Ao Illustrissimo e Excellentissimo Senhor||_ANTONIO_AUGUSTO_TEIXEIRA_DE_VASCONCELLOS ANTONIO|_ANTONIO_AUGUSTO_TEIXEIRA_DE_VASCONCELLOS AUGUSTO|_ANTONIO_AUGUSTO_TEIXEIRA_DE_VASCONCELLOS TEIXEIRA|_ANTONIO_AUGUSTO_TEIXEIRA_DE_VASCONCELLOS DE|_ANTONIO_AUGUSTO_TEIXEIRA_DE_VASCONCELLOS VASCONCELLOS|_ANTONIO_AUGUSTO_TEIXEIRA_DE_VASCONCELLOS Bacharel formado em direito pela Universidade de Coimbra , Membro do Real Conservatorio da Arte Dramática , e do Instituto de Coimbra , Socio correspondente da Academia Real das Sciencias de Lisboa , membro effectivo das Sociedades de geographia de Paris e de S.||_Petersburgo Petersburgo|_Petersburgo e de varias outras sociedades nacionaes e estrangeiras Deputado da Nação Portuguesa , eleito por Bardes na india , e director politico da Gaseta de Portugal etc. III . mo e Ex.mo Sr. Foi v. ex.a quem primeiro que abriu as portas da imprensa , convidando-me para ser um dos fundadores e redactores da Gazeta de Portugal , honra que eu acceitei com tanto maior alvoroço quanto menos me era devida . Não era eu então escriptor , nem o sou agora , posto que tenha trabalhado tanto que o pudera ser . No desempenho das obrigações d' esse difficil cargo , posso dizel- o com a mão na consciencia , e v. ex.a não terá de certo duvida de m ' o confirmar com o seu testemunho , procurei ser justo com todos , e liberal sempre . E valeram-me sem duvida a verdade e os principios que sustentava paraque o publico me perdoasse a falta de pompa nas palavras , e para que fosse menor a desesperação que eu sentia de não poder imitar os vóos dos meus collegas na redacção , tão cabaes nas sciencias como admiraveis no estylo . O livro que offereço a v. ex.a é uma collecção de artigos escriptos a lapis e em tudo similhantes a esses que eu enviava , da camara dos deputados , para a typographia da Gazeta , e que v. ex.a tinha depois o incommodo de illuminar . O romance , digo-o aqui em segredo , é apenas a fórma , o disfarce com que pretendo introduzil- o nas estantes , e obter-lhe pousada mais larga do que é costume conceder aos jornaes , que aos primeiros raios do sol se derramam por toda a parte , mas que em nenhuma ficam de assento mais de vinte e quatro horas ; quanta luz tinham se lhes apaga , quanto valor possuiam se lhes deprecia ; eil- os confundidos , no dia seguinte , com as var reduras , e colhendo só desprezos . Sobre esta razão accrescentava outra para mim de maior momento : é que o romance tem dominios seus , vastos e exclusivos , e o jornal não pode entrar n ' elles senão disfarçado , como os missionarios do christianismo entravam algum dia nas terras dos pagãos . Se pelo mal imitado dos trajes eu não puder lograr o meu fim , podem os guarda-barreiras rir-se da minha ousadia , mas peço-lhes que tenham consciencia e coração bastante para me respeitar a intenção ; que em nobre empresa a mesma que da é nobre . É necessario que os principios da liberdade , igualdade e fraternidade , eternos na sua duração , sejam tambem universaes na sua applicação ; que traduzidos em instituições , leis e costumes , se estendam por toda a superficie do globo , e penetrem até as suas ultimas camadas . Só então a regeneração do homem será completa . Proclamando-o aqui em alta voz , e desejando-o com toda a energia do meu coração , não cuido que seja seduzido por uma miragem social . E que o fosse , mesmo assim eu não ganharia pouco , porque é esta uma das taes utopias beneficas e esplendidas que despertam com grande poderio o nosso animo , que elevam os misera veis acima das suas miserias e os afortunados acima do seu egoismo , e transportam a uns e outros ás alturas do Synai , d' onde só se descortina a bandeira hasteada no cume do Calvario , que é a bandeira da humanidade . O germen d' este romance é um fado historico . Desenvolvi-o , pintando os costumes da sociedade anglo-indiana , e creando alguns personagens è episodios , menos pelo desejo de crear do que forçado pela pobreza do assumpto . Não sei se fiz mal ; se mais valera ao facto a sua natural pobreza do que as minhas chamadas galas , com as quaes , sem hVa remediar , talvez o tornas-se ridiculo . Sou eu o primeiro a reconhecer e confessar os defeitos d' este livro . Novidade e grande me-ha o leitor se disser o contrario . V. ex.a sabe que não sou romancista ; e os que o não sabem , sàbel- o-hão agora , quando repararem nos traços pouco firmes , e nas còres pouco vivas com que são desenhados os personagens e os quadros d' este livro , a que me afoito a chamar romance , com a mesma liberdade cora que ha por ahi muita gente que se chama Napoleão ou Newton . Quanto á phrase , não me saiu ella pura e correcta como o merecia a lida que n ' isso puz ; fôra preciso para tanto , mais largo conhecimento da lingua portugueza , que não cabe a quem não a fallou desde a infancia , nem a exercitou depois com mestres . Isto de ser romancista não é cousa tão facil como de fora e á primeira vista parece . Nunca tãe claro o senti como agora , e já bastante para não cair em outra , e para admirar ainda mais os que , entre nós , n ' esta parte da litteratura têem colhido coroas e obtido triumphos . Voo pois contar a v. ex.a lisamente e com ver dade o que me acontecia ao urdir o enredo d' este romance . Creava dois , tres , quatro personagens " insuflava-lhes vida , vestia-os o melhor que podia , ensinava-lhes fallas , gestos e maneiras ; de pois contemplava-os com ineffavel prazer , e direi mesmo , com certo orgulho . Pareciam-me tão bellos ! N ' isto tocava ao almoço , e eu ia almoçar . Não me demorava nem meia hora , porque tinha saudades da minha gente . Voltava , mas , santo Deus , que mudança ! Os personagens eram todos feios ; os trajes assentavam-lhes como mascarada , e as suas fallas sentia-as frias como o gelo . Indignado e cheio de furor , pegava no cutelo , e zás trás , zás trás , matava tudo . Era horroroso o espectaculo que tinha então diante dos olhos : cabeças decepadas , braços amputados , dedos partidos , sangue , minas , vesperas sicilianas , emfim ! No dia seguinte tornava-me ao logar da carnificina . Parecia-me horroroso como um campo de batalha , e triste como um cemiterio . Chorava lagrimas de dôr e de arrependimento sobre os personagens que alli jaziam , e dizia-lhes : -- Oh ! por que não sou eu rico como Sakspeare , que sustenta populações inteiras ! abastado como A. Herculano , Castilho , Mendes Leal , A. Augusto , Rebello da Silva , que alimentam familias , sem que similhante liberalidade lhes cerceie a abastança ! rico como Castello-Branco , cujos bem providos celleiros bastariam só por si para matar toda a fome de Cabo-Verde ! O mais bello dom dos romancistas e poetas , a sua grandeza é a liberdade de crear . Que ha ahi que se aproxime mais das attribuições de Deus , do que esse poder de inventar heroes , e conquistar para elles desde logo a fé dos espiritos , o enthusiasmo dos corações , e o privilegio da immortalidade ! Pois esta liberdade , tão cara a poetas e romancistas , era-me incommoda a mim , que não podia respirar debaixo do seu immenso ceo , nem governar-me na anarchia do seu infinito . Pela primeira vez na minha vida tive saudades da escravidão da mathematica , e da servidão da economia politica . E só depois que moderei os meus instinctos homicidas e agrilhoei os meus braços , é que pude andar e terminar este romance , que , se não tiver para v. ex.a nenhum outro merecimento , têl-o-ha , n ' isso não cabe a duvida , o de provar a gratidão de quem tem a honra de ser De v. ex.a Collega e amigo obrigado Francisco Luiz Gomes . No districto -- Oude , ao sul do famoso Gográ , e a breve distancia de Lucnoa , está situada Fizabad , a antiga capital do reino . Opulenta outr'ora , as suas muralhas tinham sido famosas antes de 1775 , mas jazem hoje desmoronadas ; o seu palacio de Sujá Doulá fôra magnificente mas caiu em ruinas ; a sua população rica emigrou para Lucnou ; fugiram d' alli os reis , os principes , a côrte , o luxo e as paixões , cedendo o seu logar aos lavradores , aos rouxinoes , á amenidade e ao trabalho . E campo o que fôra cidade . Na epoca em que succederam os acontecimentos que vamos narrar , Fizabad pertencia ainda á dynastia Doulá . Tinha escapado á voragem do famoso tratado de 1801 , em que o nababo||_Asof Asof|_Asof , escravo do destino e victima da propria fraqueza , vira com resignação a poderosa companhia das índias quebrar-lhe em bocados a coroa , e retalhar o reino , conservando-lhe apenas , em premio de tanta humildade , um titulo vão e uma soberania phantastica . Este golpe tão profundo , como robusto era o braço de lord||_Wellesley Wellesley|_Wellesley que o vibrara , tornou-se cancro . E Oude , que encerra as origens dos quatro rios sagrados da India e a famosa Benares , que é a Roma do bracmanismo , desmoronou-se e caiu em 1856 no vasto sorvedouro do imperio britanico . No recosto de um teso , no centro de Fizabad , viam-se em 18... , como as do solitario eremiterio suspenso no cimo da montanha , as alvissimas paredes de um bangaló , cercado da ramagem de umbrosas mangueiras , que depois de o guarnecer de uma densa e viçosa cinta de verdura , colleava e se estirava pelo teso abaixo até se perder nas extensas campinas . Para mais realçar este quadro , á esquerda as aguas do Gográ resplandeciam com a luz do brilhante sol dos tropicos . O bangaló visto de perto dava idéa do luxo oriental , e do estylo leve e gracioso da architectura indiana . Era uma casa alta com tecto de forma conica e achatado , sustentado sobre quatro renques de pilares . As suas paredes , construidas de pedra , eram grossas como as muralhas de uma fortaleza . Cercava-a em todo o ambito uma varanda com balaustres de pau sandalo , abrigada dos ardores do sol pelas redes tecidas de raizes aromaticas , flores perennes , que , orvalhadas pelo ar da madrugada , exhalavam todos os dias perfumes suavissimos . O jardim , as cascatas , e os pankás conservavam nas diversas salas d' este vasto edificio uma frescura eterna . A longa escada que conduzia para o bangaló começava na raiz do teso e acabava no gradeamento . Era toda de pedra , e ladeada de duas ordens de frondosos arbustos , cujos ramos entrelaçando-se formavam um sobreceo continuo e ondulante . Não são raros na índia similhantes bangalós , em que o luxo rivalisa com as commodidades , verdadeiros templos onde o nababo , o rajá e o sahib , reclinados em riquissimas ottomanas , e n ' uma somnolencia voluptuosa , recebem as adorações de turbas de servos submissos , e indolentes . Não pôde deixar de ser conhecido do leitor , pela fama , o bangaló Constância do general Clau de Martin , sendo monumento da magnificência e bom gosto e uma das maravilhas de Oude . Custara mais de cento e sessenta mil libras a sua eonstrucção . O Griffin No referido anno de 18... o bangaló de Fizabad pertencia a uma familia irlandeza chamada Davis . Compunha-se esta de Mr. Davis , velho octogenario e paralytico , e de Roberto seu sobrinho e futuro herdeiro . Mr. Davis era natural de Dublin , d' onde viera de poucos annos para a India , em companhia de seu pae , que era official do exercito de Bengala . Sem nenhuma propen são para as armas e para os cargos publicos , Davis separou-se de seu pae e partiu para Oude , onde se estabeleceu como cultivador de tabaco . E tão bom maneio deu a esta industria , até alli nova no paiz , que em breve praso ajuntou immenso cabedal . A sua avidez , que crescia a par da sua riqueza , prendeu-o por tal modo á India , que n ' ella veiu a envelhecer-se , sem nunca haver realisado o projecto que concebera de voltar para a Europa . Um ataque de paralysia veiu finalmente cerrar-lhe para sempre as portas da patria e tolher a realisação de um projecto tantas vezes espaçado . Havia dois annos que Davis jazia no seu leito , reduzido á sua segunda infancia , e como tal assistido e tratado . Fôra antes d' este inopinado acontecimento e para perpetuar sua prosapia , que elle mandara chamar o sobrinho que o leitor vae conhecer agora . Era Roberto bem apessoado , de gentil semblante , e com todos os dons que dão agrado . Tinha trinta e dois annos , e havia apenas mezes que estava em Oude , administrando os bens de seu tio , dos quaes depois da morte d' este devia ser senhor , em virtude de testamento . N ' uma edade tão nova , tão cheia de vida , e de movimento , tão vaporosa como a propria Londres , Fizabad devia horrorisal- o como o claustro horrorisa a donzella que n ' elle vem sepultar , amortalhadas no grosseiro burel , a mocidade e a formosura . Roberto padecia e esperava no seu purgatorio . Os que haviam conhecido o moço sobrinho de Davis , no viço das suas vinte e tantas primaveras , radiante da alegria e entregue a todos os prazeres , desconhecel-o-hiam agora . Mudara completamente . Já não tinha aquellas maneiras delicadas e finas , creadas pela boa educação e aperfeiçoadas com o uso da sociedade . O seu caracter azedara-se na solidão . Havia só um momento em que o veo sombrio da muda tristeza que lhe entenebrecia o rosto se rompia , e um sorriso assomava aos seus labios : era quando tirava da algibeira o retrato da sua Helena , e o cobria de beijos . Na sua solidão era-lhe este retrato unico allivio . Com elle falava e até criaque o retrato lhe respondia . Helena era linda como o sol , e orphã de mãe , a quem o seu nascimento custaraa vida . Roberto deixara-aem Londres , em casa de uma familia irlandeza de abonada probidade , de quem recebesse a educação que elle com avultados cabedaes não conseguiria quejunto d' ellelhe fosse dada . A vida de Roberto corria monotona entre os deveres e as lembranças . O dia de hoje passava-se como o de hontem , o de amanhã havia de passar-se como o de hoje . De manhã trabalhava no escriptorio ; das cinco para as seis dava um pequeno giro , montado no seu lindo cavallo arabe ; ás sete jantava ; á noite tomava chá com frei||_Francisco Francisco|_Francisco , missionario portuguez de Oudo . Não lia porque todos os livros lhe pareciam tristes : jornaes , nem os abria . Outro teria recusado a herança por tal preço ; elle não , que tinha uma filha , cujo futuro unico lhe pejava o coração , distrahindo-o por instantes da sua tristeza . Roberto conservava todos os habitos e costumes que trouxera da Europa , com tanto maior rigor quanto lhe parecia extravagante e ridicula a vida molle , a que na India se habituavam os seus conterraneos , sobre a qual não raro resvalavam os seus chascos entremeados com o juramento de que havia de manter sempre a pureza e austeridade de griffin Os conductores do palanquin o preparador do uka , os criados do pankà , o porta-chapeo , o botler , o moço do divan , o amassador , eram para o austero Roberto outras tantas sinecuras , tão ridiculas como importunas , que deviam ser supprimidas , e tel- as-hia cerceado de facto se não fôra a condescendencia que lhe cumpria ter com seu tio , que era ainda o senhor da casa . Roberto não havia conhecido senão a sociedade no meio da qual se educara , e mancebo tivera todos esses defeitos que os annos corrigem depois , e que às vezes até transformam em virtudes . Quando chegou á Índia , estava já enfermo seu tio e ausentes da cidade os poucos inglezes , que eram obrigados a residir n ' ella em razão dos seus emprégos . Afastado de todos , triste e esmagado debaixo do peso da saudade , nem animo nem paciencia lhe sobravam para estudar os costumes da India , e mais não cuidava fossem tão diversos dos da Europa . O spleen , que devorava o moço sobrinho de Davis , revelava se não só no seu ar triste , e nas suas maneiras seecas , mas no modo um pouco sobranceiro , com que tratava os numerosos criados . Poucas vezes lhes dirigia a palavra ; ás perguntas respondia com enfado , e aos seus salamalecks com desprezo . Não exceptuava d' estaregra nem o fiel brahamane Magnod , que possuira a confiança do velho Davis , e lhe merecera sempre particular estima e consideração . Quem era esse Magnod ? E o que o leitor vae saber . A puresa dos brahamanes Os brahamanes são uma dynastia e uma casta . Brahama é o sol , e os brahamanes os seus raios . Os brahamanes sairam da bocca de Deus , como o mais puro dos seus verbos , e os sudros nasceram dos seus pés , como o mais vil pó . Não é dado ao sudro nem ao paria tocar no brahamane , como não é dado ás raizes tocar nas flores , nem á planta do pé tocar na bocca . As mãos do paria que tocarem no brahamane imprimem n ' elle o sello indelevel do inferno ; o sangue da vacca que se esparzir sobre o seu corpo , penetra-o até á medulla dos ossos . A pureza do brahamane é como o orvalho pendente da folha , o qual desapparece para sempre , apenas n ' elle se toca . Ha quedas que são augustas transformações . Cae Job no abysmo de miserias e encontra n ' elle a magestade e a grandeza . Asualepratorna-se purpura ; as suas lamentações convertem se em hymnos ; a sua solidão povoa-se de anjos ; as suas trevas alumiam-se do esplendor da sua fé ; ea sua dôr adormece aos embalos da esperança . Cae Saulo e levanta-se Paulo ; cae o timido galileu e levanta-se Pedro , inflammado no amor e purificado pelas lagrimas ; cae a Magdalena infame e levanta-se Magdalena sublime . A. queda do corpo é o infortunio ; a queda do espirito é o peccado . O arrependimento é a medicina do peccado , como o infortunio é o leite da santidade . Só para o brahamane que fôr uma vez tocado das mãos profanas do paria , ou do sangue da vacca , não ha salvação . Cae como Carthago , Ninive e Jerusalem . Nunca mais se levanta . A sua queda chama-se o inferno . O brahamaneé comparado ao diamante de Golconda , quenuncafaz sombra ; e ao . arminho branco daBretanha , que morre daprimeira mancha . A sua pureza deve ser , como a virgindade , uma inteireza perfeita , intemerata , que não pode crescer nem minguar . Pode a lua , totalmente escurecida , restituir-se outra vez á sua natural luz e formosura ; não assim o brahamane , que uma vez infamado , nunca volta á sua pureza ; não assim a honra da virgem , que uma vez perdida nunca mais se recupera . Eis ahi o brahamane , qual o pintam as superstições , o orgulho e o fanatismo , e não os vedas ; que o brahamane d' estes é menos puro e mais humano . Magnod era brahamane como o queriam as superstições e não como o definiam os vedas . Entrara em tenra edade na casa do velho Davis , e ahi fôra recebido com os braços abertos pela fama que tinha de esperto e de muito versado na lingua ingleza . Dotado da mais clara intelligencia , da perspicacia natural á sua casta , e de actividade pouco vulgar na índia , facil lhe fôra ganhar dentro de pouco tempo a intimidade e conliança de seu amo , que o respeitou sempre como o instrumento da sua fortuna e o tratou como seu amigo . Magnod teria trinta a trinta e cinco annos ; bem proporcionado e robusto , tez bronzeada , olhos pretos , nariz aquilino , um bigode denso e azeviche cobria-lhe os beiços delgados e tintos , de betle ; o seu olhar era profundo , e escrutador ; na sua physionomia havia não sei que de grave . Vestia , por cima de uma especie de blusa branca , um casaco de casimira escura , tendo do lado esquerdo uma algibeira , da qual pendia uma linda corrente de oiro ; uma peça de lençaria , atada na cintura e posta com tanto geito que affectava a forma de calças , cobria-lhe as coxas ; as pernas estavam nuas ; nos pés trazia sapatos encarnados , de bico revirado ; e na cabeça sobresaía uma touca da mesma cor . Magnod não tinha cubiça de dinheiro . Atormentava-o a sêde de honras e distincções . No dia em que Davis o afagava com uma caricia e lhe dirigia um comprimento affectuoso em inglez , o coração não lhe cabia no peito de contente . Queria ser tratado como socio da casar tal era o seu dizer . Davis , a quem fazia mais conta pagar os serviços e a fidelidade de Magnod com palavras do que com dinheiro , não poz estorvos , antes alimentou o fatuo orgulho do brabamane , que já por tal modo estava habituado ás attenções de seu amo , que as requeria quasi como um dever . Em tudo mais o caracter de Magnod era reservado . Ninguem sabia dissimular melhor um resentimento , disfarçar uma ira com um sorriso , adiar uma vingança e esconder uma lagrima . Magnod , posto que esclarecido , era de uma logica teimosa , e inflexivel em tudo quanto diz respeito á sua religião . 0"base="0 seu pantheismo , porém , nem era tão grosseiro que o arrastasse a uma vida material e voluptuosa , nem tão sublime que o alçasse a espantosas macerações , cilicios e abstinencias . Cego de fanatismo , e escravo da fatalidade da sua logica , recusava aos parias e sudros a sympathia que concedia aos irracionaes . O principio das castas , defendia-o , já se vê , com todas as forças . Era dogma . Fora Deus quem concedera aos brahamanes o privilegio d' essa rehabilitação da queda original , que o ebristianismo estende a todas as creaturas como um direito , e que promette a todos os infelizes como a melhor esperança do futuro , e a mais doce consolação do presente . O conhecimento da civilisação europea , a convivência com Davis , o longo tracto com fr. Francisco , não tinham , nem levemente , modificado a rigidez das crenças de Magnod . Os principios , as imagens e os sentimentos sublimes que lhe apresentava o veneravel sacerdote do christianismo , ora estampados nas paginas sacrosantas da biblia , ora copiados fielmente no seu coração e vida exemplar , não poderam abrandar , sequer , o orgulho do altivo indio . Ha pouco um brahamane transportou-se ás margens do Ganges , e alli caiu desfallecido . As ondas do rio sagrado deviam arrebatal- o para o ceo . Um inglez , julgando-o victima de algum accidente , recolhe-o em sua casa , e ministra-lhe cuidadosamente todos os soccorros . -- A casta brahamane declara infame o seu correligionario por haver bebido com os estrangeiros , e a justiça britanica condemna o inglez a alimental- o . Não podendo resistir a tanto opprobrio , o braha mane quer matar-se , e o inglez deixa-o em paz consummar o suicidio . Magnod era brahamane d' esta tempera . Facil nos é comprehender , com o caracter que conhecemos a Magnod , quanto o de viam incommodar os maus modos de Roberto , e quanto lhe devia ser difficil acanhar , os gestos de dignidade , que o habito demandar vertera em toda a sua pessoa . Roberto poucas vezes lhe falava em inglez , e muitissimas o escarnecia chamando-lhe gentleman of colour . Com apparente indifferença ouvia Magnod taes motejos ; mas em seu peito fervia um volcão e lavrava-lhe pelas veias fogo devorador . O momento da explosão não era chegado ainda . A queda A sala de jantar no bangaió era uma espaçosa galeria com cinco janellas que davam sobre o jardim . Uma pequena cascata de agua nativa tornava aqui mais viçosa a vegetação ; o chão era todò alcatifado de relva ' ; e as jasminaceas , baloiçando-se lascivamente com a brisa da tarde , exhalavam suaves fragancias . Na parede opposta á das janellas , via-se um riquissimo panká de seda , com grandes frocos fluctuantes . Dois robustos criados o agitavam sem descançar . Eram sete horas , dia quinta feira , mez de bril . Á roda de uma mesa , onde brilhavam finissimos crystaes , pratas de Scinde e loiças de Japão , estavam assentados tres homens . Dois lustres pendentes do tecto illuminavam os convivas eom um clarão tão brilhante como a luz do dia . Um era Frere , joven official do exercito da India , e exercendo as funcções de residente na côrte de Asof ; outro , que tinha a fronte calva , suissas brancas e rugas na testa , era Smith , o primeiro magistrado de Oude , e a todas as luzes o mais douto da companhia . O terceiro , que estava sentado no meio d' elles , era Roberto que fazia as honras da casa . Frere tinha começado a falar acerca do espolio da ultima rainha fallecida em Fizabad . Fazia a descripção das riquissimas joias d' esta princeza e dos seus thesouros , avaliados em mais de dois milhões de libras esterlinas . O magistrado e Roberto escutavam-o em silencio . N ' isto abriu-se uma porta e entrou um sipai , que , depois de fazer tres profundos salamaleks , entregou a Roberto um papel fechado que trazia na mão . Era um despacho telegraphico . Roberto , depois de inclinar-se em signal de pedir venia aos seus hospedes , abriu a carta e percorreu com avidez as poucas linhas que ella continha . Depois , voltando se para o sipai , disse com vivacidade . -- Magnod que venha aqui quanto antes . Preciso falar-lhe . O sipai partiu , e momentos depois voltou com a resposta que Magnod não queria vir . Ou muito de proposito , ou por engano , o sipai dava um recado que não era exacto . Magnod dissera que não podia vir . De querer a poder vae muitas vezes uma insolencia . Roberto , vivamente contrariado com esta inesperada resposta , lançou os olhos aos hospedes . Estavam indignados . Assaltou-o a colera por tal modo , que sem se lembrar do logar onde estava , e quasi fora de si , bradou batendo o pé e dirigindo-se para os hamales : -- trazei-m ' o aqui já e já ... ainda que seja de rastos . Mal estas palavras foram pronunciadas , os ha males desappareceram como um raio . D ' ahi a pouco assomou á porta Magnod com um joeliio em terra e oulro no ar . Dois criados Traziam-no agarrado pel s braços . Fazia horror vêl- o . Com os vestidos em desalinho , os cabellos soltos , a cabeça sem o inviolavel turbante , as faces lividas , arfava-lhe violentamente o peito , alvejava nos cantos da bocca a escuma , e nos olhos lampejavam brilhantes chispas . A um acceno de Roberto , os criados largaram os braços de Magnod . O brahamane foi collocar-se á esquerda de seu amo . Alli deixou descair os braços , curvou a cabeça sobre o peito , e ficou immovel por alguns instantes . -- Não sabes que deves a obediencia ao teu senhor ? perguntou-lhc Roberto entreabrindo os labios tremulos . -- Perfeitamente ! respondeu o brahamane com uma tranquillidade fulminante ; assim como sei que um brahamane a deve primeiro que tudo a Deus ; que nobre e senhor tambem eu sou . Smith e Frere ouviam em silencio , mas com impaciencia , este dialogo . Conheciam sobejamente o caracter violento de Roberto , e já haviam percebido assás a altivez do brahamane , para não recearem alguma occorrencia desagradavel . -- Que me importa a mim o teu Deus ? O que me importa são os meus criados ; redarguiu Roberto com violência . -- Senhor , replicou Magnod , erguendo a cabeça e com os labios tremulos de colera . Depois que os vossos baixos hamales puzeram mãos impuras no meu corpo Isagrado , não posso nem devo trocar comvosco uma só palavra . O vosso procedimento foi indigno . -- Cala-te , miseravel ! rugiu Roberto atirando á cara de Magnod um prato com roast-beef que tinha diante de si . Os convidados saltaram nas suas cadeiras , como se cedessem a um movimento mechanico ; os numerosos criados que cercavam a mesa , nem pestanejavam ; Magnod cobriu o rosto com as mãos murmurando com voz afogada : -- Estou perdido . -- Tirae-m ' o de diante ! proseguiu Roberto , cuja colera tocava as raias da demencia . Dois criados ladearam o brahamane , que tinha ainda a cara tapada com as mãos . Magnod caminhou com passos lentos para a porta . Ahi parou . Pareciameditar . Depois , virando para traz , olhou para Roberto com os olhos que fais cavam furor , soltou um rugido e desappareceu . Que olhar ! E que rugido ! Naquelle olhar fundira Magnod o odio , a raiva , a vingança e a desesperação que lhe&lhes+o lavravam na alma e jantara os olhares de mil pantheras . Aquelle rugido era a terrivel interjeição que rompe das entranhas do condemnado , como o ruido de uma explosão . O olhar e o rugido juntos eram a chamma da escorva e o ribombo do canhão , o relampago e a trovoada das paixões humanas , que tambem teem as suas tempestades terriveis . Silencio de sepulchro reinou por alguns momentos na sala de jantar . Crer-se-hia que o olhar de Magnod tinha feito gelar o sangue de todos . Passado o primeiro impeto , Roberto estava corrido e arrependido do seu procedimento , e não sabia como desculpar-se d' elle para com os seus hospedes , a quem tinha incommodado com uma scena tão desagradavel . Frere estava estupendo . Só o magistrado , perfeito conhecedor dos costumes da índia , atinara com a verdadeira causa d' este desastroso successo . Não ousava revelal- a para não aggravar a situação de Roberto . -- São insupportaveis esses indios com o seu genio altivo , disse por fim Frere , quebrando o silencio que começava a ser longo . -- Ou antes com as suas superstições , atalhou Smith . -- Como assim ? interrompeu Roberto . Smith hesitou alguns instantes ... depois continuou : -- É que os brahamanes nunca se aproximam de nós quando estamos a jantar . -- É verdade ! acudiu promptamente Frere . Roberto fez um signal aos criados para continuarem a servir o jantar e não deu mais signal de si . De quando em quando levava o punho cerrado á fronte , como se quizesse esmagar uma idéa . Já lá estava o remorso . Em quanto isto se passava na sala do jantar , Magnod entrou no gabinete de Davis , fechou-se dentro d' elle por alguns minutos e depois saiu do bangaló . Era meia noite . Os convidados levantaram-se da mesa . O jantar durara cinco horas . A viuva do indio não se consola ; mata-se Tres dias depois dos factos que relatamos , um homem rodeava a modesta casa de Magnod , parando de espaço a espaço , e sem ousar entrar . Hesitava entre a consciencia que lhe dizia " anda " e o orgulho que lhe aconselhava " volta " . A sua altivez espinhava-se com violencia tal. que era impossivel calcular-lhe a força . Perseguia-o a idéa de que poderia inspirar comiseração , e outra mais horrorosa ainda a de ser despedido , depois de aturadas insolencias e humilhações . -- Terei eu forças para supportar taes affrontas a um indio que foi ha pouco meu criado ? Oh ! isso não ! Seria degradar-me aos olhos d' esta gente ; seria perder o prestigio dos europeus , que é a sua unica força n ' estas terras . Não ... mil vezes não ... Voltarei ... Mas não voltava ! Havia alguem que o retinha alli de sua mão , que lhe esmagava o coração , que havia de povoar logo de visões as suas noites . Esse tyranno era a consciencia , e a sua victima , como o leitor já terá percebido , o moço sobrinho de Davis . Roberto armou-se finalmente de valor e subiu com precipitação os poucos degraus da escada da casa dc Magnod . Parou defronte da porta e escutou . A quietação era completa . Bateu repetidas vezes : ninguem lhe respondia . Olhou pelo buraco da fechadura , c recuou de espanto e horror . Vira um cadaver . Correu a dar parte á policia ; veiu esta c arrombou a porta . Triste espectaculo se apresentou então aos olhos de todos . Em espaçoso aposento , e pouco claro como ao apontar da aurora , via-se um corpo dc mulher suspenso da corda , presa numa das vergas do tecto . A infeliz trajava de branco . Tinha a lingua de fora e as feições inchadas ; dois fios de saliva negra e ensanguentada pendiam-lhe de cada canto da bocca . Logo abaixo duas creanças nuas dormiam profundamente , abraçadas a um cão . Todos ficaram petrificados diante d' este grupo , em que viam confundidos o homem e o animal , a morte e a vida , o crime e a innocencia . Muphti , era esse o nome do cão , apenas deu e começou a olhal- o fito . O orgulhoso inglez curvou a cabeça , e os cabellos eriçaram-se-he todos . Ouvira a sua sentença . E que o juiz de todos nós é a consciencia , e esta transforma as pedras em testemunhas , os animaes em magistrados , o leito em patibulo , a vida em inferno , mas nunca o reo em innocente . Muphti era n ' este momento severo censor , porque a consciencia de Roberto se convertera em tyranno . Foi grande o alvoroço que este desastroso caso fez em Fizabad . Ondas de povo succediam-se em casa de Magnod . Em quanto a policia procedia ao auto do corpo de delicio , procurando inteirar-se de todas as particularidades do facto , Roberto , assentado em uma cadeira , parecia estranho a tudo quanto se passava á roda d' elle . A monotonia das indagações foi interrompida de repente pela voz de um sipai , que , entregando ao chefe da policia uma carta aberta , lhe disse : -- Achei-a n ' uma alcova . Não sei o que ella contém . As palavras do sipai divertiram a attenção geral . Roberto poz-se immediatamente em pé . O chefe leu primeiro a caria para si , e depois para os que , acercando-se d' elle , esperavam anciosos saber o seu conteudo . Rezava ella assim : Minha querida Biraa . " Nasci rei e senhor de todas as creaturas ; " agora vago foragido no meio das selvas , e rojo pela terra como a ave altiva que cae ferida das eminencias do espaço , tendo ainda no peito a setta peçonhenta . A luz que fora accesa por Brahama , para illuminar o mundo , apagou-se com o sopro impuro do baixo paria , e com as gotas do precioso sangue da vacca . " A minha alma despenhou-se nas profundezas do inferno para nunca mais emergir . As minhas lagrimas , ainda que tão sagradas e copiosas fossem como as aguas do Ganges , não lavariam a nodoa do inferno que a malvadez cuspiu na minha augusta fronte de brahamane . " Luctar com a desgraça ó nobre , combater com a fatalidade é loucura . O impossivel é invencivel . A minha sorte hade cumprir-se . " Tudo para mim é negro . Branco , branco , só me parece esse malvado allumiado pelas faiscas " da minha immensa colera . " Quero morrer e não posso . Fico suspenso entre os horrores da eternidade que me apavoram e os festins da vingança que meattrahem . " Deus ! Deus ! Porque me negaes o aniquilamento ? " A minha vida deve ser uma noite continua illuminada a intervallos só pela estreita magica " da vingança . Todos me voltarão as costas ; todos me apontarão com o dedo ; ninguem me falará ; os parias zombarão de mim ; o sarcasmo me-ha sem a purpura da casta e sem o brazão da raça ; as seitas me-hão até ás carnes . Deus não ouvirá as minhas supplicas , porque eu perdi o primeiro dos direitos do brahamane , quec o direito de orar ; comtudo preciso viver e quero , para ganhar com o martyrio a vingança , que é o meu unico ceo . " Querida Bima ! Triste de ti e dos nossos filhos ! Quando o tronco tomba no lodaçal immundo , impellido pelo braço do vil paria , as folhas e fructos não podem ficar puros . Desamparados dos parentes , dos vizinhos e dos amigos que vida será a vossa ? " A viuvez com degradação , a orphandade com desprezo não ha peito que as supporte . " Todas as separações tcem um fim em que o amor crê firmemente , e pelo qual suspira como o desgraçado pela estrella amiga , que vem a es " paços fulgurar nos abysmos do horisonte ; a minha condemnação é eterna ... eterna , Bima ! " Adeus para sempre . -- Teu do coração , Magnod . Durante a leitura da carta , Roberto esteve com a vista no chão , e immovel como uma estatua . Cada palavra d' ella atravessara-lhe o coração como um punhal . Não ousou levantar os olhos por que temeu que lhe adivinhassem no sem blante o que se passava no intimo da sua alma , e que todas as boccas se abrissem para lhe repetirem : -- Tu és a causa de todas estas desgraças ! O chefe da policia dobrou a carta e metteu-a na algibeira , muito contente d' esta descoberta . Não era preciso indagar mais . Estavam explicadas as causas do suicidio . A verdadeira policia tem d' estes acerbos prazeres . Para ella , adivinhar onde está o criminoso , e atinar com a causa do crime é resolver um problema . Antes de concluir o auto , perguntou o chefe da policia voltando-se para os circumstantes : -- Quem quererá encarregar-se d estas creanças ? -- Os parentes de certo que não ; acudiram promptamente os sipais . -- Eu ! exclamou um homem atravessando o circulo dos sipais . Voltaram-se . Era frei||_Francisco Francisco|_Francisco , missionario portuguez do reino de Onde . Um raio de sol illuminava o semblante pallido e macerado do frade , e reverberava na sua lustrosa calva como na superficie prateada do mar . Parecia coroado tio mais brilhante diadema . A virtude tambem tem os seus reis . Roberto apertou a mão de frei||_Francisco Francisco|_Francisco e disse-lhe ao ouvido : -- Nós ! Uma hora depois frei||_Francisco Francisco|_Francisco recolhia-se a sua casa . Seguiam-no um cão e duas creanças . Era o que restava da familia do infeliz Magnod . No mesmo dia foi enterrado o cadaver de Bima . A religião brahamanica negou-lhe as preces , e a christâ não pôde conceder as suas . Deu-lhe lagrimas a caridade que é a religião de todas as religiões , e uma como Deus de quem procede . Porém , só a esperança póde cobrir de galas a horrorosa nudez da morte . VI A reparação A melancolia de Roberto tornou-se desde então profunda . O remorso perseguia-o sem cessar , retratando-lhe ao vivo todas as funestas consequencias do successo da casa de jantar . O suicidio de uma mãe , a demencia de um pae , a orphandade de duas creanças , a perda de uma familia que vivia inoffensiva e feliz , eis o terrivel quadro que elle via ante si , de dia e de noite , agora e sempre . O ferro do remorso rasga melhor os corações delicados e sensiveis . Roberto não era nenhum malvado . O seu corarter estaria azedado na solidão , as suas idéas acerca dos indios seriam pouco liberaes ; os seus impetos seriam violentos ; o seu respeito pela opinião publica seria maior do que pela propria virtude ; mas a sua indole não era má , e a sua educação fôra toda evangelica . Acção feia podia elle commettel-a por que era homem e tinha paixões ; mas approval-a nunca . Uma manhã em que Roberto estava no seu gabinete assentado em frente de um grande bufete , foi-lhe annunciadaa visita de frei||_Francisco Francisco|_Francisco . Mandou-o entrar immediatamente . -- Louvado seja Nosso Senhor||_Jesus_Christo Jesus|_Jesus_Christo Christo|_Jesus_Christo , disse o frade adiantando-se para Roberto . -- Rom dia , frei||_Francisco Francisco|_Francisco , respondeu Roberto , levantando-sc cia sua cadeira e estendendo a mão ao frade . Frei Francisco sentou-se , e depois de um momento de silencio disse , dirigindo se para Roberto : -- Peço-vos só alguns momentos de attenção . -- Estou á vossa disposição ; replicou Roberto fechando um livro que tinha diante de si . -- Trata-se , proseguiu o frade , dos dois orphãos de que nos encarregámos . Eu desejava mandal- os para Londres , para serem alli educados em algum collegio irlandez ; mas de que servem desejos ? Não vão tanto acima as minhas posses que possa pagar estas despezas ; vejo-me portanto obrigado a pedir o vosso auxilio . Deus vos pagará o que fizerdes pelos pobres . -- Padre , disse Roberto com visivel commoção , pedis aquillo que podieis exigir cm nome da justiça de Deus e dos homens . E immensa a minha divida para com os orphãos de que me falaes . Nunca poderei solvel-a cabalmente . Roubei-lhes os carinhos da mãe , a protecção do pae , a amizade dos parentes , e a companhia dos vizinhos ; possa ao menos poupar-lhes a miseria . A minha Helena está em Londres em casa de uma familia irlandeza que me merece toda a confiança ; para lá irão tambem os orphãos , se assim quizerdes . Helena terá dois irmãos , e eu mais dois filhos . Enviareis a mezada que eu fico de entregar-vos pontualmente todos os mezes . Ninguem deve suspeitar sequer do nosso projecto . Sabeis quanto é perigoso o fanatismo d' estes indios . Frei Francisco ergueu-se . Na physionomia , grave e magestosa do sacerdote , reluzia uma alegria celeste , e dos seus olhos rebentavam lagrimas de prazer . Que consolação ha ahi similhante á da alma do santo quando vê um peccador arrependido ? E o reflexo d' essa festa com que é recebida no ceo a alma que descera ao charco immundo da depravação e que o arrependimento lavando-a de todas as manchas , reconduz pura para Deus . O frade levantou os olhos para o eco e depois abaixou-os para Roberto . Não pôde proferir palavra . O silencio é a linguagem das grandes commoções . Houve largo espaço de profundo silencio . Um criado veiu dizer a Roberto que o almoço estava na mesa . Frei Francisco despediu-se do seu amigo para ir dizer a sua missa do costume na egreja de Santo Xavier . Seis mezes depois d' esta visita , partia para Londres o magistrado Smith com os dois filhos de Magnod . Haviam recebido na vespera as aguas do baptismo , e os nomes de Thomaz e Emilia . Foram seus padrinhos Roberto e frei||_Francisco Francisco|_Francisco . Os Thogs Pluet super peccatores laqueos A maldição de David realisou-se . Os terriveis laços choveram na India e chamam-se thogs . A civilisação brahamanica tem a sua pustula . Criam-se n ' ella vermes que com o contacto da luz se tornam serpentes horrendas . Da desorganisação do bracmanismo organisa-se um monstro que mata sem ser carrasco , que mata sem ter odio , que mata sem ser por interesse , que mata por matar , que mata com os olhos abertos , com o coração puro , com o nome de Deus na bocca . Bovami é a deusa da morte ; thog o seu sacerdote . Blasphemia diante de Deus ! Barbaria diante da humanidade ! Demencia diante da razão ! O pão encerrado nos subterraneos humidos cria bolor e torna-se veneno ; o iridio azedado pela miseria e opprimido pelo despotismo faz-se thog . O sentimento de criminalidade desapparece n ' essas tribos de selvagens , n ' essas familias de assassinos em que o criminoso se julga philosopho e moralista , em que o crime adquire os foros e o esplendor da doutrina , em que o mal assume a augusta magesfade de Deus . Toda a doutrina tem a sua logica , todo o sophisma se reveste das apparencias do raciocinio , como a moeda falsa traz o cunho da verdadeira . O thog é doutrinario . Inverte tudo . E na inversão é logico Chama ao mal bem , ao crime virtude , ao criminoso santo , ao inferno ceo , ao demonio Deus . D ' ahi nasce maior perigo para a sociedade . A organisação torna forte o erro . A sêde dos homens é saciavel ; a sede dos deuses deve ser infinita . A missão do thog ha de durar em quanto Bovami fôr antropophaga . O thog que caenas mãos dajustiça caminha para o patibulo com a serenidadedo justo , com afronte radiante de esperança , coroado de flores como um vencedor , e por entre os respeitos e admiração da multidão que o proclama santo . Á policia ingleza cruza os braços , envergonhada da sua impotencia , diante da rebeldia d' esses infelizes que , com as forças que lhe dá o fanatismo , affrontam lodos os poderes da terra . Não os apavoram as trevas da morte por q ' ie lá está a aurora da eternidade para lhe&lhes+as dissipar Que matcria ha ahi que possa vencer o espirito ? Os thogs vivem nos antros medonhos das feras , debaixo da atmosphera do vicio , do crime e da fome , e são alli retidos pela sua tenebrosa razão , que é ao mesmo tempo a sua senhora , e a sua escrava , a sua fyranna e a sua victima . Qual Nabuohodonosoros caidos da graça de Deus e da dignidade do homem , os thogs rojam como as ser pentes , voam como as aves de rapina , sibillam como as boas , formam matilhas como os cães . O cholera e o thog nasceram na mesma terra e no mesmo anno . índia é a sua patria ; 1818 a data do seu nascimento . Filhos da corrupção , a natureza fadou-os para identica missão . Vivem da morte . São pestes ambos . Ocholeraéa exhalação dos cadaveres putridos que derivaram pelas aguas do Ganges ; o thog é a emanação pestilenta da liberdade e da independencia que se corromperam . São os mortos que se vingam . O cholera correu a Europa toda ; despovoou cidades , desolou aldeias , e recolheu para a sua patria com as maldições do mundo . O thog não saiu ainda das suas selvas ; alli espera o inimigo . O cholera é general e gigante como Napo leão . O thog é salteador e pequeno como Nanã . E necessario acabar com os thogs , atacando-os na sua origem e evitando por todos os modos que elles cresçam na sociedade como o joio por entre o trigo , como a cicuta por entre os agriões . Em vez de arrancar os laços das mãos dos thogs , trate o governo inglez de lhes desarmar a razão dissipando os erros que a entenebrecem . Ver claro é salvar-se . Os thogs são tanto mais perigosos quanto lhes é facil fazer proselytos . Os vagabundos que dormem ao sereno da noite , e que pedem ao acaso o pão quotidiano ; os malvados que teem no coração um odio , e na intenção um attentado ; todas as paixões que ardem ; todas as miserias que bramam : eis os thogs de todas as terras e de todos os tempos . Na índia juntam-se elles aos thogs-sacerdotes . Formam uma ordem . Magnod , havia seis mezes que vagueava pelas selvas sertanejas de Goracpur , vestido de pelles e sustentando-se de fructas . As barbas densas e crescidas , e os cabellos longos e pretos que caíam desordenados sobre os hombros , velavam-lhe a face quasi toda e deixavam apenas ver os olhos , que brilhavam como dois carvões accesos . Ás vezes , quando os ultimos raios do sol doiravam os cerros altos e escalvados das montanhas , os pastores de Goracpur viam-no em pé sobre uma rocha , com os punhos cerrados , a fronte estendida , escuma na bocca , olhos afogueados , a longa juba fluctuando ao vento , bramir por entre os dentes cerrados o nome de Roberto , e depois arrancar com furor os cabellos e as barbas . O sangue começava então a gotejar-lhe do alto da cabeça , e a condensar-se nas faces . Eram as lagrimas do desgraçado . Não tinha outras . De noite , quando todos recolhem ás suas moradas e repoisam das amarguras do dia , Magnod às vezes velava encostado ao tronco de uma arvore , muitissimas arquejava e gemia affligido por terriveis visões que o perseguiam ... E que visões ! Um racxá ( demonio ) branco como a neve devorava duas creanças ; tres parias mais negros que a noite contemplavam aquella scena rindo com satanica alegria ; ouviam-se os gemidos e soluços das victimas , entremeados com as risadas dos algozes . Aqui acabava a visão e Magnod despertava . As fontes batiam-lhe então violentas e desordenadas ; a respiração era rapida ; copioso suor inundava-lhe o corpo aquecido por febre ardente ; e o socego das selvas , quebrado a espaços pelos rugidos do tigre , parecia-lhe antes o silencio dos demonios que a paz do ceo . Levantava-se insensivelmente indignado contra tudo que dormia ; e os seus labios murmuravam : Abençoadas selvas que gemem commigo , abençoado tigre que vela como eu , abençoadas arvores que choram sobre mim as suas doces lagrimas de orvalho ! Uma d' essas manhãs que se seguiam ás noites crueis , Magnod sentiu-se desacoroçoado . Apagara-se-lhe na alma o ultimo clarão da esperança . Tinha provado quantas dôres do espirito é possível padecer na vida , tinha invocado em seu auxilio todas as furias e demónios , mas sempre em vão , sempre debalde ! Cinco longos mezes haviam volvido , e ainda nem sombra da vingança ! Resignar-se na impotencia , padecer sem fim , eis o futuro que tinha diante de si . Viver sem esperança era impossivel . N ' esta extremidade lembrou-lhe a morte , como aos encarcerados lembra o degredo . Era uma mudança . Com este pensamento subiu a um elevado pinaculo , que dominava profundo precipicio . Alli , curvando a cabeça sobre o peito , e fechando os olhos ao abysmoque tinha ante si , desceu a outro não menos fundo , qual é o coração . Pensou , reflectiu , luctou e venceu . Viver ? que importa a vida sem a vingança ? Contrahia-se o infeliz para se atirar ao precipicio , quando sentiu mão estranha ; agarrar-lhe o braço . -- Que me queres ? Quem és ? perguntou Magnod perturbado . -- Fazer-te uma proposta . Queres morrer , não é assim ? Pois permitte que eu te mate com este laço . E um instantinho . Conseguirás o teu fim , e eu farei uma acção meritoria . Foi Bovami que me trouxe aqui . Uma idéa passou então pelo espirito de Magnod . -- Vejo que és thog , continuou Magnod . Podes dizer-me aonde está a tua communidade ? -- Que te importa a ti a minha communidade ? O que queres é dar te a morte e para isso estou eu . Verás a minha destreza . Vamos . -- Obrigado ! Mas eu queria fazer-me thog antes de morrer . -- Pois bem ! te-hei hoje mesmo á communidade , mas com uma condição : quando quizeres morrer has de preferir-me a todos os meus companheiros . Não sejas ingrato . Promettes ? -- Prometto . Os dois deram as mãos e desceram . A iniciação Quando o brahamane lançou os olhos para o bosque deu com o seu Muphti , que ha cinco mezes o seguia . Mettia dó o pobre animal . Dedicação como a sua não a tivera nem esse cão dos Pandovos , tão celebrado no Mahabarat , e para o o qual o deus Indra não duvidara abrir as portas do ceo . Afagou-o o brahamane com caricias e festas , e lembrou-se dos tempos em que era feliz , em que tinha Deus ... e esperança ! Sumiram-se os dois indios entre os rochedos , caminharam algum tempo e eil- os defronte de uma cabana . Cercava-a muralha de verdes e ramosas piteiras . O silencio e a solidão do sitio mostravam a Magnod que estava perto de um esconderijo dos thogs . Assobiou o seu companheiro e e esperou . Não foi necessario mais . -- Quem é ? perguntou uma voz , emquanto a cabeça apparecia fora da estacada . -- Eu ! respondeu Ramac ; ( era este o nome do companheiro de Magnod . ) -- Que pretende ? -- Falar ao gurú ( sacerdote ) . -- Elle foi para muito longe , retorquiu a mesma voz depois de alguma hesitação ; póde estar de volta só á noite . Ramac disse a Magnod que esperasse n ' este mesmo logar , e desappareceu . O brahamane assentou-se e adormeceu com a cabeça reclinada sobre a estacada . Ao seu lado enroscou-se o fiel Mnphti . Seriam tres horas da tarde , quando um mancebo , que pelos modos e trajo não parecia thog , veiu acordar Magnod e disse que o seguisse . Tomaram por sendas estreitas e tortuosas , caminharam longas horas por apertados carreiros , até que sairam n ' um valle entre duas grandes montanhas , coberto de muito arvoredo e com copiosa agua , que se despenhava ahi ao pé em pequenas e numerosas cataractas . A um signal do mancebo saiu de dentro do bosque um homem . Vestia-se com toda a simplicidade dos botos ( sacerdotes do bracmanismo ) ; um veo amarello cobria lhe a cara , e do alto da cabeça descia até aos hombros guedelha negra como azeviche . Era o guru . -- Queres ser thog ? Perguntou o guru dirigindo-se para Magnod com toda a gravidade . -- Sim ; lhe respondeu o brahamane com firmeza . -- Cumpre , continuou o gurgú com a bocca cheia de betle ; que sejas sincero . Tens diante de ti a deusa Bovami que não perdoa aos traidores . -- Podeis confiar em mim , atalhou Magnod . -- Pois bem ! tomarás primeiro que tudo um banho , despirás esses fatos que trazes , para vestir os habitos brancos da ordem , e , assim purificado de todas as manchas , entrarás no templo da poderosa deusa Bovami . Meia hora depois , ouviu-se um som similhante ao da busina , e mais de quarenta homens appareceram á roda de Magnod . O aspecto d' estes abutres , que tantas vezes se teriam banqueteado em cadaveres dos seus similhantes , nada tinha de feroz . A tranquillidade da consciencia reflectia-se-lhes nos semblantes serenos e placidos . Eram demonios com as vestes candidas dos anjos . Uma congregação das irmãs da caridade não infundiria maior respeito . Apinhados em redor de Magnod , não tiravam os olhos d' elle . Não lhes escapava o menor gesto ou movimento do brahamane . Para disfarçar este exame minucioso , faziam repetidas perguntas . Tinham razão para desconfiar de todos e de tudo . Tantas vezes haviam sido sobresalteados pela policia , que cada folha que rangia , cada arvore que se baloiçava , cada confrade que se aproximava , lhes parecia o policeman . Entretanto chegou um thog , que pelo modo como foi recebido dos outros , logo se viu que era o principal d' elles . O desconhecido , apenas deu com os olhos em Magnod , recuou soltando um grito . A esta voz ergueram-se de salto os thogs como se fossem movidos por uma mola e todos ao mesmo tempo desenrolaram os seus laços . Era tremendo o espectaculo que apresentava o Valle n ' aquelle subito transformar de mansas ovelhas em ferozes tigres . -- Este homem , bradava o recemchegado , é brahamane . Serve os inglezes . Bem o conheço . Não pode ser thog . -- Fôra inutil negar o que todos sabem , acudiu promptamente Magnod . Fui brahamane , é verdade , mas não o sou agora , que perdi a casta . Abomino todos os inglezes , todos os sahebs ( europeus ) menos dois , de quem recebi o sal , o velho Davis e frei||_Francisco Francisco|_Francisco . A firmeza e o tom seguro com que foram proferidas estas palavras abrandaram a tempestade . -- Haveis de sujeitar-vos ás provas , bradaram todos . -- Prompto ; replicou o brahamane . No lado direito do valle via-se uma immensa rocha preta . O seu interiorera todoescavado como a celebre gruta de Elefanta , e muitas outras que se encontram na índia , e são obra dos troglodytas . Dizem os indios que foram os deuses que laboraram as entranhas das montanhas , e fizeram estes templos subterraneos debaixo de um systema uniforme e symbolico . A porta d' esta gruta era escondida por uma multidão prodigiosa de pequenas rochas , sobreposta de maneira que era impossivel descobril- a sem guia . O interior , sustentado por seis pilastras , era dividido em duas metades . Via-se no centro umcandeeiro de cobre , cuja luz fraca e baça , alumiando as cabeças hediondas de tigres , leões e boas , que cobriam os fustes e as bases das columnas , dava a este esconderijo as pecto sinistro e medonho . N ' essa meia claridade branquejavam as alvas roupas de quarenta thogs . Á roda da gruta ouvia-se o agoirento guincho do mocho , e dentro o infernal zumbido deenxâmes de insectos que volitavam incessantemente . No fundo da gruta estava a capella e dentro d' esta a imagem da deusa . O sacerdote , assentado sobre uma pedra e com a cara voltada para a deusa , repetia em voz alia as orações mais agradaveis a Bovami . Magnod vestido de branco aguardava á porta da capella a resolução da sua pretenção . Findas as orações , o sacerdote convidou a confraria a aproximar-se da capella para esperar alli o signal da approvação ou reprovação que a deusa devia dar . Assim estiveram alguns minutos , silenciosose immoveis , até que se ouviu o guincho do mocho . A deusa approvava a iniciação de Magnod . Depois , o guru , adiantando-se para o meio da gruta , recebeu das mãos do thog mais graduado o laço sagrado , examinou-lhe escrupulosamente as dimensões , e recitou uma curta oração . Magnod jurou sobre estas insignias ser fiel á deusa Bovami eácommunidade . Acabado o juramento , o sacerdote entrego " ao novo thog uma porção de sal e uma vara de ferro . Com isto deu-se por finda a ceremonia . Magnod estava iniciado . Lavravam ainda nos animos dos thngs suspeitas ácerca da fidelidade de Magnod . Longe estavam de soregal-os os protestos que lhe ouviam . Era prudencia tentar novas provas . Houve deliberação na comrnunidade ácerca das cautelas que cabia tomar , e assentou se que um thog chamado Guirâ seria chefe -- Magdod e encarregado de examinar os seus movimentos . Abonava a escolha o rancor que os parias teem aos brabamanes e que era profundo em Guirâ . Na primeira correria que fizeram juntos , Guirâ e Magnod , poz aquelle á bocca uma taça d' agua , cheia até trasbordar e depois offereceu-a a Magnod . Ao recebel-a , tremeu o braço do brahamane . Não estava preparado para tão dura provança . Era-lhe veneno aquelle innocente liquido , tocado dos labios do infame paria . Mil vezes o levou á bocca , e outras tantas o retirou . Engolia era secco , e cuspinhava . Lembrou-se finalmente de Roberto , e emboccando a taça , sorveu-a até á ultima gota , como teria sorvido , se podesse , o sangue do seu inimigo . Guirâ não se mostrou comtudo muito satisfeito com a prova . No seu juizo concertava novos projectos encaminhados a humilhar Magnod e a vingar-se n ' elle . São tão raras estas occasiões ! Um dia em que Magnod estava só com o seu Muphti , deitado á sombra de uma frondosa figueira da índia , aspirando com avidez o ar vivificante das selvas , emquanto a sua alma se baloiçava em dolorosos pensamentos , Guirâ adiantou-se para elle com aspecto bastante carregado , e disse-lhe : -- Ha seis mezes que és thog e ainda não adquiriste a necessaria destreza em atirar o laço , nem valor para encarar com os perigos ... Se tu és um brahamane ! -- É falso ! acudiu Magnod , a quem a injuria de Guirâ tinha ferido no rosto como o golpe de mão aberta . Sou tão destro como o mais destro dos vossos thogs . Estou prompto a provar-vos a minha destreza , proseguiu elle lelevantando-se e desenrolando o laço . -- Pois bem ! Façamos uma experiencia , replicou Guirâ . Depois , lançando os olhos em roda como quem procura alguma coisa , disse detendo-os sobre Muphti . -- É verdade ! Estrangula o teu cão . -- Meu cão ! Não foi este o meu juramento . O brahamane abafava de furia . -- Ordeno-o eu . -- Pois eu não obedeço . -- Recusas ? Vê lá o que fazes ... Ámanhã podes estar nas mãos da policia . Magnod caiu depressa em si . Inclinou a cabeça , como se temesse de ter fallado de mais , e accrescentou com simulada resignação : -- Senhor ! Estou prompto ; peço-vos que ... -- Vamos a isto ! -- interrompeu Guirâ . Muphti , enroscado sobre uma pedra , dormia somno tranquillo . Que bem arredado estava do que lhe aconteceu ! N ' um triz Magnod passou-lhe o laço á roda do collo , e depois voltou-se para Guirâ . Pedia-lhe piedade , elle . -- Então ! bradou o cruel chefe batendo o pé . Magnod puxou o laço , e caiu desmaiado para o lado . Muphti estava estrangulado . -- Bravo ! excellente ! -- clamava Guirâ , estorcendo-se entre risadas . Magnod quando voltou a si e deu com os olhos no corpo do seu Muphti , exclamou , apertando com ambas as mãos a fronte : -- Sou bem desgraçado ! Duas lagrimas lhe correram pelas faces . Eram como duas gottas d' agua no sahara , que está estuando seculos debaixo do sol ardente da Africa . Os tres irmãos Em 15 de dezembro de 18... chegou a Londres James Smith , ex-magistrado de Oude , com os dois orphãos Thomaz e Emilia . Levou-o logo , segundo as instrucções que tinha de frei||_Francisco Francisco|_Francisco , para a casa de um irlandez chamado Hartman , onde ficava Helena . A presença dos dois indiosinhos não devia causar espanto a Hartman , que já havia sido prevenido d' esta visita com bastante anticipação pelo pae de Helena . Recebeu-os e a James no gabinete com muito agrado e patriarchal affecto . Hartman parecia ter vivido mais de sessenta annos . Era alto , magro , e de cara oval . A melancolia estendia-lhe um veo sobre a fronte . Juntava elle a bom juizo grande uso do mundo . Desgraçados azares o trouxeram á profissão de que fazia vida . Sua mulher , gorda , rechonchuda e pequena , de cabellos loiros , de nariz vermelho como um tomate e de bochechas redondas , tinha o aspecto de uma taberneira , e todas as qualidades de uma Xantippe . Era n ' ella perfeita a harmonia do moral como physico . Apenas deitou a sua luneta e mediu de alto a baixo os dois pequenos que estavam sentados em um dos angulos do gabinete , disparou-lhes na cara estrepitosa risada . -- Ah ! Ah ! Que figuras ! Querem ver que se metteu na cabeça a esse doido do Roberto civilisar os indios ? Quanto promette elle pagar por estes dois creoulos ? , perguntou ella voltando-se para o marido e sem reparar em Smith , que ainda não se tinha retirado . E taes olhos poz nas creanças que as acanhou . -- O sr.||_Smith Smith|_Smith que volta da índia , disse o marido apresentando-o a sua mulher . -- Peço desculpa , continuou ella ; não tinha reparado em vós . Estes meninos devem ser filhos de gente muito rica ... de algum nababo talvez ... -- Não sei , minha senhora , respondeu Smith um pouco enfadado dos motejos da mulher de Hartman . Foi um veneravel sacerdote que m ' os confiou e pediu a Roberto para os ter na companhia de Helena . Contrariada com esta resposta , ateimosa da mulher fez novas tentativas para tirar da bocca de Smith o segredo que elle queria occulíar . Era demasiado esperta para acreditar que o ex-magistrado ignorasse quem eram os paes dos dois pupillos . Mas Smith procurou com arte evitar as impertinentes perguntas da mulher de Hartman . Rosa ralhou devéras com o marido , quando soube que as mezadas dos orphãos haviam de ser eguaes ás de Helena . -- Pois que ! dizia ella abrazada em colera ; só seis libras por mez para domesticar estes bichos de matto , que falam uma lingua que nem o diabo entende ! Isto é um ovo por um real . -- Socega-te , minha boa Rosa , peço-to eu ; tem dó dos infelizes ; educando-os , nós fazemos também uma obra de caridade . Emquanto elles não falarem inglez , eu serei seu interprete . N ' isto entrou uma creança loira , e linda como o sol . Era Helena . Hartman apresentou-lhe os dois orphãos dizendo : -- Minha filha , aqui estão teus irmãos . Helena deu um passo para traz . -- Dá-lhes um beijo , continuou Hartman baixinho , impellindo-a para elles . Helena toda corada deu um beijo em Emilia , e outro em Thomaz . Os dois indiosinhos voltaram a cara para o lado , e trataram logo de limpar cóm a manga do vestido o beijo de Helena . Não sabiam o que aquillo queria dizer . Rosa deu uma risada tão estrondosa que Helena desatou a chorar . -- Ah ! Rosa ! exclamou Hartman com impaciencia . Quando perderás tu esse gesto chasqueador que desmente da tua edade ? Emilia tinha cinco annos como Helena , e Thomaz pouco mais . Helena , com a superioridade que lhe conferia a sua antiguidade na casa , tomou-os logo debaixo da sua protecção e dividiu com elles as suas bonecas . Helena não falava o bingalí nem os dois orphãos sabiam o inglez , mas entendiam-se como os passaros dos bosques . Privados de todos os parentes , estes tres meninos , que a desgraça tinha aproximado , encheram-se de sentimentos os mais ternos . A harmonia dos gostos e das indoles os tornaram mais irmãos do que os houvera feito a natureza . Cingira-lhes os animos o mesmo assomo de sympathia . Os primeiros nomes que Thomaz e Emilia aprenderam em inglez foram de irmão e irmã . Hartman estava encantado da indole dos seus pupillos . Eram tão doceis , tão submissos e tão applicados ao estudo , que rarissima vez tinha a fazer-lhes alguma advertencia . E coisa singular , o castigo e o premio , quando os mereciam , tinha de repartil- os sempre por todos tres . Eram irmãos em tudo . Roberto e frei||_Francisco Francisco|_Francisco folgavam do muito que promettiam as tres creanças , e afoitas esperanças punham no futuro d' ellas . Helena era um anjo de bondade . Possuia , com o semblante mais vivo e sympathico , a alma mais nobre e candida . Rasgos da sua bondade contavam-se aos mil , e sobre todos um que fizera arrancar lagrimas á propria Rosa , o que não era menor milagre do que arrancal- as ás pedras . A mulher de Hartman padecia molestia de pelle , que , quando o calor era intenso , lhe invadia o nariz e o tingia de vermelho por tal modo que ella se via obrigada a usar de pós de arroz . Dm dia que estava no seu toucador entretida n ' este trabalho , entrou Helena mansamentesobreosbicos dos pés , e escondeu-se atraz de uma cadeira , reparando attentamente no que fazia Rosa . Saltou de prazer com a descoberta e correu a juntar-se aos irmãos . Tres dias depois fechou se no quarto com Emilia , fel-a assentar n ' uma cadeira , e começou a empoar-lhe a cara com os pós que tinha tirado do toucador de Rosa , exclamando repetidas vezes com verdadeiro jubilo : -- Oh ! minha irmã ! Não fazes idéa como estás bonita ! Finda a obra , correu a buscar um espelho e mostrou-o a Emilia , que daria tudo para se parecer com a irmã . N ' isto entrou no quarto Anastacia , a criada de Rosa . Arrancou immediatamente a caixa dos pós das mãos da filha de Roberto e passou um lenço pela cara branqueada de Emilia . Helena mal que viu a sua irmã tão escura como d' antes , lançou-se-lhe ao pescoço , e desfizeram-se ambas em pranto . Anastacia destraira com o seu sopro a obra fragil e pequenada um coração grande . Com os annos , as qualidades d' estas creanças foram-se desinvolvendo , e o seu mutuo amor roborando-se cada vez mais . Hartman queria-lhes como a seus filhos , e consolava-as quando andavam desgostosas de Rosa . Havia differença de opiniões entre o marido e a mulher . Rosa encarrava a educação das creanças como uma pura industria . Queria ganhar muito e trabalhar pouco . Hartman punha acima da industria a missão de professor , e o amor que já tinha aos seus pupillos . Dava logar a divergencia a altercações frequentes e muito debatidas . Assim chegou a edade de estudos mais serios . Thomaz teve de frequentar a escola de latim , que lhe ficava mesmo ao pé de casa . As horas que devia passar longe das suas irmãs pareciam-lhe seculos . Quando eram tres horas da tarde , Helena e Emilia iam esperal- o á porta com os braços abertos e os corações abalados de saudade . É preciso que o leitor trave conhecimento com a criada de Rosa . Anastácia , era este o seu nome , pertencia á secção das solteironas , que , depois de terem combatido muitos annos nas fileiras das aspirantes ao casamento , depois de terem perdido muitas batalhas , recolhem-se em uma cozinha para alli chorarem o seu infortunio e tirarem uma impotente vingança , declarando guerra a todos e a tudo . São insupportaveis esses Carlos quintos de saias , que resmoneam sempre , e falam mal de tudo . Os francezes chamam-lhe com muita razão chats du grenier . Não admira pois que Anastacia fosse o desmancha prazeres das pobres creanças . Foi ella quem lhes revelou que não eram irmãos , e desfez uma convicção que n ' ellas era profunda . Foi temeridade e loucura de Anastacia romper laços tão sagrados e já tão estreitos . Para resistirem a uma nova que lhes despedaçava os corações , abraçaram-se as tres creanças , diremos antes , ennovelaram-se , e assim , juntando as suas boccas , unindo as frontes na mesma aureola , entrelaçando os braços , formando um só corpo como os pintos que se refugiam debaixo das azas frementes da mãe , quando se vêem ameaçados pelo terrivel milhafre , juraram diante de Deus que haviam de ser sempre irmãos . O jura mento foi sellado com as lagrimas , que são a agua benta que santifica as effusSes do coração . Helena não era uma menina muito perspicaz , mas o seu coração nobre inspirava-lhe finezas que pareciam filhas de madura reflexão . Ha nos pensamentos da creança o que quer que é de extraordinario e de superior á sua razão . inspira-lh ' os o ceo . Toda a creança é um anjo . Helena tinha o instincto do sublime , como acontece a todas as creaturas privilegiadas . Logo que soube que Thomaz e Emilia não eram seus irmãos , não sabia como eleval-ose procurava por todos os meios cobrir com o seu coração a distancia que d' elles a separava , distancia que boccas alheias annunciavam e que ella na sua innocencia nunca sentira . Os philosophos que declaram que um homem é egual a outro como um angulo recto é egual a outro angulo recto ; os publicistas que ensinam que todos os cidadãos são eguaes ; que aprendam com esta innocente creança a verdade que ella proclama , ou antes que Deus ensinapelabocca d' ella , que a egualdade é uma realidade quando é um sentimento do coração . De que serve a egualdade theorica e legal quando ella não penetra até aos costumes ? quando é necessario um sacrificio para a observar ? As flores fazem-se fructos Transponhamos alguns annos e veremos adolescentes os que até aqui temos visto infantes . Thomaz chegou aos dezesete annos . Tinha completado os preparatorios e estava para entrar na escola do commercio . Desferidas com vantagem , as proporções do seu corpo , davam-lhe garbo e altivez . A sua côr bronzeada , as suas feições regulares , os seus contornos graciosos e delicados , os seus olhos pretos e vivos , o seu rosto oval faziam lembrar o mato do typo arabe com o indiano . Distinguira-se em todas as escolas , pela sua applicação e grande talento . Era geral a estima de que gozava . Dois sentimentos haviam formado o coração de Thomaz : o amor e a gratidão . Esse inspirara-lh ' o Helena ; esta devia-a a Roberto . Não percebia entre estes dois sentimentos a menor contradicção , nem esta lhe parecia possivel . Eram o seu protector e a sua irmã adoptiva as duas divindades que elle adorava no santuario do seu coração com egual veneração e fanatismo . Quando às vezes lhe parecia que o seu culto não era egual , que pendia mais para uma que para outra , pedia perdão d' esta involuntaria differença . Dissereis que este mancebo reunia a rigidez de Bruto ao coração da pomba . Todos os actos da sua vida , todos os seus pensamentos , todos os seus desejos eram repassados da luz e calor d' esses dois sentimentos , com que se compozera a sua indole e se cunhara a feição da sua alma . Fóra Hartman que lançara no coração delicado e absorvente do mancebo os germens da gratidão , que caidos em boa terra não tardaram a ser frondosos arbustos . Emilia não era nem podia ser uma belleza ; mas possuia a gentileza que vale muito mais , Uma graça que escapa ao pincel e resiste á penna corrigia a belleza classica d' aquelle rosto , animava a rectitude glacial d' aquelle perfil , e illuminava o trigueiro d' aquella côr . Os seus cabeilos pretos desciam em suaves ondulações e brincavam pelos hombros . Nos seus olhos negros luzia um coração oriental -- Nigra sed formosa -- E a tudo isto juntava maneiras tão distinctas , intelligencia tão clara , espirito tão vivo , que todos gostavam mais de conversar com Emilia do que com Helena . E que direi de Helena ? O limpido azul dos seus grandes olhos , no qual parecia que o ceo reflectia como cm espelho , o seu nariz delicado o direito , o aveludado e frescura da sua tez , a sua bocca pequena , onde resplendiam duas ordens de perolas , o seu lindo cabello loiro-claro levemente ondeado , a sua barba torneada , a sua estatura alia e esbelta , realisavam o ideal mais perfeito da belleza . Não tinhao espirito de Emilia , mas possuia talvez mais ingenuidade nas suas maneiras e mais affabilidade no seu trato . Os caracteres d' estas duas meninas tinham entre si grandes similhanças e algumas differenças . Na pellc transparente de Helena , reflectia o seu coração . Não podia ter um segredo por que o purpurear fugitivo , assomando-lhe ás faces , o denunciaria logo . A sua pelle era a epiderme da sua alma . Rescendia em virtudes como as flores em perfumes . Eram-lhe naturaes . Se é licito crer na existencia de anjos na terra , Helena era de certo um . Emilia podia ter segredos porque o trigueiro da sua côr lhes daria abrigo ; podia disfarçar por que a sua tez era como o sari que encobre os lindos olhos das houris , ou como o veo impenetravel da Isis . Fiel , leal e grata , era-lhe a virtude raciocinio , sacrificio às vezes , lucta quasi sempre . Sem deixar de ser uma mulher de sentimento , era-o com tudo menos que do dever . Tinha este caracter mais de varonil que o de Helena . Rosa e Anastacia , com a preferencia que davam a Helena e com os louvores que lhe tributavam , tinham despertado no coração da indiana os instinctos altivos da sua raça , e d' ahi o desejo de vencer e triumphar . Emilia , se lesse o que se passava no fundo do seu coração , teria conhecido que tinha pena , que Helena fosse tão bella . Essa belleza , desejava-a a indiana tanto mais quanto menos lhe era possivel obtel-a . Nos seus rarissimos arrufos dizia ella a Helena : -- Tu és bella ! E a filha de Roberto desatava a chorar . Thomaz e Helena conheciam-se bem e ambos se estimavam . Nenhum o dissera ao outro . Thomaz leu-o nos olhos limpidos de Helena ; esta adivinhou-o . Não tinha este amor settas nem fogo . Era a fragrancia de duas flores que abriam de baixo do mesmo ceo ' ; era o reflexo da alegria , da innocencia , e da ventura de dois corações . A felicidade corre rapida como o navio que fende as aguas e a aguia que corta o espaço . No seu calendario os seculos são instantes . No ceo da ventura d' estes tres irmãos foram raras as nuvens . A ' sua juventude era ainda a continuação da sua infancia , descuidosa do futuro e descartada do presente . A innocencia é a convivencia dos anjos da terra com os anjos do ceo . As bençãos de Deus desciam sobre esta trindade , que o amor fundira n ' uma unidade angelica e sagrada . Por muito felizes se dariam se lhes podesse ser eterna a infancia . Os domingos , os unicos dias que Thomaz podia passar agora em companhia das suas irmãs , eram de verdadeira festa ; cada qual contava o que tinha sentido durante a semana , e depositava no altar sagrado da fraternidade os pensamentos que lhe brotavam na alma como as primeiras flores da primavera . Outro dia tambem de festa era aquelle em que recebiam as cartas de Roberto e de frei||_Francisco Francisco|_Francisco e nos animos lhes lavrava a anciã de responder . Liam-nas em pleno consistorio e em pleno consistorio lhes respondiam . Havia infelizmente bastante tempo que não tinham este prazer . Nenhumas cartas lhes trouxera a ultima mala da India . Quantum mutatus ab illo ! Era o mez de maio . Os campos abrazavam com os ardores do sol dos tropicos ; as folhas seccas rangiam ; as palmas do coqueiro trocavam o seu verde festival pelo amarello , queé nos vegetaes a côr dos mortos ; o veado corria com a lingua pendente , e arquejando de cançaço para a fonte amiga ; as aves volteavam á roda dos seus ninhos ; o homem abafava de calor . Se fôrdes , caro leitor , n ' esta estação para a índia , encontrareis pelas praças e estradas homens semi-nus deitados á sombra das arvores e gozando do dolce far mente . São os hamales ou boiãs que transportam os homens e as coisas . Acordae-os , se precisaes d' elles , e perguntae-lhes se querem transportar a vossa bagagem ; assentados mas ainda carregados de somno , com as palpebras semi-abertas e cabeceando , vos-hão . -- Não pode ser . Se lhes offereceis dobrado salario , deitar-se-hão immediatamente ; se triplicaes , adormecerão : se quadruplicaes , somno profundo ! Se não tiverdes um sipai da policia que faça mover esses indolentes que o calor entorpece , ide-vos e tende a paciencia de carregar com a vossa bagagem . São as consequencias do caor . Como o oasis no deserto , assim creou Deus o arccal para abrigo contra as ardencias e actividades do sol da índia . O arecal tem a magestade do templo e a frescura do jardim . Os troncos brancosecylindricos dasarequeiras tem quarenta a cincoenta pés de comprimento ; as suas copas verdes e unidas formam um toldo , do qual pendem amarellos e grandes cachos dcareca , e que cobre de frescas sombras um immenso espaço . O solo é coberto de um tapete de relva fôfo e matizado de flores e de serpes de crystal . Nos troncos alvissimos da sarequeiras se enleia a pimenteira com os seus ramos verdes e sarmentosos , que depois cruzando-se no ar formam uma rede continua . Por entre os vãos d' estas mil columnas vê-se ao longe o sol dos tropicos abrazando com a sua chamma extensas planicies , d' onde saem como fumo nuvens de pó . E ardente meiodia lá fora ; aqui começa apenas a manhã ; aqui cantam sempre os gallos ; aqui são perennes as perolas d' orvalho ; aqui nunca murcham as flores nem seccam as fontes ; aqui é a guarida das aves contra o sol que as queima ; aqui encontram brandura as feras ; aqui repoisa o pastor da fadiga do dia ; aqui exclama o homem : cest le site de mes rêvcs ; fy reviendrai tons les jours . Com o ligeiro impulso da viração treme todo este edificio ; agita-se toda esta massa de folhas ; suspiram todas estas arvores ; chove flores todo este tecto ; e desperta o pastor no seu macio teito de relva , que a natureza , qual mãe carinhosa , lhe embala ao doce sopro d' aragem e ao suave canto das aves . Na mais espaçosa varanda do bangaló de Fizabad , estava o ex-estoico Roberto baloiçando-se na sua rede e fumando o tikâ . que assentava sobre uma linda jarra de Japão , onde o fumo vinha banhar-se em agua de rosas , antes de correr pelo tubo coberto de seda , e ir sair por um riquissimo pipo de ambar de Roule . Por cima da rede desfraldavam-se os amplos folhos do pannká agitado por dois criados . Á cabeceira via-se uma estatua de admiravel execução , sustentando nas mãos uma coroa d' onde caía um cortinado cor de rosa . Ao seu lado direito estava o botler , tendo diante de si uma mesa de ebano com uma garrafa de cognac , uma bilha de barro da China e copos . Á esquerda , além do criado que atiçava de quando em quando a braza do ukâ , estava em pé um brahamane alto , vestido de branco , cantando o resgate da linda Sita . Nos quatro angulos da varanda estavam riquissimos vasos de marmore de Paros , cheios das mais bellas flores de jardim , e ardiam os pivetes de sandalo , cujo fumo ia involver em veos alvacentos e perfumados o novo Epicuro . No centro , um repuxo vomitava perolas em bacia de marmore branco , guarnecida de uma bordadura de violetas . A varanda era pintada de verde claro em todas as portas e grades . O nosso nababo inglez tinha a cabeça apoiada sobre uma almofada de damasco amarello ; vestia largas calças de setim verde , camisa de linho por cima de uma camisola de cór de rosa ; trazia finas meias de seda , e sapatos de veludo escarlate bordado de oiro . Ao som da voz do brahamane e ás oscillações suaves da rede ia Roberto adormecendo , quando foi despertado pelo rangido de uma porta que se abria . Entrou o doutor||_Carter Carter|_Carter . No rosto do medico estava pintada a mais viva e afflictiva inquietação . Grave motivo devia elle ter para perturbar a voluptuosa embriaguez de Roberto . Vendo-o , o sobrinho de Davis rompeu n ' uma exclamação : -- Doutor ! Que temos ? -- O sr.||_Davis Davis|_Davis está muito mal . Sobreveiu- lhe um novo ataque de paralysia depois de seis annos . Este deve ser fatal por que é o terceiro . Nenhumas esperanças tenho . Está a expirar . Aquelle golpe receava-o Roberto todos os dias , mas nem por isso deixou de lhe fazer grande sensação . O sobrinho de Davis mandou immediatamente chamar frei||_Francisco Francisco|_Francisco , e voltando-se para o doutor , disse-lhe : -- Estou certo de que o doutor ha de fazer o que lhe fôr possivel para salvar o seu amigo . Carter apertou a mão de Roberto e saiu precipitadamente . O quarto de Davis era sombrio como o calabouço , e triste como o tumulo . O silencio era alli apenas interrompido pela respiração estertorosa do moribundo . Á luz mortiça de um candeeiro alvejavam as roupas brancas do leito , que se agitavam como as ondas encrespadas pela brisa . A figura do doutor , com a fronte reclinada sobre o travesseiro , destacava do fundo d' este quadro aterrador . Entrou frei||_Francisco Francisco|_Francisco com o ciborio , e atraz o sachristão com a lanterna e aambula . Ajoelharam todos diante de Deus , que alli appareciasó , mas acompanhado da sua propria magestade . Depois de se assegurar de que o moribundo não estava em estado de se confessar , frei||_Francisco Francisco|_Francisco subministrou-lhe a extrema-unção , e , em voz baixa e com os olhos elevados para o ceo , rezou uma oração fervorosa pela alma que estava prestes a desprender-se da terra e a voar para a eternidade , que é o seio de Deus . Ás seis horas da tarde terminou Davis o seu dormitar de doze annos . Morreu . O testamento O homem põe e Deus dispõe . No quarto de Davis , oito dias depois da sua morte , ás dez horas da manhã estavam reunidos o novo magistrado de Oude e os seus empregados . Momentos depois appareceu Roberto vestido de lucto . Acompanhava-o frei||_Francisco Francisco|_Francisco . Á sua chegada ergueu-se o magistrado , que estava assentado ao pé de uma papeleira , e entregando-lhe um molho de chaves disse : -- Peço-vos que abraes ás gavetas d' esta papeleira por que preciso saber as ultimas disposições do vosso tio . Roberto , fazendo com a cabeça um leve comprimento aos circumstantes , abriu a primeira gaveta da secretaria , tirou uma folha de papel , e entregou ao magistrado . Um dos empregados presentes começou a lêl- a em voz alta . Rezava assim : " Na gaveta 2 estão as contas dos rendeiros , as correspondencias dos agentes , as contas com as casas commerciaes e diversos documentos até o anno de 1840 em que sahèb adoeceu . " " Na gaveta 3 : as apolices do banco de Bengala , os titulos das companhias e proximamente tres mil libras em dinheiro e um testamento feito a favor de " Ricardo Davis . " " Na gaveta 4 : um cofre fechado contendo sete pedras preciosas , sendo uma do valor de dez " mil libras e um testamento a favor de " Roberto Davis . " Assignado . -- Magnod . " Quando Roberto ouviu este nome sentiu um frio percorrer-lhe todo o corpo . O coração tem às vezes instinctos admiraveis ! Abriu-se a segunda gaveta e acharam-se to dos os objectos mencionados na relação . Abriu-se a terceira . O juiz rompendo os sellos do testamento começou a lêl- o para os que o rodeavam . Era instituido herdeiro universal Ricardo Davis , filho do irmão mais velho do testador , com a condição de casar com a filha de Roberto . Quando esta não quizesse consentir no casamento , os bens cairiam todos a Ricardo . Além d' estas clausulas , Ricardo era obrigado a pagar a seu primo Roberto uma tença de quinze libras por mez . Os outros artigos tratavam de legados pios . -- Este não é decerto o ultimo testamento do senhor||_Davis Davis|_Davis ; disse o juiz voltando-se para Roberto . -- Foi revogado , atalhou este immediatàmente , no anno em que eu cheguei á índia . O outro tem muitas mais clausulas , como logo vereis . -- Vamos á quarta gaveta , disse o juiz , aproximando-se , com os seus empregados , da papeleira . Roberto metteu a chave na fechadura e puxou com toda a força . A gaveta saiu sem resistencia . Estava completamente vazia ! Como sacudidos por uma corrente electrica , todos deram um passo para traz . Era extrema a sua turbação . Roberto parecia ter perdido o sentimento da vida . No meio das negras idéas que o cercaram apparecia-lhe o nome de Magnod flammejando como o Thecel Manes Phares nas paredes de Balthasar . -- Frei Francisco exclamou : -- Louvado seja Deus ! O veneravel frei||_Francisco_de_Santa_Catharina Francisco|_Francisco_de_Santa_Catharina de|_Francisco_de_Santa_Catharina Santa|_Francisco_de_Santa_Catharina Catharina|_Francisco_de_Santa_Catharina Descendente de uma antiga familia do Algarve , frei||_Francisco Francisco|_Francisco vestira em verdes annos o habito de frade , não para cobrir e dissimular com elle uma abominavel vida passada , como a campa esconde os cadaveres , mas para se abrigar debaixo de uma armadura , que defendesse a sua alma do contacto impuro do mundo . Moço , rico e gentil , fugira para as solidões do claustro , involvido no burel , que é muitas vezes amortalha do corpo e a gala do espirito ; a noite da vida e a aurora da eternidade . Para os verdadeiramente vocados , para os escolhidos do Senhor , o convento é a sepultura de uma vida e o berço de outra ; o principio de uma existencia e o fim de outra ; a soledade dos homens e a immensa companhia de Deus ; o somno do corpo e a vigilia da alma ; o nada das grandezas humanas e o tudo das delicias espirituaes . Ao ver esses infelizes , silenciosos como os cadaveres , e pregados pelos joelhos ás lageas frias do templo como os anjos curvados em roda do tumulo , esses espectros da vida com os olhos sempre fitos no ceo , com as mãos estendidas e com os rostos radiantes de doce alegria , dir-se-hia que as sublimes miragens da eternidade os haviam fascinado , que o extasi da esperança os tinha petrificado , que todos esses desgraçados se tinham submergido n ' essa lethargia para emergirem d' ella , á voz da trombeta , no seio immenso de Deus . É a fé que os veste d' essas mortalhas , -- é a fé que os fecha n ' essas sepulturas , dizendo-lhes , como o sacerdote dizia algum dia ao leproso , cobrindo de terra o seu leito : = Sis mortuus mundo vivens iterum Deo = . Honra aos que sabem esperar ! Gloria aos martyres do convento !