Maria BENEDICTA MOUSINHO DE ALBUQUERQUE PINHO ROMANCE PASSIONAL LISBOA COMPOSTO E IMPRESSO EM+A IMPRENSA LUCAS 93 Rua do Diário de Notícias-93 1912 A meu primo D. Antonio de Chatillon A quem devo a publicação deste livro O.D.C. A auctora O sol declinava , enviando raios , de um ouro fulvo , que vinham morrer nas pesadas cortinas do salão . Marina deixou cahir o trabalho , e , mãos cruzadas no regaço , cabeça deitada para traz , olhava o occidente , côr de purpura . Os aneis revoltos , do seu explendido cabello negro , vinham afagar-lhe a fronte , ao impulso da viração , que nelles doidejava . -- Que linda creatura ! -- murmurou o conde de Miramar , num suspiro , afagando , com gesto nervoso , a barba branca que lhe emoldurava o rosto varonil , mas bastante envelhecido . -- Estarás enamorado ? -- perguntou o pae de Marina , com um lampejo , nos olhos claros . O conde limitou-se a suspirar , novamente , olhando a joven . -- É que , se a amasses , -- proseguiu Manoel de Lemos , procurando um charuto . -- se a amasses , podias fazer dela tua mulher . O outro estremeceu , o seu olhar scintillou , para logo se apagar , numa onda de volupia . Um calôr intenso lhe subiu ao rosto , e , voltando-se para Manoel : -- Falas sério ? -- Porque não ? -- volveu Lemos . -- Seria , para mim , uma alegria , vê-la usar o teu nome . Depois ... sabes que estou sem recursos , e Marina terá de trabalhar , para viver ... Estiolar-se-ha , nesta villa , aquella soberba flor ... Repito : queres Marina para tua mulher ? E vendo o amigo hesitante , acrescentou , em tom trocista : -- Ou sentes-te muito velho , para aquelles luxuriantes dezoito annos ? -- A sua belleza é um filtro , capaz de remoçar os mais decrépitos ... Mas ... ella , me-ha ? -- Se te quer ? Chamou a filha . Esta ergueu-se , com uma graça voluptuosa , e approximou-se . -- Sabes , filha , de que me falava Jorge ? Ella volveu , para o conde os seus magníficos olhos garços . Este fitou a , muito pallido e muito commovido , quasi supplicante . -- Não comprehendo ... -- murmurou a joven . -- Perguntava-me se terias muita reluctancia , em acceitar o seu nome . Marina estendeu ao conde a sua mão de neve . Este apertou-a , docemente , e inclinando se com perfeita galanteria , beijou-lhe os dedos , murmurando : -- Adora-la hei , Marina ! Dois mezes depois , Marina de Lemos era condessa de Miramar . O deslumbramento que a joven sentira , perante as riquissimas prendas , dadas pelo noivo , continuou , durante a viajem , feita no sumptuoso caleche , ao ouvir o marido estabelecer um programma de festas , e accentuou-se ao entrar no palacete . -- Ah ! meu amigo ! -- exclamou , ao penetrar nos seus aposentos , -- parece um palacio de fadas ! Elle sorriu , feliz por vê-la tão alegre , sentindo-a presa a elle , por todo esse luxo de que ia rodeas- la . E , inclinando-se , a beijar-lhe a mão , deixou-a entregue á sua camarista . Como uma creança , Marina deixou-se despir , despentear , sentindo um delicioso conforto , e , quando entrou na banheira de mármore rosa , ao sentir a agua tepida e perfumada , uma onda de volupia lhe inundou o coração . -- Como a vida é bôa ! -- murmurou . A camarista olhava esse corpo de neve , esculptural , fresco , virginal . E pensava que taes thesouros , eram bem mal empregados , n ' esse velho de sessenta annos , gasto por uma vida de orgias . Evocava o porte esbelto de Humberto de Cadaval , o sobrinho e companheiro dilecto do conde , seu commensal de todos os dias . Que diria elle , ao vêr essa formosa tia ? Envolta no roupão de noute , deliciosamente repousada , a condessa deitou-se , dizendo , para a creada : -- Luiza , previna o senhor conde de que me sinto muito fatigada e que desejo descançar . Traga-me um copo de leite , depois feche as portas e leve a chave , para vir accordar-me , ás 8 horas . Pouco depois a rapariga voltava com o copo de leite , e , pondo a bandeja na pequenina meza , perto do leito , deu as bôas noutes e sahiu , fechando a porta . Marina bebeu , vagarosamente , o leite , comeu algumas bolachas , saboreando , deleitada , o conforto , o mimo , o luxo de que se via rodeada . Pouco depois adormecia , sorridente , sem pensar no marido . Este , ao receber o recado , teve um gesto de contrariedade , o olhar fulgurou , e , por momentos , a rapariga julgou ir assistir a um desses ataques de ira , que tão temido o tornavam . Mas elle dominou-se , despediu a creada , e foi encostar-se ao peitoril da janella , onde permaneceu longo tempo . Estaria Marina realmente fatigada ? Era perfeitamente natural , depois da longa jornada : dez leguas em carruagem , a seguir ás emoções desse dia . Elle proprio se sentia cansado , e era razoavel e sensato descançar , recuperando , assim , forças para o dia seguinte . Mas se a fatiga da condessa fôsse , apenas , um pretexto , para de si , o affastar ? se a sua idéa fôsse essa ? Não cederia ! Não era como objecto de luxo que a cubiçára . Desejava-a ardentemente , rejuvenescido pela sua formosura , pela sua mocidade , pelas suas formas divinas , pela epiderme assetinada , louçã , pelos labios rubros , pelos olhos incomparaveis . Queria desvendar os mysterios desse corpo , que advinhava superior a tudo quanto gozára , deliciar-se na frescura de aquella virgindade , queria vêr-lhe roxeadas as palpebras , empallidecidas as faces , queria vê-la quebrada , sua , bem sua ... A ' mente , de libertino , occorriam as mais loucas vizões . Tirou do bolso uma pequenina chave , dirigiu-se para a porta , occulta por pesado reposteiro , que ligava o seu quarto ao de Marina . Abriu , de manso ... A lampada espalhava uma claridade suave . Approximou-se do leito , cujos cortinados correu . Marina dormia . Sobre o travesseiro , negrejava a opulenta trança , uma respiração igual , entreabria os labios frescos e appetitosos . A felicidade espelhava-se-lhe , no rosto formosissimo . Friorentamente envolta na roupa , mal se lhe adivinhavam as formas , sob o édredon de setim , bordado a matiz . Jorge contemplou-a durante alguns minutos . Depois , deixou cahir as cortinas , e sahiu , como entrára , promettendo , a si mesmo , não a deixar dormir , tão tranquilla , na noite seguinte . Bom dia , Jorge ! E estendia a fronte , ao marido , cerrando , um pouco as palpebras . -- Bom dia , Marina ! Beijou-a na fronte , nos olhos , respirando o perfume dos seus cabellos , sentindo um estonteamento , ao contacto dessa epiderme setinosa . Estreitou-a , demoradamente , de encontro ao peito . Ella sentou-se na otomana , muito baixa , e , com um sorriso : -- Sabe que dormi como uma collegial ? -- Sei ! -- respondeu elle sorridente . -- Estive perto do teu leito , admirando-te a tranquillidade do somno . -- Perto do meu leito ? -- exclamou ella , muito surprehendida , -- mas ... como pôde ? ... -- Entrar no quarto ? -- interrompeu , risonho , -- de um modo muito simples : abrindo a porta que liga os nossos aposentos , Marina . Sentando-se perto da esposa , enlaçou-lhe a cinta , com o braço direito , e , com a mão esquerda , ergueu-lhe o queixo , beijando-a nos labios , demoradamente . Ella teve um instinctivo movimento de repulsão , logo dominado . O conde fingiu não dar por tal e repetiu o beijo . -- Julgavas que podias encerrar-te no teu quarto , como numa fortaleza ? -- proseguiu Jorge , em tom de gracejo , -- e ficas admirada , ao saber que essa fortaleza , que suppunhas inexpugnavel , tem , como todas as fortalezas , uma porta de traição ! Minha querida Marina , -- continuou , tirando do bolso a pequenina chave , -- esta chave abre-me , a toda e qualquer hora , a porta do teu quarto . Para o marido , não ha portas fechadas . Despeitada , Marina mordia os labios . O conde continuou : -- O recado que mandaste por Luiza , desagradou-me . Quando queiras pedir-me qualquer coisa , me-has directamente . Não quero creados mettidos na nossa vida intima . -- É uma lição ? -- perguntou Marina , erguendo-se , irritada . -- Não ! -- respondeu serenamente o conde , -- é apenas prevenir-te , para que evites a lição . E vendo-a permanecer de pé , fremente de colera , agarrou-lhe nas mãos , forçando-a a sentar-se-lhe nos joelhos . -- Sou um velho , e tu és a mais adoravel das mulheres bonitas . Quem te disse que podias dominar-me e obter , de mim , tudo quanto quizesses , não te mentiu . Esqueceu-se , porém , de prevenir-te que , para sêres a minha muito amada creança mimosa , é necessario que me dês carinho , affecto , que tenhas , para commigo , todas as complacencias que , como marido , tenho direito a exigir de ti . Ao notar a firmeza destas palavras , Marina comprehendeu que havia pensado mal , quando soppuzera que elle seria para ella um pae ... Sim , elle lhe-hia tudo quanto ella appetecesse , mas , para isso , era necessário que ella lhe désse+esse a sua mocidade ... Um calafrio a fez estremecer , pensando que teria de pertencer a esse velho lascivo . Amaldiçoou a sua ambição . Pareceu-lhe triste , o luxo que a deslumbrára , afigurou-se-lhe que os aneis lhe magoavam os dedos , e que o roupão de peluche , guarnecido de arminhos , que tão deliciosamente a aquecia , era pesado como uma mortalha . -- Louquinha ! -- murmurou o conde beijando-a muito . -- Verás que podes ser feliz , sem fazer de mim um desgraçado . E como as horas passavam , acompanhou-a até ao quarto , para que se preparasse para o almoço , e em seguida dirigiu-se ao escriptorio . O almoço , servidona magnifica sala de meza , com um luxo principesco , dissipou o mau humôr de Marina . Conversou e riu , mostrando-se encantadora para Jorge , que parecia radiante . Depois de almoço , o marido conduziu-a ao gabinete que lhe destinára , e mostrando-lhe um pequenino cofre , obra de arte , de um maravilhoso trabalho em ferro e aço , entregou-lhe uma chave . -- Neste cofre tens o dinheiro para os teus alfinetes , -- disse rindo . -- É preciso que sejas independente , que tenhas um peculio , a que chames particularmente teu , e de cujo emprego não terás que dar contas a ninguém . Marina agradeceu . Sentia-se bem , alegre , e disposta a gozar a magnifica existencia que se lhe offerecia . Depois , lembrou o passeio promettido . Estava impaciente por vêr Lisboa . O passeio foi encantador . Marina maravilhava-se . Jorge gozava deliciosamente da admiração que lia no rosto de quantas o saudavam , e ufanava-se da maravilhosa belleza dessa a quem déra o nome . Quando regressaram a casa , ambos se sentiam plenamente felizes . A ' noite como Jorge falasse em ir ao theatro , Marina declarou que preferia ficar em casa : -- Se o não contrario , Jorge , faremos um pouco de musica . Por hoje , declaro-me sufficientemente divertida . Mas se o Jorge quer sahir , não se prenda ... -- Por quem és ! o que pode haver que mais me encante , do que estar perto de ti ? Tocaram , conversaram . Jorge era excellente cavaqueador , illustrado , chistoso , sabendo contar , com graça , uma historieta ou uma anedocta . E Marina pensava que era preciso ser uma creança , inexperiente , e sem tacto , para ter imaginado ser facil dominar um homem com o espirito do conde de Miramar . Elle calára- se . Ella absorvia-se na contemplação da chamma azulada do fogão de alcool , invadida por vago torpôr , de novo presa dessa volupia , que na vespera a deliciára ao entrar no banho . Um creado correu o reposteiro , annunciando : -- O senhor||_Humberto_de_Cadaval Humberto|_Humberto_de_Cadaval de|_Humberto_de_Cadaval Cadaval|_Humberto_de_Cadaval . -- É o meu sobrinho , -- disse o conde , respondendo ao olhar de Marina . O reposteiro correu-se , de novo . Um elegantissimo mancebo avançou . -- Marina , -- disse Jorge , -- permitte que te apresente o teu sobrinho Humberto . -- Sinceramente estimo vê-lo , Humberto . Jorge fala de si , com muita estima ; espero merecer-lhe um pouco , da boa amizade , que dedica a meu marido . O mancebo curvou-se , respondendo : -- Basta V. Ex.ª ser mulher de meu tio , para ter direito á minha estima . Pareceu a Marina muito fria , esta phrase , e , principalmente , muito banal . Lembrou-se de que , antes do seu casamento , era Humberto o herdeiro presumptivo da immensa fortuna do conde , e por esse motivo , era natural que se sentisse pouco disposto a sympathisar com ella . Encostou-se , novamente , ao alto espaldar da sua berceuse , estendeu os pés para o fogão , e , cerrando as palpebras , permaneceu silenciosa . Jorge e Humberto , conversavam . E Marina olhava-os , atravez as longas pestanas , observando-os . Cadaval , robusto , alto , bella fronte de intelligencia , bocca vermelha , sensual , olhos avelludados tinha o mesmo porte distincto , soberano , de Jorge de Miramar , o seu mesmo sorriso de libertino sceptico . Mas , ao passo que Jorge accusava evidente decadencia , Humberto resplandecia de mocidade , de força , de saude . Quando ria , o seu riso era franco , muito alegre , deixando vêr os dentes muito brancos . E Marina admirava-lhe a musculatura de joven Hercules , e pensava como a vida seria diversa , se , em vez de Jorge fosse Humberto o seu marido . O mancebo levantou-se . Viera , de manhã , procura-los , e , como não os encontrasse , voltára , apenas para saber como tinham chegado , e pedia licença para vir , no dia seguinte cumprimentar " sua tia " . E sorria , ao chamar " tia " a essa deliciosa creatura . Marina estendeu-lhe a mão , encantada com a idea de o revêr , no dia seguinte . Jorge acompanhou-o ao vestibulo , voltando logo . -- Vou deitar-me , meu amigo , -- disse Marina , erguendo-se . E de súbito , tornou-se rubra . -- Até já , querida , -- fez Jorge , beijando-lhe a mão . Um calafrio fez estremecer a joven . E retirou-se , vagarosa , emquanto Jorge , perfeitamente disposto , passava aos seus aposentos . A lampada espalhava , no quarto , a sua claridade opalina . Um immenso conforto reinava nesse aposento , tão perfumado como um ninho , que as violetas cercassem . Marina estava estendida na chaise-longue , envolta no roupão de flanella branca , estremecendo ao menor ruido , o olhar cravado na pequena porta , por onde Jorge devia entrar . O coração pulsava-lhe , desordenadamente , e sentia-se quasi impaciente . Se o sacrificio tinha de ser , porque esperava o marido ? A porta , abriu , sem ruido . Envolto num roupão de velludo escuro , Jorge avançou , e veiu ajoelhar perto da joven , que fechou os olhos , soltando um suspiro . Em breve , uma sensação extranha , a penetrou . Sempre ajoelhado , Jorge beijava-lhe os braços , que as amplas mangas deixavam livres , e os seus labios ardentes subiam , até ao hombro , para descerem , vagarosos , até ao pulso , e , de ahi , até á extremidade dos dedos . A pouco e pouco , essas caricias , quebravam a joven , entorpecendo-a . Pequenos estremecimentos de volupia , lhe percorriam a epiderme , e , sempre de olhos fechados , deixava-se invadir por delicioso langôr . Dos braços , o marido passava , agora , ao pescoço , á orelha nacarada . Descia ao collo , sem que Marina pensasse em resistir , e , supremo artista , Jorge demorava esses beijos , percorrendo de novo , os braços , os hombros , o pescoço , approximando os labios do seio palpitante , que a sua mão desnudára , seio talhado em neve , de uma rigeza de alabastro , que parecia pedir as caricias , que tardavam , em ceder-lhe . E , de olhos fechados , Marina sonhava ... Via o olhar avelludado de Humberto , ouvia-lhe a voz , parecia-lhe que era elle , quem alli estava . E já sem receio , doido de amor e de febre , perante esse corpo lyrial , Jorge percorria , com os labios a epiderme assetinada , desvendava os mysterios desse corpo esculptural , queimando-o , com o seu haito de fogo , até que , doido de ventura , o ia enlaçar , para o suprêmo prazer , quando Marina abriu os olhos . Ao vêr o rosto alterado de Jorge , soltou um grito , e tentou fugir-lhe . Elle fitou-a , sorridente , triumphante , parecendo achar um encanto especial na lucta . Por fim , enlaçou-a , bruscamente , arrastando-a para o leito . Na severa livraria , encostado na ampla causeuse , Humberto fumava , emquanto o conde , passeando , falava com animação , descrevendo a scena da noite , ora rindo , ora semi-grave , ora baixando a voz , para uma confidencia mais intima , ora elevando-a , numa exaltação de enthusiasmo . E , sorridente , calmo , na apparencia , Humberto escutava , olhando as espiraes de fumo , ou cofiando , vagaroso , as guias do pequeno bigode . Jorge calou-se . Humberto permaneceu na mesma posição , cerrando , um pouco , as palpebras para occultar , talvez , o intenso fulgôr dos olhos negros . O conde parou , defronte do sobrinho , e , curvando-se para melhor o fitar , perguntou : -- Julgas que pensará ainda em resistir-me ? O mancebo arremessou o charuto e ergueu os olhos , scintillantes de malicia : -- Talvez ainda o deseje , mas não creio que volte a tenta-lo . -- Queres dizer que me não tem amor , nem nunca o poderá ter ? Humberto encolheu os hombros , levantou-se , e , travando do braço do tio : -- Tens presente , não é assim ? a imagem d' essa seductora mulher ? Ao gesto affirmativo de Miramar , arrastou-o para defronte do espelho . -- Achas que podes inspirar-lhe amor ? O conde volveu , sorrindo : -- Comtudo , é certo que consegui faze-la vibrar de prazer ... que lhe despertei , um pouco , o temperamento . -- Pois bem , meu velho , seria bem melhor que o tivesses deixado adormecido . Miramar estremeceu , e agarrando o braço do sobrinho : -- Sim ... tens razão ! Mas agora ... que o mal está feito , que fazer ? Humberto sorria sempre , fitando o rosto alterado e envelhecido , do tio . Este fitava-o , tambem , com viva anciedade , mais intensa de momento para momento . O relogio quebrava o silencio , com o seu tic-tac monotono , o fogão ardia , espalhando em calôr suave , nas jarras da índia , as flores exhalavam um perfume estonteante , unindo-se ao do fumo , que enchia o gabinete . E Humberto olhava Jorge : -- olhos cavados , roxeados por essa noite de prazer , lábios sensuaes , em que o sangue tomava uma côr violacea , faces pallidas , marcadas por pequenas rosêtas de febre , fronte prematuramente sulcada por profundas rugas , pelle envelhecida pelos excessos . E evocava a radiante Marina , recordava a scena contada pelo tio , e ao sorriso de quasi dó , succedeu um sorriso de mephistophelica malicia . -- Então ? -- murmurou o conde , apertando-lhe o braço . -- Cansa-a ! -- respondeu vagarosamenteo sobrinho . Jorge mostrou-se radiante , e retomou o seu passeio , esfregando as mãos , emquanto Humberto tocava o timbre . -- Pergunte á senhora condessa , -- disse , ao creado que acudira , -- se me póde receber ? -- Ah ! Vaes vêr Marina ? Estuda-a ... era bom que ella te escolhesse para confidente ... Humberto soltou uma gargalhada . -- Pobre tio ! -- exclamou , -- vejo que enlouqueceste , por completo ! Gomo pódes lembrar-te de que uma rapariga , escolha , para taes confidencias um rapaz da minha edade ? -- Tens razão ! -- concordou Miramar , contemplando o rosto varonilmente bello , do sobrinho , parecendo notar , pela primeira vez , a sua juventude sadia . -- Tens razão ! -- repetiu , com um suspiro , -- oh Humberto , quanto não daria eu , pela tua mocidade ! Cadaval replicou , rindo : -- É coisa que não se vende , pela razão de não haver dinheiro que a pague . E deixou o tio , dirigindo-se , sem pressa para a pequena sala onde Marina o esperava . Correu , de manso , o reposteiro , inclinou-se , na primeira saudação e ficou um momento , contemplando a joven . Fresca , louçã , aquecia , ao fogão , os pequeninos pés , e enviou , ao mancebo , um adoravel sorriso . -- Esperava-o com impaciência ! -- disse -- Como é amavel , minha tia ! -- volveu Humberto , apertando a mão que lhe estendiam e sentando-se , perto da joven . -- Nada amavel , apenas muito sincera . Julgo que Humberto não partilhava a minha impaciencia , pois , ha bem duas horas , que está com Jorge , esquecido da visita que me havia promettido . -- Não posso acreditar que fale a serio . É demasiadamente encantadora para ignorar o seu poder , e não julgo , por isso , necessario protestar , contra a accusação que me faz . -- Encantadôra ? Então suppõe-me vaidosa , para dizer que assim me julgo ? -- Vaidosa , não , artista . E , como tal , deve esquecer-se , muita vez , diante do espelho . É das coisas boas que ha na vida , sabe ? contemplar um rosto bello . -- Que de lisonjas ! -- respondeu a joven , rindo , -- é capaz de convencer-me de que fala verdade . -- Não deve ser difficil . -- É maluco ! -- proseguiu Marina . -- Mas deixemos este assumpto , e diga-me em que hei-de passar o tempo , com esta chuva e este vento , que ameaça levar tudo pelos ares . Estou quasi a sentir saudades da minha quinta , onde nunca se sentia o vento , abrigada pelas arvores seculares , verdes todo o anno , tão bonitas , tão imponentes ! ... -- Saudades da aldeia -- fez Humberto , -- da aldeia triste , rustica , sem prazeres , sem vida , sem luxo nem conforto ! ... até sinto frio ao ouvi-la falar assim ! -- Oh ! sentia-me bem menos isolada alli , acompanhada pelo chilrear constante dos passarinhos . Todos me conheciam , aves e habitantes e a minha boa Martha , e a afilhada , tanto amigo sincero , que alli deixei ! ... -- Quando a minha formosa tia Marina , tivér relações , -- o que não demorará muito , quando fôr ao primeiro baile , quando ouvir o côro de enthusiastica admiração , que , em todos , despertará a sua belleza , quando phrases vibrantes , lhe deixem advinhar , o sentimento despertado pela seducção que , de toda a sua pessoa emana , então me-ha , se ainda se lembra do chilrear dos passarinhos , das saudações dos rusticos da sua aldeia , das affeições , que alli deixou . O triumpho enebria- la ha , e , se quizer ser adoravelmente franca , me-ha : tem razão , Humberto , é bom ser assim adorada ! -- Adorada ! -- repetiu Marina , -- adorada era eu , na minha aldeia ! Aqui serei apenas adulada , Humberto ! -- Adulada e adorada , invejada e desejada . Creia , minha senhora , de aqui a alguns dias , toda a Lisboa a discutirá , nuvens de incenso vão rodeas- la , vae ser a rainha de todos os bailes , vae atrahir todas as attenções quer nos concertos quer nos passeios . -- Encantadora prophecia ! -- volveu Marina , rindo , -- se se rea isar , lhe-hei alviçaras -- As que eu pedir ? -- As que pedir . Não me assusta o compromisso , porque não creio na realisaçao . -- Fica assente . Dar-me ha as alviçaras que eu pedir . E garanto-lhe que me sinto perfeitamente tranquillo . Sei que as ganharei ... e V. Ex.ª também . Se não pensasse como eu , se não estivesse plenamente segura do deslumbramento que a sua belleza ha de produzir , e das emoções que , a esses triumphos , vae dever , se não estivesse , plenamente , convencida disto ... Deteve-se , hesitando . Depois , como ella o fitasse , curiosa , seductora a mais não , curvou-se , levemente , para ella , e concluiu : -- Não seria hoje minha tia . Marina estremeceu . Corou , intensamente , uma nuvem de amargura , lhe toldou o olhar , e ficou silenciosa , pensativa . Humberto observava-a . E , vendo-a tão fresca , tão louçã , perguntava , a si mesmo , se o tio lhe não teria mentido . Na face a côr rosada , nos olhos , em vão procurava o circulo roxeado , revelador de fatiga . Humberto evocava a scena descripta pelo tio , ao vêr contrahidos , em amargo dissabôr , os lábios rubros dessa explendida mulher . Marina sacudiu a fronte . -- Todos nós somos susceptiveis de sonhar -- disse . -- Mas , quando tentamos mudar o sonho em realidade , naufragamos , sem remissão . Humberto , se , alguma vez , tiver sonhos destes , -- proseguiu , levantando-se , -- evite realisa-los . O sonho tornado realidade é um pesadêlo perpetuo , destruidor de todas as alegrias ... O mancebo erguêra- se , tambem , admirando-lhe a figura tentadora , que o fato , muito justo , desenhava . E em tom descuidado , replicou : -- Oh ! não pensemos em coisas tristes ! Não se deve encarar a vida , pelo prisma pessimista . Todos os males , teem o seu lado bom . A sua vida , minha tia , é como uma senda de rosas , pense em colher as rosas , sem ferir-se nos espinhos . E verá como os pesadelos a abandonam ... depois , é preciso confessar , -- acrescentou , rindo , -- que sempre é uma compensação , ter-me como sobrinho . Marina ria , também , e , foi sem sombra de magoa , que respondeu : -- Decerto , muito mais , se me ensinar o segredo de colher as rosas , sem ferir-me nos espinhos . -- Tia Marina , não os procurando , acabará por esquecer-lhe a existência ... E , como Jorge entrava , despediu-se . -- O quê ? -- protestou a condessa , -- Humberto pensa em fugir ? Mas , antes de eu vir , para aqui , era o companheiro habitual , de meu marido . Julgo nada ter feito , para merecer que se modifiquem , habitos tão agradaveis . Hoje , como hontem , tem o seu talher á nossa meza . E como elle protestava , acrescentou : -- A não ser que me queira fazer acreditar que , positivamente , embirra commigo . E elle volveu , a rir : -- Que embirro , embirro , mas como não quero dá-lo a entender , acceitarei o seu convite , minha linda tia Marina . -- Ambos encantadores ! -- disse o conde , visivelmente satisfeito . Sejam amigos , muito amigos , se soubéssem quanto me agrada vê-los assim ! Marina córou Humberto sorriu . Realisára- se a prophecia de Humberto . Lançada no turbilhão da vida lisboeta , Marina viu-se rodeada de admiradores enthusiastas , de côrtes apaixonadas , de adulações , de amizades , mais ou menos sinceras . Posta ao corrente das intrigas , dessa sociedade de prazer , em breve se sentiu dominada pela mesma febre de divertimento . O amor ardente de Jorge , fiel ao conselho do sobrinho , trazia-a vibrante . O seu olhar scintillava , a bocca tomára mais côr , a face empallidecêra um pouco , os olhos tinham , agora , um leve circulo azulado , que lhes augmentava a extraordinaria belleza . E ' num dos últimos bailes da epocha , que a vamos encontrar . A orchestra preludiava uma walsa . Luiz de Castro enlaçou a cinta flexivel da condessa de Miramar , e o seu olhar ardente desceu do rosto aos hombros , que emergiam deliciosos , tentadores , do largo decote . -- Ha flôres , cujo perfume é veneno . V. Ex.ª é mais perigosa do que essas flôres , porque enlouquece . Vendo-a sentimos correr , nas veias , labaredas que nos requeimam . E que extranhas allucinações nos perturbam ! Se soubesse o desejo que tenho ? Matá-la ... matá-la , para vêr correr o sangue , nessa garganta de neve , para que os olhos se lhe velassem , para que , dos labios , lhe sahisse um queixume ! Matá-la ! Matá-la ... para depois a tomar nos braços , embalando-a como a uma creança ! Falava baixo , em tom profundo e apaixonado . Nos seus olhos passavam clarões selvagens . -- Vejo , -- respondeu Marina , -- que não pode merecer-me confiança . Com esses instinctos de féra , sei lá do que seria capaz ? Talvez julgue lisongear-me ? Não tardará que não o possa vêr , nem ouvir ... Começára brincando , terminára em tom duro . O seu olhar tornou-se frio e cortante , como a lamina de um punhal . O mancebo olhou-a , supplicante : -- Perdôe ! Amo-a tanto ! Sou louco , louco , louco , por si ! E vejo-a indifierente , sem misericordia para a minha dôr ! Se soubesse como soffro , condessa Marina ! -- Sabe uma cousa ? A minha flôr predilecta é a violeta , porque é discreta , e delicada . Aprenda a ser violeta , senhor||_Castro Castro|_Castro . -- E , se eu conseguir dominar , um pouco a paixão que me devora ... diga ... merecerei um sorriso , uma palavra de affecto ? -- A alma verdadeiramente enamorada , dá amor , como a flôr perfume , sem esperança de recompensa . -- Oh ! pedia tão pouco ... -- Acha isso ? Vejo que nada tem de violeta ... nunca poderá interessar-me , sequér ! ... E teve um gesto de soberbo desdem . O mancebo tornou-se livido . -- Ha tanto que a amo ... que só para si vivo , condessa Marina ! ... -- Eis um trabalho de que o dispenso ! -- Diga que me perdôa ... que lhe mereço um pouco de dó ! -- É funebre , senhor||_Castro Castro|_Castro . Esqueça-me . Nunca me interessará ! A walsa findava . O mancebo conduziu , lentamente a condessa , ao seu logar . E ao curvar-se , agradecendo , perguntou , em voz suffocada : -- É a sua ultima palavra ? -- A ultima ! volveu Marina , abrindo o leque , sentindo prazer em dilacerar esse coração apaixonado . O olhar que o infeliz lhe dirigiu foi indiscriptivel . Curvou-se , novamente , e afastou-se , sahindo da sala . -- Que lhe disse aquelle pobre pateta ? -- perguntou Humberto , approximando-se . Marina respondeu , rindo : -- Que desejava cravar-me um punhal , no coração ! Acho-o muito violento e brutal . Não é o genero que eu aprecio . -- Violentos serão sempre aquelles que a amarem , tia Marina , porque pertence ao numero das mulheres , que só paixões violentas podem dispertar . Ao vê-la , não se pensa em erguer-lhe um altar , mas pensa-se , immediatamente , que não haverá crime , nem loucura , que se não faça , para merecer-lhe amor . O homem que a amar , e perder a esperança de ser amado , pensa , fatalmente , no suicidio . Porque é uma tortura inconcebivel vê-la , de olhar incendido ou voluptuoso , labios promettendo beijos exquisitos , seio arfando , como se o coração palpitasse de desejos , e saber que tudo é ficticio , que nunca nos pertencerão esses lábios provocantes ... Desilludiu Luiz de Castro ? Será a sua primeira victima . Muitos corações hão de juncar o seu caminho triumphal , condessa de Miramar ! A joven desatou a ri : -- Funebre prophecia para um baile , Humberto ! Dê-me o seu braço , e leve-me ao bufete , sinto um appetite devorador . Quando regressavam , crusaram-se com Luiz de Castro . O mancebo deteve-se , fitou na condessa um olhar desvairado , e sahiu cambaleante , caminho do jardim . A condessa seguiu-o , com o olhar , depois fitou Humberto , que a observava : -- O quê ? Nem um estremecimento de compaixão ? Olhe que aquelle homem , tem contadas as horas de vida ... -- Meu amigo , -- respondeu Marina , penetrando na sala de baile , -- o prazer espera-me . Não tenho vagar para sentimentalismos ! E como Fernando de Luna se enclinava , perante ella , enfiou o seu braço , no d' elle , seguindo risonha , feliz , o olhar ardente de febre , os labios humidos , parecendo implorar beijos . -- Hei-de vencer-te ! -- murmurou Humberto . -- Estamos em fins da primavera , -- dizia Fernando , -- que thermas ou campo , escolherá V. Ex.ª ? -- Não sei ... é provável que vá estar algum tempo , na minha aldeia . Seu pae recommendou , a meu marido , umas semana de absoluto repouso . -- Mas não vae fugir-nos , por muito tempo ? -- Que posso eu dizer ? Tudo depende da saude de Jorge . Vou achar-me tão só , na Soledade ! -- Iremos alli vê-la , levar-lhe noticias , se V. Ex.ª permittir . -- São dez legoas . Só se pode ir de carruagem , ou em bicicleta . Não é pois muito provável , que venha a ter muitas vizitas . -- Se me permitte irei , frequentemente , em bicicleta , levar-lhe as ultimas novidades ... Marina desatou a rir . -- Estou capaz de acceitar , para o experimentar ! -- Obrigado ! murmurou Fernando . -- Mas eu não consenti em coisa alguma , -- volveu a joven , rindo . -- Mas não prohibe , não é verdade ? -- Não quero abusar da sua gentileza ... -- E se eu teimar ... em ser gentil , não se zanga ? Olhava-a , sorrindo : Ella sorria , fitando-o , emocinada pela meiguice d' esse olhar . -- Não posso impedir que dê os passeios que mais lhe agradem ... -- respondeu , emfim , -- nem zangar-me por vê-lo preferir o caminho da minha aldeia ... Fernando não disse mais . Pareceu entregar-se , por completo , ao prazer de walsar . E , docemente commovida , Marina pensava que era assim , sem declarações intempestivas , sem ameaças , sem arrebatamentos prematuros , que ella queria ser amada . Que lhe dizia eu , condessa ? Luiz de Castro suicidou-se , -- disse Humberto , fitando-a , para vêr a impressão causada pela noticia . Marina encolheu os hombros . -- Não sente remorsos ? -- De quê ? Não o amava , não o podia amar , que devia responder ás suas declarações ? -- E nem o mais leve sentimento de dó ? ... Ella olhou o , sorrindo : -- O suicídio é uma cobardia . -- Conforme , -- replicou Humberto . -- É preciso coragem , e um grande desespêro , para vencer o pavor , que a morte inspira . Quem affirma o contrario nunca pensou na morte , ou nunca soube o que é soffrimento . Mas eu estou convencido de que se sente ufana , porque um desgraçado se matou , por sua causa . É um triumpho , não é verdade ? -- Pois preferia que o tivesse amado ? -- Não ! -- respondeu simplesmente Humberto . A condessa approximou-se : -- Era um caracter violento , arrebatado , que não se satisfazia com um sorriso , com uma esperança , nunca realisada . E com franqueza , Humberto , prefiro sabê-lo morto , a ser sua victima . Eu gosto de viver assim , -- proseguiu , encostando-se na chaise longue , -- n ' esta vibração constante , sem peccado que me faça baixar os olhos , perante Jorge , a quem respeito , sinceramente ... É tão bom ser adulada ! Viver entre protestos de amor , entre olhares de adoração ! Nasci para ser amada , Humberto ! Não me queira mal por isso , teria verdadeiro desgosto , sabe ? se pensasse mal de mim ... -- Ao vê-la tão fria , sabe o que penso , minha senhora ? que o seu coração é incapaz de sentir um affecto ... e que , se eu ámanhã morresse ... -- Cale-se ! -- interrompeu Marina . -- Está sendo ingrato . -- Diga , -- insistiu Humberto , parando , junto d' el ! a , -- diga , se eu morresse ... seria capaz de , por mim , derramar uma lagrima ? A condessa ergueu , para elle , os formosissimos olhos . -- E se fôsse eu , quem morresse , teria muita pena , Humberto ? -- Mais do que posso dizer-lhe ... -- Ah ! fiquemos por aqui ! -- exclamou a condessa , -- tanto basta para sentir-me feliz ! O mancebo dominou uma violenta commoção , e afastou-se , indo encostar-se á varanda . Sorridente , Marina sonhava . O conde entrou : -- Acabo de combinar com o Luna , uma coisa que me parece dever-te agradar , Marina querida . -- Coisas combinadas por ti , agradam-me sempre , -- respondeu a condessa , com um meigo sorriso , -- e desde já me declaro encantada . O conde sentou-se perto d' ella , e olhando-a , com enlevo , respondeu : -- Não se pode ser mais gentil ! Gomo o Luna insiste , em que devo ir , quanto antes , para a aldeia , lembrei ir elle , com a filha , e a Suzanna de Menezes , cujo lyrismo te diverte tanto . O Fernando , como não pode deixar de ir ao hospital , irá , em bicicleta , levar-nos noticias . Já temos um ramal , da linha ferrea , que nos leva a cinco legoas da aldeia . A viagem torna-se muito mais commoda . Vês tu , Marina : os Lunas , a Suzanna , a tua amiga Martha e o marido , formaremos um grupo muito intimo , e os dias decorrerão mais breves . -- Acho encantadora a idéa ! -- disse Marina , estendendo-lhe a mão , que elle beijou . -- Vou dar ordens para ir o pessoal necessário para pôr tudo comme il faut . -- Se é preciso um engenheiro , aqui tem um ás ordens , -- disse Humberto , deixando a janella . -- E se fosses dirigir os trabalhos ? Não era tolice nenhuma . -- E porque não hei-de ir ? Quando manda que parta ? -- Serão necessários muitos dias ? -- perguntou Marina , a quem a partida de Humberto agradava , mediocremente . -- Oh , tendo carta branca ... , -- disse o mancebo . -- Tens carta branca para tudo , -- acudiu o conde . -- N ' esse caso , em oito dias porei a Soledade em termos de vos receber , e aos vossos hospedes . -- Pobre Humberto , -- disse Marina , -- vae aborrecer-se muito ! ... -- Qual historia , -- disse o conde , -- os rapazes como elle , nunca se aborrecem . -- É certo , -- confirmou Humberto , -- não me recorda de ter-me aborrecido ! Tudo combinado , partiu Humberto para a aldeia , onde , oito dias depois se lhe foram reunir os condes , acompanhados pelos seus hospedes . O vasto casarão , estava transformado n ' um confortável e luxuoso palacio . Como os Sande tivessem obras , na pequena propriedade em que habitavam , a condessa convidou os a virem para a Soledade , emquanto durassem as obras . Martha acceitou , com prazer , e as creanças batiam palmas , alegres por irem viver perto da madrinha . Fernando de Luna vinha , todas as tardes , trazer noticias , como elle dizia , e as mais lindas flores da sua estufa . A vida decorria , encantadora , na quinta a que as arvores , seculares , davam um aspecto grave . De manhã , Luiza de Luna , Suzanna de Menezes , Paulo de Sande e Humberto , jogavam os arquinhos , o tennis , ou o croket , emquanto Martha trabalhava em alguma obra , para as filhas , e Marina , recostada na cadeira de jardim , olhava os jogadores , conversando com Martha , ou brincando com as pequenitas . Jorge e o velho Luna , passeavam , ou vinham para perto da condessa . A ' noite , o prior vinha fazer uma partida , com os dois velhos , emquanto , n ' uma outra meza , seroavam as senhoras , com excepção de Marina , a quem desagradava todo a qualquer trabalho manual . E emquanto as mais trabalhavam , Marina ia sentar-se ao piano , onde Fernando a seguia , para voltar-lhe as folhas da musica . -- Sabe que estamos á espera de que tenha um dia livre , para irmos ás Heras , uma propriedade de meu marido , distante uns dez ou quinze kilometros , e que Humberto diz , ser digna de vizitar-se . Iremos em barco , até ao fim da Soledade , gosando as margens . Veja se consegue que um dos seus collegas se encarregue dos seus doentes , ao menos por dois dias . Assim falava Marina , emquanto os dedos deslisavam sobre o teclado , tocando , em surdina , uma aria de Mendelssohn . -- Com verdadeiro prazer ! Marque V. Ex.ª o dia . -- Mas , se de si dependemos . -- De forma alguma . Logo que V. Ex.ª fixe o dia , eu comprometto-me a estar aqui , á hora indicada . -- Mas é melhor ficar de vespera , para não se fatigar ? ... -- Não sou facil de fatigar-me , -- respondeu o moço medico , rindo . -- Posso andar um dia inteiro , em machina , e , a seguir , walsar toda a noite . Marina , que abandonava o piano , parou , olhando-o : -- Gosto de ouvi-lo falar assim . Agradamme a juventude e a força . E emquanto elle permanecia junto ao piano , ella approximou-se da mesa , em que seroavam . -- Podemos marcar o dia para o passeio ás Heras . O dr.||_Fernando Fernando|_Fernando vem no dia que lhe marcarmos . -- Hoje são dez ... se pudéssemos ir depois de ámanhã , na vespera de Santo Antonio ? -- lembrou Suzanna . -- Teu sobrinho , diz que haverá fogueiras , e descantes . Seria agradavel assistir a isso tudo , não te parece ? -- Approvado ? ... -- perguntou Marina , correndo o olhar por todos . -- Por unanimidade ! -- exclamou Luiza . -- E como vamos ? em machina ? -- Pedimos dispensa , -- disse Jorge rindo . -- E eu acompanho-os , -- acudiu Martha . -- A condessa também preferirá o caleche , á bicicleta , -- disse Humberto . -- Parece-lhe ? -- perguntou Marina . -- Quizera saber porquê ? -- É mais magestoso ! -- disse Luiza . -- Encostada ás almofadas de setim , com uma indolência de sultana . -- Isso , isso ! -- concordou Suzanna rindo . -- E nós em machina , valeu ? -- perguntou Luiza . -- A's ordens , -- disse Paulo . -- Dê-me V. Ex.ª as suas ordens , minha senhora , -- disse Fernando , curvando-se , perante a condessa . -- Vamos acompanhado , até á ponte , quer condessa ? -- lembrou Paulo . -- Quero ! A noite está linda . Vou mudar de fato , num momento . Vocês não veem ? -- perguntou para as duas . -- A esta hora ? -- disse Luiza . -- Obrigada . -- Quero acabar esta rosa , -- disse Suzanna . -- Vão descendo , meus senhores , em breve estarei comvosco . Os trez mancebos desceram . Pouco depois reunia-se-lhes Marina . Partiram alegres , pela estrada alvacenta , que o luar illuminava , gozando o encanto da noite , e o trinado dos rouxinoes , nos salgueiros que bordavam o rio . Na ponte despediram-se de Fernando , que partiu , como uma setta . Voltaram , vagarosos , conversando . A estrada , muito plana , desenrolava-se , parecendo illimitada . De súbito , Marina exclamou : -- Vamos a uma corrida ? E volvia , para elles , os olhos scintillantes de prazer . -- Vamos lá ! -- disse Paulo . -- Au revoir ! -- disse ella . E deslisou com vertiginosa rapidez . -- Bravo ! exclamou Humberto , -- ao chegar perto da subida , que conduzia á quinta . -- E não está cançada ? -- Nada ! É bom correr assim ... voar ... voar ... Deve ser uma sensação semelhante , não lhes parece ? -- A condessa conserva se uma explendida corredora , -- disse Paulo . -- Lembra-se dos nossos passeios ? -- Se lembro ! Lisboa não se presta para este genero de Sport . Aqui , tenho-me desforrado . Todas as manhãs , muito cedo , uma boa corrida , para abrir o appetite para o almoço , e para conservar , aos musculos , a elasticidade precisa . -- Tem guardado um tal segredo ! -- observou Humberto . -- É porque não quero despertar em Luiza ou Suzanna , o desejo de acompanhar-me . Quero sentir-me livre , correr , voar , segundo o meu capricho . Entravam no parque . Paulo dirigiu-se para a sala . Os dois demoraram se na saleta . -- Então o Fernando , vae tendo boa cotação ? -- perguntou Humberto , rindo . -- Sabe amar ! -- murmurou a condessa . -- Que lindas phrases namoradas ! Gosto muito de ouvi-lo ... -- Pelo que vejo . está quasi conquistada ? Ella olhou-o , demoradamente . Eue fitava-a sorrindo . -- E se assim fôsse ? -- perguntou Marina . -- Dizia que Fernando era um homem feliz . -- Só ? -- Acha pouco ? -- E não se zangaria ? -- Para isso , era necessário que me tivesse dado direitos ... -- Supponhamos que lhe&lhes+os dei ... E o seu olhar scintiilante , avelludou-se resplandesceu de perturbadôra meiguice . -- Condessa Marina , condessa Marina quer enlouquecer-me ? -- Talvez ... -- Com que fim ? -- perguntou o mancebo approximando-se , e tomando-lhe as mãos , que ella não retirou . -- Gostava de ver como seria , enamorado ! -- murmurou . -- Simples curiosidade ? -- volveu elle . Sorria , curvando-se para ella , apertando nas suas , as mãos delicadas da joven , queimando-a com o olhar , subitamente incendido . Muito pallida , olhos afogados em volupia , labios frementes , Marina vibrava intensamente Elle inclinou se mais . Os seus labios quasi tocaram os labios rubros da joven . -- Feiticeira ! murmurou . Beijou-lhe as mãos , afastou se , deixando a deliciosamente commovida . Como está bonita ! Referiam-se á lancha , que devia conduzir a troupe , toda guarnecida de verdura , com o toldo vermelho , festiva e garrida . -- Foi Humberto , -- disse Jorge . -- É elle quem merece as felicitações . -- É um rapaz encantador , quando o quer ser , este Humberto , -- disse Suzanna . -- Então , não quero sempre ? -- Parece-me bem que não . -- Diga antes , que não o consigo ... -- Isso não digo . Repito : -- quanto quer consegue . Humberto desatou a rir : -- Quanto quero ? Tenho uma sorte digna de inveja . -- Menos tagarellice , e mais trabalho , -- troçou Sande . -- Mãos aos remos , e ao largo . O dr.||_Luna Luna|_Luna ia tomar o seu , quando Marina interveiu . -- Tenha paciência , meu amigo , mas este , é um dos meus predilectos exercícios . Tome conta do leme , vamos . -- Pois tu sabes remar ? -- perguntou Luiza , muito surprehendida . -- Marina sabe tudo quanto é sport , -- respondeu Martha . -- Em solteira , era infatigavel , em todos os exercicios . -- Oh , infatigavel , ainda hoje affirmo que o é , -- declarou Humberto . -- Mais do que pensa , -- replicou a condessa . -- Engana-se , estou perfeitamente instruido , e admiro-a , profundamente . -- Essa phrase é sublinhada , Humberto , lhe-hei explicações , mais tarde ... -- Pois eu fico maravilhada , como Luiza , -- disse Suzanna , -- uma pessoa que leva uma vida de indolência , para quem todo o trabalho é uma fatiga , como pode gostar de remar , e remar , sem cansar-se ? -- Mas a condessa , -- interveiu Luna , -- nos bailes dansa , desde a primeira quadrilha , até ao cotillon , com o mesmo enthusiasmo . -- Sim , mas o resto do tempo , leva-o , estendida na chaise longue , ou na berceuse . Nunca fui a casa de Marina , que não a encontrasse assim . E aqui ... berceuse ou rêde . -- Isso é a condessa de Miramar , -- acudir Martha , -- Marina de Lemos caçava , remava , montava a cavallo , guiava um carro , ou corria em bicicleta , como um rapaz . -- É certo , -- confirmou Marina . -- E agora recordo esse tempo . -- E , depois de uma vida tão accidentada , pudeste passar a viver de tão diverso modo ? -- Se eu não levasse aqui , essa vida , morria de aborrecimento . A condessa de Miramar não corre esse perigo . Gosa a vida e sonha ... Sonhar é tão bom ! -- E's muito feliz ! -- disse Luiza . -- Tenho uma vida muito doce ! -- volveu Marina . -- Uma vida um tanto oriental . As orientaes é què sonham , assim , -- disse Paulo . -- Quem ha que não sonhe ? -- replicou Marina . -- Todos temos a nossa chimera . -- Emquanto novos ! -- observou Jorge . -- Isso ! -- confirmou Luna -- É um dos previlegios da mocidade , que não invejo . Ter illusões , para perde-las , antes nunca as ter tido ! -- Não concordo ! -- respondeu Fernando , -- antes ser feliz um momento , do que passar a vida inteira , sem saber o que é ventura . -- O cego de nascença , não sabe o que perdeu ; -- replicou Humberto , -- é lhe menos triste a cegueira , de que a outro , que contemplou o ceo , e os campos para depois cegar . Assim , quem nunca teve illusões , não pode saber o que é sonhar , e não pode soffrer o que soffre , quem as teve , e as viu morrer ! ... -- Oh ! a mocidade sem illusões , é a primavera sem flores ! -- insistiu Fernando . -- Que ellas brotem , a esmo , no meu coração , embora tenha de perdê-las , um dia . A flôr brilha umas horas , e morre sem magoa . O coração que sonhou , pode morrer . Como a flôr , cumpriu a sua missão . -- Que lyrismo ! -- troçou Luiza . -- Pois eu prefiro não ter illusões . -- Oh ! tu , és pouco para chimeras , -- observou Suzanna , -- mas eu , sem ser , como a condessa , uma sonhadora , tenho o meu sonho . Encanta-me , embriaga-me , não o trocaria pelos mais bellos thesouros . -- E um bello dia , vês-lo , desfeito em fumo , -- disse Luiza . -- É então que quero ouvir-te abençoar essa illusão . -- E porque hei-de vê-lo desfeito ? Ha muito sonho que se realisa . -- O sonho tornado realidade , é uma borboleta sem azas , -- disse Humberto , rindo . -- O sonho tornado realidade , -- defendeu Paulo , -- é um bello pecego maduro -- E roido dos vermes , -- teimou Humberto . -- Está com uns laivos de cynismo que lhe não conhecia , -- replicou Suzanna , -- Marina , tu é que o tens feito assim . -- É uma honra , a que não tenho direito , -- volveu a condessa . -- Humberto é refractario á sugestão . -- Faço notar que a condessa não repeliu o diploma de cynismo , concedido pela senhora||_D._Suzanna D.|_D._Suzanna Suzanna|_D._Suzanna . -- Ah , já estou habituada a que assim me chamem . Embora me revoltasse , ninguém me acreditava . Pois viu alguém defender-me ? -- O que não quer dizer que todas pensem o mesmo , -- acudiu Fernando . -- Oh o dr.||_Fernando Fernando|_Fernando , é sempre um aduladôr . -- Eis-nos chegados -- bradou Humberto . Saltaram em terra . Em cima , na estrada , avistavam-se as machinas , e o soberbo landeau . -- Appetece correr ! disse Marina . E subiu rapida , o pequeno declive . Ao alcançar a estrada , voltou-se para as companheiras . Subitamente , o seu radioso olhar , toldou-se . Avistára Suzanna , curvada para Humberto , detido a amarrar a lancha . Mau grado a frieza com que o mancebo tratava sempre a joven , Marina não pôde esquivar-se a sentir ciume . Sabia-a loucamente enamorada , capaz de tudo para obter um sorriso . Cadaval concluira o trabalho . Suzanna pediu-lhe o braço , e subiram ambos , elle indifferente , ella langorosa , sem pressa . Marina voltou-se para Luiza : -- Lá está Suzanna o cortejar Humberto . -- Então ! Para logo ter uma crise nervosa , provocada pela frieza d' elle . Coitada ! É mais forte do que ella . Partiram emfim . Marina , Martha , o conde c o velho Luna , de carruagem , os outros em machina . Fernando , perto de landeau , os mais correndo velozes , pela estrada fóra , em alegre desafio . O palacete das Heras , em fórma de castello , era encantador , e digno de vizitar-se . A mobilia e os quadros que o guarneciam , tinham subido valôr . A tarde decorreu , alegre . A ' noite , Paulo propoz descerem á Villa , para assistirem aos folguedos da vespera de Santo Antonio . Suzanna , muito cansada , preferiu recolher aos seus aposentos . Jorge e Luna , ficaram conversando . Os outros desceram á Villa . A noite estava serena , o luar despontava . Estalavam os foguetes e as bombas , choravam as guitarras e as violas , ouviam-se descantes . Tudo era alegria , na pequenina Villa . -- Então , resolve-se a acceitar a côrte de Suzanna ? -- perguntou Luiza a Humberto . -- Se a convencesse a deixar-se d' isso , volveu o mancebo . -- Detesto inspirar paixões infelizes . -- É então positivo que ella lhe não agrada ? É uma boa rapariga , quer-lhe muito , e tem um bello dote ... -- Sim , tudo isso é verdade , mas , se não lhe tenho amor ? -- E é preciso amor , para fazer delia sua mulher ? Não bastará estima-la ? O amor , no casamento , parece-me um luxo . -- Não diga isso . Só o amor , e um grande amor , póde impedir o naufragio da nossa ventura , nesse escolho que se chama matrimonio . -- Sim , bem sei . Mas se fingisse ama-la ? Talvez acabasse por se lhe affeiçoar ? -- Mas se eu , nem sympathia , por ella sinto ? -- Pobre Suzanna , a sonhar um futuro côr de rosa , a seu lado ! -- Oh ! o sonho é livre ! -- replicou Humberto , rindo . -- É um passatempo innocente , logo que se não pense , em realisa-lo . -- Estou convencida , de que ella o faria feliz . Se quizesse ... -- Não quero . Entendo que a felicidade é como o sonho . Para ser doce , ha-de ser irrealisavel . -- Sim , amo-a ! -- dizia Fernando a Marina , -- ama-la hei , até morrer . Não lhe peço que me ame . Não penso mesmo em obter tal ventura . Sei que é um impossivel . E amo-a ! Adoro-a ! Quero viver perto de si , ser um joguete nas suas mãos , tudo soffrerei , por si . Para sentir-me feliz , basta-me vê-la , e ouvi-la ! Mas ha uma coisa que eu temo , para a qual me não sinto com animo : é vê-la amar outro ! Creio que enlouqueceria . Era isto , que eu desejava poder implorar-lhe , condessa Marina , se tal pedido , fôsse attendivel : não ame ! Se soubesse quanto soffro , só de pensar que póde amar ! -- E se eu o amasse , a si , Fernando ? O rosto do mancebo alterou-se . Tornou-se livido , como um cadaver . A condessa assustou-se . Pela primeira vez sentiu remorsos , do jogo cruel , em que dilacerava corações . -- Não brinque assim , minha senhora , -- disse , lentamente , Fernando , detendo-se para envolver a condessa num olhar de louco . -- Não brinque assim . Creia que póde enlouquecer-me ! -- Perdôe- me ! Não queria fazer-lhe mal . Fui um tanto leviana . Não me retire o seu affecto , e conte-me como sincera amiga . -- Obrigado ! -- murmurou o mancebo , docemente . -- Em troca dessa amizade darlhe- hei toda a ternura do meu coração , toda a minha alma , toda a minha vida . Sou seu . Disponha de mim . -- Para tudo ? -- brincou Marina . -- Para tudo , -- repetiu , gravemente o mancebo . -- Sem restricções ? -- insistiu a condessa . -- Sem restricções ! -- Adorável coração ! -- murmurou Marina , -- gosto de ser amada por si , Fernando ! O moço medico , estremeceu , e ficou silencioso . Chegavam á villa . O barulho era ensurdecedor . Durante , algum tempo , divertiram-se , com aquella alegria . Depois , regressaram , lentamente , ás Heras . Como sempre , Marina ergueu-se muito cedo , e dirigia-se para o jardim , quando , no corredor , se cruzou com o creado , que levava uma chicara de leite , numa salva de prata . -- É para o senhor conde ? -- perguntou . -- Sim , minha senhora . -- Dê cá , eu levo . E dirigiu-se para o aposento do marido . Estava impaciente por saber como elle passára a noute . Opprimia- se-lhe o coração quando pensava que a doença -- Jorge podia ser mortal . Acabára por affeiçoar-se-lhe , era-lhe profundamente grata . Abriu , de manso , a porta , approximou-se do leito . Jorge dormia , a respiração regular , uma grande tranquillidade no rosto emmagrecido , -- oh tão emmagrecido , tão pallido , tão desfeito , que Marina sentiu confranger-se-lhe o coração . -- Meu pobre Jorge ! -- pensou . Muito meiga , curvou-se , a beijar-lhe a fronte . O conde estremeceu , abriu os olhos , e fitou Marina , surprehendido . Ao vêr-lhe o doce sorriso , e , nas mãos a chavena de leite , commoveu-se . -- Oh Marina ! -- murmurou . -- Descansaste bem , Jorge ? -- Regularmente ... Ella amparava-o um pouco , emquanto elle bebia o leite . Depois , concertou-lhe a roupa , e curvou-se a beija-lo . -- Obrigado ! -- murmurou o conde . -- Dorme , meu Jorge ! -- disse , na sua voz dulcissima ... Dorme , meu amigo ! Elle contemplou-a , commovido e grato . Depois cerrou as palpebras e adormeceu , com o sorriso nos labios . Marina deixou o quarto . Sentia-se feliz por ter cedido a Jorge , um mimo que tanto o penetrára . Alegre , desceu ao jardim . Avistou Humberto , entretido a levantar umas braças de mandevilia , e , numa rua lateral , Suzanna . A condessa occultou-se num caramanchão tentando assim vêr e ouvir , o que entre os dois ia passar-se . -- Senhor||_Cadaval Cadaval|_Cadaval ! Senhor||_Cadaval Cadaval|_Cadaval ! -- chamava Suzanna . O mancebo voltou-se e deu alguns passos , detendo-se perto do caramanchão . Suzanna alcançou-o . -- Quero mostrar-lhe esta alcachofra ! Veja , como está viçosa ! e diz que não devemos pensar na realisação de um sonho querido ! Senhor sceptico , que diz a isto ? -- Bem aventurados os que acreditam em alcachofras . -- Oh ! eu creio e quero crer . Acho tão bonitas , tão poéticas , estas tradições nacionaes ! Na noite de S. João , também o senhor||_Cadaval Cadaval|_Cadaval ha-de queimar uma alcachofra . -- Eu ? ! Não me parece . -- Sim , queima ! Por uma intenção particular . -- Eu não tenho amores . -- Por alguém que mais sympathia lhe desperte ... E olhava-o , muito apaixonada . -- A minha sympathia é igual para todas , -- volveu Humberto , com frieza . -- Quer dizer ; a sua indifferença ? -- Não discuto . Será o que V. Ex.ª quizer . -- Pois bem , não o acredito ! -- teimou Suzanna , sentando-se no banco , encostado ao caramanchel , onde Marina se escondia . -- Todos teem um affecto , uma preferencia . Aos trinta annos , sem amôres ... não creio . -- Ah , tenho tido muitos amores , mas tudo isso passou , hoje sou um vencido da vida . Não creio em sonhos , não creio em flores , não creio em mulheres . Umas e outras déram- me o que tinham a dar . -- Era necessario que uma desillusão lhe tivesse despedaçado o coração , para ser sincero , no que diz . -- Talvez . -- Está mentindo . Humberto soltou uma gargalhada . -- Estou-lhe achando umas pretensões inauditas ! Que dados tem , para duvidar do que digo ? Julga-se dotada do poder de ler , na alma dos outros ? V. Ex.ª , uma pessoa que acredita em flôres , em sonhos , em mil superstições e ninharias , a pretender conhecer o coração humano ! Desatou novamente a rir , no seu riso claro , alegre , que encantava Marina . -- Sente-se aqui , perto de mim ! -- insistiu Suzanna , insinuante e coquette , olhando-o com enlevo . -- Conte-me alguma coisa da sua vida , desses amores que assim o tornaram descrente . -- Outra coisa em que não creio , nem pratico : a confissão . Suzanna começava a exaltar-se . Em voz tremula , volveu : -- Estou quasi a acha-lo perverso , sabe ? -- Por não querer confessar-me ? E desatou a rir . -- Sim , por isso , e por muito mais ... queria ouvi-lo falar do passado ... cicatrizar feridas , que lhe dorissem o coração ... -- Mas eu tenho coração , alma e espirito , perfeitamente sãos , minha senhora , -- replicou Humberto . -- O meu passado , toda Lisboa o conhece . Os meus amores , são amores de que não se fala , a uma senhora . Conquistas que nos embriagam , nos enlouquecem , e nos deixam cansado o espirito e para sempre morto , o coração . Morto para tudo quanto é lyrismo , para as emoções sem peccado , e para os sonhos côr de rosa ... -- Quer dizer : a mulher casta , nunca lhe pode agradar . Ao seu coração só pode falar a hetaira lasciva , impudica , que lhe fustigue o sangue com as suas caricias de Messalina . -- Justamente ! -- confessou Humberto . -- Oh ! ... não diga ... -- E ' , no entanto , a verdade , minha senhora . -- É então um corrupto e um vicioso , um libertino , um cynico ! -- Tudo isso , e muito mais ! -- concordou Humberto , em tom glacial . -- Oh ! como eu soffro ! -- exclamou Suzanna . E , occultando a fronte nas mãos , desatou a chorar , convulsivamente . Muito sereno , Cadaval , inclinou-se , para affastar-se , vagaroso . Marina suffocou uma gargalhada . Abandonou o esconderijo , seguindo para casa . Ao approximar-se , encontrou Humberto . Pararam ambos , no principio da grande escadatia de pedra musgosa . -- Bons dias , tia Marina , de onde vem tão radiosamente bella , olhar tão luminoso , tão doudejante alegria , no rosto travêsso ? -- Bons dias , Humberto , de onde vem , com tão illuminado semblante , olhar tão mephistopiielico , sorriso tão zombeteiro ? -- De extinguir um incêndio , -- volveu , com uma vénia . -- De assistir á sua extinção ! -- disse ella , imitando-o . Elle desatou a rir . -- Ouviu tudo ? -- Tudo . Humberto fitou-a : -- E não teve dó da sua amiga ? Ella ergueu a fronte , e encarando-o : -- Bem sabe que sou apreciadora dos jogos de corações . -- E se eu tivesse sentido o dó , a que é inaccessivel , tia Marina , e se , por dó , cedesse a esmola do amor , que me imploravam ? O olhar de Marina teve um súbito clarão . Mas dominou-se logo , e , com desdem : -- A uma Suzanna ? E rindo , subiu a escada . No regresso á Soledade , Suzanna pediu a Marina que lhe cedesse o logar na carruagem . Não se sentia bem . A condessa cedeu , iria em bicicleta . Os ciclistas resolveram ir , em machina , até á Soledade , demorando assim , o passeio , e gozando a amenidade da tarde e a belleza dos campos , perto da aldeia . Quando chegaram á quinta , já os companheiros alli estavam . Martha veiu-lhes ao encontro . -- A Suzanna teve uma violenta crise nervosa , assim que chegou . Agora , está a descansar . -- Que luxo de scenario ! -- troçou Luiza . -- Duches de agua gelada ? -- riu Paulo . -- Coitadita ! -- fez Marina . -- Vou vê la . -- Não vá ficar nervosa , condessa ! -- disse Paulo , rindo . -- Dizem ser doença contagiosa . -- Paulo ! -- censurou Martha , -- ella esteve muito mal . -- Boa vara de marmello , -- insistiu Sande . -- É tão ridículo , uma crise de nervos ! -- concordou Luiza , rindo . -- Mas é uma doença ! -- censurou Fernando . -- Oh ! em casos destes ! -- volveu a irmã rindo . Subiram . Jorge e Luna passeavam , na vasta sala . -- Marina ? -- perguntou o conde . -- Foi vêr Suzanna . -- Não se cansou ? -- Isso sim . Tem musculos de aço . -- Foi uma zanga , aquelle incommodo de Suzanna , -- disse o conde . -- Disparatou todo o caminho , parecia maluca ! -- Ella foi sempre assim , -- disse Luna , -- por qualquer coisa , tem um ataque de nervos . Em parte é doença , em parte é desejo de tornar-se interessante . -- Triste maneira escolheu -- replicou Jorge . -- Eu detesto estes cheliques e todo este apparato de nervosismo . -- Também não aprecio , -- concordou Humberto . -- Eu vou mais longe , -- disse Paulo , -- não tolero .