CollecГ§ГЈo ANTONIO MARIA PEREIRA Julio CESAR MACHADO A VIDA EM LISBOA ROMANCE CONTEMPORANEO 2.ВЄ EDIÇÃO VOLUME1.В° LISBOA Parceria Antonio MARIA PEREIRA ( LIVRARIA EDITORA ) Rua Augusta-50, 52, 54 1901 Este livro , escripto sob o poder de impressГµes verdadeiras , aspira unicamente a ter cГґr local . O panorama lisbonense Г© tГЈo vasto , que um estudo phisiologico sobre todos os vultos e logares seria trabalho para mui largo folego , e nГЈo sei atГ© se , conseguida a difficuldade de alguem o escrever , venceria tambem a de alguem o ler ! Procurar as mais salientes feiГ§Гµes da nossa terra , estudar os costumes e a indole dos lisbonenses , ligar a descripГ§ГЈo dos typos ГЎ descripГ§ГЈo de certos logares que em Lisboa tem mais distincta feiГ§ГЈo : inventar uma acГ§ГЈo em que os elementos se combinem todos a auxiliar a pintura emprehendida dos logares e dos typos , amenisando-a pelo interesse e movimento de um enredo em harmonia com os caracteres que se pretende observar , e com os usos que se procura descrever -- eis o plano desta obra , plano de uma seriedade extrema , que inevitavelmente devia tornar pesado este trabalho a um pulso litterario tГЈo pouco experimentado como o do auctor . A critica serГЎ severa se apenas pela leitura do primeiro volume accusar a obra de nГЈo haver correspondido ao titulo . O plano Г© largo , e torna-se difГicil desenvolvel- o nos primeiros capitulos , quanto mais realisal- o no primeiro volume de um trabalho extenso . O romance , conforme o titulo do ultimo capitulo deste volume indica , Г© no volume segundo que verdadeiramente principia ; desejo vivamente fazer sentir que considero estes primeiros quinze capitulos como o prologo da acГ§ГЈo que imaginei . Dou estas explicaГ§Гµes , porque nГЈo pertenГ§o ao numero dos que nГЈo reconhecem ГЎ critica o direito de questionar todos os elementos , que constituem um livro , tanto mais que tento pela primeira vez um trabalho de algum folego , e que nГЈo posso apresentar-me escudado por uma reputaГ§ГЈo justificada . Devo ainda uma explicaГ§ГЈo . Quando se tem em vista retratar os costume de uma sociedade , ou essa sociedade Г© um modelo de virtudes , ou o escriptor terГЎ por vezes de esboГ§ar phisionomias pouco sympathicas , e caracteres nГЈo extremamamente honestos . Fugi sempre nesta obra a ser immoral , mas nГЈo quiz nunca deixar de ser verdadeiro . Os que me accusarem me-hГЈo o gosto de os conhecer ; por que quando se tracta de castigar a immoralidade , os hypocritas e os devassos sГЈo sempre os primeiros a gritar " Aqui d> ' el-rei ! " Lisboa , 19 -- Agosto , 1857 . No Marrare Tem-se dito que somos um povo sem costumes . Г‰ uma d' essas phrases sem alcance , que passam como aphorismos , nГЈo pela idГ©a que contem , mas porque as palavras vГЈo ahi dispostas com uma certa euphonia que o ouvido nГЈo rejeita , e que a reminiscencia nГЈo hesita em acceitar . Penso de outro modo . Julgo haver n ' esta terra costumes , e costumes muito differentes dos do estrangeiro . Se a nossa indole diverge , como hГЈo de parecer-se os nossos usos ? A nossa alegria nГЈo tem o menor parentesco com a dos francezes : nГіs rimo-nos com gravidade diante de gente : largamos uma gargalhada franca e despretenciosa , apenas de portas a dentro . A nossa gravidade , todavia , nГЈo tem o menor ponto de contacto com a sisudez britannica : essa Г© uma seriedade de lenГ§o branco ; a nossa , Г© uma seriedade ... sem lenГ§o no pescoГ§o . O que n ' elles se encontra de aristocratico no porte sГі transparece aqui como predicado da burguezia enriquecida ; o que nelles vem de educaГ§ГЈo , entre nГіs nasce do dinheiro ; e se elles sГЈo sisudos por temperamento , nГіs apenas o somos por filaucia ! Os costumes sГЈo os symptomas do espirito e do caracter das naГ§Гµes : por isso teriamos o melindre de nГЈo falar dos nossos , se alguns nГЈo entrassem no dominio da caricatura . Como teremos occasiГЈo de observar em capitulos que hГЈo de vir , em Lisboa a populaГ§ГЈo acorda a uma certa hora , tira o barrete de dormir d' alli a uns certos minutos , ergue-se , almoГ§a , janta e toma chГЎ em periodos marcados e inalteraveis por qualquer circumstancia possivel . Mas quero que a principiemos a observar de vespera , e a contemplemos algumas horas antes de ir deitar-se . Se nГЈo arredondo o periodo dizendo : " deitar-se , e dormir " Г© porque desejo evitar os pleonasmos : para a populaГ§ГЈo lisbonense , deitar-se e dormir Г© um acto simultaneo : ella jГЎ dorme quando se deita ! Oh Lisboa ! para que havia de vir o gaz annunciar que a roda fatal do progresso vinha roubar-te parte dos encantos da tua insipidez ? Para que havia , oh Lisboa , enviar-te o destino esses inimigos da tua patriarchal nullidade que tomaram os nomes de " Caminho de Ferro " e de " Telegrapho Eletrico " e que debalde , talvez , se propГµe a engrandecer-te e illustrar-te ? ! Pois , dize , nГЈo fazias tu consistir a tua gloria na mediocridade do teu alcance commercial , e nГЈo cuidaste sempre que havia de durar per saecula saeculorum o reinado das cabelleiras , que condemnavam o talento , accusavam as invenГ§Гµes , execravam a actividade , e absolviam do cume da sua insufficiencia a terra que tinha paciencia para os soffrer ! ? Que ! Todas estas tentativas de progresso , que tendem a vencer o espaГ§o e o tempo , e a aproveitar os breves dias que o homem tem de passar sobre a terra , nГЈo escandalisam por ventura os teus brios de ociosa , nem despeitam a indole pachorrenta do teu caracter conservador ? Pois sim , que importa ! querem-te com resaibos parisienses , e tentam aformosear-te ГЎ estrangeira : tu Г©s boa de todo o modo ! boa ao dia de semana , e excellente ao domingo , quando calГ§as luvas , pГµes a historica casaca preta , e te dispГµes a ir passear serena e pausadamente , tendo em vistas aborreceres-te com gravidade ! Todavia , eu amo-te , Lisboa ! amo-te e a tudo quanto vem de ti ! e se n ' uma ou outra pagina d' este livro , alguma das tuas feiГ§Гµes se acha daguerreotypada folhetinisticamente , porque este livro apesar de ser um romance , Г© todavia um verdadeiro folhetim em 400 paginas , nem por isso me queiras mal . Aqui , o cГ©o Г© azul , o sol scintillante e esplendido , a natureza opulenta e magnifica , o clima consolador e sympathico ; mas os monumentos sГЈo acanhados e ridiculos pela maior parte , as artes desfallecem , as sciencias vegetam sem impulso nem auxilio , o talento rasga se entre as garras da miseria ! Aqui , Г© grande e magnifico o que Deus fez -- feio e ridiculo o que os homens fizeram ! E agora que a minha profissГЈo estГЎ feita , e eu livre jГЎ d' esse encargo de consciencia ( porque hoje nГЈo ha obra possivel sem uma profissГЈo de fГ© ! ) comecemos a ver Lisboa ГЎ medida que a acГ§ГЈo d' este romance folhetim caprichar em que mudemos de rumo . Estamos no Marrare . O Marrare Г© o primeiro caffГ© de Lisboa , apesar de ser o peior , o mais mal servido , o que tem bebidas menos gostosas , e commodidades mais insufficientes . O Marrare , Г© para Lisboa uma especie de monumento historico que ella supporta , porque o habito lh'o tornou necessario . Г‰ o rendez-vous dos janotas e dos jornalistas , dos parias e dos homens de pensamento : Г© um sitio onde nem todos tem direito de entrar , apesar de ser publico ! Adquire-se esse direito pelos seguintes titulos : Artigo 1В° Г‰ necessГЎrio para ser admittido a frequentador do Marrare ser um homem fora do commum . В§ unico . Consideram-se homens fora do commum os homens de talento , os janotas , os ociosos puros , e todos os exceptuados da sociedade constituida , que descobriram modo de gastar dinheiro sem ter dinheiro , ir ao theatro sem comprar bilhete , ter fato sem o pagar , andar de sege sem saber a conta . Estamos no Marrare . Quatro jornalistas commodamente agrupados em roda de uma das mezas d' aquelle eterno corredor , fumam , bebem cognac , e cavaqueam . SГЈo oito horas de uma noite de domingo gordo . -- Que fortuna suppГµe ao barГЈo de Sousa ? diz EstevГЈo de Mello a Guilherme da Cunha , o mais moГ§o dos quatro , neophito inexperiente , em vesperas ainda de fazer as suas estreias litterarias , e que julga o seu futuro tГЈo rico de vantagens , como o seu presente Г© de illusГµes . -- Duzentos contos , com certeza . -- Com certeza ! pondera Luiz de Lima , com um sorriso de compaixГЈo ironica ; tu ignoras ainda meu caro amigo que ninguem tem a fortuna que se lhe attribue : ou tem muito mais , ou muito menos ! AlГ©m de que , o teu barГЈo de Sousa Г© um Nababo de comedia , um tio que vem do Brazil , um lord de novella ingleza ! Eu conheci ha doze annos um homem pobre como eu : havia apenas uma differenГ§a , que era a d' elle parecer incapaz de vir a ser rico , porque nГЈo jogava , nГЈo entrava nas loterias , nГЈo trabalhava , e nГЈo sabia ganhar rasoavelmente um ceitil : pois bem , este homem que era nullo , insignificante , parvo e estupido , andou melhor do que qualquer de nГіs ; nГЈo se entreteve com a patria , nem tomou amГґres com a politica -- namГґrou . Mezes depois , encontrei-o casado com uma fortuna , segundo se dizia , de cincoenta contos -- n ' esse tempo , tu lembras-te EstevГЈo ? ainda toda a gente chamava uma fortuna a cincoenta contos . -- Este homem foi considerado como um ente valioso , e importante : deram-lhe um logar que elle teve a condescendencia de sollicitar , fizeram-no consul nГЈo sei para onde , para o MaranhГЈo se bem me lembro ; partiu , ganhou por lГЎ o mais que poude e voltou , ao cabo de cinco annos de economias e de grandes sopros de felicidade com trinta contos . Pergunta-se : -- em que gastou este homem o resto ? E sabe-se a final que elle apenas recebera o dote de novecentos mil rГ©is , disfarГ§ados em cincoenta contos ! -- Saibamos , acode JosГ© d'Athayde , -- noticiarista effectivo de jornal , um d' estes homens que tem espirito e nГЈo tem talento , mas que se dГЈo melhor com isso -- a tua namГґrada tem prendas de caracter ? Por outra , sabe fingir um deliquio , imitar um accidente , e fazer acreditar ao pae que estГЎ resolvida a deitar-se da janella abaixo ? -- EstГЎs fГіra da questГЈo , replica EstevГЈo de Mello , o pae Г© muito mais esperto do que nГіs todos , e se lhe desse para ser escriptor publico seria o rei dos folhetinistas . Г‰ um homem que tem visto o mundo ! -- N ' uma carta geographica ! redargue Luiz de Lima . NГЈo acredito na perspicacia dos homens que teem fama de espertos . Quasi sempre sГЈo tolos ! e , vice-versa dos parvos de reputaГ§ГЈo saem de ordinario homens velhacos e intelligentes ! -- Tu conheces o pae ? pergunta JosГ© de Athayde a Guilherme da Cunha . -- NГЈo . Nunca o encontrei no mundo , julgo atГ© que frequenta pouco a sociedade . Conhecem-no ? -- De nome , responde EstevГЈo . -- Tambem eu , diz Luiz . -- E eu tambem , diz JosГ© d'Athayde . N ' esta occasiГЈo entrou no Marrare um homem de cincoenta annos approximadamente , ainda elegante e apresentavel . Sentou-se a uma meza proxima ГЎ dos jornalistas , e pediu um refresco . A cavaqueaГ§ГЈo continuou . -- Elle mora a Santa Apolonia ? pergunta Lima . -- Exacto . Na casa grande ... -- Bem sei , diz EstevГЈo , uma casa famosa para aventuras de namГґrado , casa que parece edificada por Cupido com cal e areia temperada por Venus e amassada por Mercurio ! -- Deves pedir-lhe que te deixe admirar a lua atravez das parreiras da quinta . Percebes-me ? Em quanto limitares as entrevistas a gargarejar da rua para a janella nГЈo vejo probabilidade de conseguires senГЈo alguma angina-pectoris ! A quinta , meu amigo ! Desperta ГЎ namГґrada tendencias campestres ! Accorda- lhe n ' alma o gosto pela solidГЈo das noites ; dize-lhe que n ' um jardim o aroma das flГґres depois da meia noite vem casar-se ao perfume dos affectos , e formam um incenso de amГґr grandioso e divino ! A quinta , Г© a tua unica taboa de salvaГ§ГЈo ! -- Discuta-se o caracter e qualidades adventicias , grita EstevГЈo . Para sabermos se ella Г© romantica , basta conhecermos-lhe : como se chama ella ? -- Sophia , responde Guilherme . -- Nome de ingenia de algumas das eternas semsaborias sentimentaes que enriquecem o repertorio do nosso theatro normal ! diz o noticiarista . JГЎ se ve que a namГґrada tem queda para a lettra redonda . Leu de certo versos teus no album de alguma visinha . Todas as Sophias sГЈo litteratas , desde a de Mirabeau atГ© ГЎ tua heroina de Santa Apolonia ! O homem que se sentara ГЎ meza proxima ГЎ dos jornalistas levanta se e sae . -- Г‰ um caso singular ! diz Guilherme da Cunha , a physionomia d' este homem que vae saindo parece-se immenso com a da minha namГґrada . -- No branco dos olhos ! diz JosГ© de Athayde . Neste momento ouviu-se um grande alvoroto de musica e algasarra . Ia passando uma danГ§a de carnaval . Sentiu se depois o prolongado rodar dos trens , e o motim da festa popular . O Marrare comeГ§ava a estar deserto , o que sempre lhe succede nas noites de entrudo . -- Que faremos esta npite ? pergunta EstevГЈo , pousando na meza a garrafa exhausta jГЎ de recursos . Vamos ao theatro ? -- Tenho um rendez-vous na Floresta , acode JosГ© de Athayde n ' um tom de homem conquistador e importante . -- Com aquella comparsa do theatro hespanhol , diz EstevГЈo rindo , a quem tu prometteste uma menГ§ГЈo honrosa no teu primeiro noticiario , dez linhas laudatorias a troco de uma entrevista ? -- NГЈo ! diz JosГ© d'Athayde de mГЈo na ilharga , nГЈo se trata de uma comparsa , nem de uma duqueza : Г© um rendez-vous de maior gravidade e mysterio . -- Has de dizer-nos quem Г© , acode Luiz de Lima . -- Paga primeiro o cognac , depois saberГЎs tudo . -- Rapaz ! grita o medico . Esta garrafa de cognac ; dois pintos , guarda o resto . Depois , voltando-se para Athayde : -- Estou esperando ! -- Tenho um rendez-vous na Floresta , diz o noticiarista em tom mysterioso , ГЎs onze horas em ponto ; ГЎ entrada da sala de crystal ... com o meu agiota ! -- Estou roubado ! diz Luiz de Lima , cuja balda era saber todos os cancans da vida alheia , e que jГЎ contava com um escandalo ! Emfim vamos para a Floresta ! -- Para a Floresta ! disseram todos . Na Floresta Egypcia Para os que nГЈo assistiram ГЎs festas do Tivoli , a Floresta Egypcia Г© o melhor divertimento de verГЈo que Lisboa tem possuido ; nГЈo sГі a sociedade que o frequenta Г© de ordinario escolhida e da melhor esphera , mas tudo parece reunir-se para que sejam agradaveis as noites passadas n ' aquelle grande jardim illuminado a giorno , abundante em jogos , enriquecido pela jГЎ historica montanha egypcia , especie de caminhos de ferro mais vagarosos talvez , mas que sairam mais baratos ao povo . Pelo carnaval as salas de baile preparadas ad hoc recebem uma quantidade infinita de mascaras e de visitadores . SГЈo ao todo nove salas , a maior parte d' ellas pequenas , onde n ' essas noites Г© quasi impossivel transitar , quanto mais dar rendez-vous a alguem . Os rendez-vous de ordinario teem logar nas salas do rez-de-chaussГ©e , n ' algum dos gabinetes do botequim , ou no salГЈo terreo , que precede a sala de crystal , que nГЈo Г© mais nem menos do que um predio de vidro , que serve de theatro , de sala , de tudo que se precise ! Quando os jornalistas e o doutor||_Luiz_de_Lima Luiz|_Luiz_de_Lima de|_Luiz_de_Lima Lima|_Luiz_de_Lima chegaram ГЎ Floresta , o relogio da entrada marcava dez horas . A concorrencia era immensa e quando algum mascara entrava , dirigia-se em linha recta ГЎ sala de crystal e cedia d' aquelle prologo de intriga que costuma ter logar no corredor da entrada , e que constitue , a meu ver , a menos incommoda face d' essa grande medalha de semsaborias . Mas na chamada sala do tanque agrupava-se uma reuniГЈo de elegantes , e entretinha a conversaГ§ГЈo um dominГі preto que pela pequenez da mГЈo encadernada n ' uma irreprehensivel luva paille , e pela graciosidade do pГ© que desvanecia a reminiscencia de Cendrillon , dava toda a probabilidade a quem quizesse apostar que era uma mulher . Os janotas deixavam-se intrigar com a melhor vontade porque -- oh ! maravilha dos tempos modernos ! -- o dominГі tinha espirito ! -- Mas quem Г©s ? ! exclamava um dos que constituiam o grupo . Pelo tamanho do pГ© , ia jurar que te conheГ§o ! -- Trago as chinelas de Rhodope , meninos ! A linda esposa de PharaГі estava a tomar um banho no Nilo , mas esqueceu-lhe o seu fato na praia . Succedeu passar uma aguia , roubar os seus sapatos , reerguer-se aos ares com elles , e passando depois pelas alturas de Lisboa deixal- os cair a meus pГ©s ; calcei-os e vim para a Floresta ! Os jornalistas e o medico entraram neste momento e augmentaram o grupo dos intrigados . -- O teu logar nГЈo Г© aqui , Luiz de Lima ! disse o dominГі dirigindo se ao medico . Leviano ! JГЎ por tua causa uma linda mulher se suicidou , e foste embotar as tuas recordaГ§Гµes d' amГґr , decorando livros de medicina na Universidade ! Curaste uma paixГЈo d' alma com um curso de cirurgia ! Es capaz de receitar duas onГ§as de Gall , meia oitava de Broussais , como remedio infallivel para dissecar o coraГ§ГЈo ! -- Desconfio que este mascara Г© algum boticario illustre ! disse o doutor , com um breve sorriso . -- E era uma interessante mulher , essa de quem lhes falo continuou o dominГі . De dezeseis annos casou , e de dezeseis annos morreu ! Devorou a aquella febre de impotencia que acompanha os amГґres fataes ; fanou-se como flГґr de pouca dura : atravessou a Zona Torrida do amГґr , e avistou seu marido no pollo contrario ! Depois , creanГ§a imprudente , por ti , que a tinhas perdido , por ti quiz morrer ! Luiz de Lima , n ' um impeto de cholera agarrou o mascara por um dos braГ§os , conduziu-o para junto de uma columna , e disse-lhe em voz alterada pela inquietaГ§ГЈo e pela anciedade : -- Dirme- has quem Г©s , ou seguir te-hei toda a noute , e nГЈo conseguirГЎs sair sem que na rua te reconheГ§a ! O dominГі , ergueu os hombros em signal de desdem ; depois , descalГ§ando uma luva e estendendo para os labios de Luiz de Lima a mais linda , a mais branca mГЈo de que uma mulher possa ser vaidosa , encostou um annel aos labios palidos e frios do medico . O doutor fez reparo no annel , examinou bem a figura do mascara , depois retorquiu com um d' estes sorrisos amarellos que sГЈo vulgares nos bailes mascaras . -- JГЎ tinha toda a probabilidade de ter adivinhado quem era . Mas aqui ! Na Floresta ! ? Todavia , a graГ§a desses pГ©s de fada nГЈo se confunde . JГЎ tomou chГЎ ? -- Prometti ir cear com a Annica , respondeu o dominГі . Mas sГЈo ainda agora onze horas , creio eu , e ella volta de S. Carlos ГЎ meia noute exacta . Temos uma hora para conversarmos , se Г© que tambem deseja ter uma explicaГ§ГЈo commigo . O medico deu o braГ§o ao dominГі , e atravessaram a sala do tanque em direcГ§ГЈo ao atrio da entrada . -- Cuidado ! NГЈo seja o meu agiota que se disfarГ§asse para saber em que opiniГЈo o consideramos ! disse JosГ© d'Athayde . Nesta occasiГЈo bateram lhe no hombro . O noticiarista voltou-se , e deu com o seu homem . -- Faltou ГЎ hora , disse o agiota , consultando o relogio , e contando minuto por minuto ; no meu jГЎ passam ... dez e cinco quinze , e dois dezesete ... jГЎ passam dezesete minutos das dez e meia ! -- Meu caro amigo , disse JosГ© d'Athayde , estava pensando agora mesmo na sua sympathica pessoa ! Venha tomar um grog . -- Dispenso , disse o agiota . -- EntГЈo venha tomar dois grogs ? Tambem nГЈo ! Nesse caso venha o seu braГ§o a todos os respeitos illustre , e vamos conversar ao ar livre . O agiota e o noticiarista foram de braГ§o dado tambem na mesma direcГ§ГЈo do medico e do dominГі , passear e conversar para o atrio como elles . Demoremo-nos um instante para pГґr o leitor ao facto de quem sГЈo os personagens com quem agora o estamos occupando . Luiz de Lima , jГЎ o leitor conhece do primeiro capitulo . Г‰ um homem de trinta annos alto , elegante , rosto intelligente e agradavel expressГЈo e attitude sempre doutoraes . Dizia-se no mundo que a marqueza de Villar o distinguia . Entretanto elle era o primeiro a desvanecer tal boato quando alguem lhe suscitava conversaГ§ГЈo sobre o assumpto . Mas os rouГ©s da nossa sociedade asseguravam que o medico era um fino espertalhГЈo capaz em questГµes de mulheres , de levar o bolo ГЎ gloria ! Havia um motivo para que se pensasse assim . Tenho observado que as mulheres de ordinario entregam-se por curiosidade ou por amГґr ; mas muito mais a miudo por curiosidade . Ora , Luiz de Lima fizera aos vinte annos as suas entradas no mundo e debutara por apaixonar uma das mais formosas senhoras da nossa sociedade , que achando-se preza entre o dever e o amГґr , porque infelizmente era casada , teve o sublime instincto de respeitar a sua propria dignidade ; mais tarde , victima do amГґr , succumbiu ГЎ lucta e preferiu envenenar-se . Deixou-se morrer ao som de uma walsa , e quando a palidez da morte lhe desbotou as faces ella disse a todos que era devido ao canГ§asso o suor mortalmente frio que lhe innundava o rosto ! Luiz de Lima foi o assumpto de mexericos de baile e de espectaculos . As damas assestavam o oculo para o examinarem , perguntavam umas ГЎs outras se jГЎ haviam falado com elle , se jГЎ o tinham visto danГ§ar , se jГЎ o haviam amado emfim ! Porque o amaria ella tanto ? Era a pergunta constante do sexo amavel . Que tem elle de mais que os outros para que ella se envenenasse por causa d' elle ? ! diziam comsigo mesmo as Pompadours d' esta terra e d' esta epocha , desejosas de o conhecerem de perto . O medico era um homem de mundo a este tempo . Comprehendeu o alcance prodigioso da sua situaГ§ГЈo . Tratava-se de escolher ! Todas essas mulheres que haviam desdenhado d' elle , agora que causara a morte de uma pobre apaixonada , viam n ' elle um homem de moda , e era a qual d' ellas o possuiria primeiro . Luiz de Lima jГЎ nГЈo estava na idade dos devaneios . Espirito meditador e calculista , viu na sua situaГ§ГЈo uma estrada para um futuro , e lanГ§ando a vista sobre as mais distinctas mulheres da sociedade lisbonense , elle disse no meio de um baile : -- SerГЎ a marqueza de Villar ! N ' estes ultimos tempos Portugal tem visto erguerem-se e cairem por si proprios tantos partidos politicos em que se defende homens em vez de causas , que ГЎ historia contemporanea nГЈo serГЎ facil de certo mencionar bem todos elles . O marquez de Villar era um exemplo do que avanГ§amos . Influencia de um dia , gloria de momento , fortuna de occasiГЈo , luz de perilampo , tudo em fim que de uma idГ©a da pouca duraГ§ГЈo do seu poder , mas durante esse pouco tempo o marquez de Villar , foi um homem importante . Ora , felizmente para Luiz de Lima estava-se n ' esse tempo , isto Г© o marquez de Villar segundo a phrase de JosГ© d'Athayde , era trunfo ! O medico sabia a fundo que nГЈo ha protecГ§ГЈo que valha a de uma mulher que nos ame e esteja bem situada . Ambicioso e calculista , vio na marqueza um instrumento para derribar as dificuldades do seu futuro . Incapaz jГЎ de amar elle disse comsigo -- " A ter que representar , seja com uma actriz que me de honra ! " IdГ©a de cГіmico , que julga engrandecer-se por estar em scena com algum talento festejado ! A marqueza , effectivamente , era uma das curiosas de conhecer o medico . Foi assalto sem perigo . Ao fim do quarto baile em que se juntaram julgou-se atГ© inutil arrear bandeiras em signal de ir entregar-se a praГ§a . Mas souberam ambos depois manter no mundo um tГЈo perfeito disfarce que chegaram a illudir os litteratos , gente indagadora dos cancans de sociedade , e que saborea um escandalo com melhor vontade do que um livro de Herculano . Apenas alguma fidalga velha , das que se sentam ao canto das sallas , e cerram os olhos como quem cae de somno em quanto tem a habilidade de nГЈo perder de vista o mais breve movimento de algumas das cem pessoas que estacionam deante d' ellas , apenas alguma d' essas , dizemos , affirmava que a marqueza durante uma noite inteira nГЈo dirigira a palavra a Luiz de Lima , apesar de estar palestrando alegremente com tres ou quatro homens , amigos intimos do medico , e que se achavam ao lado d' elle . Excluir da honra de lhe dirigir a palavra um unico homem que estГЎ e se deixa ficar toda a noite n ' um grupo de mais tres com quem uma mulher conversa continuamente , prova ou nГЈo prova que o disfarce vae longe de mais , e que elles falam tanto a sГіs que combinaram nГЈo se dirigirem a palavra diante de gente ? FaГ§a-se justiГ§a ГЎs fidalgas velhas ! Para este genero de coisas nГЈo ha cartilha como a d' ellas ! A intimidade da marqueza com Luiz de Lima durava havia jГЎ dois annos . Era mais vehemente cada dia o interesse que ella tomava pelo medico ; mas era singular e melindrosa a situaГ§ГЈo em que n ' essa occasiГЈo se encontrava . Expliquemo-nos . Dotada de um temperamento facil a affectos , a marqueza amГЎra dois homens depois de casada . Victor Marrocos , e Luiz de Lima ; o primeiro ha de o leitor ficar sabendo quem Г© , depois de ler um dialogo que n ' este mesmo capitulo se encontra ; o segundo Г© o medico jГЎ conhecido por quem estГЎ lendo esta obra . CasГЎra por imprudencia e leviandade de creanГ§a , casГЎra aos quinze annos , e agora que jГЎ contava vinte e nove , a marqueza chorava com lagrimas de sangue as leviandades da sua infancia , que para sempre por um capricho pueril a haviam encadeiado a um estado social para ella insupportavel , agora mais do que nunca ! Aos vinte annos , prendera-se d' amГґr a Victor Marrocos : enfeitiГ§ara-a a errante existencia d' esse revolucionario moderno , que por um momento se dignou fazer-lhe a cГґrte , acceitar os favores da sua intimidade , para depois e de repente desapparecer de Lisboa . Voltou de novo , quando a revoluГ§ГЈo de 1846 serenou ; appareceu coberto do pГі da batalha , no meio de uma soirГ©e do marquez de Villar , e explicou no intervallo de uma polka a uma contradanГ§a , a siuaГ§ГЈo politica de Portugal ao marquez que morria por ouvil- o falar , ГЎ marqueza que ficou meia morta de alegria ao vel- o , e ГЎ sociedade que prestou ao homem politico uma attenГ§ГЈo misturada de interesse que o obrigou no fim a dizer -- " Os acontecimentos de Torres Vedras , ainda assim , nГЈo devem ser tidos em tal importancia que por causa d' elles se altere a ordem das redowa e das shotish ! A marqueza encontrou-se de novo no seu paraiso de felicidade , mas conheceu mais tarde com que homem lidava ; viu que elle a sacrificava ГЎ politica , essa amante perigosa e deslumbrante dos homens publicos , e ponderou entГЈo que sГі fora amada por devaneio , por passatempo , por capricho , e que o coraГ§ГЈo do seu amante sГі era perceptivel de palpitar toda a vida pela gloria , rival invencivel aos olhos d' essa mulher fraca , que nГЈo se lembrou que a ambiГ§ГЈo quebra-se entre os dedos frageis do amГґr , e que ella podia ainda vencer e apaixonar aquelle pretendido grande homem ! A pouco e pouco desvaneceu-se entre elles atГ© a mais leve sombra d' amГґr , ou mesmo de reminiscencia do passado . Constituiu-se entre ambos uma intimidade sincera e despreocupada de idГ©as amГґrosas . Falavam em politica , em theatros , em toilettes , a sГіs , como poderiam fazel- o diante de gente por alguma combinaГ§ГЈo especial . Era como se nada houvesse existido entre elles , e se o passado fosse um sonho apenas de que nem ao acordar durassem ainda bem vivas as lembranГ§as ! A alma da marqueza soffreu entГЈo , ao atravessar as crueis desillusГµes de um primeiro amГґr . As mulheres romanticas desenvolvem nessas occasiГµes todo o seu espirito , e sabem tirar-se com vantagem e prestigio d' estas situaГ§Гµes delicadas : Sapho trahida pelo seu amante , resolve-se a atirar comsigo do alto do monte Leucate : a marqueza , n ' uma situaГ§ГЈo nГЈo menos triste hesita perante a idГ©a do suicidio como immoral , e prefere escolher outro amante e esquecer o antecedente ! O amante escolhido foi Luiz de Lima , que , como Г© fГЎcil perceber , representava mais do que um homem -- representava a vinganГ§a ! a marqueza quiz poder de novo apparecer de fronte alta , e hoje Г© maxima corrente que nГЈo se pode passar sem leque e sem amante ! Mas ao marquez de Villar , nada lhe passava sequer pela idГ©a de tudo que acabamos de mencionar . Julgava bem sua mulher , ou para melhor dizer , nГЈo a julgava bem nem mal , porque nГЈo perdia tempo a meditar na virtude da marqueza . Por isso reinГЎra sempre entre os dois amantes o maior disfarce no mundo , e a melhor harmonia quando se encontravam a sГіs . O medico via na marqueza um amГґr Гєtil , a marqueza via em Luiz de Lima , o seu ultimo amante , e por isso esmerava-se em prendel- o e enleal- o . Ora . nГЈo sei porque excentrica casualidade , observa se que na sociedade lisbonense as senhoras casadas que tem um amante escolhem sempre para esse cargo honorario um homem tambem casado . Г‰ talvez para por este modo promover ainda mais o systema das infidelidades conjugaes ; ou entГЈo , serГЎ para que o mundo nГЈo observe tГЈo facilmente nem tГЈo facilmente desconfie : ou serГЎ finalmente uma vinganГ§a de rivalidade da parte de metade , do sexo amavel para com a outra metade firmando-se em nГЈo haver mandamento que prescreva -- NГЈo desejarГЎs o marido do teu proximo ! Certo Г‰ que a marqueza nГЈo queria prescindir do luxo da situaГ§ГЈo , e via com desgosto que Luiz de Lima nГЈo fГґra abenГ§oado pela igreja ligando-se para sempre a uma mulher a quem depois atraiГ§oasse . -- Sabe o que hoje aqui me trouxe , Luiz ? disse-lhe a marqueza , dando-lhe o braГ§o , e deixando-se conduzir , como dissemos , atГ© ao atrio de entrada . Quiz convencer-me de que nГЈo era por doenГ§a que o meu querido Luiz me nГЈo apparece ha cinco dias quando eu na minha carta lhe pedia para sГі nГЈo apparecer agora tanto a miudo , porque o marquez notou que o doutor ha mais de dois mezes que nГЈo joga , sem todavia deixar uma sГі noite de visitar-nos ! Para que foi mais longe das minhas prescripГ§oes ? ! NГЈo adivinhava que eu nГЈo resistiria ГЎ saudade de o ver ? ! -- NГЈo me argua sem me ouvir primeiro , marqueza ! cuida por ventura que ignoro o que se tem passado ? Sei bem que a carta que me dirigiu sob pretexto de que o marquez desconfiava ou sabia tudo talvez , foi escripta dez minutos depois de Victor Marrocos desembarcar em Lisboa e enviar a criado a dar parte ГЎ marqueza do seu regresso ! -- Victor Marrocos , bem o deve saber , Luiz , Г© amigo do marquez e antiga visita de nossa casa . No dia em que elle deixasse de visitar-nos faltar-nos hia o mais espirituoso dos convivas das nossas ligeiras funcГ§oes . Bem o conhece : nГЈo Г© exagero dizer que elle tem sido o homem de mais fina graГ§a e da mais elegante originalidade que pode crer-se . Arrebatado Г s vezes , e parecendo atГ© descГґrtez mas sempre d' uma excentricidade sympathica mesmo quando Г© um pouco petulante . -- Ai ! marqueza , nГЈo queira saber o que o mundo diz d' esse homem que tanto vale a seus olhos , e que toda a gente considera como um especulador politico , que , depois de haver feito epocha , sacrificou a energia das suas convicГ§Гµes aos interesses de um contracto , e tornou-se de repente conservador e ordeiro ! Isto Г© , pelo que lhe diz respeito como homem publico . Quer saber agora o que se entende d' elle como homem particular ? um caracter falso e desigual : tГЈo susceptivel de um bom rasgo de generosidade de alma , como de um grande attentado ou de uma grande vilania . Isto nasce de um grande defeito do seu genio : elle nГЈo tem estima por si proprio ! Vaidoso , mas a um ponto que sacrifica tudo ГЎ vaidade , este homem , incapaz de amar alguem , illude as amantes illudindo-se Г s vezes a si proprio , quando lenta persuadir-se de que gosta d' ellas por ellas e nГЈo por si ! Victor Marrocos , marqueza , Г© uma alma gasta e esteril como EstevГЈo de Mello , como Antonio Roma , como mil filhos d' este seculo , sem crenГ§as e sem temores ! Elle sГі poderГЎ ainda inflammar-se para satisfazer um capricho da sua presumpГ§ГЈo sem limites , ou entГЈo pelo que lhe deslumbrar os sentidos . Nunca estimou aquella lady que lhe acceitou a cГґrte senГЈo pelo facto de ser bem feita e ter o pГ© pequeno ! -- Attenda . Quero desvanecer-lhe esse conceito em que o tem : depois mudaremos de conversa . Vae adiantada a noute , e tenho bem que lhe dizer ! Isso de que o accusa nasce mais de uma fervorosa paixГЈo pela arte , por tudo que Г© bello e perfeito , por tudo que realise o ideal do poeta e do artista , do que da ausencia de instinctos elevados e grandiosos . Victor Marrocos Г© um homem gasto nas luctas da vida politica , e que de ha muito perdeu todas as illusГµes que despertam o enthusiasmo ГЎ simples idГ©a da perfeiГ§ГЈo moral . Г‰ um homem que conhece a vida , e que tem visto o mundo . Admira uma mulher formosa , como aprecia um bonito trecho musical . Para elle a mulher e a musica servem-lhe apenas aos sentidos , me dirГЎ : Г© possГvel ; mas ha ao menos n ' este homem uma grande qualidade a respeitar , Г© o talento . NГЈo Г© a esperteza vulgar dos nossos homens publicos , nem a incommoda pretenГ§ГЈo a ter espirito ; Г© mesmo mais do que talento , Г© o genio . Victor Marrocos tem tomado parte activa e muitas vezes a parte principal nas revoluГ§Гµes modernas do paiz . Soldado da liberdade , combateu pela emancipaГ§ГЈo da sua terra ... -- Em quanto esperou que a sua terra lh'o pagasse . Mas quando os destinos de tribuno o seduziram mais do que os de emigrado , poz de parte as suas crenГ§as e abraГ§ou a causa dos seus interesses defendendo o que atГ© entГЈo accusГЎra ! -- Pois seja assim ! dir-se-hia que tenho interesse em defendel- o , se a tua perspicacia nГЈo conhecesse n ' isto mesmo uma prova de que estou innocente : aliГЎs seria eu a primeira a condemnar-me pelo proprio ardor das minhas palavras ? Pobre louquinho ! e queres fazer-me acreditar que estГЎs convencido de que te sacrifiquei a outro , e que pude desejar que interrompesses a assiduidade das tuas visitas , em honra de um preferido ! Que merecias ? ! Isto foi dito n ' aquelle tom de amuo galante que dГЎ mais graГ§a ainda ГЎs mulheres quando ellas nГЈo passam jГЎ dos trinta annos , e que as pregas dadas ao rosto durante o ligeiro espaГ§o de um assombrear de phisionomia se nГЈo podem confundir ainda com as que o tempo marca com o seu sello indelevel . O medico gostou d' aquella estrategia feminil , disfarГ§ada habilmente em pieguice amГґrosa . Gostou de se ver encartado em tyranno , em despota , em sultГЈo absoluto no imperio alheio do coraГ§ГЈo do coraГ§ГЈo da marqueza . Todos nГіs , homens , gostamos de que se nos faГ§a sentir a nossa superioridade e que a cabeГ§a que constitue o alvo das nossas adoraГ§Гµes , se curve submissa , escrava , sendo rainha . VariaГ§Гµes infinitas sobre o eterno thema da vaidade -- Amas-me entГЈo como d' antes ? perguntou Luiz de Lima , perscrutando atravez da mascara do dominГі que expressГЈo annunciava o olhar da marqueza . -- Amo-te como sempre ... Isto Г© , parece-me que nГЈo digo bem , nem avanГ§o a verdade inteira ... -- Como ? ! interrompeu o medico . -- Estou persuadida de que te amo agora ... um pouco mais ainda ! N ' esta occasiГЈo passaram hombro a hombro com JosГ© de Athayde , que tГЈo embebido estava na sua conversa com o agiota que nГЈo deu por elles . O noticiarista dizia n ' essa occasiГЈo : -- A mais de dez por cento , Г© o mesmo que dizer-me que deseja ver-me entalado ! O medico ponderou comsigo mesmo : -- Ambos nГіs estamos negociando ! ... A marqueza foi guiando Luiz atГ© ao portГЈo de ferro da entrada para a quinta onde a claridade era tГЈo fraca que poude tirar por um momento a mascara , sem susto de que podessem conhecel-a . -- Ouve , disse ella . D ' ora em diante irГЎs apenas passar a noite a nossa casa ГЎs quintas feiras e aos sabbados : em compensaГ§ГЈo ver-nos hemos ГЎs segundas-feiras e ГЎs sextas em casa da minha modista . A ' manhГЈ principiarГЎ a ser assim . Da uma hora da tarde ГЎs tres estarei livre : antecipa a hora para que nГЈo chegues depois de estar ГЎ porta o meu trem . Tenho mil coisas que dizer-te , e a mais insignificante d' ellas seria de sobra para provar o amГґr de uma outra mulher ! Em quanto eu cuidava de melhorar a tua posiГ§ГЈo e preparar o teu tuturo , entregavas-te ГЎ idГ©a de jГЎ nГЈo seres amado ! vejam se nГЈo Г© sina nossa , infelizes mulheres , sermos sempre mal julgadas ! -- Perdoas-me ! ? perguntou o medico , adoГ§ando a voz e preparando um olhar mavioso . -- Merecias que te perdoasse e te esquecesse , mas prefiro nГЈo te perdoar e castigar-te amando-te sempre ! -- Adoravel ! exclamou Luiz de Lima , que principiava a tomar a scena como uma intriga de baile de mascaras . Que queres entГЈo dizer-me de tanto valor , anjo meu ? -- Г‰ o meu segredo , replicou a marqueza pondo de novo a mascara . SГі te pergunto uma coisa -- se eu quizesse ver-te rico e feliz e sacrificasse atГ© Гѓ minha tranquillidade para que o conseguisses a troco embora dos meus ciumes , acreditarias entГЈo que te adoro ? -- Minha querida Thomazia , nГЈo sei entender-te ! ... -- SaberГЎs tudo amanhГЈ . NГЈo Г© promessa de dominГі ! EstГЎ dando meia noite e tenho que partir . Adeos ! Escuso lembrar-te o que disse : ГЎ uma hora da tarde ! -- Beijo-te as mГЈos ! -- NГЈo me acompanhes . Durava ainda o aperto de mГЈo da despedida quando quatro homens que acabavam de entrar se approximaram dos dois amantes : o dominГі soltou um ligeiro grito , e apertou com ancia o braГ§o de Luiz de Lima . O medico tomou uma expressГЈo inquieta , e vendo que os quatro homens se dirigiam para o seu lado apressou-se a evitar suspeitas , sendo o primeiro a cumprimental-os . -- Sr. marquez , disse elle , dirigindo a palavra a um d' elles que nГЈo tirava os olhos do dominГі , V. Ex.ВЄ tem bastantes fortunas amГґrosas todo o anno , para que nГЈo precise disputar-me a unica quadra das minhas conquistas e galanteios -- o carnaval ! -- NГЈo me atrevo a entrar na lucta , meu caro doutor ! Demais a mais tenho a noite presa . Deixemol- o em paz com essa interessante incognita ! mas sempre deve consentir que lhe diga que se Г© intriga d' esta noite , esse mascara sae por forГ§a alguma victima da clausura conjugal , que escapou ГЎs garras de um marido feroz para vir respirar a athmosphera encantada dos bailes de mascaras . -- Imbecil ! disse o dominГі entre dentes e escapando do circulo sem ser vista . A indiscripГ§ГЈo ha de ser sempre a sua unica qualidade ! Era o marquez de Villar , que dirigira a palavra , sem o saber , a sua mulher = escapada ГЎs garras de um marido feroz = segundo a sua previdente idГ©a ! Uma ceia de domingo gordo Nas tres noites de carnaval Lisboa parece illuminar-se do reflexo pallido dos petits soupers da Regencia , e prescrever do Codigo Civil que o cidadГЈo ceie em sua casa . Г‰ caso entendido que o Matta , a Horta Secca , a Pomba de Ouro , e o JosГ© Manuel , sГЈo no domingo gordo e na terГ§a feira , sobretudo , o bem parado da populaГ§ГЈo escolhida , que vae depois do theatro ou do baile de mascaras bras-dessus bras- dessous com alguma amantesinha de aspiraГ§Гµes nГЈo ruinosas , cear n ' um agradavel e doce tГЄte-Г -tГЄte acompanhado de dois ou tres pares que procuram igual destino . Reune-se tudo , faz-se um rancho ; e en-avant-quatre sem receio nem escrupulo , porque para este genero de divertimentos onde ha quatro , seis , ou oito , comtanto que seja aos pares , Г© sempre o mesmo que estarem sГі dois , e ninguem faz ceremonia com o visinho ! O marquez de Viilar em companhia do barГЈo de Sousa e de duas danГ§arinas do theatro de S. Carlos , convidou Victor Marrocos e Luiz de Lima para cear depois de sairem da Floresta . Uma das danГ§arinas era , em phrase de bastidores , entretida pelo barГЈo , que adorava n ' esta rapariga uma grande robustez de fГіrmas pouco em harmonia com a arte da danГ§a , mas excellente para a arte do amГґr . Ritinha , que assim se chamava , era um contraste completo com a sua companheira Bemvinda . Esta , magrita e pallida , porque tinha a balda de se apaixonar pelos primeiros tenores : aquella anafada e vermelha , porque tinha o bom gosto de nГЈo se apaixonar por ninguem . O barГЈo sabia com quem lidava : nГЈo o levavam por simples ! mas apesar de ter a consciencia de que o aturavam pelo seu dinheiro , elle conservava a Ritinha como que por habito e considerava-a um objecto de luxo , que lhe agradava por ser bonito . Do barГЈo de Sousa hade fazer-se o retrato demoradamente no seguinte capitulo . Em quanto ao marquez de Villar , era um homem de cincoenta annos , quasi da idade do barГЈo . Amigos de ha muito , tinham acabado por se parecerem um com o outro , vestirem do mesmo modo , falarem no mesmo sentido , e constiparem-se ao mesmo tempo . Isto succede quasi sempre ou aos casados de muito tempo , ou ГЎs pessoas que se dГЈo muito , tornando-se inseparaveis no mundo , e promovendo a tal ponto as idГ©as associadas , que Г© impossivel alguem lembrar-se de um sem se lembrar do outro , falar de um sГі d' elles , nГЈo os conhecer ambos , nГЈo os convidar a ambos , nГЈo os tomar emfim por um sГі homem . Pois que ! ? estranham ! Acaso nГЈo tem ainda encontrado no mundo exemplos frequentes do que estou contando ? ! NГЈo conhecem dois homens que ГЎ forГ§a de falarem sempre um com o outro , tomam o mesmo ar , as mesmas maneiras , e atГ© as mesmas maneiras , e atГ© as mesmas idГ©as de um sГі ? ! Se um gosta da Alboni mais do que da Castellan , sГЈo ambos Albonistas : se o outro diz que a forma das botas de Stelpjlug Г© desairosa , dirГЈo ambos que Stelpflug dГЎ ГЎs botas uma fГіrma desairosa A historia de um Г© a historia de ambos . Acordam ГЎ mesma hora , lavam-se dez minutos depois com sabonetes comprados na mesma loja , e em agua do mesmo chafariz ! Saem na mesma direcГ§ГЈo , dizem as mesmas palavras , contam as mesmas anecdotas , dizem mal das mesmas pessoas , e quando um d' elles sente esfriar o tempo vГЈo ambos a casa vestir o paletot ! Era pouco mais ou menos assim tudo que se dava entre o marquez e o barГЈo . O marquez quando tinha que documentar uma phrase , certificar uma idГ©a ou apresentar uma opiniГЈo , citava por forГ§a o barГЈo . Do mesmo modo o barГЈo na mais insignificante conversa citava sete vezes o marquez . Ha na sociedade lisbonense pessoas que conseguem por este modo grangear creditos uma ГЎ outra : " A propГіsito de sciencia , diz ThomГ© , lhes-hei que ainda nГЈo encontrei na minha vida nem mais poderoso engenho , nem maior quantidade de dados scientificos , nem mais portentosa reminiscencia do que a de Thomaz ! " JГЎ que falГўmos de sciencia , diz Thomaz , aproveito a occasiГЈo para os advertir de uma circumstancia que talvez nГЈo ponderassem ainda : observaram jГЎ a reminiscencia portentosa , a enorme quantidade de dados scientificos , e o poderoso engenho de ThomГ© ? ! " Assim eram o marquez e o barГЈo , verdadeiros Thomaz e ThomГ© da anecdota . Se haviam comeГ§ado por ser agradaveis um ao outro , terminaram por se considerarem mutuamente indispensaveis ; qualquer d' elles era para o outro o typo do alter ego . Deve todavia fazer sentir-se uma circumstancia : por mais amigos que sejam dois homens , ha sempre um que obedece ao outro por indole , por habito , ou por necessidade . A situaГ§ГЈo do marquez e a protecГ§ГЈo que sempre dera ao seu caro Antonio Cypriano , que eram estes os dois primeiros nomes do barГЈo , haviam-lhe dado o direito de ser elle o Dom Quixote d' aquelle Sancho PanГ§a , a alma d' aquelle corpo , o recheio d' aquelle empadГЈo ! O marquez de Villar , conforme o leitor jГЎ viu do que se disse no capitulo antecedente , era chefe de um partido politico ; Antonio Cypriano de Lemos era , em consequencia da fortuna que possuia , um dos mais importantes sectarios da politica do marquez . O que o marquez nГЈo alcanГ§ava por engenho , o barГЈo conseguia o por dinheiro JГЎ d' isto se vГЄ de que importancia era para o partido este Antonio Cypriano de quem os Villaristas diziam -- " Г© uma das melhores cabeГ§as do nosso partido ! " -- querendo dizer de certo que era uma das melhores " bolsas . " Sem alcance de idГ©as politicas , elle limitava-se em nГЈo acreditar senГЈo no marquez e nem se dava ao incommodo de tentar comprehendel- o . Quando se segue a politica de um homem e se partilha em tudo os altos juizos d' esse homem , a politica torna-se questГЈo de compadres , e a causa Г© sempre antipathica ; por isso ГЎ medida que o Villar e o seu partido iam caindo , Antonio Cypriano ferido no seu amГґr proprio mais se resolvia a empregar todos os meios monetarios unicos de que podia dispor para o triumpho das suas idГ©as , tentando ainda sustentar uma causa perdida no animo publico . O marquez apresentou-lhe por essa occasiГЈo Luiz de Lima , a quem o barГЈo , que raras vezes frequentava o mundo , nГЈo conhecia senГЈo de nome . Em quanto a Victor Marrocos , esse conhecia o elle como um diabolico revolucionario prompto sempre a orar ГЎs massas no furor das crises do parlamento , e a jogar epigrammas no remanso das tavaqueaГ§Гµes domesticas . Nem se estimavavam nem se aborreciam ; e apesar de se conhecerem havia annos , era talvez a segunda vez que se encontravam reunidos . Desconfiado por indole , o barГЈo nГЈo o olhava com bons olhos , porque via n ' elle um antigo inimigo politico , que sГі nos ultimos tempos se chegГЎra ao gremio dos villaristas , por especulaГ§ГЈo . Depois do quinto copo de Porto , a conversaГ§ГЈo occupou-se , como Г© de uso nas ceias , das mulheres em geral , e de algumas em particular O barГЈo de Sousa era homem que saboreava uma boa anecdota . As historietas crusaram-se . Os convivas tГЈo depressa tratavam de uma duqueza , como de uma comparsa . EsboГ§ou-se um par de biographias . O marquez de Villar tomou insignificante parte na discussГЈo porque as mulheres nГЈo eram o seu forte , e o barГЈo de Sousa , que se achava encartado em presidente da festa , decretara que o sexo amavel seria o unico assumpto permittido atГ© ao Champagne ; em principiando ГЎ sobremeza conceder-se hia a palavra sobre a politica do paiz , porque se contava que a esse tempo as mulheres estivessem a dormir , e os homens a vomitar . O barГЈo de Sousa era , por fim de tudo , um soffrivel homem de mundo . Para elle a moral era uma especie de bengalla como que batia nos outros dispensando-se , como Г© natural , de dar com ella em si mesmo . Seriedade ! ninguem como elle pronunciava n ' um tom de mestre de capella esta santa palavra , porque ninguem melhor do que elle tinha a consciencia de que isto de seriedade Г© uma historia que toda a gente exige nos outros , e sem a qual passa divinamente . -- A saude do corpo de baile ! gritou Victor Marrocos , olhando para o barГЈo de Sousa com uma expressГЈo de ironia e menos- preГ§o que era habitual ГЎ physionomia d' este homem publico . -- Г‰ innegavel , ponderou o barГЈo , que o corpo de baile faz progressos na arte ... e na belleza que tambem Г© arte n ' ellas , se me nГЈo engano . A Ritinha desde que passou ГЎ classe das primeiras , e que o choreographo compoz uma variaГ§ГЈo expressamente para ella , encarregou-se de provar que a gloria tambem engorda ! Vejam que bochechas ! continuou elle fazendo uma caricia ГЎ danГ§arina que estava com a bocca cheia com uma salchicha frita ; e que excellente cГґr , que cГґr de saude ! Гі marquez , que diz ! ? Palavra de honra , Ritinha , sou um cego admirador dos temperamentos rijos e das constituiГ§Гµes saudaveis . Deliro deante de tГЈo rosadas faces ! Para mim as mulheres pallidas , has de perdoar Bemvinda ! enjoam-me quasi tanto como os romances que as elogiam . NГЈo Г© do meu voto , Marrocos ? -- ReconheГ§o a superioridade da Ritinha , e admiro-lhes as cГґres : mas nГЈo me obrigue a dizer mais porque nГЈo entendo nada de pintura ! Este epigramma foi saudado com solemnes gargalhadas dos homens , e respeitabilissimos amuos da parte das duas danГ§arinas . -- Tu has de ser toda a vida , exclamou o marquez dirigindo-se morto de riso a Victor Marrocos , o mesmo e inalteravel insolente que temos a desgraГ§a de conhecer hoje ! n ' um salГЈo ou n ' um botequim , n ' uma egreja ou n ' uma praГ§a , na tribuna ou na casa de pasto ! NГЈo lhe queiram mal , amГґrinhos , desde creanГ§a que elle nГЈo acredita nas mulheres . -- Porque nГЈo acredita o meu amigo nas mulheres ? perguntou o barГЈo que principiava a beber de mais , e a desenvolver uma vivacidade que a natureza lhe nГЈo havia querido conceder adivinhando que elle viria a ser bastante rico para poder compral- a por intermedio de vinhos generosos . O senhor ha de acreditar por forГ§a nas mulheres , ou eu nГЈo hei de ser quem sou . Pois em presenГ§a de duas tГЈo galantes meninas atreve-se a offendel- as menospresando a mais bella metade da creaГ§ГЈo a que estas prendas teem a honra de pertencer ! Victor Marrocos que percebeu que o barГЈo tinha o vinho bulhento e palrador , tomou a palavra e defendeu as mulheres . Foi um d' esses discursos de ceia de domingo gordo , em que as idГ©as andam a nadar em Champagne . Para ganhar as boas graГ§as do barГЈo , porque antevia que para a sua missГЈo de especulador politico isso lhe podia servir ainda , attendendo ГЎ fortuna d' elle , o revolucionario elevou ГЎs nuvens as senhoras de sociedade e sobre todas , as meninas solteiras do mundo elevado , adoraveis pela educaГ§ГЈo e pelo perfume da atmosphera em que nascem , " porque sГі um homem de mundo sabe educar uma filha " , lisongeando , como se percebe sem custo , as vaidades do barГЈo que o levavam ГЎ mania de se considerar o primeiro educador d' este seculo , e que eram ГЎ mesa sobretudo de uma susceptibilidade que a cada instante lhe fornecia excellentes quixotadas . -- Alto lГЎ ! gritou Luiz de Lima , que sempre por estas festas se julgava ainda em Coimbra e remoГ§ava dez annos . Assim mesmo acredito mais na Ritinha e nas suas companheiras do corpo de baile de S. Carlos , do que nas meninas educadas por homens de mundo , que merecem ao sr.||_Marrocos Marrocos|_Marrocos tГЈo notavel menГ§ГЈo . A educaГ§ГЈo que se dГЎ ГЎs mulheres de Lisboa em logar de as tornar instruidas torna-as pedantes , desregradas em vez de virtuosas . Eu sou um pouco selvagem em questГЈo de mulheres -- quero-as innocentes e ignorantes : sГі assim poderГЈo ser religiosas ; a educaГ§ГЈo que se dГЎ em Lisboa ГЎs damas ou as converte em beatas por aristocracia , ou em irreligiosas por pretenГ§ГЈo . A simplicidade Г© a poesia da mulher . A Ritinha e a Bemvinda aproveitando o intervallo da opera ГЎ danГ§a para seduzirem entre dois bastidores um millionario de boa fГ© , que quando olha para o corpo de baile julgo ter deante de si o painel das onze mil virgens , parecem-me , ainda assim , mais acceitaveis e menos repugnantes , do que as meninas educadas de Lisboa que se vendem a um marido , renegam do amГґr e do amante quando elle Г© pobre , e aproveitam a educaГ§ГЈo para saberem enganar um homem a quem juram amar tendo em vista apenas a americana e o camarote em S. Carlos que esse casamento lhe pГіde alcanГ§ar ! Ah ! quando o casamento se converte n ' uma prostituiГ§ГЈo legal , como por ahi se vГЄ , Г© a instituiГ§ГЈo mais immoral e degradante a que uma famГlia possa recorrer ! Que querem ! -- exclamou o medico com uma expressГЈo de franqueza sublime , fructo de um jesuitismo que nem sГі os frades possuem , mas tambem os medicos -- confesso-lhes que gosto de poder dizer aqui livremente as minhas opiniГµes : tenho muito menor antipathia pelo vicio que nГЈo tem senГЈo a consciencia desgraГ§a , do que pela devassidГЈo elegante e regrada , das que nГЈo peccam por haverem recebido por hospede no seu lar durante longas noites de inverno a figura pallida da miseria vindo sentar-se ao pГ© do seu brazeiro apagado , mas porque o demonio da vaidade lhes soprou ao ouvido que nГЈo vale a pena de amar e soffrer , e que o casamento Г© a loteria das mulheres , em que o premio grande Г© um marido rico , e em que o merecimento sem dinheiro se considera como numero branco ! Demais , ponderou voltando-se para o barГЈo , desde os dezoito annos , que eu tenho os meus motivos para nГЈo sympathisar com as meninas educadas . Г‰ uma anecdota , que ainda lhe nГЈo contei , marquez ! uma historieta da minha entrada no mundo , que tem apenas o merecimento de marcar bem o espirito da epocha . As danГ§arinas meias adormecidas pela fluente catilinaria de Luiz de Lima que esquecГЄra d' esta vez o ar doutoral e emphatico que o distinguia , pela consciencia que o acompanhava de possuir o dom da palavra , e que ГЎ forГ§a de costumar ser escutado acabГЎra por gostar de se escutar a si proprio e perorar a cada instante , acordaram , graГ§as ao marquez e ao barГЈo que lhe gritaram ao ouvido -- " Vae-se contar uma historia ! " Г‰ incrivel o valor que esta casta de raparigas liga a escutar um conto . Os aventureiros e as mulheres de theatro , por outra , toda a gente que tem uma vida incerta e errante prГ©sa as historias , e morre por ouvir um conto . O marquez , o barГЈo , e Victor Marrocos gritaram entГЈo em cГґro com as duas coriphГ©as -- " Venha a historia ! " Luiz de Lima preparou um sorriso d' aquella certa ironia estudada , que a maior parte da gente adopta ГЎ custa de longos ensaios ao espelho quando ninguem pГіde vel- os , aprendendo em casa o melhor methodo de se mostrarem no mundo , e principiou a historieta . NГЈo valeria a pena contal-a , se nГЈo fosse para fazer sentir ao leitor como foi que da conversaГ§ГЈo d' essa noite durante a ceia , resultou uma antipathia formal da parte do barГЈo para com o medico da moda , e a influencia que , como mais tarde se verГЎ , a catilinaria do doutor teve sobre o seu futuro , e , o que peior Г© sobre o futuro de muitas outras pessoas . Quantos factos da vida resultam muitas vezes de uma palavra , de um gesto , de um sorriso ! -- Era em 1842 : eu tinha dezoito annos como lhes disse , chegГЎra da universidade a ferias do meu primeiro anno juridico , e tinha a cabeГ§a recheada de todas as illusГµes poeticas das margens do Mondego . Para mim que ainda nГЈo tinha sido amado , uma mulher moГ§a e bonita que se dignasse volver olhos piedosos para a minha humilde creatura , seria um verdadeiro anjo salvador . Procurava-a como Don Quixote procurou a celebridade , como Jeronymo Paturot procurou uma posiГ§ГЈo social , ou mesmo com SalomГЈo procurou a palavra mysteriosa que resolvesse o problema dos destinos humanos . Ao cabo de uma semana essa mulher , a minha mulher , appareceu ! Era uma creatura loira e angelica , em quem a natureza parecia haver adivinhado as phantasticas e seductoras creaГ§Гµes de Ossian e Lamartine . Tinha olhos de um azul celeste , e a mais doce e meiga expressГЈo de olhar que um pintor possa ter sonhado ! A fronte pallida e sympathica pendia levemente sobre o peito como abatida pelos ardores da imaginaГ§ГЈo e canГ§ada pelos sonhos da phantasia . Julguei por vezes quando a olhava que era um sonho o que via , ou que estava lendo o Don Juan de Byron quando elle nos descreve HaydГ©e , aquella poetica figura de mulher , melancholica e suave , que andava sempre sonhando com um mundo melhor ! Dizer-lhes que a amei Г© tornar vulgar o que senti por ella . O homem gasto na aridez da sciencia , e nas tristes comedias da vida , o homem que conhecem hoje em mim , positivo , calculista e frio , estremece ainda ao lembrar-se que o amГґr lhe devorou a alma por essa mulher de quem lhes fala , e declara atГ© que se ainda nГЈo contou esta singela historieta Г© porque mesmo agora a lembranГ§a d' esse amГґr de creanГ§a o incommoda pela simples reminiscencia ! -- Encontrei-a no theatro , continuou elle depois de uma d' essas breves pausas com que os habeis contadores de historietas prendem em certas situaГ§Гµes a attenГ§ГЈo dos que os escutam . Ella era assignante de S. Carlos , de uma das frisas de bocca , a terceira por baixo do camarote real . NamГґramos- nos durante tres recitas successivas , ella da frisa , eu da platea . Uma noite , no corredor , ГЎ saida pelo chamado Picadeiro , tive occasiГЈo de lhe entregar uma carta . Na recita immediata , ГЎ saida tambem , e no mesmo sitio , ella entregou-me um bilhete . Dentro do bilhete vinha um annel . Embrulhando o annel , estas palavras : -- " E- me impossivel escrever-lhe . Conserve esse annel como uma lembranГ§a da sua E ... " -- Era um annel com um magnifico brilhante . Por prudencia , talvez , preferi o annel ao bilhete e rasgando o bilhete metti no dedo o annel . E continuamos a namГґrar- nos no theatro , sem nunca nos falarmos , sem nunca nos escrevermos . Sabia apenas que ella era solteira , e , como se dizia no mundo , muito bem educada . Aqui , Luiz de Lima olhou para os convivas , e para o barГЈo especialmente , e disse-lhes com um sorriso magnifico : -- era das muito bem educadas ! -- Certo dia , continuou elle , eu jantava n ' uma casa de pasto detestavel , e servia-me de sobremeza a leitura do annuncio de espectaculos que encontrei nas columnas rachiticas de um jornal da opposiГ§ГЈo , que estacionava n ' uma das mezas . NГЈo sei o que ha de grande no desejo phrenetico de um homem moГ§o que vГЄ atravez de mil dificuldades pecuniarias a duvidosa realisaГ§ГЈo de um capricho d' amГґr . E ' uma lucta curiosa e Г s vezes heroica ! D ' essa vez , eu distingui em cada linha do annuncio da Don Pasquale uma serie infinita de quesitos irrevogaveis . Lembrei-me de luvas brancas , de um bilhete da superior , e de um collete branco ou preto . Por desgraГ§a fatal , nГЈo tinha dinheiro para o bilhete nem para as luvas , e estava redusido a dois colletes de cГґr ! Enchi-me de animo , e tomei um partido que jГЎ vГЈo saber qual foi . Tirei um palito com a soberania magestosa com que NapoleГЈo empunharia o seu occulo das batalhas . Depois , chamando o criado , expliquei-me assim : " Responde ao que te vou dizer sem admiraГ§ГЈo nem replica . Onde ha aqui perto alguem que empreste sobre penhores ? " O criado olhou para mim sem pestanejar ; ou adivinhasse que esta pergunta encerrava um pequeno poema de contrariedades do destino , ou estivesse habituado a presenciar essas crises vulgares da vida de rapaz , certo Г© que nem se admirou . " SaberГЎ o senhor , respondeu o criado modestamente , que conheГ§o alguem que se presta a esse negocio . " Quem Г© ? " Isso agora , replicou elle torcendo-se n ' um risinho misterioso , isso agora Г© segredo . SГЈo Г s vezes pessoas que nГЈo querem que isto conste ! " Bem ! accudi eu , toma lГЎ este annel . Oito libras sobre elle , trez pintos para ti , tudo prompto n ' um quarto de hora : serve-te ? O criado poz o chapeu , agarrou no annel , e saiu a correr . Era um criado conhecido e fiel a quem eu confiaria as minas do PerГє , se accaso as possuisse por qualquer casualidade . Um quarto de hora depois , o criado voltou . " Oito libras . " E contou-as sobre a toalha . " Tres pintos para ti , disse eu entregando-lh ' os ; e dispondo me a sair . Tirarei o annel d' aqui a 5 dias . -- ГЃ noite dava-se eftectivamente o Don Pasquale . A minha E ... assistia , e eu via-a logo que entrei : fui procurar o meu logar por baixo da frisa , como costumava . EntГЈo , ella collocou a mГЈo esquerda sobre a face , e eu vi o meu annel n ' um dos dedos da minha namГґrada ! ... Debalde torturei o meu espirito para alcanГ§ar a incognita de tal problema . -- Porque acaso tem ella o meu annel ? -- perguntei a mim proprio durante toda a noite , observando de mais a mais que ella jГЎ nГЈo me prestava a attenГ§ГЈo costumada . No dia seguinte , nem jГЎ me lembra por que inauditos meios , arranjei as oito libras , corri ГЎ casa de pasto , e enviei o criado a retirar o annel . Dez minutos depois , o criado voltou com o dinheiro acompanhado por um bilhete em que li estas palavras : -- Comprei ao sr.||_Luiz_de_Lima Luiz|_Luiz_de_Lima de|_Luiz_de_Lima Lima|_Luiz_de_Lima o meu annel por oito libras . -- A assignante da frisa e frequentadora impreterivel de bailes e concertos , a elegante effectiva de Cintra e dos passeios a Sitiaes , a muito bem educada E ... emprestava dinheiro sobre penhores ГЎs escondidas do pae , e de sociedade com a sua aia ! Esta liГ§ГЈo fez com que eu nunca mais procurasse a poesia na mulher , nem acreditasse nas vantagens da educaГ§ГЈo moderna que jГЎ nГЈo faz victimas da clausura conservando-as n ' um convento a educar , mas que lhes ensina quaes sГЈo os juros da lei proporcionando-nos uma amante-agiota ! As danГ§arinas exultaram de prazer ouvindo o narrador e saudaram a anedocta : Bem-vinda fazendo uma saude a seu pae e sua mГЈe por nГЈo a terem mandado educar , favor de que ella agora reconhecia o alcance : a Ritinha pondo de parte os decГіros , e dando um abraГ§o no medico para lhe provar atГ© onde chegava a sua admiraГ§ГЈo pelos seus talentos . Para se comprehender bem em que deu a tal historieta do doutor , serГЎ talvez util que precedГўmos o facto de algumas observaГ§Гµes . A maior parte das mulheres de theatro , costumadas a viver com gente de mГЎ esphera e de peior instrucГ§ГЈo , sentem uma grande admiraГ§ГЈo por todos os dotes naturaes : a belleza , a forГ§a , ou o talento . Um homem bonito agrada-lhes , um athleta impressiona-as , um homem de talento encanta-as . Habituada ГЎ cavaqueaГ§ГЈo estupida dos primeiros danГ§arinos , e das bailarinas suas companheiras , circumscripta ГЎquella athmosphera de grosserias , de mexericos , e de fumo de cigarro , a rapariga encontrava-se agora pela primeira vez na sua vida ao lado de um homem notavel e celebre pelo seu merito , que fazia consistir a sua eloquencia no esplendor das idГ©as e na fluencia da phrase , tГЈo diverso do barГЈo , que sГі era eloquente quando abria o porte-monnaie e o apresentava cheio de libras ГЎ rapariga que sГі por ellas o aturava . Passou como que um relampago pela imaginaГ§ГЈo da pobre danГ§arina , um relampago de esperanГ§a e de gloria : ser amada por um homem assim ! MoГ§o e na flГґr da vida e das illusГµes , ella nГЈo o teria desejado ; mas assim como elle agora lhe apparecia , farto da vida e gasto de crenГ§as , via n ' elle um ente interessante e sympathico , e sonhava em fazer de novo palpitar aquelle coraГ§ГЈo envelhecido , acordando na alma abatida de Luiz de Lima novas impressГµes de felicidade e de amГґr . Ella fitou no medico o olhar avido das mulheres perdidas , quando finalmente um desejo as incendeia . NГЈo o olhar que nasce da cubica dos sentidos , porque as mulheres habituadas ao prazer como genero de vida , cedo se enfastiam dos gosos materiaes do amГґr : era o olhar inspirado que acode aos olhos partindo da alma , e que n ' um raio de luz parece prometter um mundo inteiro de sentimento e de esperanГ§a ! O barГЈo sentiu-se pequeno e acanhado diante dos prestigios do talento . NГЈo lhe escapou a expressГЈo com que a danГ§arina contemplГЎra o medico durante a historieta que elle acabГЎra de contar , como que encantada pela musica litteraria do seu estylo narrativo . Conhecia a fundo o caracter excentrico de Ritinha . As mulheres menos capazes de paixГЈo sГЈo as que mais se entregam a caprichos , e elle anteviu a realisaГ§ГЈo de um que poderia tornal- o o assumpto curioso de cancans de bastidor . Todavia houve-se como homem de mundo e continuou a beber sem deixar adivinhar pela sua phisionomia as idГ©as que o agitavam . Deve dizer-se : o barГЈo tinha a danГ§aria havia quatro annos ; comprГЎra-a aos doze como quem compra um cavallo ou um tilbury , e guardava-a , como jГЎ dissГ©mos , por ostentaГ§ГЈo . Gostava que se dissesse : -- a danГ§arina do barГЈo -- como se dizia -- o caleche do barГЈo , o groom do barГЈo , a chibata de unicorne do barГЈo ! Deixal-a , era sujeitar o seu amГґr proprio a ser ferido a cada instante quando a encontrasse nos theatros ou nos passeios pertencendo jГЎ a outro . A vaidade e nГЈo o amГґr Г© que o prendia a ella ; Г© isto que desejamos fazer sentir : a vaidade era a molla dominante do seu caracter . Tudo pela vaidade , como NapoleГЈo tudo pela gloria , como Don Juan tudo pela insaciedade ; os grandes homens e os pequenos teem todos um lado vulneravel ; era esse o do barГЈo , sobretudo quando nГЈo o reconheciam como o primeiro educador deste seculo , e nГЈo admiravam em sua filha o resultado dos sabios conselhos paternos que haviam formado a sua instrucГ§ГЈo de senhora . O barГЈo tinha entre algumas boas qualidades a de ser cuidadoso ГЎcerca de Sophia : era elle quem lhe comprava as musicas , quem lhe escolhia os livros , quem suppria emfim o logar de uma velha regente directora de algum recolhimento escrupuloso . A's quatro horas da madrugada , o marquez dormia encostado ГЎ meza , a Bemvinda bucolisava a cair de somno com Victor Marrocos que diligenciava por lhe fazer comprehender a situaГ§ГЈo moral do ministerio , e o barГЈo fingindo dormir poude ouvir levemente uma declaraГ§ГЈo incendiaria com que Ritinha acommetteu ГЎ queima-roupa Luiz de Lima . O medico que nГЈo desdenhou o horisonte que se lhe apresentava atravez dos prestigios do Champagne , e que divisou ao longe um porvir de triumphos para o tactГ© ou para o ballonГ© , porque o amГґr converte as mulheres pesadas em verdadeiras pennas de perdiz , resolveu experimentar as sensaГ§Гµes do heroe da borleta -- O amГґr e a danГ§a -- , e disse mil coisas meigas ГЎ linda danГ§arina . O barГЈo , por essas alturas pareceu-lhe ser tempo de acordar , e fingindo arrepender-se de se haver deixado adormecer , consultou o relogio , viu quatro horas e vinte minutos ; e acordando o marquez , propoz que se procedesse ГЎ retirada : este requerimento foi approvado pela maioria ; apenas Ritinha foi de voto que era ainda cedo ; e apertando a mГЈo do medico disse lhe de repente -- AmanhГЈ no ensaio -- sem que o barГЈo pudesse perceber as palavras , ainda que nГЈo lhe escapou que a danГ§arina havia dito o que quer que fosse . ГЃ saida o marquez que ia acompanhar no trem Victor Marrocos e Bemvinda atГ© ГЎ casa d' esta , disse ao barГЈo que partia no caleche em companhia de Ritinha e de Luiz de Lima , a quem elle , como homem de mundo elegante que era , offereceu conduzir atГ© ao hotel da Europa onde o medico morava . -- NГЈo te esqueГ§a , Antonio Cypriano , que sГЈo quarta-feira de Cinza os annos da marqueza ! Jantas com+nГіs , e serГЎ bom levares a Sophia porque a marqueza recommendou-me cem vezes que te pedisse isto ! O barГЈo prometteu que nГЈo faltaria : os trens partiram em direcГ§Гµes contrarias ; durante o transito o barГЈo foi graciosissimo para com o medico , que seria capaz de jurar que Antonio Cypriano estava de boa fГ© . Apesar d' isso , a antipathia que experimentava por Luiz de Lima trahiu-se um pouco ao apertar-lhe a mГЈo , porque o medico julgou conhecer um symptoma de frenesi nervoso no vigor com que o barГЈo lhe esmagou os dedos ГЎ despedida . A sГіs com a danГ§arina , o barГЈo disse-lhe entГЈo no momento em que o trem partiu do Hotel da Europa para casa da rapariga : -- Esteve hoje commigo o empresario do theatro lyrico do Rio de Janeiro , que vem escripturar danГ§arinas . Falou-me de ti ! PropГµe-te uma escriptura de cento e cincoenta mil rГ©is fortes por mez , e meio beneficio com a primeira representaГ§ГЈo de uma danГ§a nova . Faz o contracto -- tres annos . Fiquei de dar-lhe a resposta atГ© ao meado do mez que entra . Se dirigires de novo a palavra ao medico que ceou esta noite com+nГіs , partes para o Rio no primeiro barco que sair . Quem era o barГЈo de Sousa Quem era o barГЈo de Sousa , d' onde vinha o barГЈo de Sousa , Г© o que ninguem sabia . JosГ© d'Athayde -- o noticiarista -- perguntou por vezes no seu estylo de noticia diversa " Que caso pede , este barГЈo ? Antonio Cypriano , um dos homens mais espertos de Lisboa , nГЈo fizera fortuna por um livro nem por um casamento , nem pela politica nem pela loteria : fizera fortuna por uma comedia ; uma d' essas comedias tragicas que nГЈo chegam atГ© ГЎ Gaveta dos Tribunaes , mas que sГЈo Г s vezes urdidas por monstruosas combinaГ§Гµes . Mysterios que nГЈo sГЈo mysterios para ninguem , que a policia sabe melhor do que qualquer , e a que se fecha os olhos quando o rГ©o tem para se sentar uma tripode de oiro como os antigos feiticeiros ! Contar as particularidades d' esse longo romance de aventuras e enredos que o barГЈo de Sousa planeou , dispoz , e conseguiu levar a exito , seria fazer outros dois volumes . Г‰ uma larga serie de astucias de que apenas faremos o quadro geral . NГЈo sei bem em que anno , morreu de febre amarella em Pernambuco um rapaz portuguez de vinte e seis annos . Este rapaz que havia sahido pequeno de Lisboa , sem meios e sem protecГ§ГЈo , servira como caixeiro n ' uma casa de commercio desde os dezoito annos , e herdГЎra aos vinte e quatro , pela morte do patrГЈo que o adorava , toda a fortuna d' elle que nГЈo tinha filhos nem parentes . O testamento d' esse rapaz marcava o seguinte : -- Deixava tudo a sua mГЈe||_Joaquina_Angelica Joaquina|_Joaquina_Angelica Angelica|_Joaquina_Angelica , portugueza , da freguezia de S. JoГЈo da PraГ§a : no casa porГ©m de ella haver fallecido e viver ainda uma filha , Maria Amalia , a heranГ§a caberia ГЎ irmГЈ do finado . Nos livros da Egreja de S. JoГЈo da PraГ§a nГЈo se encontrava o assento de baptismo nem de Luiz Victor , que era este o nome do finado , nem de Maria Amalia : debalde tambem se procurou o registro do casamento de Joaquina Angelica , e o seu nome no livro dos obitos . Ninguem se apresentou a reclamar a heranГ§a , e a heranГ§a era de mais de um milhГЈo ! Quasi um anno depois , apresentou se uma rapariga , dando-se por irmГЈ do finado , dizendo chamar-se Maria Amalia , e ser filha de Joaquina Angelica . Entre outras testemunhas que citou como pessoas que sabiam a fundo se ella falava ou nГЈo verdade , deu o nome de Antonio Cypriano de Sousa , que a esse tempo nГЈo era ainda barГЈo . As testemunhas juraram todas conhecer essa rapariga , e attestaram conhecel- a por filha de Joaquina Angelica que ha via sido criada de servir em casa de uma gente que morГЎra por muitos annos na freguezia de S. JoГЈo da PraГ§a , indo depois residir para Villa-Franca . Explicaram que se o nome da rapariga nГЈo se encontrava no livro dos baptismos d' essa freguezia Г© porque ella era filha natural , e hospede da Santa Casa de Misericordia de Lisboa , em consequencia de sua mГЈe nГЈo ser casada , mas amancebada com um criado da mesma casa em que servia , motivo por que nГЈo se encontrava tambem no livro dos registros competentes nota alguma em referencia ao matrimonio de Joaquina Angelica . Que , finalmente , se no respectivo livro dos assentos d' obito da mesma freguezia se nГЈo deparava com a data da morte de Joaquina Angelica , Г© porque ella se achava em Villa-Franca com seus amos e morrendo ahi de cholera , se nГЈo lavrГЎra assento , como succedeu por essa epocha a todos que ahi falleceram . Com altas protecГ§Гµes , e bem imaginadas astucias se venceu uma comedia , cujo enredo pelo que acabamos de contar , dava esperanГ§as de ser engenhoso . Antonio Cypriano de Sousa , isto diziam as mГЎs linguas , tomГЎra grande papel n ' esta peГ§a , e desempenhara-o habilmente . TГЈo habilmente ou tГЈo pouco , que sete mezes depois visitava a miudo a pretendida irmГЈ do finado , herdeira jГЎ d' essa magnifica fortuna , que morrendo mezes depois , o constituiu seu herdeiro universal . Disse-se que a rapariga fГґra n ' isto apenas uma comparsa soffrivel , e que a Antonio Cypriano se devera a graГ§a de falsificar todos os documentos , inclusive o livro da Misericordia ! SГЈo de certo calumnias que espalharam para denegrir um tГЈo honesto caracter . TГЈo honesto que ficou riquissimo e o fizeram barГЈo ! Se elle nГЈo fosse honesto decerto nГЈo alcanГ§ava tanto em tГЈo pouco tempo ! NГЈo era sceptico da moda , nem atheo por ostentaГ§ГЈo , d' esses que acreditam em tudo , e que sГі teimam em nГЈo acreditar em Deus ! Era sceptico do fundo d' alma se devГ©ras tinha alma . Para elle nada havia de santo nem de solemne ; se o nГЈo dizia sempre , ao menos sentia-o . O dinheiro ! Elle explicava tudo pelo dinheiro , vencia tudo pelo dinheiro , confiava e esperava tudo do dinheiro ! ... Um dia , em casa do marquez de Villar , n ' um d' esses cavacos intimos que este homem do poder concedia no tempo da sua influencia a uma certa coterie de privilegiados , a conversaГ§ГЈo occupou-se de especulaГ§Гµes e estrategias politicas , astucias de gabinete , perversidades contadas no rol das virtudes , tudo emfim que pelo dinheiro se pГіde disfarГ§ar ! O barГЈo recebeu por essa occasiГЈo alguns cumprimentos pela popular e celebre perspicacia do seu engenho , demonstrada em todas as mil e uma historietas em que fizera papel de heroe . -- N ' estes casos galantes , disse o marquez , ha sobretudo Г s vezes uma grande dificuldade a vencer , -- arranjar testemunhas falsas ! -- Nada mais facil , acudiu Antonio Cypriano com uma gargalhada ! Por um certo preГ§o alcanГ§a-se uma testemunha vulgar , um homem como a maior parte , que diz uma mentira e jura dizer uma verdade : por mais algum dinheiro , uma bagatella mais , podem ter-se algumas testemunhas de forГ§a , velhos respeitaveis , de fronte calva , olhar suave , e figura veneranda ; um d' esses anciГµes como se descrevem os paes nobres de tragedia , uma especie de patriarcha de procissГЈo : a estatua da gravidade , emfim ! E como os outros rissem do cynismo das palavras do barГЈo elle replicou : -- Julgam talvez que brinco ? ! Pois bem , amanhГЈ lhes darei uma scena de comedia representada com uma pouca de verdade mais do que representam na theatro Epiphanio ou Theodorico ! No dia seguinte , achavam-se ГЎ mesma hora , na mesma sala , os mesmos amigos do marquez . Um criado veio dizer : -- Procuram o sr. barГЈo . Antonio Cypriano sorriu-se , e perguntou ao marquez : -- Posso mandar entrar ? Г© uma pessoa respeitavel . A um signal do marquez de Villar , o criado fez entrar para a sala um velho de barbas brancas , curvado pelos annos , mas tendo ainda no semblante um vislumbre de vida e de crenГ§a . O olhar d' esse homem era melancholico , e espargia um clarГЈo jГЎ debil mas ainda de uma luz sympathica e enternecedora . Era o que vulgarmente se chama " um velho respeitavel . " -- Este senhor , disse o barГЈo , vem contar-lhes o que hontem presenceou : Г© um caso de gravidade e importancia -- attendam ! Depois , voltando-se para o anciГЈo ordenou-lhe que falasse ! -- Meus senhores , disse o velho com um tom circumspecto e digno . Hontem ao pГґr do sol , desembarquei no Caes das Columnas , e vi no Terreiro do PaГ§o , com estes olhos , senhores ! com estes olhos que jГЎ pouca luz podem ter , porque Deus assim Г© servido ! ( aqui ergueu os olhos ao cГ©u , com uma expressГЈo de bondade infinita , e de paciencia evangelica ) vi eu , caminhando do lado da Alfandega , para o lado do Arsenal ... o Concilio Tridentino , de casaca encarnada e chapГ©u armado ! Todos que se achavam presentes romperam n ' uma gargalhada estrondosa . O barГЈo disse ao velho , que nГЈo mudou de expressГЈo apesar do riso descomedido dos espectadores : -- DГЎ a sua palavra de honra em como viu isso ? -- Oh ! senhores , se a palavra de um pobre velho , que presa a honra mais do que a propria vida que jГЎ longa lhe vae ... -- Basta ! disse o barГЈo : pГіde retirar-se . Depois olhando para os seus amigos pasmados e estupefactos , continuou : -- Este homem Г© o typo da testemunha de forГ§a ! um pobre velho que presa mais a honra que a vida , mas que veiu aqui fazer esta figura ... por doze vintens ! Ao que nos parece , este ligeiro traГ§o biographico explica o homem , em quanto ГЎ indole . Deve comtudo dizer-se que era socialmente uma creatura aprasivel , que dava a todos um sorriso affavel quando o cumprimentavam , e um charuto quando lh'o pediam . O mundo chama a isto ser -- um cavalheiro ! Antonio Cypriano estava quasi sempre a rir , e quando nГЈo estava a rir estava a sorrir . Trazia o dinheiro espalhado pelas algibeiras , provavelmente para tinir bastante . Era de estatura regular , elegante e apresentavel ; conhecia os bons usos da vida social , e distinguia-se pela graГ§a de maneiras . De cara , era um pouco mais feio do que Mephistopheles ou Asmodeu : testa curtissima , olhos extremamente separados , o que desvanecia toda a expressГЈo do olhar : a boca enorme ; e a pelle crivada de bexigas . -- SГі conheГ§o uma cara mais feia do que a tua , dizia elle n ' uma gargalhada ao marquez de Villar -- Г© a minha ! A filha do barГЈo de Sousa JГЎ o leitor conhece da leitura do primeiro capitulo , pelo que viu da cavaqueaГ§ГЈo que alli se descreve entre os jornalistas JosГ© d'Athayde e EstevГЈo de Mello , com o folhetinista Guilherme da Cunha e o douctor , que a filha do barГЈo de Sousa aceitava a cГґrte ao folhetinista . Lembrar-se-ha ainda , se acaso leu com attenГ§ГЈo o capitulo , honra que essas paginas nГЈo merecem de certo , e que sГі por favor alcanГ§ariam , lembrar-se-ha dizemos , que durante a conversaГ§ГЈo dos quatro amigos , um homem entrou no Marrare , e sentando-se ГЎ meza proxima ao grupo , viu e ouviu tudo com uma mal disfarГ§ada expressГЈo de cholera concentrada . Esse homem que entrara quando justamente se estava falando do barГЈo de Sousa , era o proprio barГЈo de Sousa . Nenhum dos que se achavam no grupo o conhecia , como elles proprios disseram , e , pela sua parte , elle sГі conheceu um d' elles -- Guilherme da Cunha -- , porque o seu cocheiro uma vez lh'o havia indicado como sendo o janota que andava rondando a casa , e fazendo seus rapa-pГ©s ГЎ menina . Diga-se a verdade , Antonio Gypriano sympathisou com Guilherme desde a primeira vez que o viu , e parece que foi coisa do demonio constar-lhe logo que o pobre moГ§o nГЈo tinha onde cair morto , porque desde esse instante deixou logo de sympathisar com elle . Sophia , que , como jГЎ se tem dito era este o nome da filha do barГЈo de Sousa , tivera desde entГЈo que sujeitar-se a uma decidida opposiГ§ГЈo de seu pae contra Guilherme . Ao principio Antonio Gypriano ainda se contentava em lhe dizer : -- Г‰ um casamento que nГЈo pГіde convir-te : tenho informaГ§Гµes a respeito d' esse rapaz em que se me diz que Г© bom moГ§o mas pobre como Job . NГЈo faz conta . -- Mas se o amo ! disse Sophia . -- Tanto peor para ti , retorquio o barГЈo . Se casares a meu gosto terei prazer em ser eu que ponha a casa , e darei para o teu vestuario seiscentos mil rГ©is annuaes . PorГ©m se casares contra minha vontade ( aqui deixou de sorrir , e desatou a rir ) nГЈo te dou vintem ! Demais a mais ( aqui tornou ao sorriso ) tenho um motivo forte para nГЈo consentir em semelhante casamento ... Esse rapaz pertence ГЎ redaГ§ГЈo de um jornal que faz opposiГ§ГЈo ao nosso partido e guerrГЄa o Villar mortalmente : que diria o marquez e que diriam os nossos se eu te deixasse casar com um homem de outra politica do que a nossa ! ( desatou outra vez rir ) O que elle quer Г© o teu dinheiro ! Depois Г© capaz de te metter n ' um folhetim ! Mas Sophia teimГЎra sempre , e o barГЈo chegou a conhecer que era jГЎ tarde , talvez , para lhe desvanecer esse amГґr . Tentou ferir-lhe o amГґr proprio : calumniou Guilherme : disse que sabia da vida desregrada que levava ; que era um rapaz sem futuro , perdido pelas fofas vaidades da vida litteraria quando se Г© bem recebido na estreia : que queria fazer fortuna por um casamento porque tinha a consciencia de que pelo seu trabalho era incapaz de a alcanГ§ar . Disse-lhe , emfim , a mais cruel das accusaГ§Гµes que aos olhos de uma mulher possa fazer-se a um namГґrado : -- Quer especular comtigo ! Se amanhГЈ estivesses pobre nem quereria saber de ti ! Acaso pensas que morre pela tua pessoa ? ( uma gargalhada ) VГЄ-te ao espelho ! Sophia estava de pГ© quando seu pae lhe dirigiu essa perfida phrase , parecendo commental- a por um olhar ironico com que cobrio a figura secca e acanhada de Sophia . A filha do barГЈo de Sousa tinha vinte e cinco annos . A sua phisionomia era um pouco arqueada fazendo sobresair uma fronte proeminente . Os olhos longos e cheios de luz pareciam precisar abrigo , por isso talvez as palpebras estavam armadas de longas e assetinadas pestanas . O seio , quasi imperceptivel n ' ella , mais ainda escapava ГЎ vista porque em logar de disfarГ§ar esse defeito com o auxilio das modistas , fasia- o sobresair pela singelesa com que se preparava . Estava longe de ser uma mulher bonita , Г© certo : mas que partido sabia tirar dos longos e finos cabellos , que lhe coroavam a fronte , formando um diadema esplendido e seductor ! A bocca era um pouco grande , mas ella ria-se tГЈo raras vezes que esse defeito passava quasi desapercebido , ainda que era resgatado pelos prestigiosos dentes que lhe davam brilho . A phisionomia de Sophia de Sousa nГЈo mentia . Tinha a alma de fogo como o olhar , aquelle vehemente olhar que parecia um desafio d' essa alma poderosa a esse corpo debil ! coraГ§ГЈo agitava-se-lhe por um amГґr ardente e phrenetico como se concebe nos quentes areaes do deserto ! NГЈo era por vaidade mas por um secreto instincto , que ella nГЈo deixГЎra nunca de acreditar na sinceridade do amГґr de Guilherme , apesar das diligencias que os argumentos de seu pae haviam feito para o ennegrecer a seus olhos . Ao contrario de todas as mulheres que nГЈo sГЈo bonitas ella nГЈo tinha a menor vaidade , e era a primeira sempre a accusar-se de ser feia . Tinha talvez a consciencia de que a sua modestia lhe constituisse um novo titulo , o que Г© certo Г© que nГЈo levava horas a consultar o espelho , e que o seu vestuario era de ordinario tГЈo elegante como simples . Guilherme da Cunha conhecera-a do theatro lyrico ; fizera-lhe a cГґrte trez noites da platГ©a , cГґrte que ella acceitara e a que correspondera visivelmente . Mas a epocha theatral estava findando , e quando chegou a ultima rГ©cita o pobre moГ§o viu fugirem-lhe com as ultimas notas do rondГі as primeiras alegrias da sua alma ! Primeiras , porque o mancebo amava pela primeira vez . AmГґr de poeta , amГґr inconsiderado , phrenetico , amГґr de louco se quizerem , mas amГґr verdadeiro e vehemente como sГі brota nas almas candidas e puras que vivem dos affectos e dos sentimentos ! Namorava muito , e era talvez por isso que ainda nГЈo tinha amado . Mas namorava por distracГ§ГЈo e nГЈo por vaidade ; pertencia mais por indole ГЎ familia dos Don Juan , do que ГЎ familia dos Lovelace . No fim d' um baile ou de um espectaculo retirava-se sem saudade , porque namorava sem amor ; tirava a sua inclinaГ§ГЈo antes de pГґr o seu albernГі ! Nos primeiros dias d' aquella paixГЈo , que surgiu desde o comeГ§o fervorosa e desabrida , Guilherme da Cunha sentiu que amava pela primeira vez : -- NГЈo Г© tarde , disse elle , tenho vinte e um annos ! Mas a idГ©a do amГґr amedrontou-o . Viu de repente como que n ' uma rapida appariГ§ГЈo todas as contrariedades do seu destino , sem antever a realisaГ§ГЈo d' elle . Teve medo ! O coraГ§ГЈo adivinhou-lhe os tristes lances que o esperavam . O que n ' outro caso seria a melhor das vantagens , era agora para elle o peor dos encargos -- Sophia era rica ! A fortuna do barГЈo de Sousa avaliava-se em mais de cem contos . Pobre e mediocre , Sophia seria d' elle : rica e nobre , como alcanГ§al-a ? Mas se o amor o intimidou , o amor depois lhe deu coragem . Nos theatros , procurava a com a anciedade phrenetica das primeiras inclinaГ§Гµes . Vel- a , era para elle a suprema felicidade : falar-lhe , seria a realisaГ§ГЈo do mais ardente dos seus sonhos . Mas Guilherme nГЈo fГґra ainda apresentado ao mundo , e apesar de que o seu nome era conhecido pela maior parte dos que ainda se dГЈo ao incommodo de lГЄr , todavia nГЈo tinha ainda reputaГ§ГЈo , e apenas os benevolos o consideravam como um talento esperanГ§oso . As portas de todos os salГµes estavam lhe portanto fechadas ; para ser admittido nos prezepios aristocraticos da sociedade lisbonense Г© preciso ter um nome que dispense uma posiГ§ГЈo , ou uma posiГ§ГЈo que dispense um nome : Guilherme nГЈo tinha uma coisa nem outra ! -- FaГ§a-se apresentar em casa do commendador Secco , disse-lhe Sophia : eu costumo ir lГЎ ГЎs terГ§as feiras . Guilherme da Cunha teve que resolver-se entГЈo a fazer as suas entradas no mundo , e pediu pela primeira vez uma apresentaГ§ГЈo , apesar de ter por divisa -- Em tudo sГі . Conseguiu . Na semana proxima o commendador Secco recebeu na sua sala com o melhor acolhimento e agrado , diante de uma sociedade escolhida , o neophyto que debutava na vida elegante , e que pisava pela primeira vez os tapetes de um salГЈo . A distincГ§ГЈo com que o tratou o commendador nГЈo foi sem motivo . JoГЈo Secco era um chefe de partido , que precisava alcanГ§ar adeptos , se nГЈo pela causa que nГЈo era sympathica , ao menos por elle que se esforГ§ava por ser agradavel sempre que das suas boas graГ§as antevia um resultado proveitoso . N ' essa occasiГЈo JoГЈo Secco sustentava um jornal de opposiГ§ГЈo ao ministerio , e achava-se reduzido a um sГі redactor politico , sem haver podido alcanГ§ar um folhetinista conhecido que lhe collaborasse a folha : Guilherme da Cunha seria uma boa acquisiГ§ГЈo . Na flor da vida , e no viГ§o do enthusiasmo , tinha reunidas ao talento estas duas preciosas qualidades que sГі a edade concede , e que sГЈo verdadeiros dotes para um folhetinista . JoГЈo Secco tinha lido n ' um dos jornaes de maior voga alguns folhetins de Guilherme da Cunha , e consultando um homem de espirito ГЎcerca d' elles soubera entГЈo que era geral opiniГЈo de que o mancebo revelava uma grande vocaГ§ГЈo para esse genero ligeiro mas difficil , que formou entre nГіs a reputaГ§ГЈo de Lopes de MendonГ§a . -- Tenho homem ! disse o bom do commendador quando viu Guilherme em sua casa . O neophito cheira-me a um ambicioso pequeno que quer a todo o custo apertar a mГЈo na rua a alguma condessa : pois se-lhe-ha um bom conhecimento por mez , a troco de um folhetim por semana ! -- Gosta do Whist ? perguntou este especulador ao apresentado ... -- SГЈo tГЈo mГЎu jogador que se v. ex.ВЄ quer dispensar-me ... -- O que lhe fГґr mais agradavel ! respondeu JoГЈo Secco interpretando a escusa por este modo -- tem medo de perder ! bom Г© que nГЈo possua as minas do Peru ! N ' essa noite Guilherme e Sophia disseram um ao outro tudo que tinham de mais importante a revelar-se . Os juramentos crusaram-se . Quando se deu o chГЎ estavam jГЎ os animos dos dois amantes em tanta intimidade como se desde creanГ§a se conhecessem . Tambem , Г© condГЈo do amor vencer o tempo e as distancias . Elles amavam-se tanto que o dialogo seria insipido para se narrar . Romeo e Julieta sГЈo os unicos amantes , a meu vГЄr , que amando-se muito , conseguiram dizer cousas que nГЈo enfastiassem os outros ! O que Г© preciso que o leitor saiba quanto antes Г© que o mancebo foi franco e leal em tudo que disse , e que rematou a sua declaraГ§ГЈo por uma phrase que apenas agrada no theatro : -- Sou pobre ! -- Todavia foi isso talvez o que agradou mais ГЎ filha do barГЈo de Sousa . -- Pobre , disse comsigo , e sГЈo os seus labios que m ' o dizem ! nobre sinceridade ! E veio reunida ГЎ admiraГ§ГЈo pela franqueza do mancebo , o desejo , o empenho de o salvar , de o engrandecer , de o tornar feliz . Eterna aspiraГ§ГЈo das mulheres que amam , cuja maior gloria Г© desempenharem o papel de anjo bom na grande e enredada comedia da vida ! -- Pobre e triste como eu o sonhava , disse ella ao ouvido da sua aia que a acompanhava sempre . Pois hei de enriquecel- o e consolal- o ! Perigosa idГ©a que nГЈo a desamparou desde entГЈo , e que se tornou a mais viva esperanГ§a da sua alma ! ГЃ meia hora depois da meia noite , Guilherme da Cunha apertava a mГЈo de Sophia , e dizia-lhe com voz tremula como se fosse uma despedida para muito tempo : -- Adeus querida ! Ao despedir-se de JoГЈo Secco e da commendadГґra , jГЎ que Г© moda entre nГіs dar tambem ГЎ mulher os titulos do marido , o mancebo percebeu que o agrado com que o haviam acolhido ГЎ entrada nГЈo durava jГЎ ГЎ hora da saida . O chefe de partido havia comprehendido que nГЈo era para o conhecer e tratar que o mancebo requisitГЎra ser-lhe apresentado . -- Quer namorar mais a seu commodo em minha casa , disse JoГЈo Secco a si proprio ; nГЈo lh'o consinto a menos de dois folhetins por semana , e traduzir as noticias estrangeiras ! Ajuste faz lei . Eu me haverei com elle . -- Tem bonitos olhos esse rapaz que retirou agora ! disse a condessa||_de|_Castello_Branco de||_de|_Castello_Branco Castello|_de|_Castello_Branco Branco|_de|_Castello_Branco . -- E uma bem feita mГЈo , acudiu Гѓ viscondessa da Lago . -- E uma grande alma ! exclamou Sophia com enthusiasmo . Millessimas cousas urgicas Hei de morrer com a scisma de que se a maior parte das modistas vivesse dos lucros que tira do que vende , seria caso tГЈo funesto e lamentavel que as pobres infelizes se suicidariam ao cabo do primeiro semestre ! E direi mais , e atГ© isto poderia merecer certa encardernaГ§ГЈo de aphorismo : Ninguem vive apenas do que parece viver . Longe de mim a idГ©a de desacatar as senhoras modistas de Lisboa , pessoas que me merecem a minha a maior sympathia : especie de fadas que que vieram converter em elegantes , tantas senhoras que a nГЈo ser os conselhos de mesdames Levaillant , Aline , Elisa , e tuti nГЈo poderiam nunca passar dos chapeus de casa de negocio , e dos airosos manteletes de loja de fanqueiro ! As modistas ! Que invenГ§ГЈo admiravel ! As modistas sГЈo uma novidade da importancia dos telegraphos electricos . Ellas nГЈo trouxeram sГі a Lisboa as modas e o bom tom : trouxeram-lhe os boudoirs , onde ha sempre duas peГ§as de fazenda por nГЈo deixar de haver , dois sophГЎs magnificos e uma excellente causeuse , e alguns quadros que representam velhas historietas d' amor , Maleck-Adel e Mathilde , Almaviva e Rosina , e atГ© Г s vezes Amor e PsychГ© . Amor e PsychГ©l Oh ! como ellas falam d' este quadro ! Como ellas falam do amor , essas deliciosas modistas que sabem de cГіr e salteado em que escaninhos do coraГ§ГЈo brotam o amor-paixГЈo , o amor-capricho ! Como ellas descrevem os casos de coraГ§ГЈo , essas modistas que teem durante a sua vida presenceado maior numero de aventuras , do que um tambor de oitenta annos tem tocado de alvoradas ! Segunda feira gorda ГЎ uma hora da tarde , a marqueza e Luiz de Lima recostados em dois soberbos sophГЎs no boudoir de madame||_Dupuis Dupuis|_Dupuis , modista celebre pelas mГЎs fazendas da sua loja e bonitas maneiras da sua pessoa , cavaqueavam d' amor com certa languidez de expressГЈo e abandono de attitude , que o proprio Figaro que se achava n ' um quadro dirigindo a serenata a la signora del balcone parecia encantado de ver entre os dois amantes reinar tГЈo completa harmonia . A marqueza disse ao medico mil coisas agradaram , e nГЈo quiz poupar-se a juramentos e promessas . Amava o , fazia do amor a sua gloria unica , e queria ser grande no amor como era grande em todos os sentimentos , proteger o seu amante , eleval- o , engrandecel- o , provar-lhe que o amava por elle e nГЈo por si , que nГЈo havia egoismo n ' aquelle affecto , que era nobre e rara a estima que sentia por elle . Foi isto o que a marqueza lhe disse entre protestos e meiguices , ora erguendo os olhos ao ceu com um ar de bondade e de candura indizivel , ora assumindo uma expressГЈo triste , vaga , e de um sentimentalismo romantico e mysterioso . O leque auxiliou-a para acompanhar essas phrases angelicas de gestos dignos de um cherubim . Amar outro ! ter um sГі instante pensado em Victor Marrocos ! quem se pensava entГЈo que ella era ? Victima da inexperiencia dos primeiros annos , ainda assim ella aprendГЄra com o inconsiderado passo que dГ©ra em casar-se , o que a alma soffre quando para sempre se encontra isolada de affectos e na impossibilidade de aspirar a um amor poetico , escolhido e preferido a todos . Ella terminou essa magnifica jeremiada tomando entre as mГЈos a cabeГ§a do medico , introduzindo os dedos pelos seus loiros cabellos , e exclamando com um ar digno de Emilia das Neves , e como revendo-se no seu amante : -- Meu amor eterno ! Mas Luiz de Lima estava experimentado na vida , e tinha jГЎ de ha muito assentado o seu juizo sobre o que valem todas as mulheres . Tinha conhecido de tudo , e havia encontrado no decurso da sua existencia dados para robustecer uma opiniГЈo triste e desagradГЎvel : -- que nenhuma mulher vale a pena de nos sacrificarmos por ella , porque todas nos deixam mais dia menos dia , por volubilidade , por ambiГ§ГЈo , por vaidade , ou por coisa nenhuma ! SГЈo diabolicas taes doutrinas , e quando a alma se gasta a ponto de especular com os sentimentos , Г© preciso haver cautela com o homem que chegoa a semelhante estado , porque Г© um homem perigoso . Luiz de Lima interrompeu as patheticas declamaГ§Гµes da marqueza , dizendo-lhe com uma expressГЈo de meiguice digna de RomГ©o : -- Tenho pensado muito no meu futuro ! -- E esperas alcanГ§ar apenas pela medicina os engrandecimentos do teu destino ? -- Que heide fazer ? disse o medico affagando a mГЈo da marqueza com um ar de victima enfastiada do banquete da vida . Estou velho de espirito ! envelheceu-me a vontade com as fastidiosas lucubraГ§Гµes da sciencia , e se nГЈo fosses tu , anjo bom da minha existencia , de ha muito que me esquivaria ao mundo e ГЎs exigencias que a minha posiГ§ГЈo me prescreve ! A marqueza bateu com o leque levemente na face do medico , e exclamou com uma soberba e magnifica expressГЈo de superioridade ! -- Vou salvar-te ! Luiz de Lima abrio muito os olhos , e fitou uma vista avida e curiosa nos olhos da amante , incendiados de uma luz esplendida de seducГ§ГЈo . -- Meu querido Luiz , disse-lhe ella , tambem eu tenho pensado no teu futuro , e sГі peГ§o que me deixes dar-te a taboa de salvaГ§ГЈo para te esquivares ao naufragio em que o teu sepleen tenta mergulhar-te a existencia . Queres-te casar ? -- Que ! -- Queres casar rico , tornares-te independente , e fazeres-me feliz a mim pela tua felicidade ? -- E Г©s tu que me propГµes ... Como entender-te ? -- NГЈo vГЄs acaso em tudo isto o alcance de uma affeiГ§ГЈo superior ? SerГЎs meu do mesmo modo , porque nГЈo te supponho ingrato , viverei contente por ter a consciencia de ser quem te alcanГ§ou a felicidade que outra mulher no meu caso sГі trataria de destruir . Quero-te independente e feliz ! Demais acrescentou com um sorriso maliciosamente galante , escolhi a noiva bem rica e tive cuidado em nГЈo a escolher bonita . Conheces a filha do barГЈo de Sousa ? -- Pois Г© ... -- Ella propria . mais de cem contos ! Pondera por um momento o que essa fortuna reunida ao teu talento te pГіde grangear no mundo ! Luiz de Lima estupefacto um momento , travou logo das mГЈos da marqueza e levou-as aos labios com religiosa expressГЈo de gratidГЈo , de amГґr , e de pasmo . -- E parece-te que poderemos continuar a ser felizes ? perguntou-lhe Thomazia Villar ternamente . -- Por ventura o casamento importa em alguma coisa ao coraГ§ГЈo ? ! NГЈo , minha vida , se alguma dificuldade vejo ao teu plano , nГЈo deverГЎ nunca ser a de duvidares de que o meu amГґr nГЈo seja partilhado por outra . Quando o dever apparece , o amГґr foge d' alli a nada ! Ha constantes exemplos do que te digo . Serei sempre o mesmo , mais ardente e apaixonado ainda ; porque quando o amГґr se robustece pela amisade e pela gratidГЈo , nГЈo ha mais energico e nobre sentimento ! -- Que dificuldade pГіdes ver entГЈo em tudo isto ? NГЈo tens confianГ§a em ti sufficiente para que nГЈo hesites na convicГ§ГЈo de poderes ainda apaixonar uma pobre pequena que nГЈo conhece o mundo nem a vida , e que verГЎ em ti o seu salvador ? disse a marqueza com um sorriso ironico e galante . -- NГЈo sabes o que ha , ao que parece ! Ignoras que a filha do barГЈo de Sousa namora despropositadamente um rapaz , escriptor publico , um Guilherme da Cunha que escreve n ' um jornal do governo ... -- Dura isso ainda ! Meu Deus , como a maior parte da humanidade se entretem a namorar ! Sim , conheГ§o esse rapaz , encontra-se Г s vezes em casa de Castello Branco . Pois dizes bem , vejo que Г© um obstaculo de alguma importancia ... para a pequena : mas para nГіs ? ! Vejo que esqueces as circumstancias que se dГЈo . O barГЈo de Sousa nГЈo pГґde , sГЎbel- o como eu , recusar a menor cousa ao marquez : por outro lado , vГЄ com que boa vontade o marquez se hade interessar em que tu cases , tanto mais que desejarГЎ ver-te preso , por isso que desconfia que te distingo ! a filha nГЈo tem papel no drama senГЈo como uma comparsa de utilidade ! Emfim , esta noite falarei d' isto ao marquez : apparece ГЎmanhГЈ em S. Carlos , assisto ao baile de mascaras , guardei a frisa . Vae visitar me no meio da noite , e lГЎ mesmo o marquez e eu te diremos o que houver . -- Minha querida Thomasia , porque nГЈo Г©s tu solteira ? ! exclamou o medico como acordando de um extasis . -- E porque te amo eu , apesar de casada ? ! disse a marqueza erguendo os olhos ao ceu : -- Adeus ! continuou ella , depois de uma breve pausa em que pareceram ambos dominados por uma tristeza infinita . Os rapidos momentos em que estamos juntos sГЈo o balsamo consolador da minha existencia ! AtГ© ГЎmanha , em S. Carlos ! -- E atГ© quarta-feira de cinza aqui ! respondeu o medico beijando a mГЈo que lhe estendia a marqueza de Villar . A marqueza desceu a escadinha que conduzia ГЎ loja de madame||_Dupuis Dupuis|_Dupuis , recebeu das mГЈos d' esta modista historica um embrulho com rendas de FranГ§a , que lhe havia encommendado ГЎ entrada para que o marquez pudesse persuadir-se facilmente que ella sahira com o fim de fazer compras ; depois entrou para a americana , e partiu no momento em que Luiz de Lima que ficГЎra ainda no boudoir entregava o seu espirito a estas sabias meditaГ§Гµes : -- Um casamento rico ! irei viajar aproveitando a occasiГЈo de me formar na Universidade de Paris , e em alguma das de Allemanha ! Um sceptico de botequim ou algum athГЄo de salГЈo , nГЈo poderia agora ponderar que o matrimonio , a maior parte das vezes , protege mais os amantes do que os maridos ! E desceu pela escada praticavel , em quanto madame||_Dupuis Dupuis|_Dupuis subia a escadinha particular para ir ver se o doutor jГЎ teria saido . NГЈo encontrando ninguem , a modista sentou-se no sophГЎ onde meia hora antes estavam ainda sentados Luiz de Lima e a marqueza de Villar , e ponderou consigo mesma : -- Entre dois amantes um d' elles ama mais do que o outro , portanto o outro precisa exagerar um pouco o seu amor : n ' este caso qual d' elles serГЎ enganado ? o medico ou a marqueza ? e quem sabe se ambos se enganam mutuamente ? ! Alguns dias depois a marqueza de Villar , recebia a seguinte carta , em que o leitor reconhecerГЎ que o medico nГЈo havia perdido tempo , e que era homem capaz de aproveitar o impulso de uma occasiГЈo feliz ! " Minha querida Thomazia . -- NГЈo sejamos auctores mediocres , minha boa querida :o enredo Г© o grande elemento no theatro do mundo . Se quizeste dar-me a idГ©a do drama , consente que seja eu quem urda as peripecias . E se quizeres , para decidido triumpho da nossa obra , encarregares-te de um dos papeis principaes ! NГЈo rias : attende o meu plano e reconhece que sou um dramaturgo manquГ© , e que a minha vocaГ§ГЈo vae mais depressa para uma composiГ§ГЈo scenica , do que para a boa redacГ§ГЈo de uma receita ! Ora oiГ§a , a minha collaboradora ! " Falei com il mio rivale , e estou ao facto das situaГ§Гµes do prologo . Os dois pequenos cherubins ( poveretti ! ) querem acabar como as novellas antigas -- casando e tendo muitos filhos ! " O rapaz ( repara n ' isto ) quer lanГ§ar mГЈo de qualquer meio que possa alcanГ§ar-lhe o casamento . NГЈo escolhe : declara todos excellentes ГЎ priori , comtanto que o seu fim nГЈo falhe . EstГЎ perdido de sentimentos a ponto de prescindir do dote e querer a noiva sГі por seus dotes ... naturaes ! VГЄ a que chega a villeza das almas pequenas ! Г‰ um d' esses maniacos que sГЈo da opiniГЈo dos galans de opera-comica O oiro ! vil metal ! Essa chimГ©ra fatal ! " O rapaz , Г© isto que desejo que ponderes , considera-me o seu mentor , o seu pae||_Fourcheron Fourcheron|_Fourcheron , e decidiu que vae seguir os conselhos que lhe dei . Queres agora , meu anjo , saber que conselhos foram ? LГЄ e pasma . " Disse-lhe que te fizesse a cГґrte , que deligenceasse por te agradar e te merecer , e que soubesse tornar-se digno dos teus favores . Que te dissesse depois , um dia , n ' alguns d' esses ternos cavacos entre amantes que se idolatram , e que sГі desejam serem uteis um ao outro , que te dissesse a sua posiГ§ГЈo , mas que te occultasse como Г© natural o seu amor por outra . Que se transformasse n ' um melancholico Didier amargurado e afflicto , e que atirasse emfim a sua ultima e decisiva phrase : -- Preciso viver e estou sem futuro ! -- que tu deverias traduzir d' este modo -- necessito casar rico porque nГЈo tenho dinheiro . -- Que te pedisse entГЈo que volvesses olhos piedosos para salvar o teu amante ; e explicando-lhe finalmente a influencia ( que aliГЎs elle jГЎ conhecia ) que o marquez tem sobre o barГЈo de Sousa , consegui fazer-lhe vГЄr que a menor recommendaГ§ГЈo tua ou de teu marido ao barГЈo protegendo esse casamento , seria para elle Guilherme negocio prompto e decidido . " JГЎ ves o alcance do penultimo acto ! E's tu quem deves preparar o desfecho , aliГЎs a peГ§a morre pelo final . te-has a acceitar-lhe os votos de amor , e a prevenГ§ГЈo em que jГЎ estГЎs de que elle vae representar comtigo deverГЎ animar-te a uma mystificaГ§ГЈo superior e justa . O meu papel consistirГЎ apenas em fazer prevenir o barГЈo e a filha , de que Guilherme te prefere a elles , e conseguir reunil- os num logar onde ella possa observar o seu Tytire bucolisando comtigo . Preveni tudo , aconselhando o rapaz a que nГЈo prevenisse a namorada d' esta estrategia amorosa que vae alcanГ§ar-lhe a mГЈo d' ella , porque apesar de ser uma comedia sublime pГіde comtudo tornar-se degradante aos olhos de uma mulher que prefira a impossibilidade da uniГЈo a um casamento alcanГ§ado por semelhante meio . De modo que a Sousa hade cair ГЎ queima-roupa sobre esta bucolica que esqueceu a Virgilio , e ferida no seu amor proprio dignar-se-ha volver olhos misericordiosos para o bom do pae que lhe hade entГЈo explicar miudamente -- de como eu posso ser o melhor dos maridos ! " Tem paciencia , meu amor , sujeitei-te ao desenvolvimento da tua generosidade . Foste a primeira a dar-me a iniciativa para a comedia , dГgna- te agora representar de modo que me caiba a mim applaudir-te . " Em quanto Thomazia Villar lia e relia a prosa de Luiz de Lima um pouco mais elegante a seus olhos do que o estylo dos melhores puristas porguezes , em quanto o seu coraГ§ГЈo lhe pulsava impaciente e phrenetico a simples idГ©a de pГґr em pratica tudo que o seu amante n ' essa carta lhe explicava e lhe pedia , Luiz de Lima que estava almoГ§ando na companhia de JosГ© d'Athayde entretinha com o noticiarista um dialogo que nГЈo deixa de ter feiГ§ГЈo . -- Quanto fazes tu por mez pela medicina e pela marqueza ? perguntava-lhe o noticiarista com um cynico sorriso . -- A medicina nГЈo me rende nada e Thomazia ainda me rende menos ! Procurei com esta ligaГ§ГЈo a faculdade de me relacionar e de ser convidado para toda a parte . Um quanto a interesses miudos , creio que me fazes a justiГ§a de acreditar que sou incapaz de acceitar dinheiro de uma mulher . A prostituiГ§ГЈo no homem Г© a mais completa das villanias ! -- Dinheiro !