Collecção ANTONIO MARIA PEREIRA  Julio CESAR MACHADO  A VIDA EM LISBOA  ROMANCE CONTEMPORANEO  2.ª EDIÇÃO  VOLUME1.°  LISBOA  Parceria Antonio MARIA PEREIRA  ( LIVRARIA EDITORA )  Rua Augusta-50, 52, 54 1901  Este livro , escripto sob o poder de impressões verdadeiras , aspira unicamente a ter côr local .  O panorama lisbonense é tão vasto , que um estudo phisiologico sobre todos os vultos e logares seria trabalho para mui largo folego , e não sei até se , conseguida a difficuldade de alguem o escrever , venceria tambem a de alguem o ler !  Procurar as mais salientes feições da nossa terra , estudar os costumes e a indole dos lisbonenses , ligar a descripção dos typos á descripção de certos logares que em Lisboa tem mais distincta feição :  inventar uma acção em que os elementos se combinem todos a auxiliar a pintura emprehendida dos logares e dos typos , amenisando-a pelo interesse e movimento de um enredo em harmonia com os caracteres que se pretende observar , e com os usos que se procura descrever -- eis o plano desta obra , plano de uma seriedade extrema , que inevitavelmente devia tornar pesado este trabalho a um pulso litterario tão pouco experimentado como o do auctor .  A critica será severa se apenas pela leitura do primeiro volume accusar a obra de não haver correspondido ao titulo .  O plano é largo , e torna-se difíicil desenvolvel- o nos primeiros capitulos , quanto mais realisal- o no primeiro volume de um trabalho extenso .  O romance , conforme o titulo do ultimo capitulo deste volume indica , é no volume segundo que verdadeiramente principia ;  desejo vivamente fazer sentir que considero estes primeiros quinze capitulos como o prologo da acção que imaginei .  Dou estas explicações , porque não pertenço ao numero dos que não reconhecem á critica o direito de questionar todos os elementos , que constituem um livro , tanto mais que tento pela primeira vez um trabalho de algum folego , e que não posso apresentar-me escudado por uma reputação justificada .  Devo ainda uma explicação .  Quando se tem em vista retratar os costume de uma sociedade , ou essa sociedade é um modelo de virtudes , ou o escriptor terá por vezes de esboçar phisionomias pouco sympathicas , e caracteres não extremamamente honestos .  Fugi sempre nesta obra a ser immoral , mas não quiz nunca deixar de ser verdadeiro .  Os que me accusarem me-hão o gosto de os conhecer ;  por que quando se tracta de castigar a immoralidade , os hypocritas e os devassos são sempre os primeiros a gritar " Aqui d> ' el-rei ! "  Lisboa , 19 -- Agosto , 1857 .  No Marrare  Tem-se dito que somos um povo sem costumes .  É uma d' essas phrases sem alcance , que passam como aphorismos , não pela idéa que contem , mas porque as palavras vão ahi dispostas com uma certa euphonia que o ouvido não rejeita , e que a reminiscencia não hesita em acceitar .  Penso de outro modo .  Julgo haver n ' esta terra costumes , e costumes muito differentes dos do estrangeiro .  Se a nossa indole diverge , como hão de parecer-se os nossos usos ?  A nossa alegria não tem o menor parentesco com a dos francezes :  nós rimo-nos com gravidade diante de gente :  largamos uma gargalhada franca e despretenciosa , apenas de portas a dentro .  A nossa gravidade , todavia , não tem o menor ponto de contacto com a sisudez britannica :  essa é uma seriedade de lenço branco ;  a nossa , é uma seriedade ... sem lenço no pescoço .  O que n ' elles se encontra de aristocratico no porte só transparece aqui como predicado da burguezia enriquecida ;  o que nelles vem de educação , entre nós nasce do dinheiro ;  e se elles são sisudos por temperamento , nós apenas o somos por filaucia !  Os costumes são os symptomas do espirito e do caracter das nações :  por isso teriamos o melindre de não falar dos nossos , se alguns não entrassem no dominio da caricatura .  Como teremos occasião de observar em capitulos que hão de vir , em Lisboa a população acorda a uma certa hora , tira o barrete de dormir d' alli a uns certos minutos , ergue-se , almoça , janta e toma chá em periodos marcados e inalteraveis por qualquer circumstancia possivel .  Mas quero que a principiemos a observar de vespera , e a contemplemos algumas horas antes de ir deitar-se .  Se não arredondo o periodo dizendo :  " deitar-se , e dormir " é porque desejo evitar os pleonasmos :  para a população lisbonense , deitar-se e dormir é um acto simultaneo :  ella já dorme quando se deita !  Oh Lisboa !  para que havia de vir o gaz annunciar que a roda fatal do progresso vinha roubar-te parte dos encantos da tua insipidez ?  Para que havia , oh Lisboa , enviar-te o destino esses inimigos da tua patriarchal nullidade que tomaram os nomes de " Caminho de Ferro " e de " Telegrapho Eletrico " e que debalde , talvez , se propõe a engrandecer-te e illustrar-te ? !  Pois , dize , não fazias tu consistir a tua gloria na mediocridade do teu alcance commercial , e não cuidaste sempre que havia de durar per saecula saeculorum o reinado das cabelleiras , que condemnavam o talento , accusavam as invenções , execravam a actividade , e absolviam do cume da sua insufficiencia a terra que tinha paciencia para os soffrer ! ?  Que !  Todas estas tentativas de progresso , que tendem a vencer o espaço e o tempo , e a aproveitar os breves dias que o homem tem de passar sobre a terra , não escandalisam por ventura os teus brios de ociosa , nem despeitam a indole pachorrenta do teu caracter conservador ?  Pois sim , que importa !  querem-te com resaibos parisienses , e tentam aformosear-te á estrangeira :  tu és boa de todo o modo !  boa ao dia de semana , e excellente ao domingo , quando calças luvas , pões a historica casaca preta , e te dispões a ir passear serena e pausadamente , tendo em vistas aborreceres-te com gravidade !  Todavia , eu amo-te , Lisboa !  amo-te e a tudo quanto vem de ti !  e se n ' uma ou outra pagina d' este livro , alguma das tuas feições se acha daguerreotypada folhetinisticamente , porque este livro apesar de ser um romance , é todavia um verdadeiro folhetim em 400 paginas , nem por isso me queiras mal .  Aqui , o céo é azul , o sol scintillante e esplendido , a natureza opulenta e magnifica , o clima consolador e sympathico ;  mas os monumentos são acanhados e ridiculos pela maior parte , as artes desfallecem , as sciencias vegetam sem impulso nem auxilio , o talento rasga se entre as garras da miseria !  Aqui , é grande e magnifico o que Deus fez -- feio e ridiculo o que os homens fizeram !  E agora que a minha profissão está feita , e eu livre já d' esse encargo de consciencia ( porque hoje não ha obra possivel sem uma profissão de fé ! )  comecemos a ver Lisboa á medida que a acção d' este romance folhetim caprichar em que mudemos de rumo .  Estamos no Marrare .  O Marrare é o primeiro caffé de Lisboa , apesar de ser o peior , o mais mal servido , o que tem bebidas menos gostosas , e commodidades mais insufficientes .  O Marrare , é para Lisboa uma especie de monumento historico que ella supporta , porque o habito lh'o tornou necessario .  É o rendez-vous dos janotas e dos jornalistas , dos parias e dos homens de pensamento :  é um sitio onde nem todos tem direito de entrar , apesar de ser publico !  Adquire-se esse direito pelos seguintes titulos :  Artigo 1° É necessário para ser admittido a frequentador do Marrare ser um homem fora do commum .  § unico .  Consideram-se homens fora do commum os homens de talento , os janotas , os ociosos puros , e todos os exceptuados da sociedade constituida , que descobriram modo de gastar dinheiro sem ter dinheiro , ir ao theatro sem comprar bilhete , ter fato sem o pagar , andar de sege sem saber a conta .  Estamos no Marrare .  Quatro jornalistas commodamente agrupados em roda de uma das mezas d' aquelle eterno corredor , fumam , bebem cognac , e cavaqueam .  São oito horas de uma noite de domingo gordo .  -- Que fortuna suppõe ao barão de Sousa ?  diz Estevão de Mello a Guilherme da Cunha , o mais moço dos quatro , neophito inexperiente , em vesperas ainda de fazer as suas estreias litterarias , e que julga o seu futuro tão rico de vantagens , como o seu presente é de illusões .  -- Duzentos contos , com certeza .  -- Com certeza !  pondera Luiz de Lima , com um sorriso de compaixão ironica ;  tu ignoras ainda meu caro amigo que ninguem tem a fortuna que se lhe attribue :  ou tem muito mais , ou muito menos !  Além de que , o teu barão de Sousa é um Nababo de comedia , um tio que vem do Brazil , um lord de novella ingleza !  Eu conheci ha doze annos um homem pobre como eu :  havia apenas uma differença , que era a d' elle parecer incapaz de vir a ser rico , porque não jogava , não entrava nas loterias , não trabalhava , e não sabia ganhar rasoavelmente um ceitil :  pois bem , este homem que era nullo , insignificante , parvo e estupido , andou melhor do que qualquer de nós ;  não se entreteve com a patria , nem tomou amôres com a politica -- namôrou .  Mezes depois , encontrei-o casado com uma fortuna , segundo se dizia , de cincoenta contos -- n ' esse tempo , tu lembras-te Estevão ?  ainda toda a gente chamava uma fortuna a cincoenta contos . --  Este homem foi considerado como um ente valioso , e importante :  deram-lhe um logar que elle teve a condescendencia de sollicitar , fizeram-no consul não sei para onde , para o Maranhão se bem me lembro ;  partiu , ganhou por lá o mais que poude e voltou , ao cabo de cinco annos de economias e de grandes sopros de felicidade com trinta contos .  Pergunta-se : --  em que gastou este homem o resto ?  E sabe-se a final que elle apenas recebera o dote de novecentos mil réis , disfarçados em cincoenta contos !  -- Saibamos , acode José d'Athayde , -- noticiarista effectivo de jornal , um d' estes homens que tem espirito e não tem talento , mas que se dão melhor com isso -- a tua namôrada tem prendas de caracter ?  Por outra , sabe fingir um deliquio , imitar um accidente , e fazer acreditar ao pae que está resolvida a deitar-se da janella abaixo ?  -- Estás fóra da questão , replica Estevão de Mello , o pae é muito mais esperto do que nós todos , e se lhe desse para ser escriptor publico seria o rei dos folhetinistas .  É um homem que tem visto o mundo !  -- N ' uma carta geographica !  redargue Luiz de Lima .  Não acredito na perspicacia dos homens que teem fama de espertos .  Quasi sempre são tolos !  e , vice-versa dos parvos de reputação saem de ordinario homens velhacos e intelligentes !  -- Tu conheces o pae ?  pergunta José de Athayde a Guilherme da Cunha .  -- Não .  Nunca o encontrei no mundo , julgo até que frequenta pouco a sociedade .  Conhecem-no ?  -- De nome , responde Estevão .  -- Tambem eu , diz Luiz .  -- E eu tambem , diz José d'Athayde .  N ' esta occasião entrou no Marrare um homem de cincoenta annos approximadamente , ainda elegante e apresentavel .  Sentou-se a uma meza proxima á dos jornalistas , e pediu um refresco .  A cavaqueação continuou .  -- Elle mora a Santa Apolonia ?  pergunta Lima .  -- Exacto .  Na casa grande ...  -- Bem sei , diz Estevão , uma casa famosa para aventuras de namôrado , casa que parece edificada por Cupido com cal e areia temperada por Venus e amassada por Mercurio !  -- Deves pedir-lhe que te deixe admirar a lua atravez das parreiras da quinta .  Percebes-me ?  Em quanto limitares as entrevistas a gargarejar da rua para a janella não vejo probabilidade de conseguires senão alguma angina-pectoris !  A quinta , meu amigo !  Desperta á namôrada tendencias campestres !  Accorda- lhe n ' alma o gosto pela solidão das noites ;  dize-lhe que n ' um jardim o aroma das flôres depois da meia noite vem casar-se ao perfume dos affectos , e formam um incenso de amôr grandioso e divino !  A quinta , é a tua unica taboa de salvação !  -- Discuta-se o caracter e qualidades adventicias , grita Estevão .  Para sabermos se ella é romantica , basta conhecermos-lhe :  como se chama ella ?  -- Sophia , responde Guilherme .  -- Nome de ingenia de algumas das eternas semsaborias sentimentaes que enriquecem o repertorio do nosso theatro normal !  diz o noticiarista .  Já se ve que a namôrada tem queda para a lettra redonda .  Leu de certo versos teus no album de alguma visinha .  Todas as Sophias são litteratas , desde a de Mirabeau até á tua heroina de Santa Apolonia !  O homem que se sentara á meza proxima á dos jornalistas levanta se e sae .  -- É um caso singular !  diz Guilherme da Cunha , a physionomia d' este homem que vae saindo parece-se immenso com a da minha namôrada .  -- No branco dos olhos !  diz José de Athayde .  Neste momento ouviu-se um grande alvoroto de musica e algasarra .  Ia passando uma dança de carnaval .  Sentiu se depois o prolongado rodar dos trens , e o motim da festa popular .  O Marrare começava a estar deserto , o que sempre lhe succede nas noites de entrudo .  -- Que faremos esta npite ?  pergunta Estevão , pousando na meza a garrafa exhausta já de recursos .  Vamos ao theatro ?  -- Tenho um rendez-vous na Floresta , acode José de Athayde n ' um tom de homem conquistador e importante .  -- Com aquella comparsa do theatro hespanhol , diz Estevão rindo , a quem tu prometteste uma menção honrosa no teu primeiro noticiario , dez linhas laudatorias a troco de uma entrevista ?  -- Não !  diz José d'Athayde de mão na ilharga , não se trata de uma comparsa , nem de uma duqueza :  é um rendez-vous de maior gravidade e mysterio .  -- Has de dizer-nos quem é , acode Luiz de Lima .  -- Paga primeiro o cognac , depois saberás tudo .  -- Rapaz !  grita o medico .  Esta garrafa de cognac ;  dois pintos , guarda o resto .  Depois , voltando-se para Athayde :  -- Estou esperando !  -- Tenho um rendez-vous na Floresta , diz o noticiarista em tom mysterioso , ás onze horas em ponto ;  á entrada da sala de crystal ... com o meu agiota !  -- Estou roubado !  diz Luiz de Lima , cuja balda era saber todos os cancans da vida alheia , e que já contava com um escandalo !  Emfim vamos para a Floresta !  -- Para a Floresta !  disseram todos .  Na Floresta Egypcia  Para os que não assistiram ás festas do Tivoli , a Floresta Egypcia é o melhor divertimento de verão que Lisboa tem possuido ;  não só a sociedade que o frequenta é de ordinario escolhida e da melhor esphera , mas tudo parece reunir-se para que sejam agradaveis as noites passadas n ' aquelle grande jardim illuminado a giorno , abundante em jogos , enriquecido pela já historica montanha egypcia , especie de caminhos de ferro mais vagarosos talvez , mas que sairam mais baratos ao povo .  Pelo carnaval as salas de baile preparadas ad hoc recebem uma quantidade infinita de mascaras e de visitadores .  São ao todo nove salas , a maior parte d' ellas pequenas , onde n ' essas noites é quasi impossivel transitar , quanto mais dar rendez-vous a alguem .  Os rendez-vous de ordinario teem logar nas salas do rez-de-chaussée , n ' algum dos gabinetes do botequim , ou no salão terreo , que precede a sala de crystal , que não é mais nem menos do que um predio de vidro , que serve de theatro , de sala , de tudo que se precise !  Quando os jornalistas e o doutor||_Luiz_de_Lima Luiz|_Luiz_de_Lima de|_Luiz_de_Lima Lima|_Luiz_de_Lima chegaram á Floresta , o relogio da entrada marcava dez horas .  A concorrencia era immensa e quando algum mascara entrava , dirigia-se em linha recta á sala de crystal e cedia d' aquelle prologo de intriga que costuma ter logar no corredor da entrada , e que constitue , a meu ver , a menos incommoda face d' essa grande medalha de semsaborias .  Mas na chamada sala do tanque agrupava-se uma reunião de elegantes , e entretinha a conversação um dominó preto que pela pequenez da mão encadernada n ' uma irreprehensivel luva paille , e pela graciosidade do pé que desvanecia a reminiscencia de Cendrillon , dava toda a probabilidade a quem quizesse apostar que era uma mulher .  Os janotas deixavam-se intrigar com a melhor vontade porque -- oh !  maravilha dos tempos modernos ! --  o dominó tinha espirito !  -- Mas quem és ? !  exclamava um dos que constituiam o grupo .  Pelo tamanho do pé , ia jurar que te conheço !  -- Trago as chinelas de Rhodope , meninos !  A linda esposa de Pharaó estava a tomar um banho no Nilo , mas esqueceu-lhe o seu fato na praia .  Succedeu passar uma aguia , roubar os seus sapatos , reerguer-se aos ares com elles , e passando depois pelas alturas de Lisboa deixal- os cair a meus pés ;  calcei-os e vim para a Floresta !  Os jornalistas e o medico entraram neste momento e augmentaram o grupo dos intrigados .  -- O teu logar não é aqui , Luiz de Lima !  disse o dominó dirigindo se ao medico .  Leviano !  Já por tua causa uma linda mulher se suicidou , e foste embotar as tuas recordações d' amôr , decorando livros de medicina na Universidade !  Curaste uma paixão d' alma com um curso de cirurgia !  Es capaz de receitar duas onças de Gall , meia oitava de Broussais , como remedio infallivel para dissecar o coração !  -- Desconfio que este mascara é algum boticario illustre !  disse o doutor , com um breve sorriso .  -- E era uma interessante mulher , essa de quem lhes falo continuou o dominó .  De dezeseis annos casou , e de dezeseis annos morreu !  Devorou a aquella febre de impotencia que acompanha os amôres fataes ;  fanou-se como flôr de pouca dura :  atravessou a Zona Torrida do amôr , e avistou seu marido no pollo contrario !  Depois , creança imprudente , por ti , que a tinhas perdido , por ti quiz morrer !  Luiz de Lima , n ' um impeto de cholera agarrou o mascara por um dos braços , conduziu-o para junto de uma columna , e disse-lhe em voz alterada pela inquietação e pela anciedade :  -- Dirme- has quem és , ou seguir te-hei toda a noute , e não conseguirás sair sem que na rua te reconheça !  O dominó , ergueu os hombros em signal de desdem ;  depois , descalçando uma luva e estendendo para os labios de Luiz de Lima a mais linda , a mais branca mão de que uma mulher possa ser vaidosa , encostou um annel aos labios palidos e frios do medico .  O doutor fez reparo no annel , examinou bem a figura do mascara , depois retorquiu com um d' estes sorrisos amarellos que são vulgares nos bailes mascaras .  -- Já tinha toda a probabilidade de ter adivinhado quem era .  Mas aqui !  Na Floresta ! ?  Todavia , a graça desses pés de fada não se confunde .  Já tomou chá ?  -- Prometti ir cear com a Annica , respondeu o dominó .  Mas são ainda agora onze horas , creio eu , e ella volta de S. Carlos á meia noute exacta .  Temos uma hora para conversarmos , se é que tambem deseja ter uma explicação commigo .  O medico deu o braço ao dominó , e atravessaram a sala do tanque em direcção ao atrio da entrada .  -- Cuidado !  Não seja o meu agiota que se disfarçasse para saber em que opinião o consideramos !  disse José d'Athayde .  Nesta occasião bateram lhe no hombro .  O noticiarista voltou-se , e deu com o seu homem .  -- Faltou á hora , disse o agiota , consultando o relogio , e contando minuto por minuto ;  no meu já passam ... dez e cinco quinze , e dois dezesete ... já passam dezesete minutos das dez e meia !  -- Meu caro amigo , disse José d'Athayde , estava pensando agora mesmo na sua sympathica pessoa !  Venha tomar um grog .  -- Dispenso , disse o agiota .  -- Então venha tomar dois grogs ?  Tambem não !  Nesse caso venha o seu braço a todos os respeitos illustre , e vamos conversar ao ar livre .  O agiota e o noticiarista foram de braço dado tambem na mesma direcção do medico e do dominó , passear e conversar para o atrio como elles .  Demoremo-nos um instante para pôr o leitor ao facto de quem são os personagens com quem agora o estamos occupando .  Luiz de Lima , já o leitor conhece do primeiro capitulo .  É um homem de trinta annos alto , elegante , rosto intelligente e agradavel expressão e attitude sempre doutoraes .  Dizia-se no mundo que a marqueza de Villar o distinguia .  Entretanto elle era o primeiro a desvanecer tal boato quando alguem lhe suscitava conversação sobre o assumpto .  Mas os roués da nossa sociedade asseguravam que o medico era um fino espertalhão capaz em questões de mulheres , de levar o bolo á gloria !  Havia um motivo para que se pensasse assim .  Tenho observado que as mulheres de ordinario entregam-se por curiosidade ou por amôr ;  mas muito mais a miudo por curiosidade .  Ora , Luiz de Lima fizera aos vinte annos as suas entradas no mundo e debutara por apaixonar uma das mais formosas senhoras da nossa sociedade , que achando-se preza entre o dever e o amôr , porque infelizmente era casada , teve o sublime instincto de respeitar a sua propria dignidade ;  mais tarde , victima do amôr , succumbiu á lucta e preferiu envenenar-se .  Deixou-se morrer ao som de uma walsa , e quando a palidez da morte lhe desbotou as faces ella disse a todos que era devido ao cançasso o suor mortalmente frio que lhe innundava o rosto !  Luiz de Lima foi o assumpto de mexericos de baile e de espectaculos .  As damas assestavam o oculo para o examinarem , perguntavam umas ás outras se já haviam falado com elle , se já o tinham visto dançar , se já o haviam amado emfim !  Porque o amaria ella tanto ?  Era a pergunta constante do sexo amavel .  Que tem elle de mais que os outros para que ella se envenenasse por causa d' elle ? !  diziam comsigo mesmo as Pompadours d' esta terra e d' esta epocha , desejosas de o conhecerem de perto .  O medico era um homem de mundo a este tempo .  Comprehendeu o alcance prodigioso da sua situação .  Tratava-se de escolher !  Todas essas mulheres que haviam desdenhado d' elle , agora que causara a morte de uma pobre apaixonada , viam n ' elle um homem de moda , e era a qual d' ellas o possuiria primeiro .  Luiz de Lima já não estava na idade dos devaneios .  Espirito meditador e calculista , viu na sua situação uma estrada para um futuro , e lançando a vista sobre as mais distinctas mulheres da sociedade lisbonense , elle disse no meio de um baile :  -- Será a marqueza de Villar !  N ' estes ultimos tempos Portugal tem visto erguerem-se e cairem por si proprios tantos partidos politicos em que se defende homens em vez de causas , que á historia contemporanea não será facil de certo mencionar bem todos elles .  O marquez de Villar era um exemplo do que avançamos .  Influencia de um dia , gloria de momento , fortuna de occasião , luz de perilampo , tudo em fim que de uma idéa da pouca duração do seu poder , mas durante esse pouco tempo o marquez de Villar , foi um homem importante .  Ora , felizmente para Luiz de Lima estava-se n ' esse tempo , isto é o marquez de Villar segundo a phrase de José d'Athayde , era trunfo !  O medico sabia a fundo que não ha protecção que valha a de uma mulher que nos ame e esteja bem situada .  Ambicioso e calculista , vio na marqueza um instrumento para derribar as dificuldades do seu futuro .  Incapaz já de amar elle disse comsigo -- " A ter que representar , seja com uma actriz que me de honra ! "  Idéa de cómico , que julga engrandecer-se por estar em scena com algum talento festejado !  A marqueza , effectivamente , era uma das curiosas de conhecer o medico .  Foi assalto sem perigo .  Ao fim do quarto baile em que se juntaram julgou-se até inutil arrear bandeiras em signal de ir entregar-se a praça .  Mas souberam ambos depois manter no mundo um tão perfeito disfarce que chegaram a illudir os litteratos , gente indagadora dos cancans de sociedade , e que saborea um escandalo com melhor vontade do que um livro de Herculano .  Apenas alguma fidalga velha , das que se sentam ao canto das sallas , e cerram os olhos como quem cae de somno em quanto tem a habilidade de não perder de vista o mais breve movimento de algumas das cem pessoas que estacionam deante d' ellas , apenas alguma d' essas , dizemos , affirmava que a marqueza durante uma noite inteira não dirigira a palavra a Luiz de Lima , apesar de estar palestrando alegremente com tres ou quatro homens , amigos intimos do medico , e que se achavam ao lado d' elle .  Excluir da honra de lhe dirigir a palavra um unico homem que está e se deixa ficar toda a noite n ' um grupo de mais tres com quem uma mulher conversa continuamente , prova ou não prova que o disfarce vae longe de mais , e que elles falam tanto a sós que combinaram não se dirigirem a palavra diante de gente ?  Faça-se justiça ás fidalgas velhas !  Para este genero de coisas não ha cartilha como a d' ellas !  A intimidade da marqueza com Luiz de Lima durava havia já dois annos .  Era mais vehemente cada dia o interesse que ella tomava pelo medico ;  mas era singular e melindrosa a situação em que n ' essa occasião se encontrava .  Expliquemo-nos .  Dotada de um temperamento facil a affectos , a marqueza amára dois homens depois de casada .  Victor Marrocos , e Luiz de Lima ;  o primeiro ha de o leitor ficar sabendo quem é , depois de ler um dialogo que n ' este mesmo capitulo se encontra ;  o segundo é o medico já conhecido por quem está lendo esta obra .  Casára por imprudencia e leviandade de creança , casára aos quinze annos , e agora que já contava vinte e nove , a marqueza chorava com lagrimas de sangue as leviandades da sua infancia , que para sempre por um capricho pueril a haviam encadeiado a um estado social para ella insupportavel , agora mais do que nunca !  Aos vinte annos , prendera-se d' amôr a Victor Marrocos :  enfeitiçara-a a errante existencia d' esse revolucionario moderno , que por um momento se dignou fazer-lhe a côrte , acceitar os favores da sua intimidade , para depois e de repente desapparecer de Lisboa .  Voltou de novo , quando a revolução de 1846 serenou ;  appareceu coberto do pó da batalha , no meio de uma soirée do marquez de Villar , e explicou no intervallo de uma polka a uma contradança , a siuação politica de Portugal ao marquez que morria por ouvil- o falar , á marqueza que ficou meia morta de alegria ao vel- o , e á sociedade que prestou ao homem politico uma attenção misturada de interesse que o obrigou no fim a dizer -- " Os acontecimentos de Torres Vedras , ainda assim , não devem ser tidos em tal importancia que por causa d' elles se altere a ordem das redowa e das shotish !  A marqueza encontrou-se de novo no seu paraiso de felicidade , mas conheceu mais tarde com que homem lidava ;  viu que elle a sacrificava á politica , essa amante perigosa e deslumbrante dos homens publicos , e ponderou então que só fora amada por devaneio , por passatempo , por capricho , e que o coração do seu amante só era perceptivel de palpitar toda a vida pela gloria , rival invencivel aos olhos d' essa mulher fraca , que não se lembrou que a ambição quebra-se entre os dedos frageis do amôr , e que ella podia ainda vencer e apaixonar aquelle pretendido grande homem !  A pouco e pouco desvaneceu-se entre elles até a mais leve sombra d' amôr , ou mesmo de reminiscencia do passado .  Constituiu-se entre ambos uma intimidade sincera e despreocupada de idéas amôrosas .  Falavam em politica , em theatros , em toilettes , a sós , como poderiam fazel- o diante de gente por alguma combinação especial .  Era como se nada houvesse existido entre elles , e se o passado fosse um sonho apenas de que nem ao acordar durassem ainda bem vivas as lembranças !  A alma da marqueza soffreu então , ao atravessar as crueis desillusões de um primeiro amôr .  As mulheres romanticas desenvolvem nessas occasiões todo o seu espirito , e sabem tirar-se com vantagem e prestigio d' estas situações delicadas :  Sapho trahida pelo seu amante , resolve-se a atirar comsigo do alto do monte Leucate :  a marqueza , n ' uma situação não menos triste hesita perante a idéa do suicidio como immoral , e prefere escolher outro amante e esquecer o antecedente !  O amante escolhido foi Luiz de Lima , que , como é fácil perceber , representava mais do que um homem -- representava a vingança !  a marqueza quiz poder de novo apparecer de fronte alta , e hoje é maxima corrente que não se pode passar sem leque e sem amante !  Mas ao marquez de Villar , nada lhe passava sequer pela idéa de tudo que acabamos de mencionar .  Julgava bem sua mulher , ou para melhor dizer , não a julgava bem nem mal , porque não perdia tempo a meditar na virtude da marqueza .  Por isso reinára sempre entre os dois amantes o maior disfarce no mundo , e a melhor harmonia quando se encontravam a sós .  O medico via na marqueza um amôr útil , a marqueza via em Luiz de Lima , o seu ultimo amante , e por isso esmerava-se em prendel- o e enleal- o .  Ora .  não sei porque excentrica casualidade , observa se que na sociedade lisbonense as senhoras casadas que tem um amante escolhem sempre para esse cargo honorario um homem tambem casado .  É talvez para por este modo promover ainda mais o systema das infidelidades conjugaes ;  ou então , será para que o mundo não observe tão facilmente nem tão facilmente desconfie :  ou será finalmente uma vingança de rivalidade da parte de metade , do sexo amavel para com a outra metade firmando-se em não haver mandamento que prescreva -- Não desejarás o marido do teu proximo !  Certo É que a marqueza não queria prescindir do luxo da situação , e via com desgosto que Luiz de Lima não fôra abençoado pela igreja ligando-se para sempre a uma mulher a quem depois atraiçoasse .  -- Sabe o que hoje aqui me trouxe , Luiz ?  disse-lhe a marqueza , dando-lhe o braço , e deixando-se conduzir , como dissemos , até ao atrio de entrada .  Quiz convencer-me de que não era por doença que o meu querido Luiz me não apparece ha cinco dias quando eu na minha carta lhe pedia para só não apparecer agora tanto a miudo , porque o marquez notou que o doutor ha mais de dois mezes que não joga , sem todavia deixar uma só noite de visitar-nos !  Para que foi mais longe das minhas prescripçoes ? !  Não adivinhava que eu não resistiria á saudade de o ver ? !  -- Não me argua sem me ouvir primeiro , marqueza !  cuida por ventura que ignoro o que se tem passado ?  Sei bem que a carta que me dirigiu sob pretexto de que o marquez desconfiava ou sabia tudo talvez , foi escripta dez minutos depois de Victor Marrocos desembarcar em Lisboa e enviar a criado a dar parte á marqueza do seu regresso !  -- Victor Marrocos , bem o deve saber , Luiz , é amigo do marquez e antiga visita de nossa casa .  No dia em que elle deixasse de visitar-nos faltar-nos hia o mais espirituoso dos convivas das nossas ligeiras funcçoes .  Bem o conhece :  não é exagero dizer que elle tem sido o homem de mais fina graça e da mais elegante originalidade que pode crer-se .  Arrebatado às vezes , e parecendo até descôrtez mas sempre d' uma excentricidade sympathica mesmo quando é um pouco petulante .  -- Ai !  marqueza , não queira saber o que o mundo diz d' esse homem que tanto vale a seus olhos , e que toda a gente considera como um especulador politico , que , depois de haver feito epocha , sacrificou a energia das suas convicções aos interesses de um contracto , e tornou-se de repente conservador e ordeiro !  Isto é , pelo que lhe diz respeito como homem publico .  Quer saber agora o que se entende d' elle como homem particular ?  um caracter falso e desigual :  tão susceptivel de um bom rasgo de generosidade de alma , como de um grande attentado ou de uma grande vilania .  Isto nasce de um grande defeito do seu genio :  elle não tem estima por si proprio !  Vaidoso , mas a um ponto que sacrifica tudo á vaidade , este homem , incapaz de amar alguem , illude as amantes illudindo-se às vezes a si proprio , quando lenta persuadir-se de que gosta d' ellas por ellas e não por si !  Victor Marrocos , marqueza , é uma alma gasta e esteril como Estevão de Mello , como Antonio Roma , como mil filhos d' este seculo , sem crenças e sem temores !  Elle só poderá ainda inflammar-se para satisfazer um capricho da sua presumpção sem limites , ou então pelo que lhe deslumbrar os sentidos .  Nunca estimou aquella lady que lhe acceitou a côrte senão pelo facto de ser bem feita e ter o pé pequeno !  -- Attenda .  Quero desvanecer-lhe esse conceito em que o tem :  depois mudaremos de conversa .  Vae adiantada a noute , e tenho bem que lhe dizer !  Isso de que o accusa nasce mais de uma fervorosa paixão pela arte , por tudo que é bello e perfeito , por tudo que realise o ideal do poeta e do artista , do que da ausencia de instinctos elevados e grandiosos .  Victor Marrocos é um homem gasto nas luctas da vida politica , e que de ha muito perdeu todas as illusões que despertam o enthusiasmo á simples idéa da perfeição moral .  É um homem que conhece a vida , e que tem visto o mundo .  Admira uma mulher formosa , como aprecia um bonito trecho musical .  Para elle a mulher e a musica servem-lhe apenas aos sentidos , me dirá :  é possível ;  mas ha ao menos n ' este homem uma grande qualidade a respeitar , é o talento .  Não é a esperteza vulgar dos nossos homens publicos , nem a incommoda pretenção a ter espirito ;  é mesmo mais do que talento , é o genio .  Victor Marrocos tem tomado parte activa e muitas vezes a parte principal nas revoluções modernas do paiz .  Soldado da liberdade , combateu pela emancipação da sua terra ...  -- Em quanto esperou que a sua terra lh'o pagasse .  Mas quando os destinos de tribuno o seduziram mais do que os de emigrado , poz de parte as suas crenças e abraçou a causa dos seus interesses defendendo o que até então accusára !  -- Pois seja assim !  dir-se-hia que tenho interesse em defendel- o , se a tua perspicacia não conhecesse n ' isto mesmo uma prova de que estou innocente :  aliás seria eu a primeira a condemnar-me pelo proprio ardor das minhas palavras ?  Pobre louquinho !  e queres fazer-me acreditar que estás convencido de que te sacrifiquei a outro , e que pude desejar que interrompesses a assiduidade das tuas visitas , em honra de um preferido !  Que merecias ? !  Isto foi dito n ' aquelle tom de amuo galante que dá mais graça ainda ás mulheres quando ellas não passam já dos trinta annos , e que as pregas dadas ao rosto durante o ligeiro espaço de um assombrear de phisionomia se não podem confundir ainda com as que o tempo marca com o seu sello indelevel .  O medico gostou d' aquella estrategia feminil , disfarçada habilmente em pieguice amôrosa .  Gostou de se ver encartado em tyranno , em despota , em sultão absoluto no imperio alheio do coração do coração da marqueza .  Todos nós , homens , gostamos de que se nos faça sentir a nossa superioridade e que a cabeça que constitue o alvo das nossas adorações , se curve submissa , escrava , sendo rainha .  Variações infinitas sobre o eterno thema da vaidade  -- Amas-me então como d' antes ?  perguntou Luiz de Lima , perscrutando atravez da mascara do dominó que expressão annunciava o olhar da marqueza .  -- Amo-te como sempre ... Isto é , parece-me que não digo bem , nem avanço a verdade inteira ...  -- Como ? !  interrompeu o medico .  -- Estou persuadida de que te amo agora ... um pouco mais ainda !  N ' esta occasião passaram hombro a hombro com José de Athayde , que tão embebido estava na sua conversa com o agiota que não deu por elles .  O noticiarista dizia n ' essa occasião :  -- A mais de dez por cento , é o mesmo que dizer-me que deseja ver-me entalado !  O medico ponderou comsigo mesmo :  -- Ambos nós estamos negociando ! ...  A marqueza foi guiando Luiz até ao portão de ferro da entrada para a quinta onde a claridade era tão fraca que poude tirar por um momento a mascara , sem susto de que podessem conhecel-a .  -- Ouve , disse ella .  D ' ora em diante irás apenas passar a noite a nossa casa ás quintas feiras e aos sabbados :  em compensação ver-nos hemos ás segundas-feiras e ás sextas em casa da minha modista .  A ' manhã principiará a ser assim .  Da uma hora da tarde ás tres estarei livre :  antecipa a hora para que não chegues depois de estar á porta o meu trem .  Tenho mil coisas que dizer-te , e a mais insignificante d' ellas seria de sobra para provar o amôr de uma outra mulher !  Em quanto eu cuidava de melhorar a tua posição e preparar o teu tuturo , entregavas-te á idéa de já não seres amado !  vejam se não é sina nossa , infelizes mulheres , sermos sempre mal julgadas !  -- Perdoas-me ! ?  perguntou o medico , adoçando a voz e preparando um olhar mavioso .  -- Merecias que te perdoasse e te esquecesse , mas prefiro não te perdoar e castigar-te amando-te sempre !  -- Adoravel !  exclamou Luiz de Lima , que principiava a tomar a scena como uma intriga de baile de mascaras .  Que queres então dizer-me de tanto valor , anjo meu ?  -- É o meu segredo , replicou a marqueza pondo de novo a mascara .  Só te pergunto uma coisa -- se eu quizesse ver-te rico e feliz e sacrificasse até à minha tranquillidade para que o conseguisses a troco embora dos meus ciumes , acreditarias então que te adoro ?  -- Minha querida Thomazia , não sei entender-te ! ...  -- Saberás tudo amanhã .  Não é promessa de dominó !  Está dando meia noite e tenho que partir .  Adeos !  Escuso lembrar-te o que disse :  á uma hora da tarde !  -- Beijo-te as mãos !  -- Não me acompanhes .  Durava ainda o aperto de mão da despedida quando quatro homens que acabavam de entrar se approximaram dos dois amantes :  o dominó soltou um ligeiro grito , e apertou com ancia o braço de Luiz de Lima .  O medico tomou uma expressão inquieta , e vendo que os quatro homens se dirigiam para o seu lado apressou-se a evitar suspeitas , sendo o primeiro a cumprimental-os .  -- Sr. marquez , disse elle , dirigindo a palavra a um d' elles que não tirava os olhos do dominó , V. Ex.ª tem bastantes fortunas amôrosas todo o anno , para que não precise disputar-me a unica quadra das minhas conquistas e galanteios -- o carnaval !  -- Não me atrevo a entrar na lucta , meu caro doutor !  Demais a mais tenho a noite presa .  Deixemol- o em paz com essa interessante incognita !  mas sempre deve consentir que lhe diga que se é intriga d' esta noite , esse mascara sae por força alguma victima da clausura conjugal , que escapou ás garras de um marido feroz para vir respirar a athmosphera encantada dos bailes de mascaras .  -- Imbecil !  disse o dominó entre dentes e escapando do circulo sem ser vista .  A indiscripção ha de ser sempre a sua unica qualidade !  Era o marquez de Villar , que dirigira a palavra , sem o saber , a sua mulher = escapada ás garras de um marido feroz = segundo a sua previdente idéa !  Uma ceia de domingo gordo  Nas tres noites de carnaval Lisboa parece illuminar-se do reflexo pallido dos petits soupers da Regencia , e prescrever do Codigo Civil que o cidadão ceie em sua casa .  É caso entendido que o Matta , a Horta Secca , a Pomba de Ouro , e o José Manuel , são no domingo gordo e na terça feira , sobretudo , o bem parado da população escolhida , que vae depois do theatro ou do baile de mascaras bras-dessus bras- dessous com alguma amantesinha de aspirações não ruinosas , cear n ' um agradavel e doce tête-à-tête acompanhado de dois ou tres pares que procuram igual destino .  Reune-se tudo , faz-se um rancho ;  e en-avant-quatre sem receio nem escrupulo , porque para este genero de divertimentos onde ha quatro , seis , ou oito , comtanto que seja aos pares , é sempre o mesmo que estarem só dois , e ninguem faz ceremonia com o visinho !  O marquez de Viilar em companhia do barão de Sousa e de duas dançarinas do theatro de S. Carlos , convidou Victor Marrocos e Luiz de Lima para cear depois de sairem da Floresta .  Uma das dançarinas era , em phrase de bastidores , entretida pelo barão , que adorava n ' esta rapariga uma grande robustez de fórmas pouco em harmonia com a arte da dança , mas excellente para a arte do amôr .  Ritinha , que assim se chamava , era um contraste completo com a sua companheira Bemvinda .  Esta , magrita e pallida , porque tinha a balda de se apaixonar pelos primeiros tenores :  aquella anafada e vermelha , porque tinha o bom gosto de não se apaixonar por ninguem .  O barão sabia com quem lidava :  não o levavam por simples !  mas apesar de ter a consciencia de que o aturavam pelo seu dinheiro , elle conservava a Ritinha como que por habito e considerava-a um objecto de luxo , que lhe agradava por ser bonito .  Do barão de Sousa hade fazer-se o retrato demoradamente no seguinte capitulo .  Em quanto ao marquez de Villar , era um homem de cincoenta annos , quasi da idade do barão .  Amigos de ha muito , tinham acabado por se parecerem um com o outro , vestirem do mesmo modo , falarem no mesmo sentido , e constiparem-se ao mesmo tempo .  Isto succede quasi sempre ou aos casados de muito tempo , ou ás pessoas que se dão muito , tornando-se inseparaveis no mundo , e promovendo a tal ponto as idéas associadas , que é impossivel alguem lembrar-se de um sem se lembrar do outro , falar de um só d' elles , não os conhecer ambos , não os convidar a ambos , não os tomar emfim por um só homem .  Pois que ! ?  estranham !  Acaso não tem ainda encontrado no mundo exemplos frequentes do que estou contando ? !  Não conhecem dois homens que á força de falarem sempre um com o outro , tomam o mesmo ar , as mesmas maneiras , e até as mesmas maneiras , e até as mesmas idéas de um só ? !  Se um gosta da Alboni mais do que da Castellan , são ambos Albonistas :  se o outro diz que a forma das botas de Stelpjlug é desairosa , dirão ambos que Stelpflug dá ás botas uma fórma desairosa A historia de um é a historia de ambos .  Acordam á mesma hora , lavam-se dez minutos depois com sabonetes comprados na mesma loja , e em agua do mesmo chafariz !  Saem na mesma direcção , dizem as mesmas palavras , contam as mesmas anecdotas , dizem mal das mesmas pessoas , e quando um d' elles sente esfriar o tempo vão ambos a casa vestir o paletot !  Era pouco mais ou menos assim tudo que se dava entre o marquez e o barão .  O marquez quando tinha que documentar uma phrase , certificar uma idéa ou apresentar uma opinião , citava por força o barão .  Do mesmo modo o barão na mais insignificante conversa citava sete vezes o marquez .  Ha na sociedade lisbonense pessoas que conseguem por este modo grangear creditos uma á outra :  " A propósito de sciencia , diz Thomé , lhes-hei que ainda não encontrei na minha vida nem mais poderoso engenho , nem maior quantidade de dados scientificos , nem mais portentosa reminiscencia do que a de Thomaz !  " Já que falâmos de sciencia , diz Thomaz , aproveito a occasião para os advertir de uma circumstancia que talvez não ponderassem ainda :  observaram já a reminiscencia portentosa , a enorme quantidade de dados scientificos , e o poderoso engenho de Thomé ? ! "  Assim eram o marquez e o barão , verdadeiros Thomaz e Thomé da anecdota .  Se haviam começado por ser agradaveis um ao outro , terminaram por se considerarem mutuamente indispensaveis ;  qualquer d' elles era para o outro o typo do alter ego .  Deve todavia fazer sentir-se uma circumstancia :  por mais amigos que sejam dois homens , ha sempre um que obedece ao outro por indole , por habito , ou por necessidade .  A situação do marquez e a protecção que sempre dera ao seu caro Antonio Cypriano , que eram estes os dois primeiros nomes do barão , haviam-lhe dado o direito de ser elle o Dom Quixote d' aquelle Sancho Pança , a alma d' aquelle corpo , o recheio d' aquelle empadão !  O marquez de Villar , conforme o leitor já viu do que se disse no capitulo antecedente , era chefe de um partido politico ;  Antonio Cypriano de Lemos era , em consequencia da fortuna que possuia , um dos mais importantes sectarios da politica do marquez .  O que o marquez não alcançava por engenho , o barão conseguia o por dinheiro Já d' isto se vê de que importancia era para o partido este Antonio Cypriano de quem os Villaristas diziam -- " é uma das melhores cabeças do nosso partido ! " --  querendo dizer de certo que era uma das melhores " bolsas . "  Sem alcance de idéas politicas , elle limitava-se em não acreditar senão no marquez e nem se dava ao incommodo de tentar comprehendel- o .  Quando se segue a politica de um homem e se partilha em tudo os altos juizos d' esse homem , a politica torna-se questão de compadres , e a causa é sempre antipathica ;  por isso á medida que o Villar e o seu partido iam caindo , Antonio Cypriano ferido no seu amôr proprio mais se resolvia a empregar todos os meios monetarios unicos de que podia dispor para o triumpho das suas idéas , tentando ainda sustentar uma causa perdida no animo publico .  O marquez apresentou-lhe por essa occasião Luiz de Lima , a quem o barão , que raras vezes frequentava o mundo , não conhecia senão de nome .  Em quanto a Victor Marrocos , esse conhecia o elle como um diabolico revolucionario prompto sempre a orar ás massas no furor das crises do parlamento , e a jogar epigrammas no remanso das tavaqueações domesticas .  Nem se estimavavam nem se aborreciam ;  e apesar de se conhecerem havia annos , era talvez a segunda vez que se encontravam reunidos .  Desconfiado por indole , o barão não o olhava com bons olhos , porque via n ' elle um antigo inimigo politico , que só nos ultimos tempos se chegára ao gremio dos villaristas , por especulação .  Depois do quinto copo de Porto , a conversação occupou-se , como é de uso nas ceias , das mulheres em geral , e de algumas em particular O barão de Sousa era homem que saboreava uma boa anecdota .  As historietas crusaram-se .  Os convivas tão depressa tratavam de uma duqueza , como de uma comparsa .  Esboçou-se um par de biographias .  O marquez de Villar tomou insignificante parte na discussão porque as mulheres não eram o seu forte , e o barão de Sousa , que se achava encartado em presidente da festa , decretara que o sexo amavel seria o unico assumpto permittido até ao Champagne ;  em principiando á sobremeza conceder-se hia a palavra sobre a politica do paiz , porque se contava que a esse tempo as mulheres estivessem a dormir , e os homens a vomitar .  O barão de Sousa era , por fim de tudo , um soffrivel homem de mundo .  Para elle a moral era uma especie de bengalla como que batia nos outros dispensando-se , como é natural , de dar com ella em si mesmo .  Seriedade !  ninguem como elle pronunciava n ' um tom de mestre de capella esta santa palavra , porque ninguem melhor do que elle tinha a consciencia de que isto de seriedade é uma historia que toda a gente exige nos outros , e sem a qual passa divinamente .  -- A saude do corpo de baile !  gritou Victor Marrocos , olhando para o barão de Sousa com uma expressão de ironia e menos- preço que era habitual á physionomia d' este homem publico .  -- É innegavel , ponderou o barão , que o corpo de baile faz progressos na arte ... e na belleza que tambem é arte n ' ellas , se me não engano .  A Ritinha desde que passou á classe das primeiras , e que o choreographo compoz uma variação expressamente para ella , encarregou-se de provar que a gloria tambem engorda !  Vejam que bochechas !  continuou elle fazendo uma caricia á dançarina que estava com a bocca cheia com uma salchicha frita ;  e que excellente côr , que côr de saude !  ó marquez , que diz ! ?  Palavra de honra , Ritinha , sou um cego admirador dos temperamentos rijos e das constituições saudaveis .  Deliro deante de tão rosadas faces !  Para mim as mulheres pallidas , has de perdoar Bemvinda !  enjoam-me quasi tanto como os romances que as elogiam .  Não é do meu voto , Marrocos ?  -- Reconheço a superioridade da Ritinha , e admiro-lhes as côres :  mas não me obrigue a dizer mais porque não entendo nada de pintura !  Este epigramma foi saudado com solemnes gargalhadas dos homens , e respeitabilissimos amuos da parte das duas dançarinas .  -- Tu has de ser toda a vida , exclamou o marquez dirigindo-se morto de riso a Victor Marrocos , o mesmo e inalteravel insolente que temos a desgraça de conhecer hoje !  n ' um salão ou n ' um botequim , n ' uma egreja ou n ' uma praça , na tribuna ou na casa de pasto !  Não lhe queiram mal , amôrinhos , desde creança que elle não acredita nas mulheres .  -- Porque não acredita o meu amigo nas mulheres ?  perguntou o barão que principiava a beber de mais , e a desenvolver uma vivacidade que a natureza lhe não havia querido conceder adivinhando que elle viria a ser bastante rico para poder compral- a por intermedio de vinhos generosos .  O senhor ha de acreditar por força nas mulheres , ou eu não hei de ser quem sou .  Pois em presença de duas tão galantes meninas atreve-se a offendel- as menospresando a mais bella metade da creação a que estas prendas teem a honra de pertencer !  Victor Marrocos que percebeu que o barão tinha o vinho bulhento e palrador , tomou a palavra e defendeu as mulheres .  Foi um d' esses discursos de ceia de domingo gordo , em que as idéas andam a nadar em Champagne .  Para ganhar as boas graças do barão , porque antevia que para a sua missão de especulador politico isso lhe podia servir ainda , attendendo á fortuna d' elle , o revolucionario elevou ás nuvens as senhoras de sociedade e sobre todas , as meninas solteiras do mundo elevado , adoraveis pela educação e pelo perfume da atmosphera em que nascem , " porque só um homem de mundo sabe educar uma filha " , lisongeando , como se percebe sem custo , as vaidades do barão que o levavam á mania de se considerar o primeiro educador d' este seculo , e que eram á mesa sobretudo de uma susceptibilidade que a cada instante lhe fornecia excellentes quixotadas .  -- Alto lá !  gritou Luiz de Lima , que sempre por estas festas se julgava ainda em Coimbra e remoçava dez annos .  Assim mesmo acredito mais na Ritinha e nas suas companheiras do corpo de baile de S. Carlos , do que nas meninas educadas por homens de mundo , que merecem ao sr.||_Marrocos Marrocos|_Marrocos tão notavel menção .  A educação que se dá ás mulheres de Lisboa em logar de as tornar instruidas torna-as pedantes , desregradas em vez de virtuosas .  Eu sou um pouco selvagem em questão de mulheres -- quero-as innocentes e ignorantes :  só assim poderão ser religiosas ;  a educação que se dá em Lisboa ás damas ou as converte em beatas por aristocracia , ou em irreligiosas por pretenção .  A simplicidade é a poesia da mulher .  A Ritinha e a Bemvinda aproveitando o intervallo da opera á dança para seduzirem entre dois bastidores um millionario de boa fé , que quando olha para o corpo de baile julgo ter deante de si o painel das onze mil virgens , parecem-me , ainda assim , mais acceitaveis e menos repugnantes , do que as meninas educadas de Lisboa que se vendem a um marido , renegam do amôr e do amante quando elle é pobre , e aproveitam a educação para saberem enganar um homem a quem juram amar tendo em vista apenas a americana e o camarote em S. Carlos que esse casamento lhe póde alcançar !  Ah !  quando o casamento se converte n ' uma prostituição legal , como por ahi se vê , é a instituição mais immoral e degradante a que uma família possa recorrer !  Que querem ! --  exclamou o medico com uma expressão de franqueza sublime , fructo de um jesuitismo que nem só os frades possuem , mas tambem os medicos -- confesso-lhes que gosto de poder dizer aqui livremente as minhas opiniões :  tenho muito menor antipathia pelo vicio que não tem senão a consciencia desgraça , do que pela devassidão elegante e regrada , das que não peccam por haverem recebido por hospede no seu lar durante longas noites de inverno a figura pallida da miseria vindo sentar-se ao pé do seu brazeiro apagado , mas porque o demonio da vaidade lhes soprou ao ouvido que não vale a pena de amar e soffrer , e que o casamento é a loteria das mulheres , em que o premio grande é um marido rico , e em que o merecimento sem dinheiro se considera como numero branco !  Demais , ponderou voltando-se para o barão , desde os dezoito annos , que eu tenho os meus motivos para não sympathisar com as meninas educadas .  É uma anecdota , que ainda lhe não contei , marquez !  uma historieta da minha entrada no mundo , que tem apenas o merecimento de marcar bem o espirito da epocha .  As dançarinas meias adormecidas pela fluente catilinaria de Luiz de Lima que esquecêra d' esta vez o ar doutoral e emphatico que o distinguia , pela consciencia que o acompanhava de possuir o dom da palavra , e que á força de costumar ser escutado acabára por gostar de se escutar a si proprio e perorar a cada instante , acordaram , graças ao marquez e ao barão que lhe gritaram ao ouvido -- " Vae-se contar uma historia ! "  É incrivel o valor que esta casta de raparigas liga a escutar um conto .  Os aventureiros e as mulheres de theatro , por outra , toda a gente que tem uma vida incerta e errante présa as historias , e morre por ouvir um conto .  O marquez , o barão , e Victor Marrocos gritaram então em côro com as duas coriphéas -- " Venha a historia ! "  Luiz de Lima preparou um sorriso d' aquella certa ironia estudada , que a maior parte da gente adopta á custa de longos ensaios ao espelho quando ninguem póde vel- os , aprendendo em casa o melhor methodo de se mostrarem no mundo , e principiou a historieta .  Não valeria a pena contal-a , se não fosse para fazer sentir ao leitor como foi que da conversação d' essa noite durante a ceia , resultou uma antipathia formal da parte do barão para com o medico da moda , e a influencia que , como mais tarde se verá , a catilinaria do doutor teve sobre o seu futuro , e , o que peior é sobre o futuro de muitas outras pessoas .  Quantos factos da vida resultam muitas vezes de uma palavra , de um gesto , de um sorriso !  -- Era em 1842 :  eu tinha dezoito annos como lhes disse , chegára da universidade a ferias do meu primeiro anno juridico , e tinha a cabeça recheada de todas as illusões poeticas das margens do Mondego .  Para mim que ainda não tinha sido amado , uma mulher moça e bonita que se dignasse volver olhos piedosos para a minha humilde creatura , seria um verdadeiro anjo salvador .  Procurava-a como Don Quixote procurou a celebridade , como Jeronymo Paturot procurou uma posição social , ou mesmo com Salomão procurou a palavra mysteriosa que resolvesse o problema dos destinos humanos .  Ao cabo de uma semana essa mulher , a minha mulher , appareceu !  Era uma creatura loira e angelica , em quem a natureza parecia haver adivinhado as phantasticas e seductoras creações de Ossian e Lamartine .  Tinha olhos de um azul celeste , e a mais doce e meiga expressão de olhar que um pintor possa ter sonhado !  A fronte pallida e sympathica pendia levemente sobre o peito como abatida pelos ardores da imaginação e cançada pelos sonhos da phantasia .  Julguei por vezes quando a olhava que era um sonho o que via , ou que estava lendo o Don Juan de Byron quando elle nos descreve Haydée , aquella poetica figura de mulher , melancholica e suave , que andava sempre sonhando com um mundo melhor !  Dizer-lhes que a amei é tornar vulgar o que senti por ella .  O homem gasto na aridez da sciencia , e nas tristes comedias da vida , o homem que conhecem hoje em mim , positivo , calculista e frio , estremece ainda ao lembrar-se que o amôr lhe devorou a alma por essa mulher de quem lhes fala , e declara até que se ainda não contou esta singela historieta é porque mesmo agora a lembrança d' esse amôr de creança o incommoda pela simples reminiscencia ! --  Encontrei-a no theatro , continuou elle depois de uma d' essas breves pausas com que os habeis contadores de historietas prendem em certas situações a attenção dos que os escutam .  Ella era assignante de S. Carlos , de uma das frisas de bocca , a terceira por baixo do camarote real .  Namôramos- nos durante tres recitas successivas , ella da frisa , eu da platea .  Uma noite , no corredor , á saida pelo chamado Picadeiro , tive occasião de lhe entregar uma carta .  Na recita immediata , á saida tambem , e no mesmo sitio , ella entregou-me um bilhete .  Dentro do bilhete vinha um annel .  Embrulhando o annel , estas palavras :  -- " E- me impossivel escrever-lhe .  Conserve esse annel como uma lembrança da sua E ... "  -- Era um annel com um magnifico brilhante .  Por prudencia , talvez , preferi o annel ao bilhete e rasgando o bilhete metti no dedo o annel .  E continuamos a namôrar- nos no theatro , sem nunca nos falarmos , sem nunca nos escrevermos .  Sabia apenas que ella era solteira , e , como se dizia no mundo , muito bem educada .  Aqui , Luiz de Lima olhou para os convivas , e para o barão especialmente , e disse-lhes com um sorriso magnifico : --  era das muito bem educadas !  -- Certo dia , continuou elle , eu jantava n ' uma casa de pasto detestavel , e servia-me de sobremeza a leitura do annuncio de espectaculos que encontrei nas columnas rachiticas de um jornal da opposição , que estacionava n ' uma das mezas .  Não sei o que ha de grande no desejo phrenetico de um homem moço que vê atravez de mil dificuldades pecuniarias a duvidosa realisação de um capricho d' amôr .  E ' uma lucta curiosa e às vezes heroica !  D ' essa vez , eu distingui em cada linha do annuncio da Don Pasquale uma serie infinita de quesitos irrevogaveis .  Lembrei-me de luvas brancas , de um bilhete da superior , e de um collete branco ou preto .  Por desgraça fatal , não tinha dinheiro para o bilhete nem para as luvas , e estava redusido a dois colletes de côr !  Enchi-me de animo , e tomei um partido que já vão saber qual foi .  Tirei um palito com a soberania magestosa com que Napoleão empunharia o seu occulo das batalhas .  Depois , chamando o criado , expliquei-me assim :  " Responde ao que te vou dizer sem admiração nem replica .  Onde ha aqui perto alguem que empreste sobre penhores ?  " O criado olhou para mim sem pestanejar ;  ou adivinhasse que esta pergunta encerrava um pequeno poema de contrariedades do destino , ou estivesse habituado a presenciar essas crises vulgares da vida de rapaz , certo é que nem se admirou .  " Saberá o senhor , respondeu o criado modestamente , que conheço alguem que se presta a esse negocio .  " Quem é ?  " Isso agora , replicou elle torcendo-se n ' um risinho misterioso , isso agora é segredo .  São às vezes pessoas que não querem que isto conste !  " Bem !  accudi eu , toma lá este annel .  Oito libras sobre elle , trez pintos para ti , tudo prompto n ' um quarto de hora :  serve-te ?  O criado poz o chapeu , agarrou no annel , e saiu a correr .  Era um criado conhecido e fiel a quem eu confiaria as minas do Perú , se accaso as possuisse por qualquer casualidade .  Um quarto de hora depois , o criado voltou .  " Oito libras .  " E contou-as sobre a toalha .  " Tres pintos para ti , disse eu entregando-lh ' os ;  e dispondo me a sair .  Tirarei o annel d' aqui a 5 dias .  -- Á noite dava-se eftectivamente o Don Pasquale .  A minha E ... assistia , e eu via-a logo que entrei :  fui procurar o meu logar por baixo da frisa , como costumava .  Então , ella collocou a mão esquerda sobre a face , e eu vi o meu annel n ' um dos dedos da minha namôrada ! ...  Debalde torturei o meu espirito para alcançar a incognita de tal problema .  -- Porque acaso tem ella o meu annel ? --  perguntei a mim proprio durante toda a noite , observando de mais a mais que ella já não me prestava a attenção costumada .  No dia seguinte , nem já me lembra por que inauditos meios , arranjei as oito libras , corri á casa de pasto , e enviei o criado a retirar o annel .  Dez minutos depois , o criado voltou com o dinheiro acompanhado por um bilhete em que li estas palavras : --  Comprei ao sr.||_Luiz_de_Lima Luiz|_Luiz_de_Lima de|_Luiz_de_Lima Lima|_Luiz_de_Lima o meu annel por oito libras . --  A assignante da frisa e frequentadora impreterivel de bailes e concertos , a elegante effectiva de Cintra e dos passeios a Sitiaes , a muito bem educada E ... emprestava dinheiro sobre penhores ás escondidas do pae , e de sociedade com a sua aia !  Esta lição fez com que eu nunca mais procurasse a poesia na mulher , nem acreditasse nas vantagens da educação moderna que já não faz victimas da clausura conservando-as n ' um convento a educar , mas que lhes ensina quaes são os juros da lei proporcionando-nos uma amante-agiota !  As dançarinas exultaram de prazer ouvindo o narrador e saudaram a anedocta :  Bem-vinda fazendo uma saude a seu pae e sua mãe por não a terem mandado educar , favor de que ella agora reconhecia o alcance :  a Ritinha pondo de parte os decóros , e dando um abraço no medico para lhe provar até onde chegava a sua admiração pelos seus talentos .  Para se comprehender bem em que deu a tal historieta do doutor , será talvez util que precedâmos o facto de algumas observações .  A maior parte das mulheres de theatro , costumadas a viver com gente de má esphera e de peior instrucção , sentem uma grande admiração por todos os dotes naturaes :  a belleza , a força , ou o talento .  Um homem bonito agrada-lhes , um athleta impressiona-as , um homem de talento encanta-as .  Habituada á cavaqueação estupida dos primeiros dançarinos , e das bailarinas suas companheiras , circumscripta áquella athmosphera de grosserias , de mexericos , e de fumo de cigarro , a rapariga encontrava-se agora pela primeira vez na sua vida ao lado de um homem notavel e celebre pelo seu merito , que fazia consistir a sua eloquencia no esplendor das idéas e na fluencia da phrase , tão diverso do barão , que só era eloquente quando abria o porte-monnaie e o apresentava cheio de libras á rapariga que só por ellas o aturava .  Passou como que um relampago pela imaginação da pobre dançarina , um relampago de esperança e de gloria :  ser amada por um homem assim !  Moço e na flôr da vida e das illusões , ella não o teria desejado ;  mas assim como elle agora lhe apparecia , farto da vida e gasto de crenças , via n ' elle um ente interessante e sympathico , e sonhava em fazer de novo palpitar aquelle coração envelhecido , acordando na alma abatida de Luiz de Lima novas impressões de felicidade e de amôr .  Ella fitou no medico o olhar avido das mulheres perdidas , quando finalmente um desejo as incendeia .  Não o olhar que nasce da cubica dos sentidos , porque as mulheres habituadas ao prazer como genero de vida , cedo se enfastiam dos gosos materiaes do amôr :  era o olhar inspirado que acode aos olhos partindo da alma , e que n ' um raio de luz parece prometter um mundo inteiro de sentimento e de esperança !  O barão sentiu-se pequeno e acanhado diante dos prestigios do talento .  Não lhe escapou a expressão com que a dançarina contemplára o medico durante a historieta que elle acabára de contar , como que encantada pela musica litteraria do seu estylo narrativo .  Conhecia a fundo o caracter excentrico de Ritinha .  As mulheres menos capazes de paixão são as que mais se entregam a caprichos , e elle anteviu a realisação de um que poderia tornal- o o assumpto curioso de cancans de bastidor .  Todavia houve-se como homem de mundo e continuou a beber sem deixar adivinhar pela sua phisionomia as idéas que o agitavam .  Deve dizer-se :  o barão tinha a dançaria havia quatro annos ;  comprára-a aos doze como quem compra um cavallo ou um tilbury , e guardava-a , como já dissémos , por ostentação .  Gostava que se dissesse : --  a dançarina do barão -- como se dizia -- o caleche do barão , o groom do barão , a chibata de unicorne do barão !  Deixal-a , era sujeitar o seu amôr proprio a ser ferido a cada instante quando a encontrasse nos theatros ou nos passeios pertencendo já a outro .  A vaidade e não o amôr é que o prendia a ella ;  é isto que desejamos fazer sentir :  a vaidade era a molla dominante do seu caracter .  Tudo pela vaidade , como Napoleão tudo pela gloria , como Don Juan tudo pela insaciedade ;  os grandes homens e os pequenos teem todos um lado vulneravel ;  era esse o do barão , sobretudo quando não o reconheciam como o primeiro educador deste seculo , e não admiravam em sua filha o resultado dos sabios conselhos paternos que haviam formado a sua instrucção de senhora .  O barão tinha entre algumas boas qualidades a de ser cuidadoso ácerca de Sophia :  era elle quem lhe comprava as musicas , quem lhe escolhia os livros , quem suppria emfim o logar de uma velha regente directora de algum recolhimento escrupuloso .  A's quatro horas da madrugada , o marquez dormia encostado á meza , a Bemvinda bucolisava a cair de somno com Victor Marrocos que diligenciava por lhe fazer comprehender a situação moral do ministerio , e o barão fingindo dormir poude ouvir levemente uma declaração incendiaria com que Ritinha acommetteu á queima-roupa Luiz de Lima .  O medico que não desdenhou o horisonte que se lhe apresentava atravez dos prestigios do Champagne , e que divisou ao longe um porvir de triumphos para o tacté ou para o balloné , porque o amôr converte as mulheres pesadas em verdadeiras pennas de perdiz , resolveu experimentar as sensações do heroe da borleta -- O amôr e a dança -- , e disse mil coisas meigas á linda dançarina .  O barão , por essas alturas pareceu-lhe ser tempo de acordar , e fingindo arrepender-se de se haver deixado adormecer , consultou o relogio , viu quatro horas e vinte minutos ;  e acordando o marquez , propoz que se procedesse á retirada :  este requerimento foi approvado pela maioria ;  apenas Ritinha foi de voto que era ainda cedo ;  e apertando a mão do medico disse lhe de repente -- Amanhã no ensaio -- sem que o barão pudesse perceber as palavras , ainda que não lhe escapou que a dançarina havia dito o que quer que fosse .  Á saida o marquez que ia acompanhar no trem Victor Marrocos e Bemvinda até á casa d' esta , disse ao barão que partia no caleche em companhia de Ritinha e de Luiz de Lima , a quem elle , como homem de mundo elegante que era , offereceu conduzir até ao hotel da Europa onde o medico morava .  -- Não te esqueça , Antonio Cypriano , que são quarta-feira de Cinza os annos da marqueza !  Jantas com+nós , e será bom levares a Sophia porque a marqueza recommendou-me cem vezes que te pedisse isto !  O barão prometteu que não faltaria :  os trens partiram em direcções contrarias ;  durante o transito o barão foi graciosissimo para com o medico , que seria capaz de jurar que Antonio Cypriano estava de boa fé .  Apesar d' isso , a antipathia que experimentava por Luiz de Lima trahiu-se um pouco ao apertar-lhe a mão , porque o medico julgou conhecer um symptoma de frenesi nervoso no vigor com que o barão lhe esmagou os dedos á despedida .  A sós com a dançarina , o barão disse-lhe então no momento em que o trem partiu do Hotel da Europa para casa da rapariga :  -- Esteve hoje commigo o empresario do theatro lyrico do Rio de Janeiro , que vem escripturar dançarinas .  Falou-me de ti !  Propõe-te uma escriptura de cento e cincoenta mil réis fortes por mez , e meio beneficio com a primeira representação de uma dança nova .  Faz o contracto -- tres annos .  Fiquei de dar-lhe a resposta até ao meado do mez que entra .  Se dirigires de novo a palavra ao medico que ceou esta noite com+nós , partes para o Rio no primeiro barco que sair .  Quem era o barão de Sousa  Quem era o barão de Sousa , d' onde vinha o barão de Sousa , é o que ninguem sabia .  José d'Athayde -- o noticiarista -- perguntou por vezes no seu estylo de noticia diversa " Que caso pede , este barão ?  Antonio Cypriano , um dos homens mais espertos de Lisboa , não fizera fortuna por um livro nem por um casamento , nem pela politica nem pela loteria :  fizera fortuna por uma comedia ;  uma d' essas comedias tragicas que não chegam até á Gaveta dos Tribunaes , mas que são às vezes urdidas por monstruosas combinações .  Mysterios que não são mysterios para ninguem , que a policia sabe melhor do que qualquer , e a que se fecha os olhos quando o réo tem para se sentar uma tripode de oiro como os antigos feiticeiros !  Contar as particularidades d' esse longo romance de aventuras e enredos que o barão de Sousa planeou , dispoz , e conseguiu levar a exito , seria fazer outros dois volumes .  É uma larga serie de astucias de que apenas faremos o quadro geral .  Não sei bem em que anno , morreu de febre amarella em Pernambuco um rapaz portuguez de vinte e seis annos .  Este rapaz que havia sahido pequeno de Lisboa , sem meios e sem protecção , servira como caixeiro n ' uma casa de commercio desde os dezoito annos , e herdára aos vinte e quatro , pela morte do patrão que o adorava , toda a fortuna d' elle que não tinha filhos nem parentes .  O testamento d' esse rapaz marcava o seguinte :  -- Deixava tudo a sua mãe||_Joaquina_Angelica Joaquina|_Joaquina_Angelica Angelica|_Joaquina_Angelica , portugueza , da freguezia de S. João da Praça :  no casa porém de ella haver fallecido e viver ainda uma filha , Maria Amalia , a herança caberia á irmã do finado .  Nos livros da Egreja de S. João da Praça não se encontrava o assento de baptismo nem de Luiz Victor , que era este o nome do finado , nem de Maria Amalia :  debalde tambem se procurou o registro do casamento de Joaquina Angelica , e o seu nome no livro dos obitos .  Ninguem se apresentou a reclamar a herança , e a herança era de mais de um milhão !  Quasi um anno depois , apresentou se uma rapariga , dando-se por irmã do finado , dizendo chamar-se Maria Amalia , e ser filha de Joaquina Angelica .  Entre outras testemunhas que citou como pessoas que sabiam a fundo se ella falava ou não verdade , deu o nome de Antonio Cypriano de Sousa , que a esse tempo não era ainda barão .  As testemunhas juraram todas conhecer essa rapariga , e attestaram conhecel- a por filha de Joaquina Angelica que ha via sido criada de servir em casa de uma gente que morára por muitos annos na freguezia de S. João da Praça , indo depois residir para Villa-Franca .  Explicaram que se o nome da rapariga não se encontrava no livro dos baptismos d' essa freguezia é porque ella era filha natural , e hospede da Santa Casa de Misericordia de Lisboa , em consequencia de sua mãe não ser casada , mas amancebada com um criado da mesma casa em que servia , motivo por que não se encontrava tambem no livro dos registros competentes nota alguma em referencia ao matrimonio de Joaquina Angelica .  Que , finalmente , se no respectivo livro dos assentos d' obito da mesma freguezia se não deparava com a data da morte de Joaquina Angelica , é porque ella se achava em Villa-Franca com seus amos e morrendo ahi de cholera , se não lavrára assento , como succedeu por essa epocha a todos que ahi falleceram .  Com altas protecções , e bem imaginadas astucias se venceu uma comedia , cujo enredo pelo que acabamos de contar , dava esperanças de ser engenhoso .  Antonio Cypriano de Sousa , isto diziam as más linguas , tomára grande papel n ' esta peça , e desempenhara-o habilmente .  Tão habilmente ou tão pouco , que sete mezes depois visitava a miudo a pretendida irmã do finado , herdeira já d' essa magnifica fortuna , que morrendo mezes depois , o constituiu seu herdeiro universal .  Disse-se que a rapariga fôra n ' isto apenas uma comparsa soffrivel , e que a Antonio Cypriano se devera a graça de falsificar todos os documentos , inclusive o livro da Misericordia !  São de certo calumnias que espalharam para denegrir um tão honesto caracter .  Tão honesto que ficou riquissimo e o fizeram barão !  Se elle não fosse honesto decerto não alcançava tanto em tão pouco tempo !  Não era sceptico da moda , nem atheo por ostentação , d' esses que acreditam em tudo , e que só teimam em não acreditar em Deus !  Era sceptico do fundo d' alma se devéras tinha alma .  Para elle nada havia de santo nem de solemne ;  se o não dizia sempre , ao menos sentia-o .  O dinheiro !  Elle explicava tudo pelo dinheiro , vencia tudo pelo dinheiro , confiava e esperava tudo do dinheiro ! ...  Um dia , em casa do marquez de Villar , n ' um d' esses cavacos intimos que este homem do poder concedia no tempo da sua influencia a uma certa coterie de privilegiados , a conversação occupou-se de especulações e estrategias politicas , astucias de gabinete , perversidades contadas no rol das virtudes , tudo emfim que pelo dinheiro se póde disfarçar !  O barão recebeu por essa occasião alguns cumprimentos pela popular e celebre perspicacia do seu engenho , demonstrada em todas as mil e uma historietas em que fizera papel de heroe .  -- N ' estes casos galantes , disse o marquez , ha sobretudo às vezes uma grande dificuldade a vencer , -- arranjar testemunhas falsas !  -- Nada mais facil , acudiu Antonio Cypriano com uma gargalhada !  Por um certo preço alcança-se uma testemunha vulgar , um homem como a maior parte , que diz uma mentira e jura dizer uma verdade :  por mais algum dinheiro , uma bagatella mais , podem ter-se algumas testemunhas de força , velhos respeitaveis , de fronte calva , olhar suave , e figura veneranda ;  um d' esses anciões como se descrevem os paes nobres de tragedia , uma especie de patriarcha de procissão :  a estatua da gravidade , emfim !  E como os outros rissem do cynismo das palavras do barão elle replicou :  -- Julgam talvez que brinco ? !  Pois bem , amanhã lhes darei uma scena de comedia representada com uma pouca de verdade mais do que representam na theatro Epiphanio ou Theodorico !  No dia seguinte , achavam-se á mesma hora , na mesma sala , os mesmos amigos do marquez .  Um criado veio dizer :  -- Procuram o sr. barão .  Antonio Cypriano sorriu-se , e perguntou ao marquez :  -- Posso mandar entrar ?  é uma pessoa respeitavel .  A um signal do marquez de Villar , o criado fez entrar para a sala um velho de barbas brancas , curvado pelos annos , mas tendo ainda no semblante um vislumbre de vida e de crença .  O olhar d' esse homem era melancholico , e espargia um clarão já debil mas ainda de uma luz sympathica e enternecedora .  Era o que vulgarmente se chama " um velho respeitavel . "  -- Este senhor , disse o barão , vem contar-lhes o que hontem presenceou :  é um caso de gravidade e importancia -- attendam !  Depois , voltando-se para o ancião ordenou-lhe que falasse !  -- Meus senhores , disse o velho com um tom circumspecto e digno .  Hontem ao pôr do sol , desembarquei no Caes das Columnas , e vi no Terreiro do Paço , com estes olhos , senhores !  com estes olhos que já pouca luz podem ter , porque Deus assim é servido ! (  aqui ergueu os olhos ao céu , com uma expressão de bondade infinita , e de paciencia evangelica ) vi eu , caminhando do lado da Alfandega , para o lado do Arsenal ... o Concilio Tridentino , de casaca encarnada e chapéu armado !  Todos que se achavam presentes romperam n ' uma gargalhada estrondosa .  O barão disse ao velho , que não mudou de expressão apesar do riso descomedido dos espectadores :  -- Dá a sua palavra de honra em como viu isso ?  -- Oh !  senhores , se a palavra de um pobre velho , que presa a honra mais do que a propria vida que já longa lhe vae ...  -- Basta !  disse o barão :  póde retirar-se .  Depois olhando para os seus amigos pasmados e estupefactos , continuou :  -- Este homem é o typo da testemunha de força !  um pobre velho que presa mais a honra que a vida , mas que veiu aqui fazer esta figura ... por doze vintens !  Ao que nos parece , este ligeiro traço biographico explica o homem , em quanto á indole .  Deve comtudo dizer-se que era socialmente uma creatura aprasivel , que dava a todos um sorriso affavel quando o cumprimentavam , e um charuto quando lh'o pediam .  O mundo chama a isto ser -- um cavalheiro !  Antonio Cypriano estava quasi sempre a rir , e quando não estava a rir estava a sorrir .  Trazia o dinheiro espalhado pelas algibeiras , provavelmente para tinir bastante .  Era de estatura regular , elegante e apresentavel ;  conhecia os bons usos da vida social , e distinguia-se pela graça de maneiras .  De cara , era um pouco mais feio do que Mephistopheles ou Asmodeu :  testa curtissima , olhos extremamente separados , o que desvanecia toda a expressão do olhar :  a boca enorme ;  e a pelle crivada de bexigas .  -- Só conheço uma cara mais feia do que a tua , dizia elle n ' uma gargalhada ao marquez de Villar -- é a minha !  A filha do barão de Sousa  Já o leitor conhece da leitura do primeiro capitulo , pelo que viu da cavaqueação que alli se descreve entre os jornalistas José d'Athayde e Estevão de Mello , com o folhetinista Guilherme da Cunha e o douctor , que a filha do barão de Sousa aceitava a côrte ao folhetinista .  Lembrar-se-ha ainda , se acaso leu com attenção o capitulo , honra que essas paginas não merecem de certo , e que só por favor alcançariam , lembrar-se-ha dizemos , que durante a conversação dos quatro amigos , um homem entrou no Marrare , e sentando-se á meza proxima ao grupo , viu e ouviu tudo com uma mal disfarçada expressão de cholera concentrada .  Esse homem que entrara quando justamente se estava falando do barão de Sousa , era o proprio barão de Sousa .  Nenhum dos que se achavam no grupo o conhecia , como elles proprios disseram , e , pela sua parte , elle só conheceu um d' elles -- Guilherme da Cunha -- , porque o seu cocheiro uma vez lh'o havia indicado como sendo o janota que andava rondando a casa , e fazendo seus rapa-pés á menina .  Diga-se a verdade , Antonio Gypriano sympathisou com Guilherme desde a primeira vez que o viu , e parece que foi coisa do demonio constar-lhe logo que o pobre moço não tinha onde cair morto , porque desde esse instante deixou logo de sympathisar com elle .  Sophia , que , como já se tem dito era este o nome da filha do barão de Sousa , tivera desde então que sujeitar-se a uma decidida opposição de seu pae contra Guilherme .  Ao principio Antonio Gypriano ainda se contentava em lhe dizer :  -- É um casamento que não póde convir-te :  tenho informações a respeito d' esse rapaz em que se me diz que é bom moço mas pobre como Job .  Não faz conta .  -- Mas se o amo !  disse Sophia .  -- Tanto peor para ti , retorquio o barão .  Se casares a meu gosto terei prazer em ser eu que ponha a casa , e darei para o teu vestuario seiscentos mil réis annuaes .  Porém se casares contra minha vontade ( aqui deixou de sorrir , e desatou a rir ) não te dou vintem !  Demais a mais ( aqui tornou ao sorriso ) tenho um motivo forte para não consentir em semelhante casamento ... Esse rapaz pertence á redação de um jornal que faz opposição ao nosso partido e guerrêa o Villar mortalmente :  que diria o marquez e que diriam os nossos se eu te deixasse casar com um homem de outra politica do que a nossa ! (  desatou outra vez rir ) O que elle quer é o teu dinheiro !  Depois é capaz de te metter n ' um folhetim !  Mas Sophia teimára sempre , e o barão chegou a conhecer que era já tarde , talvez , para lhe desvanecer esse amôr .  Tentou ferir-lhe o amôr proprio :  calumniou Guilherme :  disse que sabia da vida desregrada que levava ;  que era um rapaz sem futuro , perdido pelas fofas vaidades da vida litteraria quando se é bem recebido na estreia :  que queria fazer fortuna por um casamento porque tinha a consciencia de que pelo seu trabalho era incapaz de a alcançar .  Disse-lhe , emfim , a mais cruel das accusações que aos olhos de uma mulher possa fazer-se a um namôrado :  -- Quer especular comtigo !  Se amanhã estivesses pobre nem quereria saber de ti !  Acaso pensas que morre pela tua pessoa ? (  uma gargalhada ) Vê-te ao espelho !  Sophia estava de pé quando seu pae lhe dirigiu essa perfida phrase , parecendo commental- a por um olhar ironico com que cobrio a figura secca e acanhada de Sophia .  A filha do barão de Sousa tinha vinte e cinco annos .  A sua phisionomia era um pouco arqueada fazendo sobresair uma fronte proeminente .  Os olhos longos e cheios de luz pareciam precisar abrigo , por isso talvez as palpebras estavam armadas de longas e assetinadas pestanas .  O seio , quasi imperceptivel n ' ella , mais ainda escapava á vista porque em logar de disfarçar esse defeito com o auxilio das modistas , fasia- o sobresair pela singelesa com que se preparava .  Estava longe de ser uma mulher bonita , é certo :  mas que partido sabia tirar dos longos e finos cabellos , que lhe coroavam a fronte , formando um diadema esplendido e seductor !  A bocca era um pouco grande , mas ella ria-se tão raras vezes que esse defeito passava quasi desapercebido , ainda que era resgatado pelos prestigiosos dentes que lhe davam brilho .  A phisionomia de Sophia de Sousa não mentia .  Tinha a alma de fogo como o olhar , aquelle vehemente olhar que parecia um desafio d' essa alma poderosa a esse corpo debil !  coração agitava-se-lhe por um amôr ardente e phrenetico como se concebe nos quentes areaes do deserto !  Não era por vaidade mas por um secreto instincto , que ella não deixára nunca de acreditar na sinceridade do amôr de Guilherme , apesar das diligencias que os argumentos de seu pae haviam feito para o ennegrecer a seus olhos .  Ao contrario de todas as mulheres que não são bonitas ella não tinha a menor vaidade , e era a primeira sempre a accusar-se de ser feia .  Tinha talvez a consciencia de que a sua modestia lhe constituisse um novo titulo , o que é certo é que não levava horas a consultar o espelho , e que o seu vestuario era de ordinario tão elegante como simples .  Guilherme da Cunha conhecera-a do theatro lyrico ;  fizera-lhe a côrte trez noites da platéa , côrte que ella acceitara e a que correspondera visivelmente .  Mas a epocha theatral estava findando , e quando chegou a ultima récita o pobre moço viu fugirem-lhe com as ultimas notas do rondó as primeiras alegrias da sua alma !  Primeiras , porque o mancebo amava pela primeira vez .  Amôr de poeta , amôr inconsiderado , phrenetico , amôr de louco se quizerem , mas amôr verdadeiro e vehemente como só brota nas almas candidas e puras que vivem dos affectos e dos sentimentos !  Namorava muito , e era talvez por isso que ainda não tinha amado .  Mas namorava por distracção e não por vaidade ;  pertencia mais por indole á familia dos Don Juan , do que á familia dos Lovelace .  No fim d' um baile ou de um espectaculo retirava-se sem saudade , porque namorava sem amor ;  tirava a sua inclinação antes de pôr o seu albernó !  Nos primeiros dias d' aquella paixão , que surgiu desde o começo fervorosa e desabrida , Guilherme da Cunha sentiu que amava pela primeira vez :  -- Não é tarde , disse elle , tenho vinte e um annos !  Mas a idéa do amôr amedrontou-o .  Viu de repente como que n ' uma rapida apparição todas as contrariedades do seu destino , sem antever a realisação d' elle .  Teve medo !  O coração adivinhou-lhe os tristes lances que o esperavam .  O que n ' outro caso seria a melhor das vantagens , era agora para elle o peor dos encargos -- Sophia era rica !  A fortuna do barão de Sousa avaliava-se em mais de cem contos .  Pobre e mediocre , Sophia seria d' elle :  rica e nobre , como alcançal-a ?  Mas se o amor o intimidou , o amor depois lhe deu coragem .  Nos theatros , procurava a com a anciedade phrenetica das primeiras inclinações .  Vel- a , era para elle a suprema felicidade :  falar-lhe , seria a realisação do mais ardente dos seus sonhos .  Mas Guilherme não fôra ainda apresentado ao mundo , e apesar de que o seu nome era conhecido pela maior parte dos que ainda se dão ao incommodo de lêr , todavia não tinha ainda reputação , e apenas os benevolos o consideravam como um talento esperançoso .  As portas de todos os salões estavam lhe portanto fechadas ;  para ser admittido nos prezepios aristocraticos da sociedade lisbonense é preciso ter um nome que dispense uma posição , ou uma posição que dispense um nome :  Guilherme não tinha uma coisa nem outra !  -- Faça-se apresentar em casa do commendador Secco , disse-lhe Sophia :  eu costumo ir lá ás terças feiras .  Guilherme da Cunha teve que resolver-se então a fazer as suas entradas no mundo , e pediu pela primeira vez uma apresentação , apesar de ter por divisa -- Em tudo só .  Conseguiu .  Na semana proxima o commendador Secco recebeu na sua sala com o melhor acolhimento e agrado , diante de uma sociedade escolhida , o neophyto que debutava na vida elegante , e que pisava pela primeira vez os tapetes de um salão .  A distincção com que o tratou o commendador não foi sem motivo .  João Secco era um chefe de partido , que precisava alcançar adeptos , se não pela causa que não era sympathica , ao menos por elle que se esforçava por ser agradavel sempre que das suas boas graças antevia um resultado proveitoso .  N ' essa occasião João Secco sustentava um jornal de opposição ao ministerio , e achava-se reduzido a um só redactor politico , sem haver podido alcançar um folhetinista conhecido que lhe collaborasse a folha :  Guilherme da Cunha seria uma boa acquisição .  Na flor da vida , e no viço do enthusiasmo , tinha reunidas ao talento estas duas preciosas qualidades que só a edade concede , e que são verdadeiros dotes para um folhetinista .  João Secco tinha lido n ' um dos jornaes de maior voga alguns folhetins de Guilherme da Cunha , e consultando um homem de espirito ácerca d' elles soubera então que era geral opinião de que o mancebo revelava uma grande vocação para esse genero ligeiro mas difficil , que formou entre nós a reputação de Lopes de Mendonça .  -- Tenho homem !  disse o bom do commendador quando viu Guilherme em sua casa .  O neophito cheira-me a um ambicioso pequeno que quer a todo o custo apertar a mão na rua a alguma condessa :  pois se-lhe-ha um bom conhecimento por mez , a troco de um folhetim por semana !  -- Gosta do Whist ?  perguntou este especulador ao apresentado ...  -- São tão máu jogador que se v. ex.ª quer dispensar-me ...  -- O que lhe fôr mais agradavel !  respondeu João Secco interpretando a escusa por este modo -- tem medo de perder !  bom é que não possua as minas do Peru !  N ' essa noite Guilherme e Sophia disseram um ao outro tudo que tinham de mais importante a revelar-se .  Os juramentos crusaram-se .  Quando se deu o chá estavam já os animos dos dois amantes em tanta intimidade como se desde creança se conhecessem .  Tambem , é condão do amor vencer o tempo e as distancias .  Elles amavam-se tanto que o dialogo seria insipido para se narrar .  Romeo e Julieta são os unicos amantes , a meu vêr , que amando-se muito , conseguiram dizer cousas que não enfastiassem os outros !  O que é preciso que o leitor saiba quanto antes é que o mancebo foi franco e leal em tudo que disse , e que rematou a sua declaração por uma phrase que apenas agrada no theatro : --  Sou pobre ! --  Todavia foi isso talvez o que agradou mais á filha do barão de Sousa .  -- Pobre , disse comsigo , e são os seus labios que m ' o dizem !  nobre sinceridade !  E veio reunida á admiração pela franqueza do mancebo , o desejo , o empenho de o salvar , de o engrandecer , de o tornar feliz .  Eterna aspiração das mulheres que amam , cuja maior gloria é desempenharem o papel de anjo bom na grande e enredada comedia da vida !  -- Pobre e triste como eu o sonhava , disse ella ao ouvido da sua aia que a acompanhava sempre .  Pois hei de enriquecel- o e consolal- o !  Perigosa idéa que não a desamparou desde então , e que se tornou a mais viva esperança da sua alma !  Á meia hora depois da meia noite , Guilherme da Cunha apertava a mão de Sophia , e dizia-lhe com voz tremula como se fosse uma despedida para muito tempo :  -- Adeus querida !  Ao despedir-se de João Secco e da commendadôra , já que é moda entre nós dar tambem á mulher os titulos do marido , o mancebo percebeu que o agrado com que o haviam acolhido á entrada não durava já á hora da saida .  O chefe de partido havia comprehendido que não era para o conhecer e tratar que o mancebo requisitára ser-lhe apresentado .  -- Quer namorar mais a seu commodo em minha casa , disse João Secco a si proprio ;  não lh'o consinto a menos de dois folhetins por semana , e traduzir as noticias estrangeiras !  Ajuste faz lei .  Eu me haverei com elle .  -- Tem bonitos olhos esse rapaz que retirou agora !  disse a condessa||_de|_Castello_Branco de||_de|_Castello_Branco Castello|_de|_Castello_Branco Branco|_de|_Castello_Branco .  -- E uma bem feita mão , acudiu à viscondessa da Lago .  -- E uma grande alma !  exclamou Sophia com enthusiasmo .  Millessimas cousas urgicas  Hei de morrer com a scisma de que se a maior parte das modistas vivesse dos lucros que tira do que vende , seria caso tão funesto e lamentavel que as pobres infelizes se suicidariam ao cabo do primeiro semestre !  E direi mais , e até isto poderia merecer certa encardernação de aphorismo :  Ninguem vive apenas do que parece viver .  Longe de mim a idéa de desacatar as senhoras modistas de Lisboa , pessoas que me merecem a minha a maior sympathia :  especie de fadas que que vieram converter em elegantes , tantas senhoras que a não ser os conselhos de mesdames Levaillant , Aline , Elisa , e tuti não poderiam nunca passar dos chapeus de casa de negocio , e dos airosos manteletes de loja de fanqueiro !  As modistas !  Que invenção admiravel !  As modistas são uma novidade da importancia dos telegraphos electricos .  Ellas não trouxeram só a Lisboa as modas e o bom tom :  trouxeram-lhe os boudoirs , onde ha sempre duas peças de fazenda por não deixar de haver , dois sophás magnificos e uma excellente causeuse , e alguns quadros que representam velhas historietas d' amor , Maleck-Adel e Mathilde , Almaviva e Rosina , e até às vezes Amor e Psyché .  Amor e Psychél Oh !  como ellas falam d' este quadro !  Como ellas falam do amor , essas deliciosas modistas que sabem de cór e salteado em que escaninhos do coração brotam o amor-paixão , o amor-capricho !  Como ellas descrevem os casos de coração , essas modistas que teem durante a sua vida presenceado maior numero de aventuras , do que um tambor de oitenta annos tem tocado de alvoradas !  Segunda feira gorda á uma hora da tarde , a marqueza e Luiz de Lima recostados em dois soberbos sophás no boudoir de madame||_Dupuis Dupuis|_Dupuis , modista celebre pelas más fazendas da sua loja e bonitas maneiras da sua pessoa , cavaqueavam d' amor com certa languidez de expressão e abandono de attitude , que o proprio Figaro que se achava n ' um quadro dirigindo a serenata a la signora del balcone parecia encantado de ver entre os dois amantes reinar tão completa harmonia .  A marqueza disse ao medico mil coisas agradaram , e não quiz poupar-se a juramentos e promessas .  Amava o , fazia do amor a sua gloria unica , e queria ser grande no amor como era grande em todos os sentimentos , proteger o seu amante , eleval- o , engrandecel- o , provar-lhe que o amava por elle e não por si , que não havia egoismo n ' aquelle affecto , que era nobre e rara a estima que sentia por elle .  Foi isto o que a marqueza lhe disse entre protestos e meiguices , ora erguendo os olhos ao ceu com um ar de bondade e de candura indizivel , ora assumindo uma expressão triste , vaga , e de um sentimentalismo romantico e mysterioso .  O leque auxiliou-a para acompanhar essas phrases angelicas de gestos dignos de um cherubim .  Amar outro !  ter um só instante pensado em Victor Marrocos !  quem se pensava então que ella era ?  Victima da inexperiencia dos primeiros annos , ainda assim ella aprendêra com o inconsiderado passo que déra em casar-se , o que a alma soffre quando para sempre se encontra isolada de affectos e na impossibilidade de aspirar a um amor poetico , escolhido e preferido a todos .  Ella terminou essa magnifica jeremiada tomando entre as mãos a cabeça do medico , introduzindo os dedos pelos seus loiros cabellos , e exclamando com um ar digno de Emilia das Neves , e como revendo-se no seu amante :  -- Meu amor eterno !  Mas Luiz de Lima estava experimentado na vida , e tinha já de ha muito assentado o seu juizo sobre o que valem todas as mulheres .  Tinha conhecido de tudo , e havia encontrado no decurso da sua existencia dados para robustecer uma opinião triste e desagradável : --  que nenhuma mulher vale a pena de nos sacrificarmos por ella , porque todas nos deixam mais dia menos dia , por volubilidade , por ambição , por vaidade , ou por coisa nenhuma !  São diabolicas taes doutrinas , e quando a alma se gasta a ponto de especular com os sentimentos , é preciso haver cautela com o homem que chegoa a semelhante estado , porque é um homem perigoso .  Luiz de Lima interrompeu as patheticas declamações da marqueza , dizendo-lhe com uma expressão de meiguice digna de Roméo :  -- Tenho pensado muito no meu futuro !  -- E esperas alcançar apenas pela medicina os engrandecimentos do teu destino ?  -- Que heide fazer ?  disse o medico affagando a mão da marqueza com um ar de victima enfastiada do banquete da vida .  Estou velho de espirito !  envelheceu-me a vontade com as fastidiosas lucubrações da sciencia , e se não fosses tu , anjo bom da minha existencia , de ha muito que me esquivaria ao mundo e ás exigencias que a minha posição me prescreve !  A marqueza bateu com o leque levemente na face do medico , e exclamou com uma soberba e magnifica expressão de superioridade !  -- Vou salvar-te !  Luiz de Lima abrio muito os olhos , e fitou uma vista avida e curiosa nos olhos da amante , incendiados de uma luz esplendida de seducção .  -- Meu querido Luiz , disse-lhe ella , tambem eu tenho pensado no teu futuro , e só peço que me deixes dar-te a taboa de salvação para te esquivares ao naufragio em que o teu sepleen tenta mergulhar-te a existencia .  Queres-te casar ?  -- Que !  -- Queres casar rico , tornares-te independente , e fazeres-me feliz a mim pela tua felicidade ?  -- E és tu que me propões ... Como entender-te ?  -- Não vês acaso em tudo isto o alcance de uma affeição superior ?  Serás meu do mesmo modo , porque não te supponho ingrato , viverei contente por ter a consciencia de ser quem te alcançou a felicidade que outra mulher no meu caso só trataria de destruir .  Quero-te independente e feliz !  Demais acrescentou com um sorriso maliciosamente galante , escolhi a noiva bem rica e tive cuidado em não a escolher bonita .  Conheces a filha do barão de Sousa ?  -- Pois é ...  -- Ella propria .  mais de cem contos !  Pondera por um momento o que essa fortuna reunida ao teu talento te póde grangear no mundo !  Luiz de Lima estupefacto um momento , travou logo das mãos da marqueza e levou-as aos labios com religiosa expressão de gratidão , de amôr , e de pasmo .  -- E parece-te que poderemos continuar a ser felizes ?  perguntou-lhe Thomazia Villar ternamente .  -- Por ventura o casamento importa em alguma coisa ao coração ? !  Não , minha vida , se alguma dificuldade vejo ao teu plano , não deverá nunca ser a de duvidares de que o meu amôr não seja partilhado por outra .  Quando o dever apparece , o amôr foge d' alli a nada !  Ha constantes exemplos do que te digo .  Serei sempre o mesmo , mais ardente e apaixonado ainda ;  porque quando o amôr se robustece pela amisade e pela gratidão , não ha mais energico e nobre sentimento !  -- Que dificuldade pódes ver então em tudo isto ?  Não tens confiança em ti sufficiente para que não hesites na convicção de poderes ainda apaixonar uma pobre pequena que não conhece o mundo nem a vida , e que verá em ti o seu salvador ?  disse a marqueza com um sorriso ironico e galante .  -- Não sabes o que ha , ao que parece !  Ignoras que a filha do barão de Sousa namora despropositadamente um rapaz , escriptor publico , um Guilherme da Cunha que escreve n ' um jornal do governo ...  -- Dura isso ainda !  Meu Deus , como a maior parte da humanidade se entretem a namorar !  Sim , conheço esse rapaz , encontra-se às vezes em casa de Castello Branco .  Pois dizes bem , vejo que é um obstaculo de alguma importancia ... para a pequena :  mas para nós ? !  Vejo que esqueces as circumstancias que se dão .  O barão de Sousa não pôde , sábel- o como eu , recusar a menor cousa ao marquez :  por outro lado , vê com que boa vontade o marquez se hade interessar em que tu cases , tanto mais que desejará ver-te preso , por isso que desconfia que te distingo !  a filha não tem papel no drama senão como uma comparsa de utilidade !  Emfim , esta noite falarei d' isto ao marquez :  apparece ámanhã em S. Carlos , assisto ao baile de mascaras , guardei a frisa .  Vae visitar me no meio da noite , e lá mesmo o marquez e eu te diremos o que houver .  -- Minha querida Thomasia , porque não és tu solteira ? !  exclamou o medico como acordando de um extasis .  -- E porque te amo eu , apesar de casada ? !  disse a marqueza erguendo os olhos ao ceu :  -- Adeus !  continuou ella , depois de uma breve pausa em que pareceram ambos dominados por uma tristeza infinita .  Os rapidos momentos em que estamos juntos são o balsamo consolador da minha existencia !  Até ámanha , em S. Carlos !  -- E até quarta-feira de cinza aqui !  respondeu o medico beijando a mão que lhe estendia a marqueza de Villar .  A marqueza desceu a escadinha que conduzia á loja de madame||_Dupuis Dupuis|_Dupuis , recebeu das mãos d' esta modista historica um embrulho com rendas de França , que lhe havia encommendado á entrada para que o marquez pudesse persuadir-se facilmente que ella sahira com o fim de fazer compras ;  depois entrou para a americana , e partiu no momento em que Luiz de Lima que ficára ainda no boudoir entregava o seu espirito a estas sabias meditações :  -- Um casamento rico !  irei viajar aproveitando a occasião de me formar na Universidade de Paris , e em alguma das de Allemanha !  Um sceptico de botequim ou algum athêo de salão , não poderia agora ponderar que o matrimonio , a maior parte das vezes , protege mais os amantes do que os maridos !  E desceu pela escada praticavel , em quanto madame||_Dupuis Dupuis|_Dupuis subia a escadinha particular para ir ver se o doutor já teria saido .  Não encontrando ninguem , a modista sentou-se no sophá onde meia hora antes estavam ainda sentados Luiz de Lima e a marqueza de Villar , e ponderou consigo mesma :  -- Entre dois amantes um d' elles ama mais do que o outro , portanto o outro precisa exagerar um pouco o seu amor :  n ' este caso qual d' elles será enganado ?  o medico ou a marqueza ?  e quem sabe se ambos se enganam mutuamente ? !  Alguns dias depois a marqueza de Villar , recebia a seguinte carta , em que o leitor reconhecerá que o medico não havia perdido tempo , e que era homem capaz de aproveitar o impulso de uma occasião feliz !  " Minha querida Thomazia . --  Não sejamos auctores mediocres , minha boa querida :o enredo é o grande elemento no theatro do mundo .  Se quizeste dar-me a idéa do drama , consente que seja eu quem urda as peripecias .  E se quizeres , para decidido triumpho da nossa obra , encarregares-te de um dos papeis principaes !  Não rias :  attende o meu plano e reconhece que sou um dramaturgo manqué , e que a minha vocação vae mais depressa para uma composição scenica , do que para a boa redacção de uma receita !  Ora oiça , a minha collaboradora !  " Falei com il mio rivale , e estou ao facto das situações do prologo .  Os dois pequenos cherubins ( poveretti ! )  querem acabar como as novellas antigas -- casando e tendo muitos filhos !  " O rapaz ( repara n ' isto ) quer lançar mão de qualquer meio que possa alcançar-lhe o casamento .  Não escolhe :  declara todos excellentes á priori , comtanto que o seu fim não falhe .  Está perdido de sentimentos a ponto de prescindir do dote e querer a noiva só por seus dotes ... naturaes !  Vê a que chega a villeza das almas pequenas !  É um d' esses maniacos que são da opinião dos galans de opera-comica  O oiro !  vil metal !  Essa chiméra fatal !  " O rapaz , é isto que desejo que ponderes , considera-me o seu mentor , o seu pae||_Fourcheron Fourcheron|_Fourcheron , e decidiu que vae seguir os conselhos que lhe dei .  Queres agora , meu anjo , saber que conselhos foram ?  Lê e pasma .  " Disse-lhe que te fizesse a côrte , que deligenceasse por te agradar e te merecer , e que soubesse tornar-se digno dos teus favores .  Que te dissesse depois , um dia , n ' alguns d' esses ternos cavacos entre amantes que se idolatram , e que só desejam serem uteis um ao outro , que te dissesse a sua posição , mas que te occultasse como é natural o seu amor por outra .  Que se transformasse n ' um melancholico Didier amargurado e afflicto , e que atirasse emfim a sua ultima e decisiva phrase : --  Preciso viver e estou sem futuro ! --  que tu deverias traduzir d' este modo -- necessito casar rico porque não tenho dinheiro . --  Que te pedisse então que volvesses olhos piedosos para salvar o teu amante ;  e explicando-lhe finalmente a influencia ( que aliás elle já conhecia ) que o marquez tem sobre o barão de Sousa , consegui fazer-lhe vêr que a menor recommendação tua ou de teu marido ao barão protegendo esse casamento , seria para elle Guilherme negocio prompto e decidido .  " Já ves o alcance do penultimo acto !  E's tu quem deves preparar o desfecho , aliás a peça morre pelo final .  te-has a acceitar-lhe os votos de amor , e a prevenção em que já estás de que elle vae representar comtigo deverá animar-te a uma mystificação superior e justa .  O meu papel consistirá apenas em fazer prevenir o barão e a filha , de que Guilherme te prefere a elles , e conseguir reunil- os num logar onde ella possa observar o seu Tytire bucolisando comtigo .  Preveni tudo , aconselhando o rapaz a que não prevenisse a namorada d' esta estrategia amorosa que vae alcançar-lhe a mão d' ella , porque apesar de ser uma comedia sublime póde comtudo tornar-se degradante aos olhos de uma mulher que prefira a impossibilidade da união a um casamento alcançado por semelhante meio .  De modo que a Sousa hade cair á queima-roupa sobre esta bucolica que esqueceu a Virgilio , e ferida no seu amor proprio dignar-se-ha volver olhos misericordiosos para o bom do pae que lhe hade então explicar miudamente -- de como eu posso ser o melhor dos maridos !  " Tem paciencia , meu amor , sujeitei-te ao desenvolvimento da tua generosidade .  Foste a primeira a dar-me a iniciativa para a comedia , dígna- te agora representar de modo que me caiba a mim applaudir-te . "  Em quanto Thomazia Villar lia e relia a prosa de Luiz de Lima um pouco mais elegante a seus olhos do que o estylo dos melhores puristas porguezes , em quanto o seu coração lhe pulsava impaciente e phrenetico a simples idéa de pôr em pratica tudo que o seu amante n ' essa carta lhe explicava e lhe pedia , Luiz de Lima que estava almoçando na companhia de José d'Athayde entretinha com o noticiarista um dialogo que não deixa de ter feição .  -- Quanto fazes tu por mez pela medicina e pela marqueza ?  perguntava-lhe o noticiarista com um cynico sorriso .  -- A medicina não me rende nada e Thomazia ainda me rende menos !  Procurei com esta ligação a faculdade de me relacionar e de ser convidado para toda a parte .  Um quanto a interesses miudos , creio que me fazes a justiça de acreditar que sou incapaz de acceitar dinheiro de uma mulher .  A prostituição no homem é a mais completa das villanias !  -- Dinheiro !