissão tacita da culpa propria e da culpa alheia . D. Izabel apesar da sua inexcedivel austeridade , não pôde deixar de se commover ; Ermezenda além de muito nova , era a mais amada das suas donzellas , e aquella que pelo seu procedimento irreprehensivel até ali , e pela candura angelical da sua alma , mais podia merecer indulgencia n ' uma primeira falta , que por certo havia de ter circumstancias que lhe attenuassem a gravidade . A rainha , mostrando no rosto mais a comiseração do que o rigor , exclamou com voz severa : -- Ermezenda ! tal não podia esperar de ti ! Que desvario foi esse que se apoderou da tua alma ? Commetteste a mais negra e feia culpa que podias commetter , manchaste a pureza da tua alma e a honestidade d' estes aposentos . Ermezenda , como has de expiar tamanha culpa ? Ermezenda com difficuldade podia responder ; os soluços embargavam-lhe a voz . Continuava entretanto de joelhos aos pés da rainha , cujo rosto d' uma belleza austera mas angelical , emmoldurado pelo transparente oural ou veu das donas , parecia o d' uma santa que tivesse descido das alturas movida das supplicas d' uma peccadora gentil e arrependida . Apesar de já não se achar no esplendor da mocidade , D. Izabel ainda conservava todos os vestigios da notavel formosura da seductora princeza do Aragão que mais d' um rei ambicionara para esposa . Na sua fronte alva e immaculada reflectia-se toda a pureza d' uma alma a quem o sopro das ruins paixões , que incessantemente se agitaram em torno da mãe do infante bravo , não tinha podido empanar a nativa candura nem alterar os celestiaes instinctos . Com uma voz em que já o affecto parecia levar de vencida a indignação , a rainha volveu : -- Ermezenda , sabes que tenho sido para ti uma especie de mãe ; deposita pois em meu seio as culpas que devastam o teu ; bem sei quanto é fragil o espirito d' uma donzella , e quão funestos exemplos muitas vezes recebem n ' esta côrte os jovens que são n ' ella creados . Dize-me , Ermezenda , quem foi o que assim abusou do teu amor e te desvairou a ponto da faltares ao respeito que devias a ti e a estes aposentos ? -- Oh ! não , nunca , bradou a joven com voz energica e entrecortada ; nunca direi quem foi aquelle em quem confiei e em quem ainda confio . Castigae-me a mim só , dizei a el-rei que uma das vossaa donzellas deu logar a que violassem os vossos aposentos . El-rei me-ha por certo encerrar na mais severa clausura . Que importa ! Ali a minha alma , a quem o amor com certeza não destruiu a casta essencia , evaporar-se-ha em orações por aquelle a quem amou no mundo , e fará por esquecer os momentos de innocente desvario . Não , nunca direi o seu nome . Para que ? Qual é o crime ? Violou este aposento , é verdade , mas acaso violou a minha alma matando-lhe a fé , destruindo-lhe a esperança ? Não ; a esperança ainda a tenho bem viva no fundo da alma , e a fé , nunca se perde quando aquelle que nol- a inspira ainda nol-a não roubou . E qual será o leal cavalleiro que empeçonhe com labios fementidos as crenças que seus labios arreigaram no coração d' uma donzella . Ermezenda havia-se posto de pé ; nos seus olhos mal enxutos das lagrimas transparecia a exaltação d' um coração apaixonado que não hesita ante o sacrificio . Ao ouvir-lhe as ultimas palavras o rosto da rainha tornou a tomar uma expressão severa . Passados momentos exclamou : -- Se o achas digno da tua fé , se o tens na conta de leal cavalleiro , porque não dizes quem elle é ? -- Oh ! bem sabeis quão severo é el-rei para os que abusam da casa de seu senhor , volveu Ermezenda . -- E quem te diz que elle saberá de tão mau feito como o que esta noite se praticou ? -- Não saberá se vós l ' ho não disserdes ; mas vós senhora , que tão severa sois , como podereis perdoar similhante offensa ? -- te-hei , volveu a rainha , se me confessares tudo . -- Que vos hei de eu confessar , senhora ? Apesar das más apparencias do crime , elle não é tão grave como se vos affigura . Foi esta a unica ves que ambos tivemos o arrojo de commetter tão audaciosa acção . Por certo que me ides perguntar com que intento foi tamanha ousadia . Com o intento de mutuamente nos inspirarmos a esperança de que carecemos ; com o fim de concertarmos o melhor meio de realisarmos a nossa tão suspirada ventura . -- Mas , atalhou a rainha , agora que me vês inclinada a perdoar a esse tresloucado mancebo , por que não dizes o seu nome ? Ermezenda continuou a hesitar ; pelo convulso ondear do seio via-se que no seu intimo se travava terrivel combate . Afinal respondeu : -- Vós sois boa , sois santa , devo depositar no vosso seio o nome do meu amado , mas acaso não commetterei uma traição em faltar ás minhas promessas ? -- É inutil a tua traição , volveu o rainha em tom de reprehensão maternal . E inutil dizeres-me o seu nome ; quem não ha de adivinhar o nome d' aquelle que celebra com tanto enthusiasmo nas suas trovas o oiro dos teus cabellos ? Quem não ha de saber o nome d' aquelle cujo coração de poeta bate sobre o arnez do cavalleiro . Ermezenda , Ermezenda ! porque não me disseste ha mais tempo que amavas Affonso Fernandes ? Que precisão havia de chegares a este perigoso lance ? No rosto da donzella transparecia a um tempo o remorso pelo passado e a anciedade pelo futuro . Animada porem , pelo tom maternal da rainha , redarguiu : -- Como haviamos de combinar o melhor meio de realisar a nossa ventura ? -- E quem , Ermezenda , melhor do que eu vos poderia guiar e aconselhar , em tão grave empenho . -- Oh ! sim , volveu Ermezenda , sei quanto o vosso coração é bondoso e santo , mas quem me havia de dar forças para vos confessar uma paixão que deve por força desagradar a el-rei ? Bem sabeis , senhora , quanto é nobre o sangue que me corre nas veias , em quanto que Affonso Fernandes não passa d' um simples escudeiro . -- E é violando os reaes aposentos pela calada da noite , arriscando a vida e a honra em tão perigoso feito , que se igualam os nascimentos , que um simples escudeiro ganha o seu grao de cavalleiro fidalgo ? Á fé que o não sabia e folgo muito de o saber . Ermezenda sentiu a cruel verdade d' estas palavras ; porem , conhecendo o coração angelico da rainha , não desanimou , e reprimindo as lagrimas que novamente tentavam irromper abundantes , respondeu com voz humilde : -- Oh ! não , não , Affonso Fernandes bem sabe , sabe como nenhum outro , qual é o modo de ennobrecer o sangue e engrandecer o seu nascimento . Affonso veiu esta noite aqui , repito , para combinar comigo qual o melhor meio de realisar santamente a sua e a minha ventura . Ermezenda contou á rainha o que ella passara na entrevista com o amante . Acabada a narração , D. Izabel exclamou : -- Bem , Ermezenda , perdôo-te ; nunca tornes porem a confiar tão pouco na tua rainha e senhora . Quanto á tenção em que está Affonso Fernandes de praticar feito de vulto na proxima lide , espero que será tenção irrealisavel , porque Deus não ha de permittir que mais uma vez se commetta o horrendo peccado d' uma lucta entre aquelles cujos laços de sangue o amor deve robustecer . Entretanto fallarei a el-rei nos vossos projectos e estou certa que elle ha de ceder aos meus rogos . E tu , Ermezenda , pede a Deus que te illumine para que no caminho da vida não acertes mais nenhuma vez de te achares á beira de tão fundo abysmo como este de que te salvaste . Adeus , fica pedindo ao Senhor para que illumine a alma de meu filho e o afaste do errado e criminoso caminho em que tem andado . A rainha sahiu ; Ermezenda cahiu de joelhos e poz-se a orar com fervor . Fora do alcaçar o silencio continuava a ser profundo . No interior todos repousavam , menos duas pessoas : uma donzella a quem os cuidados do amor davam uma noite desvelada , e uma rainha cujas vigilias eram passadas em orações pela paz do reino e concordia dos entes que lhe eram mais caros , o esposo e o filho . Alcaçar por sua real senhoria El-rei||_D._Diniz D.|_D._Diniz Diniz|_D._Diniz fez tudo quanto quiz . Proloquio popular No dia que se seguiu á noite em que succederam os accontecimentos narrados no capitulo antecedente , outros , mais graves porem e de mais geral interesse , se davam nos paços do Castello e traziam sobremaneira alvoroçados os moradores do concelho -- Lisboa e d' arredor . Pelas ruas e terreiros do concelho , nos numerosos ajuntamentos formados pelos moradores a quem os acontecimentos roubavam aos seus mesteres quotidianos não se fallava n ' outra coisa senão na rebellião do senhor||_infante infante|_infante D. Affonso , filho legitimo d' el-rei e natural successor d' estes reinos . Corria voz entre os populares , voz aliás bem fundada , de que o senhor infante acompanhado dos fidalgos de sua casa e de grande copia de peões já se achava perto de Lisboa , e vinha em som de guerra exigir d' el-rei seu pae accrescentamentos importantes nos rendimentos de sua casa . Era grande a indignação das gentes do concelho , e unanime a sua adhesão a el-rei com quem n ' aquella conjunctura faziam , causa commum , achando-se todos dispostos a prestar-lhe auxilio de fazendas e vidas , no caso de sua senhoria querer , como se dizia , reprimir mais uma vez a rebellião do filho e fazel- o conter nos justos limites que o respeito real e a auctoridade paterna lhe impunham . Eram pois extraordinarios o bulicio e a inquietação em toda a area do concelho . Nas lojas dos ferreiros e armeiros reinava desusada actividade ; batiam-se solhas , repregavam-se laudeis corregiam-se espadas e afiavam-se ascumas . Pelas ruas e principalmente no terreiro que havia em frente do alcaçar do Castello , apinhava-se grande chusma de populares entre os quaes já se notavam muitos peões armados das suas ascumas e paos ferrados , alguns bésteiros armados das suas bestas e munidos do competente numero de virotões , e um outro cavalleiro do concelho com a sua lança em punho , um ou outro escudeiro d' el-rei , já vestido com a sua loriga de combate . Vê-se pois que todos esperavam só pelo signal de partida , e que apenas elle soasse , sua senhoria o bom rei||_D._Diniz D.|_D._Diniz Diniz|_D._Diniz , aquelle rei de quem se disse que fez tudo quanto quiz , poderia abalar com a sua hoste ao encontro do infante rebelde , cuja indole brava tão facilmente o levava ao esquecimento do que devia a el-rei , de quem , sobre ser vassallo , era filho . Segundo dissemos em frente do alcaçar o ajunctamento era mais numeroso . Provinha isso principalmente de terem logo de manhã entrado para a morada real os seguintes importantes personagens : o meirinho-mór da côrte , Lourenço Annes Redondo , o chanceller-mór , ou como se dizia n ' aquelle tempo , o chançarel moor , Francisco Domingues , o bispo de Lisboa D. Gonçalo , o alferes mór d' el-rei||_João_Affonso João|_João_Affonso Affonso|_João_Affonso , e o alcaide de Lisboa , Fernão Rodrigues Bogalho acompanhado dos honrados alvasis do concelho , Fernão Lobeira e Pedro Annes Gayo . Em quanto porem os homens bons da cidade e os moradores dos arredores esperam no terreiro do alcaçar que soe o signal para mais uma vez mostrarem o seu affecto e lealdade á pessoa d' el-rei , entremos nós na vivenda real , subamos a larga escadaria e penetremos no aposento em que sua senhoria el-rei||_D._Diniz D.|_D._Diniz Diniz|_D._Diniz conferenceia com as principaes authoridades . El-rei estava á cabeceira d' uma grande meza , sentado em magestosa cadeira de largo espaldar ornado de bem acabados lavores . Em volta da meza em assentos rasos achavam-se os personagens cuja entrada fora presenceada pelos populares . Entre elles estava tambem o infante||_D._Affonso_Sanches D.|_D._Affonso_Sanches Affonso|_D._Affonso_Sanches Sanches|_D._Affonso_Sanches , o filho natural , ou o filho de ganhadia como lhe chamara no seu ciume o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso herdeiro do throno . El-rei acabara de expor o motivo para que ali os chamara , e Affonso Sanches que se considerava com justa razão o motivo principal que levara o infante herdeiro a proceder d' um modo tão insolito , foi o primeiro a responder a el-rei : Com voz grave e o aspecto entre severo e magoado , Affonso Sanches rompeu no seguinte arrasoado : -- Muito é para sentir meu senhor rei e pae , o procedimento do infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso . Não é esta a primeira vez que o senhor infante meu irmão recorre á força das armas para sustentar as suas desavisadas pretenções . Já bastante sangue se tem derramado repetidas vezes n ' estas lactas inglorias que tanto damno trazem a estes reinos , e não seria demasiado todo o esforço que se empregasse para evitar que mais uma vez o senhor infante desembainhasse a espada em prol d' uma causa que a todos se antolha tão injusta . Apesar de dar como pretexto do seu procedimento a escacez dos rendimentos de sua casa e pedir por isso que el-rei lh'os -- , quer-me parecer que um tal pretexto não é mais que apparente e que o motivo da irritação do animo do senhor infante não é outro senão a minha permanwncia n ' esta côrte . Devotando-me pois como sempre á paz e tranquillidade do reino , entendo em meu juizo que o melhor meio de asserenar o animo do senhor meu irmão , e evitar assim a lucta que está prestes a travar-se , é a minha sahida d' esta côrte . Lembrado haveis de estar , senhor rei , que ainda nas ultimas discussões entre vós e vosso filho , este exigia que eu me retirasse da côrte , e que mal eu me fui a viver em Castella , o senhor infante largou as armas e a paz foi logo restabelecida com geral contentamento d' estes reinos . Depois que regressei á patria , da qual tanto me pezava ver affastado , o senhor||_infante infante|_infante D. Affonso , começou a dar claras mostras de descontentamento , e eil- o ahi vem sobre Lisboa com amigo decidido a desembainhar a espada contra seu rei e senhor , e dar mais uma vez ao mundo o espectaculo desolador d' um pae e d' um filho a gladiarem com a furia e o encarniçamento de estranhos e de inimigos . É meu parecer pois que se evite um tal espectaculo , o que facilmente se conseguirá retirando-me eu da côrte . Disposto estou a sacrificar-me e bastará que vós , senhor rei e pae , pronuncieis uma palavra para que eu parta logo para Castella onde vivirei saudoso da patria mas com a consciencia satisfeita de ter cumprido os deveres de bom filho e de leal vassallo . Ao ouvirem estas razões todos os personagens que assistiam á audiencia do rei , menos os alvasis de Lisboa , deram signaes de as acharem muito sensatas e bem cabidas . Nenhum porem tomou a palavra afim de manifestar a sua opinião ; aguardaram que el-rei lh'a pedisse ou a tomasse outra vez e exposesse o que sentia a respeito do alvitre proposta pelo infante . Depois de se recolher e meditar um pouco , el-rei redarguiu : -- Folguei muito , infante , de vos ouvir fallar com tanta isenção em materia de tamanha gravidade a que tanto entende com os vossos interesses . Foi a vossa resposta a que é propria d' um fiel vassallo , e por ella mostrastes mais uma vez quão reconhecidamente correspondeis ao muito amor que eu sempre vos consagrei , amor que infelizmente tanto ciume tem causado ao vosso irmão o infante||_D.Affonso D.Affonso|_D.Affonso . Dou-vos muita razão quanto a dizerdes que a escacez dos rendimentos não é mais do que um pretexto apparente da parte de vosso irmão . Demasiado sei a má sombra com que o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso , meu herdeiro , tem sempre visto o affecto que eu vos dedico , a ponto de ter chegado no seu tresvario a conceber receios de que eu ponha na vossa fronte a coroa que de direito lhe pertence . Tresloucada suspeita e a que só a cegueira de ruins paixões pode servir de desculpa ! Reconhecendo a justiça do vosso arrasoado , permitti comtudo , infante , que eu ouça primeiramente a opinião dos mais personagens aqui presentes para depois tomar a resolução que mais acorde me pareça com o que a justiça e o bem geral requerem . Dizei vosso parecer mui veneravel bispo de Lisboa . -- Escutando a voz da minha consciencia , respondeu o bispo , devo dizer a vossa real senhoria , que em tudo me conformo com o parecer do senhor infante . E a guerra contraria á caridade e á mansidão que a religião recommendam ; nenhum pastor da igreja pode em caso algum approyal-a , muito menos no caso presente em que significa a quebra d' um dos mais sagrados laços da natureza , o respeito é o amor que devem unir o pae e o filho . É pois minha opinião , a qual sustento com a mão na consciencia e o espirito em Deus , que por todos os meios e até sacrificios possiveis sei evite esta guerra e se procure a reconciliação de vossa senhoria e do senhor||_infante infante|_infante D. Affonso . Igual parecer deram o meirinho-mór e o chanceller-mór , restava ouvir a opinião dos honrados alvasis do concelho , opinião que devia representar a dos habitantes em tão grave conjunctura . Interrogados os alvasis sobre o caso , Fernão Lobeira respondeu do modo seguinte : -- Não ha muito que vossa real senhoria convocou os homens bons d' este concelho -- Lisboa a proposito dos males e perturbações que o senhor infante constantemente traz ao reino com as suas desvairadas pretenções . Ouvidas as rasões expostas por vossa real senhoria o concelho accordou unanimemente em que daria todo o auxilio de que el-rei houvesse mister para trazer á obediencia o senhor||_infante infante|_infante D. Affonso , e outrosim accordou em que n ' este concelho não se daria guarida aos malfeitores e gente vil que andam de envolta com a hoste do senhor infante , com grande escandalo das gentes e grave prejuiso dos concelhos . O parecer que n ' essa occasião o concelho fez ouvir é o mesmo que eu hoje aqui sustento em seu nome . Os homens bons de Lisboa , leaes vassallos d' el-rei , estão promptos a auxiliar por todos os modos possiveis quaesquer esforços que vossa real senhoria empregar para restituir ao reino a paz e a tranquillidade de que tanto ha mister . E mais ainda , os honrados moradores d' este concelho , mesteiraes ou homens de prol , peões ou cavalleiros não têem outro desejo senão que vossa real senhoria trate o mais prompto possivel de trazer á obediencia o senhor||_infante infante|_infante D. Affonso , para exemplo dos rebeldes e escarmento dos malfeitores que se acoitam sob a sua bandeira . Após Fernão Lobeira , tomou a palavra Pedro Annes Gayo . -- Ha dois annos que os homens bons d' este concelho convocados por vossa senhoria ; accordaram , como acaba de dizer aqui Fernão Lobeira , em que dariam todo o auxilio de que el-rei houvesse mister para trazer á obediencia o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso , e outro sim accordaram que não se daria guarida n ' este concelho a nenhum dos malfeitores que andam na hoste do senhor infante , auxiliando-o em toda a casta de depredações por onde quer que elle passa . Como haveis de estar lembrado , senhor el-rei , andava então o senhor||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso bem longe , para as bandas do Douro e Minho e não havia pois nenhum risco proximo e imminente de que esta cidade soffresse com as devastações das gentes do senhor infante . Hoje porem correm as coisas d' outra feição , e segundo as novas recentes , a hoste do senhor infante vem proxima de Loures e segue o caminho d' esta cidade . Se ha dois annos os moradores do concelho vos prestaram de bom grado todo o auxilio que exigistes , hoje , com muito mais razão vos hão de soccorrer , porque alem do escandalo que ha tanto tempo está dando o senhor infante com a sua rebellião e desobediencia , existe o perigo de que a sua hoste entre n ' esta cidade e exerça as suas malfeitorias nos habitantes e em seus haveres . E vêde , senhor , que se não levaes por diante a tenção que fazeis de ir atalhar o passo á hoste do infante , elle por certo poderá fazer-nos grande damno porque uma grande parte da cidade jaz indefesa como são as freguezias da Madanela e S.||_Gião Gião|_Gião ; sem fallar no Rocio e na rua Nova , o que tudo fica fora da cerca que n ' esta conjunctura de quasi nada nos serve . Por todas estas razões a gente do concelho não só vos presta todo o auxilio que lhe pedis , como , ainda mais , vos roga que sahiaes a campo e castigueis severamente os desmandos do senhor infante . Durante os arrasoados dos alvasis os outros circumstantes não deram mostras de grande assombro apesar da extraordinaria differença dos pareceres , porque ha já muito estavam habituados áquella firmeza da parte da gente do concelho quando se tratava de pugnarem pelos seus interesses , e el-rei , porque assim lhe convinha , era sempre favoravel á causa popular , e muito mais agora que essa causa era tambem a sua . Affonso Sanches cujo favoritismo parecia ser o motivo principal de similhantes acontecimentos , e que talvez concebesse vagas esperanças de que a coroa ainda lhe viesse a poisar na fronte , dissimulava a custo a alegria de ver que uma opinião importante , a do elemento popular , contrabalançava a da dos outros personagens presentes , e igualmente a opinião que elle manifestara nas suas palavras , embora talvez não fosse a que lhe dictasse a consciencia offuscada pela ambição . Após curto silencio , el-rei , disse o seguinte : -- Muito me approuve , ouvir-vos fallar de tal feição , honrados alvasis . Outra coisa não esperava da vossa boca . É antigo o affecto que me dedicam os meus bons habitantes de Lisboa e d' elle tenho recebido repetidas provas que jamais esquecerei . Tambem eu sou de opinião que se deve a todo o custo trazer á obediencia o senhor infante meu filho . Bastante me pesa o lance ; é duro e muito duro para o coração d' um pae , ter de desembainhar a espada para um filho , mas a terrivel necessidade a isso me impelle . Chegado a esta idade tão avançada em que costumam não vir longe os horisontes da morte , tenho desejos de deixar o reino em paz e o nome real respeitado para futuro exemplo , dos meus successores . Por isso , eis a minha resolução : amanhã após a primeira refeição , partirei com os fidalgos e cavalleiros da minha casa , com os cavalleiros e pioada do concelho -- Lisboa ao encontro do infante , o qual segundo noticias que tenho se acha acampado no Lumiar . Não querendo porem que se diga com justa razão que eu não procurei por todos os meios evitar tão odioso lance , enviarei adiante como embaixador , um cavalleiro da minha casa , para fazer uma ultima tentativa de reconciliação junto de meu filho . Se tão sinceros esforços não forem coroados de exito , então recorrerei á lucta que é o unico meio que me resta para dar a tranquillidade ao meu espirito e a paz ao meu reino . Ficai pois vós todos entendendo a mínha deliberação : vós , alcaide e alvasis de Lisboa , lançareis hoje mesmo pregão para que amanhã , cedo se reunam no castello todos os homens de guerra do concelho , e vós , veneravel bispo , mandareis celebrar na cathedral uma missa a que eu assistirei com a minha hoste , afim de rogarmos a Deus pelo exito de nossa causa tão justa . Vós , Lourenço Annes Redondo , apresentae-vos esta tarde depois da hora da refeição nos meus aposentos ; tenho de resolver comvosco um grave negocio de justiça . Ditas estas palavras el-rei voltou-se para os alvasis e accrescentou em tom de authoridade : -- Em vista das vossas palavras e do anterior procedimento dos habitantes d' este concelho , espero que amanhã todos os vossos homens de guerra me acompanharão de bom grado ao encontro do infante . -- Nem o mais insignificante peão faltará ao chamamento para a hoste , volveu Fernão Lobeira . E direi mais , os moradores d' este concelho anceiam por auxiliar el-rei a oppor- se á entrada do senhor infante na cidade . Se vossa senhoria , quer ter uma prova incontestavel do que digo , não tem mais que assomar á janella e relancear a vista para o terreiro do alcaçar . El-rei assim fez . Como sabemos o alvasil não mentia ; quando el-rei chegou á janella , alguns dos populares apinhados no terreiro , bradaram logo voz em grita : -- Alcaçar por sua real senhoria ! Este enthusiasmo do populacho não era para admirar porque não havia muito tempo que el-rei tinha feito consideraveis concessões ao concelho , concessões a que os reis então não se podiam esquivar muito porque precisavam da gente dos cencelhos para contrabalançarem o poderio e a avidez dos fidalgos . El-rei retirou-se para dentro . Após a ultima scena os circumstantes comprehenderam que estava terminada a audiencia e fazendo respeitosa venia despediram-se . Assim que elles se retiraram correu voz entre os populares que a lide ficava aprazada para o dia seguinte . O ajuntamento foi-se desfazendo pouco a pouco ; um grande numero de populares voltou dos seus mesteres afim de aproveitar o que restava do dia , outros foram afiar a sua lança de peão , ou experimentar a sua modesta armadura de cavalleiro villão afim de no outro dia irem bem armados na hoste em frente da qual el-rei queria submetter o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso , que os povos ja appellidavam o bravo em razão da sua indole irrequieta que constantemente se manifestava na rebellião permanente contra o pae por causa dos ciumes do valimento do seu irmão Affonso Sanches o filho de ganhadia que el-rei muito amava . O meirinho-mór da côrte O mar semelha muio aqueste Rey Com gran tormenta o fará morrer ( Trovas do seculo XIV ) Davam tres horas as torres da velha cathedral . N ' um dos aposentos do interior do palacio estava el-rei||_D._Diniz D.|_D._Diniz Diniz|_D._Diniz sentado a uma meza coberta de pergaminhos . El-rei escrevia ; pela expressão do rosto contrahido d' um modo severo , via-se que n ' aquelle momento não se entregava aos devaneios de trovador , e que não era nenhuma trova ao gosto provençal o que estava traçando com a ponta do estilo na face lisa do pergaminho que tinha diante de si . Cuidados mais graves o preoccupavam por certo n ' aquelle momento . De pé , em frente d' el-rei , na attitude em que se revelava o respeito do inferior para com o superior , estava um mancebo , que parecia aguardar as suas ordens . Trajava um rico gibão de seda golpeada , e segurava na mão direita um gorro de veludo negro com pluma ao lado presa por um broche de prata . Os cabellos , não muito compridos , corredios , cahidos sobre os hombros , eram de cor arruivada . Segundo o costume d' então , usava a barba toda , a qual tinha a mesma côr que o cabello . O aspecto d' este personagem , que não era outro senão Fernão Froyão , o escudeiro que já conhecemos , tinha pouco de sympathico e de insinuante . O seu olhar , velado por compridas sobrancelhas era enviesado e cauteloso . A sua attitude parecia denotar mais a humildade simulada do que o respeito sincero . Qnando acabou de escrever el-rei levantou a fronte e disse de subito : -- Ainda não tornaste a ver Affonso Fernandes ? -- Já esta manhã o vi . -- Que lhe disseste ? -- Nada que mereça a pena relatar-se . Encontrei-o na loja de Esteveannes , o armeiro que mora junto á porta do ferro . -- Que fazia elle ahi ? perguntou el-rei , com visivel curiosidade . Fernão Froyão respondeu com um leve sorriso de ironia a despontar-lhe nos labios . -- Estava a recommendar que lhe polissem o seu arnez de prova para amanhã cedo . -- É para ir á lide , disse el-rei , ha de ir de certo mas a lide bem differente . O escudeiro estremeceu ao ouvir estas palavras ; encerravam um sentido enigmatico mas que podia ser terrivel . Dissimulando á sua commoção Fernão Froyão volveu com voz meliflua : -- E pena é se não for ; Affonso Fernandes é um dos valentes espadas que na côrte se conhecem . -- E um dos mais vis traidores que na côrte se abrigam , retorquiu el-rei com voz colerica ; mas por isso cara lhe ha de sahir a traição , dentro de vinte e quatro horas tel-a-ha pago como merece . Pelo olhar do escudeiro passou um fulgor estranho ; foi um relampago ; após elle as trevas d' aquella alma tornaram a lançar sobre aquelle olhar o veu sombrio que constantemente o velava . A colera parecia entretanto tornar el-rei expansivo . Convinha tirar todo o partido d' aquelle estado em que se achava o real animo ; foi o que fez o bom e leal escudeiro . Contendo a alegria que lhe trasbordava da alma e ameaçava espraiar-se-lhe no rosto Fernão Froyão disse : -- E se houvesse engano , se Affonso Fernandes tivesse ido aos aposentos da senhora rainha animado das mais puras intenções ? ... -- Puras intenções ! haveis endoudecido Fernão Froyão ; como é possivel que se possa entrar com puras intenções no aposento d' uma dama ou donzella valendo-se para isso talvez d' uma escada de corda e por certo das trevas da noite ? Se por acaso amava alguma donzella ou cuvilheira da rainha e era correspondido , porque não declarou as suas honestas intenções e não pediu a seu rei e protector o consentimento , que de certo não lhe havia de ser denegado , de satisfazer ás suas mais ardentes aspirações ? Dou-vos de conselho , Fernão Froyão , que se alguma vez vos achardes em igual situação não sigaes o exemplo de Affonso Fernandes ; valem mais do que as trevas da noite e as escadas de corda o nosso amor e a nossa protecção . Era por este momento que o sagaz escudeiro esperava . Ao acabar el-rei de dizer estas palavras lançou-se-lhe aos pés e exclamou com voz humilde e supplicante : -- Castigae-me pois tambem , senhor rei ; se não pratiquei o mau feito de violar os aposentos das damas e donzellas do paço , commetti a falta de amar a occultas a mais nobre donzella ao serviço da minha rainha e senhora . Amo louca , loucamente a formosa Ermezenda Affonso ; mas se vós , senhor rei , não me julgaes digno de a possuir , deixae-me então procurar a morte na lide ou ir nas galés de Micer Manuel Pezagno que proximamente partem para as costas da Barbaria ; lá nas praias dos infieis buscarei com a morte o esquecimento do meu amor e a remissão das minhas culpas . Era tão pathetico o tom de Fernão Froyão que el-rei sentiu-se commovido . Fazendo-o levantar , disse-lhe : -- Mas corresponde Ermezenda a esse amor ? -- Nos modos e no olhar tem-me dado inequivocas provas de que não é insensivel ao affecto que lhe dedico ; porém , de que me valeria o seu amor se vossa real senhoria não houvesse por bem dar-lhe a sua approvação ? -- Bem , Fernão , a minha approvação já a tens . Se approuver a Deus voltarmos amanhã da lide com saude no corpo e paz na alma , direi á senhora rainha minha esposa que dê a Ermezenda a boa nova de que em breve desposará o predilecto de sua alma . Foi immensa a alegria que o escudeiro repentinamente sentiu ; promettiam-lhe , segura e proxima , a realisação da sua ventura , e , o que era não por certo menos , antevia tambem para breve a satisfação de seus desejos de vingança torpe e mesquinha . Ia talvez na expansão da sua alegria lançar-se segunda vez aos pés d' el-rei , quando o reposteiro que havia a um lado ondeou um pouco e deixou ver o rosto imberbe d' um pagem que annunciou com voz juvenil : -- O meirinho-mór da côrte . El-rei fez signal ao escudeiro para se retirar . Momentos depois Lourenço Annes Redondo achava-se em presença d' él- rei . O meirinho-mór manifestava na physionomia um certo pasmo d' envolta com uma leve expressão de receio . Tinha razão ; os deveres do seu cargo eram assaz graves e espinhosos . Competia ao meirinho-mór das justiças especialmente o prender os fidalgos quando delinquissem , e geralmente entender n ' aquellas coisas de justiça que por sua natureza fossem de mais alta importancia . Ora Lourenço Annes Redondo reflectira e reflectira bem , que se el-rei o mandava chamar tão de chofre e com tanto mysterio era porque alguma coisa bem grave succedera na côrte para a qual se tornava necessaria a interferencia da sua pessoa . O que logo muito naturalmente lhe accudiu á lembrança foi que el-rei precisava d' elle para effectuar a prizão d' algum fidalgo ou escudeiro que tivesse incorrido em crime de rebellião por se achar de accordo ou correspondencia com o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso ou com algum dos do seu partido . Os acontecimentos da epocha autorisavam sobremaneira uma tal suspeita . Entretanto o meirinho por indicação do rei , sentou-se n ' um escabello que ficava ao pé da meza e esperou as ordens regias . El-rei recostou-se na sua cadeira d' amplo espaldar e com voz pausada e firme disse ao meirinho das justiças . -- Sabeis , meirinho , quão grave é o crime dos que abusam da protecção do seu senhor e levam á sua morada a vilta e a deshonra como se fora morada de barregan ou vil prostituta que mercadeja com o seu corpo ? O meirinho-mór cahiu das nuvens , ou antes cahiu de Scylla em Caribdes ao ouvir similhante exordio . Esperava crime de rebellião , sahia-lhe crime de amores , mas de amores , ao que parecia , com a circumstancia aggravante de abuso da morada real . O bom do meirinho tremeu pela sorte do criminoso . Similhantes reflexões , porém , não lhe tolheram a falla e respondeu logo : -- Mui feio crime é esse que vossa real senhoria aponta e tão feio que vossa real senhoria entendeu dever pôr em vigor uma ordenação bem severa a similhante respeito . -- E lembrae-vos do que n ' essa ordenação determino ? perguntou el-rei . -- Perfeitamente , redarguiu o meirinho . E com voz cheia e pausada como a de qualquer mestre em leis , o meirinho accrescentou : -- Vossa real senhoria poz ha vinte e tantos annos por lei e ainda não revogou , que todo o homem que com senhor viver , quer por soldada , quer a bem fazer sendo seu governado , ou andando por seu e jouver com sua filha , irmã , prima co-irmã , prima , ou com a sua madre ou criada do seu senhor com que viver , que moira porém . E esto se entende assy nos fidalgos como nos villãos . Após esta citação erudita o meirinho , a despeito da gravidade do caso , revelou no rosto a mais plena satisfação que se pode imaginar no rosto grave d' um meirinho . E tinha razão ; a memoria não lhe faltara , o seu credito de homem de justiças não perdera , antes ganhara em tão espinhosa conjunctura . -- Bem , volveu el-rei , essa é a lei , agora no tocante ao modo de a executar éque surge a difficuldade . O bom do meirinho fez novamente cara de pasmo ; não se saber como se havia de cumprir uma lei era caso talvez novo nos annaes da côrte . Entretanto aguardou que seu real senhor se dignasse dar mais amplas explicações . -- Que responderieis vós , dom meirinho , se eu vos dissesse que ha um criminoso em quem a lei que haveis citado tem forçosamente de ser cumprida , mas que do cumprimento d' essa lei , pelos modos ordinarios , proviriam grande vilta e infamia para a morada d' el-rei ? o que preferieis vós , o escandalo ou o não cumprimento da lei ? O meirinho embaçou ; a resposta era difficil , mas urgia dal-a ; para os casos difficeis é que se tinham feito especialmente os meirinhos . Fechando os olhos , não os do corpo , que seria falta de respeito , mas os da consciencia que não se veem , o honrado meirinho respondeu pois ás cegas : -- Eu preferia acima de tudo cumprir a lei sem escandalo ; a occultas , accrescentou timidamente . -- Eis o meu parecer , exclamou sua senhoria , e para accordarmos n ' esse meio é que vos mandei chamar . O bom do meirinho deu um suspiro d' allivio ; estava nos seus dias felizes , as respostas sahiam-lhe mal pensadas mas acertadas . -- E para melhor dizer , accrescentou el-rei , já me occorreu um meio que me parece excellente . Segundo suspiro d' allivio fez arfar o peito do honrado magistrado ; o caso não era para menos , sua senhoria poupava-lhe trabalho ; dispensava-o de cogitações . -- E poderei saber que meio é esse ? perguntou o meirinho para dizer alguma coisa . -- Não deverá ser amanhã executado um villão grande criminoso , cuja sentença assignei ha bastantes dias ? -- Ámanhã de certo , por volta do meio dia . -- Bem , disse el-rei , substitue-se o villão pelo traidor de quem fallo . -- Mas como ? perguntou o meirinho com a mais sincera expressão de embaraço que se pode imaginar . -- Facilmente ; entendendo-vos com o corregedor da côrte e o corregedor com o carcereiro do Castello . -- Bem , mas é preciso que vossa real senhoria me diga quem é o criminoso , volveu o meirinho com invejavel sagacidade . -- Poderia vol-o , mas não é preciso . O criminoso é o escudeiro que eu ámanhã vos enviar com um recado meu . -- Que recado ? acudiu logo o meirinho , o recado é o mais importante ; pode haver algum equivoco desgraçado . El-rei meditou um instante e depois respondeu : -- Basta que diga que vae da parte d' el-rei saber se já cumpriu a sua sentença certo villão , grande criminoso . -- Muito bem . -- E não vos esqueça recommendar que guardem todos os objectos que elle comsigo levar , principalmente um certo firmal de oiro que deve ter ao pescoço . D ' esses objectos tereis vós especial cuidado para m ' os entregardes . Agora podeis retirar-vos . Após profunda venia o meirinho sahiu . Qoando o meirinho transpoz o limiar do aposento se não estivesse bastante preoccupado teria feito reparo n ' um vulto que se metteu apressado por uma porta lateral , como quem evita ser visto . O vulto era Fernão Froyão . Se o tivesse visto , acharia facilmente a explicação d' um phenomeno às vezes vulgar , o de terem as paredes ouvidos . Não fez porém reparo . Preoccupava- o o que quer que fosse , tanto que a meio do caminho , parou , hesitou , voltou para trás e correndo um pouco o reposteiro metteu a cabeça , e vendo el-rei ainda sentado , disse com voz respeitosa : -- Occorre-me uma reflexão , e se vossa real senhoria m ' o permitte dil-a-hei . -- Pois entrae e dizei , volveu el-rei que era affavel . -- Como tudo se ha de combinar com o corregedor parece-me mais conveniente que o recado seja levado ao carcereiro que logo ali fará a substituição dos criminosos . Parece-me de mais simples execução . -- Fallaes avisadamente , dom meirinho ; fica pois acordado que o justiçado será aquelle que fôr da parte d' el-rei saber se a sentença já foi executada . Que seja amanhã sem falta a execução . -- Serão cumpridas as ordens d' el-rei , volveu o meirinho e retirou-se , mas d' esta vez não voltou . Depois d' elle desapparecer el-rei soltou um suspiro de magoa e disse em tom repassado de funda tristeza : -- Ámanhã farei dois actos de justiça . Doloroso é ser rei , porém , muito mais doloroso é ser rei e pae . O armeiro da porta do ferro . ... tocam á arma , ferve a gente . Camões , Lusiadas . No outro dia de manhã , logo muito cedo , na loja de Esteveannes , o armeiro da Porta do ferro , notava-se desusado bulicio e movimento . Era Esteveannes o mais acreditado armeiro que havia no concelho , e o epitetho porque se tornara conhecido provinha de se achar o seu estabelecimento nas visinhanças d' uma das portas da velha cerca da cidade chamada a porta do ferro , a qual ficava nas proximidades da Cathedral quasi no sitio onde hoje fica a igreja de Santo Antonio da Sé . Esta porta da qual não resta o mais pequeno vestigio , era uma das mais frequentadas n ' aquelle tempo , e ainda no seculo XVI , quando já a cidade occupava incomparavelmente muito maior extensão , a porta do ferro permanecia de pé com o seu arco soturno e profundo aberto na espessura da velha muralha que tambem ainda existia apesar de já ser uma coisa inutil , pois que no século XIV , el-rei||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando para pôr a cidade a salvo d' algum ataque , escarmentado com a lição que recebera na guerra contra a Hespanha , mandara cercar a cidade com uma nova muralha , cuja porta mais occidental ficava nas proximidades do Loreto . Esta segunda cerca tambem com o tempo se tornou uma inutilidade , porque , graças ás riquezas provenientes das conquistas , a cidade tomou um desenvolvimento extraordinario no seculo XVI a ponto de ser uma cidade admirada pelos estrangeiros que a ella vinham . Havia pois , como dissemos , desacostumado movimento na loja de Esteveannes . Ao fundo da loja brilhava a forja , a qual innundando com o seu clarão avermelhado aquelle negro recinto dava ao estabelecimento do armeiro uma apparencia de antro infernal . Contribuia tambem para augmentar a illusão o temeroso martellar dos mesteiraes nas solhas , nos elmos , peitos d' aço e mais peças de armadura , ai gumas das quaes , por certo , eram destinadas a servir n ' aquelle mesmo dia na lide em que deviam achar-se frente a frente el-rei e o seu filho rebelde O infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso . Entre os diversos mesteiraes ali occupados distinguia-se o vulto espadaudo e alentado do velho armeiro . Era homem de idade avançada , mas de corporatura erecta e robusta . Tinha a barba e os cabellos já grisalhos e n ' um estado tão revolto que davam ao honrado mesteiral aspecto mais repellente do que sympathico . Esteveannes acabara n ' aquelle momento de dar a segunda mão no polimento d' um arnez . Depois de o mirar e remirar muito tempo como quem se extasia com o bem acabado da obra , disse para o mesteiral que lhe ficava mais proximo : -- A ' fé de quem sou , que na minha aturada lide de quarenta annos n ' este mester d' armeiro ainda não vi arnez de mais fina prova do que este que acabo de polir . E ficou-me que nem um espelho ! Desejava que apparecesse o senhor||_Affonso_Fernandes Affonso|_Affonso_Fernandes Fernandes|_Affonso_Fernandes para lhe dar os emboras da grande peça que possue ; com um arnez assim não é a lança de nenhum cavalleiro do senhor infante que chega ás carnes do nosso valente escudeiro . Após esta oração laudatoria á boa tempera da peça d' armadura que tinha na mão , o armeiro ia artumal- a a um canto , onde ficaria até que o dono a viesse buscar , quando o galopar d' um cavallo que lhe parou á porta o fez estacar no meio da loja . O armeiro soltou uma exclamação de surpreza e de satisfação ao vêr quem era o cavalleiro que se apeara e lhe entrava pela porta dentro , de viseira erguida . -- Bem vindo sejaes , senhor||_Affonso_Fernandes Affonso|_Affonso_Fernandes Fernandes|_Affonso_Fernandes ; já vos aguardava ; n ' este momento fallava em vós , exclamou Esteveannes com a sua voz aspera e sonora . -- Se não me engano , honrado Esteveannes , é meu o arnez que tendes na mão ? -- É vosso , dom escudeiro , e bofá que é uma peça como poucas . -- Creio bem , Esteveannes , e se alguma duvida me restasse a tal respeito , hoje teria uma occasião de me convencer do que dizeis . -- Fio , senhor||_Affonso_Fernandes Affonso|_Affonso_Fernandes Fernandes|_Affonso_Fernandes , que não vos haveis de arrepender dos bons maravedis que por elle houverdes dado . -- Pois sabei Esteveannes , redarguiu o escudeiro pegando no arnez , que não foram nem maravedis nem nenhuma moeda de outra qualidade o que me deu a posse de tão valiosa peça . -- Como assim , dom escudeiro , acaso a obtivestes pelas más artes d' alguma feiticeira que a fosse buscar ás forjas de Belzebuth ? replicou o armeiro escancarando a grande boca n ' um riso de satisfação , crusando as mãos atrás das costas e descaindo um pouco o corpo para diante na attitude descançada de quem se dispõe ao prazer da conversa . -- Pois não acertastes , Esteveannes , e bem sabeis que nunca me quiz com bruxas nem feitiços . Este arnez que aqui vêdes e que merece os vossos gabos , foi dadiva que me fez Micer Pezagno , almirante d' el-rei , que o trouxe lá das terras de Italia onde se fabricam pptimas armaduras . Mas dizei-me , não ides hoje á lide incorporado na hoste ? -- Não falto , segundo é minha tenção , respondeu o armeiro . E vós , escusado é perguntar , partis já , a avaliar pela pressa que trazeis . -- Não , Esteveannes , venho n ' esta pressa porque vou primeiramente da parte d' el-rei levar um recado á prizão da Alcaçova . -- Mas n ' esse caso , senhor||_Affonso_Fernandes Affonso|_Affonso_Fernandes Fernandes|_Affonso_Fernandes , bem que vos peze , não podereis ouvir a missa que hoje se dirá na Cathedral e á qual assiste el-rei com a sua hoste ? -- Não me peza , Esteveannes , já achei remedio a isso . A senhora rainha que é tão zeloza cumpridora dos seus deveres , ordenou igualmente , segundo sei de boa fonte , que se rezassem hoje tres missas na capella real para que Deus na sua grande misericordia se amerceie d' estes reinos e derrame a sua luz no espirito do infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso e faça com que elle ainda se lembre do que lhe cumpre como bom filho e successor do reino . A nossa boa rainha e senhora põe ainda toda a sua esperança na intervenção divina e está convencida de que hoje mesmo se fará a paz entre el-rei e seu filho sem que nenhum d' elles tenha de desembainhar a espada . N ' este ponto as esperanças da senhora rainha não vão accordes com a opinião geral da côrte que antevê uma lucta muito encarniçada nas proximidades de Lisboa . Entretanto , eu , como cavalleiro e bom christão , não podendo talvez assistir á missa da Cathedral , vou já d' este passo assistir a uma das missas que se hão de rezar na capella do alcaçar . Depois de cumprir estes dois deveres hei de ter ainda tempo de alcançar a hoste real no caminho para o Lumiar . -- E a côrte não assiste ás missas da rainha ? -- Não ; tem ordem d' el-rei para assistir á da Cathedral . Ás missas da capella real só provavelmente assistem as covilheiras e donzellas da senhora rainha , accrescentou o escudeiro . Quem attentamente tivesse observado a physionomia do enamorado escudeiro ao proferir estas ultimas palavras lhe-hia notado claros symptomas de extrema commoção . O armeiro não era porém homem no caso de fazer observações subtis , e a alteração que se deu no rosto do escudeiro passou desapercebida . -- Ora bem , exclamou de subito o escudeiro , não convem demorar ; aqui mesmo envergarei o arnez . Affonso Fernandes arredou-se para um canto da loja , tirou o elmo , despiu um brial , que era uma veste que se costuvava trazer por cima da armadura , e envergou o arnez . Passados poucos momentos tinha já posto o elmo e tornado a vestir o brial . -- Agora , mestre Esteveannes , disse o escudeiro segundo o nosso ajuste vos-hei esta divida quando receber d' el-rei a minha quantia . Mas dizei-me , na vossa qualidade de bésteiro do concelho , não ides , como vos cumpre , á lide ? -- Vou já n ' este momento armar-me da minha besta e do meu bacinete para me encorporar com a gente de guerra do meu concelho . Na minha qualidade de morador de Lisboa não faltarei com o meu braço no feito de atalhar o passo ao senhor infante que vem sobre a cidade , segando se diz , com animo de entrar n ' ella acompanhado de chusma de malfeitores e bem sabeis o damno que isso poderia causar á cidade . Instantes depois , Affonso Fernandes , despediu-se do armeiro , montou a cavallo e partiu a galope pela ingreme ladeira que conduzia á Alcaçova . Ainda se ouvia distinctamente o galope do cavallo quando da banda da Alcaçova , appareceu um outro cavalleiro . Como trazia o rosto descoberto , o armeiro que assomara á porta no momento de Affonso Fernandes partir , reconheceu logo o recem-vindo e bradou : -- Bem vindo sejaes , senhor||_Fernão_Froyão Fernão|_Fernão_Froyão Froyão|_Fernão_Froyão ; que vos traz para estas bandas a taes horas ? -- Guarde-vos Deus mestre Esteveannes , o mais entendido armeiro de Lisboa e arredores , redarguiu Fernão Froyão apeando-se . Muito folgo de aqui vos encontrar porque hei mister da vossa arte para o corregimento d' esta viseira , que está perra e não a posso calar e erguer tão prestes como desejara . -- E Fernão Froyão que já a este tempo entrara na loja , tirou e elmo e polo nas mãos de Esteveannes . O armeiro examinou-o e depois de o entregar a um dos officiaes , fazendo-lhe algumas explicações sobre a maneira de o correger , rapidamente , voltou para junto do escudeiro . -- Que vos pareceu ? perguntou-lhe o escudeiro d' el-rei . Será caso para grande demora ? -- Pouco vale aquillo , respondeu-lhe o armeiro ; quatro martelladas só e tel- o heis prompto n ' um abrir e fechar d' olhos . -- Ora pois assim convem , volveu o escudeiro , porque tenho de me encorporar com a hoste que vae ao encontro do senhor infante e que já vem caminho da Cathedral . -- Que me estaes dizendo ! pois a hoste d' el-rei já vem caminho da Cathedral ! Oh ! exclamou com sobresalto o armeiro . E eu ainda aqui ! Dispensae-me , senhor||_Fernão_Froyão Fernão|_Fernão_Froyão Froyão|_Fernão_Froyão , não devo deter-me mais tempo ; o arranjo do elmo ahi fica entregue a boas mãos , e pouca demora pode levar . O Anadel já deve ter dado pela minha ausencia . Vou arranjar-me , e n ' um credo acho-me com a hoste afim de tambem assistir á missa da Cathedral . E vós , mesteiraes , accrescentou , fallando aos que trabalhavam podeis-vos tambem ir ; alguns de vós pertencem ao troço de guerra da cidade e conviria que não faltasseis ao feito de hoje . E vós , Lopo Baião , disse dirigindo-se ao que se incumbira do elmo , assim que tiverdes concluido o corregimento d' essa peça , fechae a loja , e abalae tambem para a hoste . Acabando de proferir estas palavras , Esteveannes vestiu o seu saio , poz na cabeça um chapeo de feltro de grandes abas , despediuse de Fernão Froyão e abalou rijo pela porta fora . O conselho do armeiro foi seguido ; d' ali a pouco só havia na loja Lopo Baião e o escudeiro . Passado um quarto de hora , o muito , Lopo Baião apresentava ao escudeiro o elmo já devidamente corregido . Fernão Froyão encaixou-o na cabeça e experimentou a vizeira ; baixava e subia perfeitamente . Depois de pagar o concerto e quando hia a retirar-se , acudiu-lhe uma idéa subita e voltando-se para Lopo Baião perguntou-lhe : -- Dizei-me se sabeis , quem era aquelle cavalleiro que partia d' aqui quando eu chegava ? -- Era o senhor||_Affonso_Fernandes Affonso|_Affonso_Fernandes Fernandes|_Affonso_Fernandes , respondeu de prompto Lopo Baião . -- Affonso Fernandes ! exclamou o escudeiro em tom de grande assombro . Mas que veio elle aqui fazer ? accrescentou no mesmo instante . -- Veio por um arnez que tinha cá posto . Quando vós chegaveis partia elle a encorporar-se na hoste . -- A encorporar-se na hoste ! redarguiu Fernão Froyão cujo assombro subiu de ponto . -- Não , para a hoste , não , atalhou de golpe Lopo Baião ; agora me occorre que elle aqui fallou por alto n ' um recado que devia levar da parte d' el-rei não me lembra aonde . Só depois de dar o recado d' el-rei é que se vai reunir a hoste . -- Bem sei , exclamou Fernão Froyão , bem sei que recado é esse que elle vai levar da parte d' el-rei . Eu tambem vou para o Castello a reunir-me a el-rei , -- e a ver de caminho se o recado de sua real senhoria foi cumprido como é mister -- accrescentou fallando comsigo . Depois de calar a viseira , Fernão Froyão tornou a montar no seu ginete , esporeou-o com ancia e partiu para o Castello . No caminho encontrou a hoste que já descia da Alcaçova . Não tardou muito que não passasse tambem o armeiro Esteveannes na mesma direcção . Como dissera tinha ido armar-se para se juntar á hoste d-el-rei . Na sua qualidade de bésteiro do concelho levava ao hombro a sua besta de polé , na cabeça um bacinete de camal , que era um elmo com defeza de malha de ferro para o pescoço , e no peito uma armadura a que chamavam solhas . Quando já tinham dado onze horas , sahia da cidade a hoste em direcção ao Lumiar . El-rei que acabara de assistir á missa que devotamente mandara dizer , segundo era costume antes d' uma hoste entrar em combate , el-rei postara-se rodeado dos cavalleiros incumbidos da guarda da sua real pessoa , proximo da porta de ferro , e estivera vmdo deslisar a sua gente formada em ordenança de guerra . No momento em que a çaga ou rectaguarda já franqueava a escura e profunda porta da cerca , e el-rei se dispunha tambem a pôr-se a caminho , ouviu-se das bandas da rua que subia para a Alcaçova bradar uma voz rouca e desgradavel : -- Justiça que sua senhoria el-rei mandou fazer n ' este traidor ; que morra enforcado como qualquer villão . El-rei que ouvira o pregão sinistro , deu de redea ao cavallo e disse ao cavalleiro que lhe ficava mais proximo : -- Aquelle nunca mais torna a ser traidor ao seu rei , se é que o foi . -- Quando é que a justiça d' el-rei se engana ? volveu o cavalleiro . Ao ouvir estas palavras , el-rei bem a seu pezar , estremeceu sobre o seu ginete de guerra . N ' aquella mesma tarde , na forca armada no sitio chamado hoje S.||_João_da_Praça João|_João_da_Praça da|_João_da_Praça Praça|_João_da_Praça balouçava um cadaver . Pelo que dissera o pregoeiro , aquelle cadaver era o d' um traidor que morria como merecem morrer os villões traidores . Porém entre a villanagem que assistira á execuçao e que reparara no rosto livido do cadaver , corria voz que aquelle não era um vil peão , mas um escudeiro da creação do Paço . Qual fora porém o crime que o tornara merecedor de morte tao aviltante ? Eis o que a villanagem não sabia dizer . O Balsão negro Este rei||_D._Diniz D.|_D._Diniz Diniz|_D._Diniz houve guerra com seu filho D. Affonso , per razão que queria que Affonso Sanches , que era seu filho de barregão que reinasse . Livro das Linhagens . A hoste real franqueou a chamada a porta do ferro , desceu á rua Nova , que tão celebre e fallada depois se tornou e cuka edificação devia ser então recente e tomou em direitura ao rocio . Aqui el-rei , como lhe cumpria , tomou logar na vanguarda rodeado d' uns vinte cavalleiros que formavam a guarda da sua pessoa . Entre elles achavam-se os seus dois filhos D. Pedro , conde de Barcellos e D. Affonso Sanches , mordomo-mór e talvez causa principal da lucta que se ia travar . João Affonso na qualidade de alferes-mór empunhava a signa ou bandeira real a qual ia ainda mettida na respectiva funda , porque , segundo o regimento de guerra d' aquelles tempos a bandeira , real só se desfraldava quando a hoste entrava em combate . Logo atrás d' el-rei e dos cavalleiros a quem competia a honra de rodear a pessoa do rei quando ia á guerra , cavalgava o resto dos fidalgos do partido d' el-rei devidamente revestidos das suas pesadas armaduras , e acompanhados dos seus aquantindos , isto é , dos homens d' armas que elles tinham ao seu serviço e que recebiam por isso soldo ou quantia . Após os cavalleiros fidalgos e seus aquantiados formavam os cavalleiros-villãos os quaes , na maior parte , iam unicamente armados de lança e escudo e um simples peito de ferro . Na rectaguarda ou çaga iam os bésteiros do conto armados pela mesma forma que ha pouco vimos o armeiro da porta do ferro , isto é de bestas de polé , solhas ou peitos d' aço e de bacinetes de camal . Quasi de envolta com os bésteiros ia um grande numero de peões do concelho armados , uns de lanças e de cutellos , e outros apenas de paos ferrados . Do rocio a hoste tomou o caminho de Valverde , que era o sitio onde hoje está o Passeio Publico , e d' ahi seguindo para Andaluz , que ainda tem o mesmo nome , chegou aos campos -- Alvalada , que presentemente se chamam Campo Grande e Campo Pequeno . Nos campos -- Alvalada el-rei mandou fazer alto . No lado opposto avistavam-se alguns corredores da hoste do infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso que , segundo noticias recebidas , estava acampado no Lumiar . No rosto do rei transpareceu então a mais pungente amargura ; via-se quanto lhe era doloroso aquelle lance , e que só a dura obrigação que lhe impunha a dupla qualidade de pae e de rei , o levava a tão extrema resolução . Em cumprimento do que promettera no dia antecedente , el-rei enviou um dos seus cavalleiros mais autorisados , Alvaro Martins d'Azevedo , ao campo da hoste inimiga afim de emprazar D. Affonso a voltar para Santarem com as suas gentes de guerra sob pena de receber ali mesmo pela força das armas , o severo castigo dos seus desmandos e insolitas pertenções . Alvaro Martins d'Azevedo calou a viseira e desembainhando a espada d' armas partiu ao galope do seu possante ginete para a hoste acompanhado d' um simples pagem . Passada cerca de meia hora Alvaro Martins de Azevedo voltava do campo inimigo . Foi de mau agoiro a impressão que produziu quando ergueu a viseira ; trazia o aspecto demudado e revelando mal reprimida colera . Quando o viu , el-rei , participou da impressão geral ; deu-se comtudo pressa em perguntar : -- Dizei , Martins d'Azevedo , que acolhida deu o senhor infante á missão que de mim lhe levastes ? -- Senhor , respondeu Martins d'Azevedo com voz que a commoção e a colera tornavam pouco firme , tendes no senhor infante o mais respeitoso dos filhos e o mais leal dos vassallos . -- Então , volveu el-rei com um certo alvoroço , o senhor infante resignou-se a voltar para Santarem e aguardar ahi o que nós houvermos de determinar ? -- O senhor infante , respondeu o cavalleiro d' el-rei com voz repassada de severa mas respeitosa indignação , não só não se resigna á vontade real como disse que se eu não fosse cavalleiro da casa d' el-rei seu pae , me mandaria ali mesmo cortar a cabeça a um traidor . -- O senhor infante , volveu el-rei n ' um tom em que mais se revelava a magua d' um pae do que a colera d' um rei , tem genio mal sofrido e com razão lhe chamam o bravo . -- Teve porém motivo para de tal modo me ameaçar . retorquiu o cavalleiro com indizivel ironia , na minha qualidade de fiel vassallo e amante da dignidade real e do bem d' estes reinos que tanto padecem com os desmandos do senhor infante , tomei a liberdade de fazer algumas respeitosas considerações ; ao ouvil- as o senhor infante arremetteu para mim ás estocadas , e se não fossem os cavalleiros que se achavam presentes , teria por certo ali soffrido grande desaire ou a dignidade do rei na pessoa do seu cavalleiro ou a lealdade d' um vassallo por causa do senhor infante . Ao , acabar Martins de Azevedo de proferir estas palavras a indignação transpareceu no rosto de todos os circumstantes ; Affonso Sanches , o filho natural , deu claras mostras de impaciencia . El-rei permanecia a um tempo indignado e perplexo ; bem se via quanto o lance lhe ia ser custoso e quanto hesitava em dar ordem de manrchar contra o filho , agora que não lhe restava duvida de que a lucta se deveria forçosamente empenhar . A sua hesitação durou comtudo pouco tempo . Ao dirigir a vista para a extremidade do campo viu apparecer a vanguarda da hoste do infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso , que marchava ao encontro d' el-rei ; a lide era pois inevitavel . El-rei poz-se pallido e em toda a hoste real levantou-se um rumor e percebeu-se uma agitação percursora por certo de temerosa tempestade . Nós , porém , agora que se prepara a lucta , temos de retroceder um pouco e vermos o que se passava em Lisboa no alcaçar do Castello , ao tempo que el-rei marchara para a lide . Como Affonso Fernandes declarou , a rainha||_D._Izabel D.|_D._Izabel Izabel|_D._Izabel , a santa , mandara dizer por especial intenção algumas missas na capella real para que Deus houvesse de permittir que a paz e a concordia novamente se estabelecessem entre el-rei||_D._Diniz D.|_D._Diniz Diniz|_D._Diniz e seu filho sem que nenhum dos contendores tivesse de desembainhar o gladio homicida . A rainha , portanto , á hora aprazada , dirigiu-se pelo passadiço de que fallamos no primeiro capitulo d' este romance para a capella real , acompanhada de todas as suas donzellas e covilheiras , as quaes partilhando os receios e soffrimentos da sua real ama , quizeram unir as suas preces ás d' ella para que Deus se amerceasse da amarga situação em que el-rei se achava , abrandando o coração do filho e fazendo com que elle se lembrasse dos seus deveres de infante e de vassallo . Ao tempo que el-rei se dispunha a partir com a sua hoste para assistir á missa que se havia de rezar na Cathedral , prostrava-se a rainha conjunctamente com as suas serviçaes no pavimento da capella real , e com exemplar devoção e inexedivel recolhimento começava a ouvir a primeira das missas que mandara dizer pela paz do reino e concordia do filho e do marido . Entre as donzellas e covilheiras do paço achatam-se Urraca Vasques , Estevainha Martins , Maria Annes , Joanna Peres , D. Guilhemoa e D. Marqueza Rodrigues que segundo dizem foi aia e collaça da rainha , e , eomo era natural , Ermezenda Sanches , a formosa donzella que já conhecemos . Ermezenda distinguia-se facilmente d' entre as mais pela singular belleza dos seus longos e aureos cabellos cahindo-lhe em caprichosas ondas pelos hombros e pelo collo de graça incomparavel O silencio profundo que reinava no templo era apenas interrompido pelas palavras que em voz grave o ministro e o seu acolyto proferiam na consagração do incruento sacrificio . De repente no meio d' aquella solemne quietação , ouviram-se nas lages do pavimento , ao longo da nave , uns passos pesados e sonoros e um como tinir d' armas . Á devoção e profundo recolhimento da rainha e de muitas das suas damas e donzellas passou desappercebido aquelle inesperado ruido . Porém , algumas voltaram a cabeça com certo alvoroço e Ermezenda foi uma das que não se pôde subtrahir ao impulso da curiosidade . Quando a donzella bem amada da rainha olhou para trás , ás faces cobertas da pallidez de magoas recentes assomou-lhe um vivo carmim , e um mysterioso estremecimento percorreu-lhe o corpo . O som das passadas que lhe despertara a curiosidade era motivado por um cavalleiro completamente armado que entrara na egreja . O recemvindo avançou até ao meio da nave , ajoelhou e começou com todas as mostras de profunda devoção a ouvir a missa que n ' aquelle momento já ia em meio . Porque estremecera Ermezenda ? Porque tão de subito se avivaram as desbotadas rosas d' aquelle rosto gentil ? Foi porque no cavalleiro que entrara reconhecera Affonso Fernandes , que , segundo o que os leitores já sabem , tinha ido assistir a uma das missas que a rainha mandara dizer , por não poder , em consequencia do recado d' el-rei , assistir á que se celebrava na cathedral . Entretanto quando as tres missas se acabaram de rezar e a rainha concluiu as suas orações e se levantou , já o namorado escudeiro havia desapparecido . O desditoso mancebo fora cumprir o mandado d' el-rei , mandado que tinha , como os leitores sabem , alcance tão sinistro e fatal . Quando a rainha se ergueu , todas as damas e donzellas do seu sequito a imitaram . Então D. Izabel voltando-se para D. Marqueza Rodrigues , dama já idosa e de aspecto venerando , disse : -- Minha boa Marqueza , agora que me sinto mais animada pelas orações que dirigi a Deus vou pôr em execução o meu intento . Estou que o Todo Poderoso me ha de ajudar no meu empenho , e dar-me ao gesto tal authoridade e ás palavras tanta eloquencia que meu filbo cahirá em si , e embainhando a espada criminosa se reconciliará com el-rei seu pae . -- Pois insistis , senhora rainha ? volveu D. Marqueza . -- Insisto , sou rainha , sou mãe e confio em Deus . Vós ficae ahi com as minhas damas e donzellas a orar pelo bom successo da minha missão . Espero firmemente que bem depressa hei de voltar com as boas novas de paz e então só teremos a agradecer a Deus o auxilio que na sua grande misericordia se dignou dispensar-nos n ' este lance tão grave e doloroso . E ditas estas palavras a rainha poz-se a caminho . As damas e donzellas seguiram-n* ' a. A ' porta da igreja um pagem segurava pela redea uma mula que tinha sobre o possante dorso um commodo silhão . Depois de se despedir affectuosamente das suas serviçaes , D. Izabel montou na mula , envolveu-se n ' uma mantilha que o pagem lhe entregou , e partiu pelas ruas da Alcaçova em direcção ao logar da lucta . Os populares a quem encontrava pelo caminho descobriam-se respeitosamente mal a viam , e voltando-se uns para os outros perguntavam : -- Onde irá a nossa santa rainha ? Nós porém que já sabemos onde se dirigia a boa e virtuosa senhora precedel-a-hemos a fim de vermos o que se passou no campo da lide depois que as duas hostes se viram em frente uma da outra . Com essa hesitação que antecede sempre as tremendas luctas e os criminosos feitos , nenhum dos contendores , apesar das suas rancorosas disposições teve animo de logo mandar tirar da funda e desfraldar a respectiva signa e dar de semilhante modo o signal de começar a lide . As duas hostes não haviam ainda travado decididamente a peleja , e estavam como dizem os velhos chronistas que fallam d' este caso , em alas paradas . Entretanto na costaneira esquerda , ou como se diz na linguagem technica de hoje , no flanco esquerdo , muitos homens d' armas , bésteiros do concelho e peões , levados do seu ardor bellicoso tinham já travado lucta com a costaneira inimiga que lhes ficava em frente . Os virotes das bestas , atravessavam , silvando , de um a outro lado do arraial , muitas das lanças da peonagem voavam em bastilhas e nos escudos e armaduras dos homens d' armas soavam temerosos os golpes dos montantes ou espadas d' ambas as mãos . A gente do infante agrupava-se em redor d' um balsão negro que um pagem d' armas empunhava . Era este balsão o motivo principal da lucta . Debalde porém tentavam os hemens d' el-rei apoderar-se d' elle . Não só lh'o impediam os homens de pé que o defendiam , como tambem um esforçado cavalleiro a quem o balsão pertencia , e cuja estatura agigantada e armas negras pareciam só pelo seu terrivel aspecto , intimidar os mais ousados e ardidos . Porém de repente , quando mais accesa estava a lucta e mais debatida a posse do balsão , chegou ao campo um novo cavalleiro . Pelo ruidoso resfolegar do seu formoso ginete todo coberto de suor , parecia vir de longe e ter sustentado vertiginosa carreira . Mal chegou e viu o cavalleiro das armas negras , abriu caminho com o sea ginete pelo meio dos combatentes e approximou-se d' elle . Os que pelejavam affastaram-se e alguns fazendo reparo no escudo sem divisa do recemvindo , exclamaram : -- Um escudeiro d' el-rei ! Chegado que foi proximo do cavalleiro de negro , o que parecia escudeiro , bradou em voz sonora : -- Martim Gonçalves Leitão , lembras-te do teu feito de Coimbra em que fizeste aquella grande traição a Gonçalo Pires Ribeiro , o melhor cavalleiro d' el-rei ? Martim Gonçalves Leitão por unica resposta soltou um rugido de colera . -- Já vejo que te lembras , redarguiu o escudeiro d' el-rei . És pois um vil traidor , Martim Gonçalves . E sabe que hei de hoje apresentar a el-rei esse teu balsão em prova de que a tua traição já foi castigada . -- Para m ' o tirares seria preciso tirares-me primeiro a vida , e essa não a ha de tirar a Martim Gonçalves , um insignificante escudeiro que eu não conheço e que é talvez filho d' alguma das suas barregans . Por seu turno foi o escudeiro quem deu um rugido . -- Se me queres conhecer , dom traidor , fende-me o elmo e a viseira primeiro que eu te ganhe esse balsão e te arranque a vida que só te ha servido para feitos vis como os de Coimbra . E ditas estas palavras os dois contendores arremetteram um para o outro com temeroso impeto . O anjo da paz Antre as muitas virtudes que houve na Rainha||_Dona_Izabel Dona|_Dona_Izabel Izabel|_Dona_Izabel em quanto viveo foy procurar sempre paaz e amisade de que ella se presou muito . Ruy de Pina , Chr. de D. Dinis . Mas que traição era esta de que fallava o escudeiro ? Eis o que vamos dizer em poucas palavras , em quanto os dois adversarios não satisfazem a sanha de que estão possuidos com a derrota d' um d' elles . Pelo que já temos dito , no decurso d' este romance , lenda ou o que lhe quizerem chamar , facilmente se deprehende que não era esta a primeira vez que D. Affonso se punha em campo contra o pae , apparenteioente por causa da exiguidade dos rendimentos de que D. Affonso se queixava , mas na realidade por causa dos receios que lhe inspirava o grande valimento de que seu irmão natural D. Affonso Sanches gosava no animo de el-rei . N ' uma d' essas vezes , no anno 1359 da era de Cezar , dois annos antes da lucta de que se falla na presente narrativa , os exercitos do pae e do filho tinham-se encontrado em Coimbra . D. Affonso achava-se de posse da cidade , e D. Diniz vendo que o filho não acceitava as condições que lhe tinham sido propostas resolveu-se a atacal-a , tentando entrar pela ponte que ficava sobre o Mondego . Foi aqui que se deu o feito a que o escudeiro se referiu no repto ao cavalleiro da hoste do infante . Martim Gonçalves Leitão , e seu irmão Estevam Leitão , vassallos de D. Affonso defendiam a ponte . Na investida distinguiu-se sobremodo um cavalleiro d' el-rei por nome Gonçalo Pires Ribeiro , que fiado no seu esforço , segundo o dizer da chronica , conseguiu entrar a porta que ficava sobre a ponte ; porem , se o ardor dos que atacavam era extraordinario não era menor o denodo dos que defendiam a entrada da cidade , e Martim Gonçalves Leitão , isto é o cavalleiro que vemos agora em combate singular com o escudeiro , ajudado pelo seu irmão , conseguiu lançar da ponte abaixo a Gonçalo Pires Ribeiro . Não diz a chronica d' onde extractamos a narração doeste episodio se o cavalleiro d' el-rei se affogou no rio , mas se a memoria nos não falha , Gonçalo Pires Ribeiro figura no testamento da rainha||_Santa_Izabel Santa|_Santa_Izabel Izabel|_Santa_Izabel , que foi feito annos depois de terem acontecido os factos a que nos referimos , e por conseguinte a sua audacia não teve tão funestas consequencias como seria para receiar . Era d' esta affronta ao vassallo d' el-rei que o escudeiro queria tirar vingança . Dadas estas explicações que nos pareceram indispensaveis , vejamos o que se passava entretanto no campo d' Alvalada . Foram logo terriveis os primeiros golpes ; se no cavalleiro de negro se notava a firmeza de homem endurecido nas pelejas , no escudeiro revelava-se todo o ardor e toda a agilidade dos verdes annos . Esteve por muito tempo indecisa a lucta . Houve um momento em que os da hoste do infante tremeram pela vida de Martim Gonçalves Leitão . Foi quando elle tendo vibrado um temeroso golpe com a sua espada d' armas , o escudeiro lh'o aparou no escudo , e a espada saltou feita pedaços . Porém contra o que todos esperavam , o escudeiro não se valeu da superioridade em que aquelle incidente o collocou , e aguardando que o seu adversario empunhasse o montante que um pagem lhe veiu trazer , dispoz-se a recomeçar a lucta mesmo em condições tão desiguaes . Se não era loucura o procedimento do escudeiro , era porque então combatia fiado n ' alguma protecção ignota e mysteriosa . Martim Gonçalves estava cego de colera ; a generosidade do escudeiro pareceu que em vez de o acalmar mais lhe augmentou a sanha . Erguendo com ambas as mãos o montante descarregou com furia um tremendo golpe sobre o escudeiro . Porém este em vez de o aparar no escudo , como da vez primeira , evitou o golpe fugindo para o lado , e o montante só encontrou o vacuo . No impeto que vibrou o montante e faltando-lhe a resistencia que esperava , o cavalleiro perdeu o equilibrio e cahiu de bruços sobre o pescoço do cavallo . Não deixou o escudeiro escapar como da primeira vez tão favoravel circumstancia ; atirando um fortissimo golpe com a sua espada d' armas á cabeça do seu adversario fez com que elle atordoado soltasse os braços e cahisse do cavallo , o qual , vendo-se sem governo , partiu desenfreado pelo campo fora . Entretanto o escudeiro vencedor apeou-se e correndo para o seu adversario derribado apontou-lhe a espada á parte superior do gorjal , que deixava um pouco a descoberto a garganta , e bradou : -- Rende-te , dom traidor ! N ' este momento , porém , uma frecha perdida partiu do campo do infante , cravando-se no lado direito do escudeiro fel- o largar a espada e vacillar . bésteiros e outra gente da hoste real rodearam-n* ' o logo e conduziram-n* ' o para a çaga onde foi entregue aos cuidados do mestre Estevam , physico mór d' el-rei , que tambem fôra na hoste . O escudeiro estava tambem ferido , e podia ser que mortalmente , porque as frechas n ' aquelle tempo eram muitas vezes hervadas ou empeçonhadas . Não tardou muito que aos ouvidos d ^ el-rei chegasse a nova de que um escudeiro de sua casa vencera em combate singular o vassallo do infante||_Martim_Gonçalves_Leitão Martim|_Martim_Gonçalves_Leitão Gonçalves|_Martim_Gonçalves_Leitão Leitão|_Martim_Gonçalves_Leitão , o traidor que na ponte de Coimbra lhe ia matando Gonçalo Pires Ribeiro . Quando tal soube , d-rei exclamou : -- Dê-lhe Deus vida que eu lhe darei o mais valioso galardão que elle desejar . Quando D. Dimz acabava de proferir estas palavras , João Affonso , seu alferes , que levava o estandarte real , chamou-lhe a attenção para o que se passava na hoste inimiga . El-rei olhou e viu desenrolada a signa do infante e ouviu ao mesmo tempo as trombetas darem o signal de arremetter . Então D. Diniz aprumando o corpo que os annos e mais ainda os desgostos traziam já alquebrado , ordenou a João Affonso que desfraldasse o estandarte real . No mesmo instante abalaram os ares em clamor guerreiro as trombetas e anafís d' ambas as hostes . Então os cavalleiros embraçaram os escudos , ergueram as espadas d' armas , ou terçaram as lanças os peões brandiram as ascumas , e os bésteiros encurvando os arcos das bestas disposeram-se a arremessar os seus virotões hervados sobre a hoste que lhes ficava em frente . Foi um momento terrivel ; como cumpria aos primeiros cavalleiros do reino , achavam-se na vanguarda das hostes quasi em frente um do outro el-rei||_D._Diniz D.|_D._Diniz Diniz|_D._Diniz e seu filho o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso ; ia talvez n ' aquelle instante perpetrar-se o mais horrendo dos crimes . Mas de subito , como por encanto , calaram-se os bellicos instrumentos , os cavalleiros sopearam os cavallos prestes a abalarem em vertiginosa carreira , os peões baixaram as suas ascumas , e os bésteiros afrouxaram as cordas das bestas já promptas para arremesarem as empeçonhadas armas . Que milagrosa causa produzia tão maravilhoso effeito ? Fora porque rei , infante , cavalleiros , bésteiros e gente meuda das hostes , em meio dos homens d' armas cegos de ira , das bestas que se curvavam , dos montantes que se erguiam e das ascumas que scintillavam aos raios do sol prestes a fenderem os ares , tinham visto apparecer de subito , como visão milagrosa , como iris de paz em meio das nuvens temerosas da procella , a rainha||_D._Izabel D.|_D._Izabel Izabel|_D._Izabel , aquella que o povo já chamava santa , muito antes que a igreja lhe prestasse a devida homenagem ás suas virtudes celestiaes . E o povo tinha razão ; D. Izabel , alem da severidade angelical do seu proceder em meio das intrigas que ferveram na côrte em tempos de D. Diniz , da doce resignação com que via seu esposo entregarse constantemente a amores criminosos , resignação que chegava ao ponto , segundo dizem os seus chronistas , de acolher com protecção maternal os filhos bastardos d' esses amores , D. Izabel não se esqueceu do povo , e alem de muitas outras instituições de beneficio , fundou , por exemplo , o hospital dos Innocentes em Santarem , onde recolhia as creanças engeitadas . O povo não esquece porém os seus bemfeitores , e uma moeda em que lhes paga é a gratidão , tanto mais valiosa quanto mais durado ira , porque passando de geração em geração , perpetua-se durante seculos , como sucede com D. Izabel , cujo vulto suavemente illuminado pelas doces irradiações da poesia popular , figura ainda nas formosas lendas tão geralmente conhecidas em que ora o dinheiro dos pobres se transforma em rosas no regaço da rainha , ora as rosas da rainha se transformam em oiro nas mãos dos pobres que ella protegia . Assim como partira dos paços do Castello D. Izabel vinha montada na sua mula . Com a rapidez da carreira descompozera-se-lhe um pouco o transparente oural ou veo das donas que lhe emmoldurava a fronte angelica e veneranda ; o sol , que já caminhava para o poente , dava-lhe em cheio e reveberando no manto d' escarlata em que vinha envolvida , rodeava-a d' um vivo fulgor que produzia nos que para ella olhavam o effeito da aureola que costuma circumdar as celestiaes apparições . Apeando-se e dirigindo-se para o infante que estacara no seu impeto guerreiro , a rainha com uma voz em que se alliava a severidade da indignação , com a doçura do amor maternal , exclamou : -- Que fazes , Affonso ! Que doloroso espectaculo reservaste para os meus dias derradeiros ? D. Affonso ao ver a rainha ao pé de si apeou-se respeitosamente . D. Izabel proseguiu : -- Affonso , meu filho , esqueceste embora da obediencia que o vassallo deve ao rei e ao senhor mas não esqueças o amor e o respeito que os filhos devem aos paes , não olvides que tambem és pae e has de vir a ser rei e bem sabes quanto a Providencia é inexoravel com os filhos que desobedecem aos seus maiores . O infante abalado por estas palavras , embainhou a espada d' armas e beijou a mão da rainha . Na rosto transparecia-lhe grande indecisão . D. Gonçalo , o veneravel bispo de Lisboa , que tambem fôra na hoste , ao ver o infante em tão favoravel disposição , acudiu logo com a sua voz autorisada a persuadil- o tambem de que devia ali reconciliar-se com el-rei . Entretanto em todo o campo d' Alvalada estabelecera-se profundo silencio ; el-rei tinha a viseira levantada e no seu rosto lia-se mais o affeto do pae , que abria os braços para receber o filho desvairado , do que a severidade do rei que quizesse castigar o vassallo rebelde . D. Izabel ao ver a indecisão do filho e querendo acabar d' uma vez com aquellas inglorias e fataes , que tanto damno traziam aos povos e tão mau exemplo lhes davam , tornou a dirigir-lhe a palavra e lembrou-lhe as promessas solemnes que fizera dois annos antes e os juramentos que por essa occasião proferira . Mostrou-lhe quão feio ena o procedimento d' um cavalleiro que nem os seus juramentos cumpria , e d' um filho e vassallo que tão facilmente esquecia as promessas de obediencia e respeito a seu rei e pae . D. Affonso , como depois mostrou no seu reinado , era brioso cavalleiro , e não pôde deixar de reconhecer a verdade d' aquellas palavras e de se sentir pesaroso do seu procedimento irreflectido agora que a voz suave e o rosto sereno da rainha lhe faziam abrandar os impetos do seu genio irascivel . Dirigindo-se para o pae que aguardava a sua resolução e que tambem já se apeara , poz um joelho em terra e beijou-lhe a mão . -- Infante , disse então D. Diniz fazendo-o erguer com gesto amoravel , sei que vos queixaes de terdes recebido alguns aggravos d' el-rei . Não ignoraes quanto o nosso animo é inclinado a justiça ; exponde portanto vossos aggravos , que á fé de quem sou , fio que não heis de dizer que só ao primeiro dos meus vassallos é que nego a justiça que lhe cabe . O infante respondeu então : -- Os aggravos que tenho recebido , não d' el-rei mas d' alguem que eu agora não nomeio , guardo-os para occasião mais propria os expor ; por agora só peço a el-rei meu pae licença para voltar para a boa villa -- Santarem . -- Se é essa apenas a vossa vontade podeis retirar-vos para onde bem vos aprouver . Após esta scena pathetica , as duas hostes pozeram-se em movimento ; a do infante voltou para o Lumiar e a d' el-rei para Lisboa . Dias depois D. Affonso achava-se em Santarem . Douravam os ultimos raios do sol poente as muralhas do Castello e o cimo das torres da Cathedral , quando el-rei á frente da sua hoste entrava na cidade velha pela porta do ferro . No rosto da rainha lia-se a mais doce satisfação . Mais uma vez desempenhara a sua missão de anjo de paz para a qual parece que a Providencia a destinara fazendo-a rainha d' estes reinos . A justiça de sua real senhoria Ó virtude adoravel ! Ó tu das almas nobre encanto . Caldas . Poesias sacras . Estavam por tanto mais uma vez feitas as pazes entre el-rei e o infante graças á benefica influencia da santa rainha||_D._Izabel D.|_D._Izabel Izabel|_D._Izabel , cuja missão de paz esteve quasi a exercer-se outra vez , annos depois , por occasião da guerra de D. Affonso IV e do rei -- Castella ; n ' esta occasião , porém , a rainha não chegou a realisar o seu intento porque , no caminho para Extremoz , onde D. Affonso se achava , falleceu , talvez por effeito do cansaço da viagem a que a sua organisação já debilitada pelos annos não podera resistir . No dia que se seguiu á lide que houve nos campos -- Alvalada reinava o habitual socego nas ruas e viellas da Alfama e Alcaçova , e o costumado bulicio e animação na rua Nova que já começava a ser o centro do movimento da cidade : os mesteiraes punham de banda a besta ou a ascuma e voltavam aos seus mesteres , e os fidalgos e aquantiados de fora do concelho regressavam aos seus lares .