OS MISERAVEIS  DE+A  ARISTOCRACIA  ROMANCE SOCIAL CONTEMPORANEO  POR  A. Varela  G. & G.  VOLUME I  LISBOA  Escriptorio da Sociedade Editora  38 , rua dos Gallegos , 38  1864  JOSÉ PEREIRA , O DEMOCRATA  Em 1850 , vivia em Lisboa um mancebo de dezoito annos , chamado José Pereira , em companhia de seus paes , pobres anciãos desprotegidos da fortuna .  O pae , que n ' esta epocha contava sessenta annos , havia assistido aos combates do Bussaco , Vimeiro e Roussilhão , como simples soldado voluntario , movido unicamente pelo amor da liberdade patria , e odio ao jugo oppressor do grande contra o pequeno .  A recompensa dada a este heroe , defensor da sua patria , por todos os governos , desde 1820 até 1850 , foi a que teem tido muitos heroes , quer com a espada ou com a penna , o menospreço e a desprotecção .  O pae de José Pereira requereu uma vez um mesquinho emprego ;  zombaram cynicamentc com elle e disseram-lhe que fosse oppositor a um concurso .  Elle assim o fez , porêm ficou preterido , como muitos outros o teemsido injustamente , por já estar dado o logar quando seprocedeu ao concurso .  Desilludido e amargurado , por sevêr sem posição social , porque os serviços á patria lhe haviam obstado a que completasse a arte de relojoeiro , que começára a aprender , o pobre homem , sem soltar uma queixa contra os seus tyrannos , não pediu mais nada ao governo , e começou a trabalhar incessantemente , leccionando inslrucção primaria , para alimentar sua esposa e seu filho .  José Pereira nasceu pois do seio da pobreza , e assim viveu até á idade de dezoito annos , sendo educado e instruido por seu pae , o qual não quiz mandal- o aprender um officio por se persuadir , pela viveza e intelligenciaque o filho demonstrava , que poderia sobresahir no futuro á sorte do pobre operario , que sempre vive apoquentado e mesquinhamente .  O mancebo , dotado de bondoso caracter , sempre foi grato aos paes , e na epocha que descrevemos , já elle os ajudava com o pequeno producto de copias de comedias que tirava para os theatros .  Porêm uma grande desgraça e desgosto o feriram repentinamente :  seu pae morreu , e um mez depois falleceu tambem sua mãe .  O pobre orphão , oppresso de magoa e desgraça , viu-se obrigado a pedir protecção a um tio materno , o Conselheiro M , o qual , pela sua posição aristocratica , nunca quizera relacionar-se com os paes de José Pereira .  Dirigiu pois a seguinte carta ao tio :  " Meu tio :  " Muito estimo que Vossa Excellencia goze do perfeita saude e venturas , assim como quanto lhe diz respeito .  " Com a morte de meus queridos e infelizes paes fiquei duplicadamente desgraçado ;  privado da sua amizade e protecção .  Vossa Excellencia bem sabe que viviamos em commum , e que nos ajudavamos mutuamente ;  meu pae com os seus pequenos proventos das lições , minha mãe com o producto da sua costura , e eu ... com o meu incerto ganho de copista .  Já vê Vossa Excellencia que de ora ávante me será impossivel subsistir e conservar decencia no vestuario , tencionando seguir vida hon ' esta , e não tendo alguem que me ampare e proteja :  peço , portanto , a Vossa Excellencia , se me recolhe por caridade a um canto da sua casa , no seio da sua nobre familia , por algum tempo , emquanto eu procuro algum meio pelo qual possa viver .  Peço me recommende a minha tia .  " Sou com toda a consideração , seu sobrinho , servo e muito obrigado antecipadamente :  JOSÉ PEREIRA  S.||_C. C.|_C. Rua da Condeça ,  nº 20 , 3º andar ;  12 de  dezembro de 1850 .  Esta carta enviou elle a seu tio , não se atrevendo a procural- o pessoalmente no seu palacio , por vergonha e receio de não ser bem accolhido .  No dia seguinte áquelle em que mandou a carta , recebeu , pelo correio , a seguinte de seu tio :  " Meu sobrinho :  " Sinto os seus incommodos .  Consultando a opinião de sua tia a respeito do que você me pede , não duvido admittil- o em minha casa ;  porêm sob a condição , por conveniencias sociaes , de que será considerado como um hospede meu , e não parente .  Comprehende ?  Não me chame seu tio .  Póde vir quando lhe aprouver , que muito prazer dará ao  seu tio e amigo  " Luiz M "  José Pereira sentiu-se vexado , e revoltou-se com a recommendação de seu tio , fazendo tenção , quando acabou de ler a carta , de não aceitar o que pedira ;  porêm , reflectindo depois , preferiu o abrigo d' um parente que sabia a sua triste posição , embora se envergonhasse em chamar-lhe sobrinho , a ir pedir a algum amigo seu , o que havia implorado a seu tio , dando-lhe d' este modo a conhecer o que ignorava .  Decidiu , portanto , aproveitar-se da amarga caridade do Conselheiro M , entrando em sua casa a 15 de dezembro de 1850 .  O Conselheiro M habitava uma bella casa na rua do Alecrim , tinha quarenta annos , era casado com a filha do Barão de , senhora de trinta e dois annos , e que possuia uma fortuna de quarenta contos .  Era muito economico ;  o pessoal de sua casa compunha-se simplesmente de duas criadas e um criado .  Não tinha carruagem e raras vezes ia ao theatro .  Dava partidas em casa , porque tanto elle como a mulher gostavam muito do jogo , e de nenhum qualquer outro divertimento .  Alem das pessoas que citámos , tinha em sua companhia uma joven de dezeseis annos , orphã , filha d' um negociante portuguez , a qual possuia uma forluna de oitenta contos , e era sua pupilla .  José Pereira entrou pois em casa de seu tio , sendo ali recebido friamente , ainda que com uma bonhomia apparente e um aperto de mão do Conselheiro , o qual , analysando-o dos pés á cabeça , e vendo que ia decentemente vestido , lhe disse com um sorriso protector , levantando a voz para ser ouvido de dois amigos , o Visconde de e o Barão de * , que se achavam n ' essa occasião em casa do Conselheiro :  -- Já hontem o esperavamos , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira ;  o seu quarto está prompto , póde transportar para lá o seu bahu .  E indicou ao moço de fretes , que levava o bahu de José Pereira , uma porta que dava para o interior da casa , dizendo a este , que estava immovel :  -- Vá com o moço ;  não faça ceremonia , nem se constranja .  Depois de José Pereira sair da sala , o Conselheiro , dirigindo-se aos dois amigos :  -- É um pobre rapaz , lhes disse , orphão de pae e mãe , que recolhi por caridade em minha casa , e ... quero vêr se o emprégo .  -- Vossa Excellencia é demasiadamente bondoso , disse o Visconde ;  talvez ainda se arrependa por exercer tão bem a caridade .  -- É nobre ?  perguntou o Barão .  -- Coitado !  respondeu o Conselheiro em tom de lastima ;  é filho d' um mestre eschola , homem de baixa esphera , que foi n ' outro tempo soldado de linha .  -- Oh !  Conselheiro , atalhou o Visconde ;  lastimo deveras Vossa Excellencia , agora que sei que o rapaz é filho do povo .  Presentemente os fidalgos e os nobres não podem nem devem dispensar obzequios á classe baixa , porque nos querem dar leis , os mesquinhos , e julgam-se iguaes a nós .  Não acha , Barão ?  -- N ' outro tempo ainda se podia fazer bem aos villões , quando estes nos temiam , respondeu o interrogado , porêm hoje , que não podemos castigar a sua insolencia , devemos , pelo menos , tirar a nossa desforra , não os protegendo , e odiando-os .  A conversação continuou n ' este sentido na sala do Conselheiro M até irem todos , visitas e donos da casa , para a meza de jogo .  José Pereira , depois de installado em casa de seu tio , vivia apoquentado por vêr que o tempo ia passando , que elle não podéra ainda arranjar qualquer occupação d' onde tirasse proventos certos , e que seus tios o encarregavam constantemente de commissões ;  elle de levar officios , e mesmo d' alguns recados , quando o criado estava fóra , e ella de bilhetes para as suas amigas e convites aos parceiros nos dias de partida , fazendo-lhes o serviço de criado , sem salario .  o que lhe minorava porêm as magoas , por se vêr só no mundo , e sem posição , era a voz de D. Julia , a pupilla de seu tio , quando se assentava ao piano e cantava , acompanhando-se .  Esta joven era dotada pela natureza , d' um rosto , senão lindo no todo , ao menos muito regular e sympathico .  Tinha uma expressão nos olhos , de todas as feições a mais bella , que indicava ao mesmo tempo intelligencia e bondade ;  era instruida ;  sabia a sua lingua , a historia e a choropraphia do seu paiz , arithmelica , francez , italiano , musica , desenho , e tocava piano com alguma maestria .  Alem d' isto , possuia uma voz de soprano , afinada , e de tão agradavel timbre , que arrebatava quem a ouvia .  José Pereira , ouvindo pois a voz da erudita joven , não foi invulneravel ao seu encanto .  Pela primeira vez , pareceu-lhe um sonho , depois uma feliz realidade .  A ambição porêm , que não tem limites , começou a não o satisfazer em só ouvir cantar a donzella .  Desejou vêl- a perto de si , por muito tempo , conversar com ella e appreciar-lhe os dotes do espirito ;  coisa que elle ainda não podéra gozar , como gozára o canto , desde que entrára em casa de seu tio .  -- Não poder , dizia elle comsigo , relacionar-me com D. Julia , dizer-lhe que o Conselheiro é meu tio !  Viver condemnado a ser um humilde servo n ' esta casa , quando , se meu tio quizesse , podia empregar-me , publica ou particularmente , mesmo com um mesquinho salario !  Ao menos não seria considerado criado de servir , quando tenho alguma instrucção e podia ainda adquirir mais , estudando , se ao menos me deixassem .  Oh !  meu Deus !  que martyrio e que infortunio !  Assim decorriam os mezes , e havia perto d' um anno que José Pereira estava em casa do Conselheiro , sem ainda ter encontrado as suas fallas com D. Julia , porque esta , quando saía do seu quarto , ia , ou para a sala , local onde elle não se atrevia a entrar , por acanhamento , para a casa de jantar , onde elle tambem não entrava , pois que comia na cozinha com os criados , ou para a rua a passeiar com a mulher do Conselheiro , onde , da mesma fórma , não a podia seguir .  Elle notára por mais d' uma vez que D. Julia , quando o encontrava de passagem n ' alguma casa , o cortejava com benevolencia , e José Pereira ainda notou mais :  que o examinára um dia rapidamente durante o comprimento , e que desde então , o que era muito lisonjeiro para José Pereira , lhe dispensára comprimentos mais affaveis e olhares mais prolongados .  Era já completo um anno desde que José Pereira fôra para casa de seu tio , e uma tarde , depois de jantar , que o Conselheiro estava na sala com sua mulher , recebendo uns diplomatas inglezes , servindo-lhe esta de interprete , porque o Conselheiro M não sabia o inglez , entrou na cozinha D. Julia , e dirigindo-se á criada , disse-lhe :  -- O João já trouxe aquella musica que eu comprei no Sasseti ?  -- Ainda não , menina , respondeu a criada , creio que se esqueceu , mas eu logo , quando elle vier do chafariz , o obrigarei a ir buscar-lh ' a.  -- Quem sabe a que horas elle virá , disse D. Julia , e se o armazem já estará fechado .  Precisava tanto hoje d' aquellas peças para as estudar ...  -- O João vem cedo , atalhou a criada , não ha hoje carreira , e então não se demora .  José Pereira entrou n ' este momento na cozinha para perguntar á criada se o Conselheiro a encarregára d' alguma commissão para elle .  Seu tio costumava encarregar os criados de lhe transmittirem as incumbencias ou darem-lhe as cartas que devia entregar .  Procurava sempre evitar o contacto com o sobrinho .  José Pereira entrou pois , como dissemos , na cozinha , porêm ao vêr D. Julia , parou confuso e ficou immovel e cabisbaixo , sentindo violentas e variadas commoções que o opprimiram e alegraram ao mesmo tempo .  A criada , porêm , tirou-o d' este horrivel combate e embaraço .  Vendo-o entrar , exclamou alegremente , dirigindo-se a D. Julia e indigitando José Pereira :  -- Ora ahi tem a menina Julia quem lhe vai buscar a tal musica , é o senhor||_Pereira Pereira|_Pereira .  D. Julia , subindo-lhe o rubor ás faces , depois de comprimentar cortezmente o mancebo , disse em tom aspero á criada , envergonhada pela grosseria que esta commettêra para com José Pereira :  -- Porêm este senhor não é meu criado , é hospede do senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro , e estou convencida de que seu amo teria grande desgosto se ouvisse a sua insolente proposta .  -- Mas , minha senhora , acudiu a serva perturbada , como este senhor faz os recados ao senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro , eu julguei ...  -- Os recados !  atalhou D. Julia attonita e cada vez mais vexada , tanto pela phrase da criada , como por vêr a horrivel perturbação e pallidez de José Pereira , as quaes descobriam quanto estava solTrendo .  Os recados !  é impossivel !  Senhor||_Pereira Pereira|_Pereira , continuou , dirigindo-se ao mancebo , peço-lhe que desculpe aquella rapariga que , de certo , ou perdeu o juizo , ou escolheu um pessimo gracejo .  -- Oh !  minha senhora ! ...  balbuciou José Pereira .  N ' este momento abriu-se o reposteiro da sala , e o Conselheiro , atravessando um corredor que dava communicação para a cozinha , entrou n ' esta .  Ficou , porêm , contrariado vendo D. Julia e José Pereira juntos .  Observou por um momento sua pupilla , e depois perguntou-lhe com voz affectuosa , na qual , comtudo , se conhecia a colera reprimida :  -- Oue fazia a menina na cozinha ?  precisa d' alguma coisa ?  -- Vim , respondeu D. Julia , saber se o João já me trouxe a musica que comprámos hontem no Sassetti .  -- E então ?  continuou o Conselheiro , já a trouxe ?  -- Disseram-me que não .  -- Oh seu Pereira :  vá ao Sassetti , e diga-lhe que lhe entregue a musica que hontem lá comprei ;  disse o Conselheiro ao mancebo em tom aspero e de commando .  De caminho , continuou elle , vá a casa do senhor Visconde de e traga a minha capa , que hontem me esqueceu lá .  E vendo que José Pereira ficára preplexo e não se movia :  -- Então , senhor , avia-se ? !  gritou-lhe encolerisado .  José Pereira , ouvindo o grito do Conselheiro , fez um movimento machinal , inclinou a cabeça e saiu .  -- A modo que este senhor , a quem dou casa , cama e meza por caridade , disse o Conselheiro dirigindo-se a D. Julia , quer ser absoluto e independente em minha casa , esquecendo que me implorou para eu o receber aqui , com a condição de ser meu criado particular , por se achar morrendo á fome .  A menina ainda não sabia a sua condição , pois de contrario não se baixaria a estar em contacto e conversando com nm homem de filiação obscura , que não tem posição social ...  D. Julia , commovida em extremo pelas deploraveis scenas que presenciára , ás quaes se attribuia innocentemente culpada , respondeu a seu tutor com voz sumida pela commoção :  -- Eu não sabia que aquelle sugeito era criado de Vossa Excellencia ... julguei , pelas suas maneiras distinctas e delicadas ...  -- Pois é um miseravel , atalhou o Conselheiro , a quem expulsarei de minha casa , se tiver outra vez a insolencia de me não obedecer logo , quando o mandar com pressa a cumprir alguma commissão .  Dizendo isto , saiu .  D. Julia retirou-se ao seu quarto , e , como era senhora intelligente , depois de meditar no que havia visto e ouvido , tirou por conclusão , que José Pereira era de certo uma victima de seu tutor , por qualquer extraordinario , e para ella mysterioso , acontecimento .  Sentiu-se , por um presentimenlo estranho , impellida para o mancebo por uma singular sympathia e desejo de o proteger contra o Conselheiro .  Tencionou , portanto , embora arrostasse a colera de seu tutor , procurar saber , se não toda , ao menos a parte da historia de José Pereira , que o obrigára a ser criado do Conselheiro .  -- É impossivel , dizia ella comsigo , que um mancebo , sendo criado , mostre a confusão e vexame , que eu notei no infeliz Pereira quando a criada e o Conselheiro o insultaram na minha presença .  Sim , foram dois insultos :  um lançado pela estupidez , e o outro pela maldade .  Alguns dias depois das scenas que descrevemos , uma tarde em que José Pereira estava no seu quarto , meditando tristemente na sua vida , ouviu baterem-lhe á porta .  Foi abrir , e encontrou a criada grave , que lhe disse em voz baixa e como em mysterio , que D. Julia estava na sala e lhe pedia o obzequio de ali se dirigir , não o incommodando , porque necessitava fallar-lhe .  José Pereira , admirado com tal noticia , dirigiu-se immediatamente á sala e ahi encontrou D. Julia , que o esperava assentada n ' um sophá , a qual , ao vêl- o entrar e ficar parado respeitosamente longe d' ella depois de a comprimentar , disse-lhe affectuosamente :  -- Tem a bondade de se assentar , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira ?  E indicou-lhe com o gesto um sophá que estava proximo ao d' ella .  José Pereira , córando e empallidecendo alternativamente , respondeu-lhe perturbado :  -- Oh !  minha senhora , pois Vossa Excellencia quer que eu ? ! ...  Porêm , o senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro póde zangar-se comigo e com Vossa Excellencia , e eu não quizera que por minha causa soffresse qualquer dissabor ...  -- Nada receie a esse respeito , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira , disse D. Julia ;  o Conselheiro saiu com a esposa , e eu aproveitei esta occasião para , em primeiro logar , pedir perdão ao senhor , das grosserias e insultos que meu tutor e a criada praticaram para com o senhor||_Pereira Pereira|_Pereira , tudo por minha causa , ainda que involuntariamente ... Porêm , assente-se , por quem é , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira ... continuou ella com meiguice , vendo que o mancebo ainda se conservava de pé .  José Pereira assentou-se quasi machinalmente , movido pelo imperio d' aquella encantadora voz , e ia para fallar quando D. Julia , interrompendo-o graciosamente com o gesto , continuou :  -- E em segundo , pedir-lhe , me conte as razões que teve para se submetter , com tanta humildade , a ser n ' esta casa o que me constou .  Não posso acreditar que o senhor||_Pereira Pereira|_Pereira seja criado do Conselheiro .  Peço desculpa , por ser tão ousada que queira penetrar a sua vida ;  porêm rogo-lhe que seja franco , porque pretendo protegel- o e livral- o de meu feroz tutor ... se o senhor quizer aceitar a minha sincera protecção e amizade ...  José Pereira ficou tão admirado e aturdido pelo que acabava de lhe propôr D. Julia , que , sem saber o que fazia , lançando-se de joelhos a seus pés , exclamou amorosa e apaixonadamente :  -- Oh !  minha senhora !  será possivel que Vossa Excellencia queira baixar-se a proteger um homem que não conhece ? ! ...  Oh !  conceda-me que lhe beije as mãos ...  -- Cuidado , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira ... disse a joven sorrindo-se ;  quem o visse n ' essa posição poderia julgar que me faz uma declaração d' amor ... e ...  -- E se assim fosse , minha senhora , atalhou José Pereira , a quem as proposições de D. Julia haviam excitado a ardente paixão amorosa que de ha muito nutria em seu peito ;  se assim fosse , Vossa Excellencia me-hia ? ...  D. Julia , perturbada por tão inesperada declaração , córou em extremo e , fazendo um exforço por se mostrar severa , disse ao mancebo :  -- Peço-lhe que se levante , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira , porque essa posição póde comprometter-nos , e eu não quizera ...  Depois , vendo que o mancebo executára o seu pedido , e que a contemplava em delicioso extasis , continuou , baixando os olhos e adoçando a voz :  -- Como o senhor disse ha pouco , eu ainda não o conheço ...  -- E depois de contar a minha triste vida a Vossa Excellencia , aceitará o meu amor ?  perguntou José Pereira arquejante .  -- Talvez , continuou a joven depois d' uma leve hesitação .  José Pereira , ouvindo o bemaventurado " talvez , " que , pelo tom de D. Julia , se traduzia por um " sim , " esqueceu o incognito que promettêra a seu tio ( e quem , no caso do mancebo , faria o contrario ? ) ,  contando á joven a historia da sua vida .  D. Julia , depois de o ouvir , indignada pelo procedimento de seu tutor , disse ao mancebo :  -- Senhor||_Pereira Pereira|_Pereira , acredito que foi verdadeiro no que acaba de me contar , e portanto vou ser franca .  Saiba que até agora sympathisava com o senhor ;  porêm , desde este momento , amo-o e quero fazer a sua fortuna , esposando-o , porque sou rica .  -- Oh !  minha senhora , redarguiu José Pereira transportado , o que eu aprecio é o seu amor !  -- Acredito , respondeu D. Julia ;  porêm , deve tambem apreciar a minha fortuna , porque sem ella não poderiamos encetar a lucta em que vamos empenhar-nos .  Oiça-me com attenção , continuou ella vendo que José Pereira se lhe apoderára d' uma das mãos e a estreitava amorosamente entre as suas sem parecer ouvil-a ;  oiça-me com attenção , para nos vêrmos livres brevemente do jugo de meu tutor .  O senhor não póde ficar n ' esta casa , depois dos insultos que tem recebido ...  -- Diz muito bem !  gritou o Conselheiro entrando na sala , e que ouvira as ultimas palavras da joven ;  a menina é quem lhe dictou a sentença .  E , dirigindo-se a José Pereira , furioso , vociferou , indigitando-lhe a porta :  -- Saia no mesmo instante de minha casa , infame seductor !  Eram já passados oito dias desde que José Pereira fôra expulso de casa de seu tio ;  e D. Julia , a quem a subita apparição do Conselheiro , a scena que presenciára entre este e o mancebo , e o aspero modo com que seu tutor a tratou , lhe fizeram perder os sentidos , ainda não a abandonára a febre ou o delirio , durante o qual , em orações desordenadas , chamava por José Pereira e por seu pae , pedindo-lhes soccorro contra seu tutor .  O medico que lhe assistia , lembrou ao Conselheiro que mandasse chamar o mancebo por quem a enferma clamava , accrescentando que não achava outro qualquer remedio para um delirio febril tão extenso e arreigado , e muito receiava que a joven fosse victima da febre , não a satisfazendo no que ella pedia delirante , n ' algum momento em que o delirio a deixasse .  O Conselheiro ficou estupefacto e desesperado quando o medico lhe communicou similhante coisa .  Elle não queria de modo algum aproximar da joven um mancebo que podia transtornar-lhe os seus planos ;  porque o Conselheiro pretendia não entregar D. Julia por esposa senão ao Visconde , o qual lhe promettêra , ultimando-se o consorcio , dar-lhe metade da fortuna da joven .  Á vista , porêm , do que o medico avançára , e receiando que a pupilla fallecesse , rcsolveu-se a mandar chamar o sobrinho .  Indagou , pois , onde este parava e , sabendo que estava n ' uma imprensa , como aprendiz de compositor , mandou-lhe uma carta , pedindo-lhe desculpa do modo por que o tratára e ao mesmo tempo que viesse a sua casa , pois era para seu interesse .  José Pereira recebeu a carta do tio ;  porêm o mancebo considerava-se tão aviltado e insultado pelo Conselheiro que , apezar de lhe constar que era para seu interesse , fez tenção de não voltar a casa de seu tio , mandando-lhe dizer com franqueza , por escripto , o motivo da sua recusa .  O mancebo havia recebido tão graves insultos de seu tio , do irmão de sua mãe , do homem que o devia proteger e amar como pae , que quasi odiava os fidalgos .  -- Oh !  os grandes !  os nobres ! ...  dizia elle muitas vezes comsigo ;  como são soberbos e máus ! ...  Que mal fiz eu a meu tio ... eu que sempre o tratei com amor e respeito , e sempre procurei comportar-me dignamente em sua casa ? ...  É verdade que aquelle desgraçado encontro , quando D. Julia me pediu a entrevista , fez desesperar o Conselheiro , obrigando-o a insultar-me ;  porêm , antes d' isso como me tratava elle em sua casa , tanto moral como physicamente ? ...  Oh !  nem o quero pensar !  Porêm Julia , a quem eu amava fervorosamente e de quem era amado , que é feito d' ella ?  nunca mais a verei ! ...  E o desgraçado mancebo , quando chegava a este ponto das suas tristes recordações , se estava deitado , levantava-se e passava o resto da noite velando , sem poder conciliar o sonmo , se estava comendo , parava repentinamente e não podia engulir mais nada n ' esse dia , e se estava na imprensa , ficava mudo e abstracto a ponto de ser admoestado pelo proto da officina por não prestar attenção aos trabalhos que devia aprender , e classificado em voz baixa de palerma , pelos companheiros .  José Pereira poucos progressos fazia , pois , na arte a que se dedicára , já pela aspereza de quem o ensinava , já pelas suas preoccupações d' espirito .  O pobre mancebo , cada vez mais desgostoso da vida , por vêr como era acolhido pelos seus e pelos alheios , via-se reduzido á ultima extremidade ;  sem presente nem futuro certo que lhe promettesse viver com a decencia em que fôra educado .  Nem sequer ganhava para se subsistir , porque , durante o tempo que esteve em casa de seu tio , perdêra o pouco lucro das copias de comedias , pois estava substituido já por outro copista .  Apezar porêm de , no dia em que recebeu a carta de seu tio , não ter ainda comido , por se lhe haver acabado o producto d' uns objectos seus , que vendêra para pagar um mez de renda d' uma agua-furtada onde estava habitando , e alimentar-se durante os oito dias desde que saíra de casa do Conselheiro , apezar d' isto o mancebo , como acima dissemos , respondeu a seu tio que não podia aceitar o convite .  O Conselheiro recebeu a carta do sobrinho e , depois de a ler , dirigindo-se a sua mulher e mostrando-lhe o escripto , disse-lhe :  -- Que lhe parece o orgulho e insolencia de meu sobrinho , e que remedio havemos de dar a isto ?  -- Quem tem a culpa d' isso , respondeu ella , é o senhor , que o recebeu em casa e foi o motor da paixão que a pequena sente pelo vadio de seu sobrinho .  O senhor não pensa o que faz ... Que lhe disse eu quando consultou a minha opinião a esse respeito ? ...  Quer que lh'o recorde ?  -- Não precisa , atalhou o Conselheiro com máu modo ;  agora de que se trata é de como havemos cumprir o que o medico ordenou a respeito da doença de minha pupilla .  o que havemos de fazer para obrigar o miseravel de meu sobrinho a vir aqui ?  Não se lembra d' algum meio ? ...  -- Pois o senhor , que é conselheiro ... não sabe ? ...  tornou-lhe ella rindo .  Não tem uma idéa qualquer para uma coisa tão simples ? ...  -- Eu entendo que este caso é muito serio , continuou o Conselheiro , e que é occasião impropria para rir como a senhora está fazendo ... Conhece perfeitamente que , se a pequena morrer ... é uma duplicada ruina para nós ... o meu descredito depois da liquidação da sua fortuna e a fallencia do seu casamento com o meu amigo Visconde ... que não ultimará comigo o negocio que sabe .  Estas ultimas palavras foram ditas quasi em voz baixa , e depois de se certificar que estava a sós com a esposa .  -- Descance , tornou-lhe esta ;  em primeiro logar a pequena não morre , como diz o medico , se não tornar a vêr seu sobrinho .  Nós , as mulheres , assim como facilmente nos apaixonâmos , com a mesma facilidade nos esquecemos do motivo da nossa paixão .  O medico engana-se , porque , sem duvida , não estudou o coração feminino ... é pouco physiologista o tal medico !  -- Porêm a febre e o delirio não a deixam ... replicou o Conselheiro , e ha perigo ...  -- Em segundo logar , continuou a mulher do Conselheiro , se a pequena for uma excepção , o que duvido , e se continuar a soffrer esses assustadores symptomas , ha um meio muito simples de fazer comparecer aqui seu sobrinho ...  -- Qual é ?  atalhou o Conselheiro , o qual opinava acirradamente pelo segundo caso .  -- É mandar dizer-lhe a verdade , respondeu desdenhosamente a mulher do Conselheiro .  Então julga que um miseravel pobretão , constando-lhe que uma menina rica o quer a seu lado , durante uma doença , ainda mesmo que elle a não ame e tenha sido muito insultado pelo dono da casa onde está essa menina , não correrá aqui immediatamente , pondo de parte e esquecendo todos os insultos recebidos ? ...  O senhor escreveu-lhe um bilhete methaphorico , sem me consultar , dizendo-lhe que se tratava do interesse d' elle ... elle não percebeu e por isso recusou .  Participe-lhe a verdade e creia que hade vir .  O Conselheiro deve distinguir d' ora ávante os negocios em que póde mentir , d' aquelles em que só deve fallar verdade ... É certo que nós estamos tão costumados a mentir ...  O Conselheiro , contentissimo , já não a ouvira , e correndo ao seu gabinete escreveu outra carta ao sobrinho , na qual lhe contava o que se estava passando em sua casa , e isto com a mais carregada verdade .  Quando terminou não poude deixar de exclamar :  -- Minha mulher sempre tem uma cabeça ... que completamente offusca a minha !  Depois d' esta enthusiastica exclamação mandou a segunda carta ao sobrinho , recommendando ao criado que lh'a entregasse com a maior brevidade .  A segunda carta do Conselheiro foi pois entregue a José Pereira , no mesmo dia , causando grande admiração na officina uma correspondencia tão activa e repetida .  Um typographo critico e commentador , chegou a fazer esta observação aos dois companheiros da direita e esquerda :  -- O granjola do caloiro é de certo algum redactor encoberto ou empregado na policia secreta !  -- São talvez cartas d' amores , respondeu um dos outros typographos .  -- Se o meu olho me não mente , accrescentou o terceiro rindo , o rapaz está relacionado com diversos fidalgos , e as cartas são convites para jantares , para soirées ... Deixem estar que brevemente , por intervenção d' elle , seremos nós convidados para casa d' alguns fidalgos de moralidade duvidosa ...  -- Só se for isso , atalharam os dois rindo .  José Pereira , depois de ler a segunda carta , dirigiu-se apressadamente , ainda que contrafeito , a casa de seu tio , por lhe constar que se tratava da existencia da mulher que elle amava .  Quando o criado veio abrir a porta e conheceu José Pereira , foi apressadamente participar ao Conselheiro quem era .  Este ordenou-lhe que conduzisse o mancebo para a sala .  José Pereira tornou pois a transpôr os umbraes da habitação de seu tio e foi introduzido na sala , local para elle de bem tristes e alegres recordações .  O criado , depois de o comprimentar e de lhe dar os parabens , perguntou-lhe :  -- Então vem outra vez para cá ficar , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira ?  -- Não sei , respondeu o mancebo .  O criado , não satisfeito com a resposta , tinha vontade de continuar o interrogatorio ;  porêm , sentindo que se aproximava o Conselheiro , saiu da sala , dizendo a José Pereira em voz baixa :  -- Ahi vem o patrão .  O Conselheiro entrou , e depois de receber os comprimentos do sobrinho e de lh'os retribuir com requintada polidez , pediu-lhe desculpa do modo por que o tratára quando o surprehendcu com D. Julia , e terminou dizendo-lhe com voz magistral :  -- Bem sabe que eu , como tutor , devo e tenho rigorosa necessidade de vigiar e zelar de minha pupilla tanto os bens como a honra , o que todo o homem probo e honrado deve fazer .  Depois d' esta tirada moralisadora , o Conselheiro pediu ao sobrinho que o acompanhasse , a vêr se poderia ser apresentado á sua pupilla .  E encaminhou-o para o quarto da enferma .  D. Julia , quando elle chegou , estava livre do delirio , porêm ardendo em febre .  José Pereira foi-lhe apresentado .  Quando os dois jovens se avistaram , por um movimento unisono e espontaneo quizeram lançar-se nos braços um do outro ;  porêm , vendo que não estavam sós , contiveram-se , e D. Julia , com voz debil e febril , disse a seu tutor :  -- Oh !  ainda bem que m ' o trouxeram , senão eu morria !  O Conselheiro pediu a José Pereira que se demorasse alguns dias em sua casa , visto ser o verdadeiro medico da enferma , a vêr se D. Julia se restabelecia .  José Pereira annuiu a este pedido , e no fim dalguns dias , D. Julia , achando-se consideravelmente melhor , mandou chamar ao seu quarto o Conselheiro e , quando este chegou , disse-lhe :  -- Senhor :  eu amo José Pereira , e como sem o consentimento de Vossa Excellencia , pela minha menoridade , não posso esposal- o , rogo-lhe me conceda que eu seja esposa do homem a quem amo .  O Conselheiro , aturdido por tão inesperada declaração , ficou um momento em silencio , depois do que respondeu á sua pupilla , n ' um tom affavel , porêm desmentido pelo tremor da colera concentrada :  -- Mas , minha senhora , bem sabe que a destino para esposa do meu amigo Visconde , e que é impossivel ...  -- Porêm , senhor , interrompeu D. Julia , eu não amo o Visconde , e acredito que elle será bastante cavalheiro e generoso para renunciar á minha mão , se eu lhe declarar que amo outro homem .  Peço , portanto , a Vossa Excellencia , que o mande chamar para lhe participar os meus sentimentos , a seu respeito , e para salvar a responsabilidade que meu tutor possa ter para com elle .  -- Serão cumpridas as suas ordens , minha senhora ;  balbuciou o Conselheiro .  Em seguida , fazendo-lhe um leve comprimento , saiu do quarto da convalescente .  O Visconde foi pois chamado , e depois d' uma secreta conferencia entre o Conselheiro e elle , dirigiram-se , acompanhados de José Pereira , á sala , onde os esperava D. Julia , que estava quasi restabelecida .  Depois dos comprimentos usuaes , D. Julia expoz- lhe o que communicára a seu tutor , ao que o Visconde , sorrindo , respondeu :  -- Oh !  minha senhora , longe de mim está a idéa de querer contrarial-a !  Vossa Excellencia ama este mancebo ( e indigitou José Pereira ) , é amada por elle e julga-o digno de ser seu esposo ? ...  Eu tambem sou da mesma opinião , visto que isso lhe dá ventura .  Houve o projecto , é verdade , o deploravel projecto , entre mim e o Conselheiro , de que Vossa Excellencia seria minha esposa ... porêm , isto não foi mais do que um castello no ar , porque ... quem póde dizer ao coração d' uma dama que ame um homem , se o orgão das sensações o não póde amar ? ...  Não fallemos mais n ' isto .  Acredite que muito prazer terei em a vêr unida a quem deseja , e , para prova , se não recusa , offereço-me desde já para um dos padrinhos dos ditosos noivos .  José Pereira , ouvindo isto , julgava-se victima de uma visão , e esteve quasi abraçando o Visconde por vêl- o praticar uma acção tão nobre e generosa , e que tão venturoso o fazia .  Foram pois determinadas , para d' ali a um mez , as nupcias dos dois jovens .  Um mez depois dos acontecimentos que acabâmos de narrar , pelas dez horas da manhã , grande numero de seges e carruagens , e uma multidão de pobres estavam parados na rua do Alecrim , á porta do Conselheiro M  Todos diziam :  " É um casamento . "  Entre a chusma dos pobres , distinguiam-se dois , um do sexo masculino , outro do feminino , que praticavam acaloradamente um com o outro .  O homem tinha mais de setenta annos , a mulher os seus sessenta .  -- Não é assim , senhor||_Eloio Eloio|_Eloio !  gritava a sexagenaria ao ouvido do velho , porque este era surdo , a filha do senhor||_Barão Barão|_Barão de , casada hoje com o senhor||_Conselheiro_M Conselheiro|_Conselheiro_M M|_Conselheiro_M , nunca fugiu de casa do pae com amante nenhum , isso foi a mãe , a mãe da sobredita cuja .  -- Ó sôra , respondeu o mendigo , pois você diz-me isso a mim !  que estou ó fato de tudo o que se passou em casa do senhor Barão de em certo tempo ? ! ...  Olhe que quem me deixou tudo isto escrevido foi meu pae , que era criado confidente do senhor Barão , e torno-lhe a dezer que quem fugiu foi a filha ;  por signal que inté se safou com um fato de meu pae , e que o defunto , que Deus tenha em gloria , nunca poude engulir da guela p ' ra baixo , por ser o melhor fato que tinha .  Mas , como lhe ia dezendo , a menina fugiu para o Porto vestida de hóme em companhia d' um sargento que despois de estar na cidade invita , lhe passou as palhetas para o ultramar , deixando a pobre creança abandonada .  Foi antão que o senhor||_Conselheiro_M Conselheiro|_Conselheiro_M M|_Conselheiro_M , que n ' esse tempo estava no Porto , travou conhecimento com ella ;  soube de quem era filha , que tinha boas loiras e arrecebeu-se com a filha do senhor Barão de .  -- Ora você , munto me conta , sôr||_Eloio Eloio|_Eloio !  Declaro-lhe francamente que inorava o que me acaba de contar ;  mas olhe que isso não tira para que a mãe da dita pessoa não fugisse tambem de casa do senhor Barão ;  póde acarditar que a Baroneza tambem fugiu ao marido , e essa fugiu de tal maneira que nunca mais appareceu .  -- Pois olhe , isso tambem eu não sabia , e antão cá tomo nota no canhenho , e você póde contar afoitamente como vridico o acontecimento que lhe contei .  Agora diga-me uma coisa , tia||_Graviella Graviella|_Graviella , sabe quem são os noivos e os padrinhos ?  -- Ora se sei !  Inté estou admirada que o senhor||_Conselheiro_M Conselheiro|_Conselheiro_M M|_Conselheiro_M entregue aquella linda menina , rica como o Quintella , a um pelintra que não tem nada de seu , nem officio nem beneficio !  O demonio do rapaz enfeitiçou por força o senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro e a menina !  -- Ora qual !  Como sabe você ? ...  -- Eu lh'o conto , sôr||_Eloio Eloio|_Eloio , eu lh'o conto .  Minha filha lava e engomma a roupa ao criado do senhor||_Conselheiro_M Conselheiro|_Conselheiro_M M|_Conselheiro_M . Pois elle contou-lhe que o patrão tinha admittido em casa , por caridade , um rapaz orphão e muito pobre , e que este rapaz tivera a pitulancia de querer seduzir a menina de quem o senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro é titor , e que praticou tantas poucas vergonhas que o senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro se viu obrigado a pôl- o na rua ;  e que não o metteu em justiça por ter dó d' elle .  Mas a pequena , assim que viu isto , começou a apaixonar-se , e todos disseram que morria phtisica senão casasse com o melcatrefe do engeitado , porque , segundo diz o criado do senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro , elle é engeitado .  Vaibo titor da pequena , que é um bello hóme e muito amigo d' ella , segundo diz o criado , em logar de a levar para fóra da terra a espairecer , mandou chamar o pelintrão e deu-lhe aquella linda menina , que é mesmo um anjo !  Olhe que é preciso ser um bello hóme , sôr||_Eloio Eloio|_Eloio , para fazer isto , ou antão estar enfeitiçado .  Olhe que isto não se conta a todos , porque o criado pediu segredo a minha filha , porque o senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro tambem lhe contou o caso , pedindo-lhe segredo ;  mas para você , que tambem me contou o outro caso , não tenho segredos .  -- Obrigado , tia||_Graviella Graviella|_Graviella , já sei mais uma historia ;  agora diga-me quem são os padrinhos , para eu deitar os meus cálculos a vêr se apanhamos babuje .  -- Olhe , um é o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde de , que diz o criado do senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro , é um bellissimo rapaz , muito generoso ...  -- Bem , bem ;  e o outro ?  -- O outro é o senhor Barão de outro excellente senhor , tambem muito generoso .  Diz o criado do senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro , que quando ganha ao jogo , sempre lhe dá cinco tostões .  -- Bem bom , bem bom ...  Aqui foi interrompido o dialogo entre os dois mendigos pelo movimento ( las carruagens , o que queria dizer que o cortejo ia caminhar para o templo .  De feito , a noiva , acompanhada pela madrinha , e o noivo , pelos padrinhos , subiram ás primeiras carruagens , e toda a comitiva se dirigiu para S. Domingos .  Dava meio dia .  Ao chegar porêm á porta da igreja a carruagem ondo ia o noivo , e , no momento em que este se apeiava , chegaram-se a elle dois empregados do Governo civil , e um d' elles perguntou-lhe com voz de juiz criminal :  -- O senhor chama-se José Pereira ? ...  -- Chamo , respondeu o mancebo .  -- Então estã prezo á ordem do senhor governador civil , continuou o beleguim .  -- Eu , senhor !  perguntou José Pereira , admirado , porque ? !  -- Depois o saberá .  -- Oh !  meu Deus !  exclamou o mancebo , ao qual , refluindo-lhe todo o sangue á cabeça , quasi- lhe tirára a vista ;  oh !  meu Deus , o que será de mim ?  Depois , dirigindo-se como doido aos dois agentes de policia , bradou-lhes em tom lastimoso :  -- Estou innoccnte , senhores , não commetti crime algum !  Dizendo isto , caiu privado de sentimento nos braços de D. Julia , que se lhe aproximára n ' este momento , a informar-se do succedido .  FIM DE+O PROLOGO .  PRIMEIRA PARTE  O VISCONDE  As obreiras  Em uma fria madrugada do mez de dezembro do anno 1853 , n ' uma velha agua-furtada de Lisboa , quasi desguarnecida de mobilia , porêm onde se divisava o aceio , trabalhavam açodadamente duas pobres obreiras , á luz d' uma vela , em um rico vestido de selim bordado .  Por intervallos as pobres creaturas estremeciam , sem duvida pelo intenso frio que lhes penetrava a medulla dos ossos , largavam a obra e assopravam os dedos como para os desentorpecer e poderem continuar o apressado trabalho .  A mais idosa d' estas desventuradas , senhora de cincoenta annos , demonstrava na cadaverica physionomia graves padecimentos , tanto physicos como moraes ;  não carecia de ser grande observador , quem lhe examinasse o rosto com attenção , para conhecer pela finura da pelle , bonhomia e delicadeza das feições , que esta senhora não era o que vulgarmente se chama " uma mulher ordinaria . "  A outra , donzella de dezeseis annos , parecia qual linda flôr que vegetando em acanhado vaso , ao desabrochar se ostenta , ainda que com o viço , brilho e frescura da mocidade , um tanto infezada e debil no todo .  O seu oval e bem talhado rosto , ornado de lindos olhos pardos , onde reluzia a candidez , bondade e ternura , de acarminados labios e alvos dentes ;  o seu bello rosto , ainda que um tanto pallido e desfeito , com tão relevantes attractivos fazia com que a sua possuidora fosse classificada de " formosa " pelos que só vêem belleza physica , e reconhecida por " um bondoso espirito " pelos que procuram descobrir os dotes moraes , isto é , os physionomistas .  Depois de mostrarmos aos leitores as duas obreiras , de lhes analysarmos , ainda que rapidamente , o caracter physico e moral , e esta analyse ser em abono d' ellas , não devemos demorar-nos mais , como historiador da sua vida intima , em narrar qual a razão por que as duas senhoras trabalhavam com tanto affinco a uma hora tão impropria de trabalho e só conveniente ao repouso , para nos não arriscarmos a ser taxado de haver feito a apologia de duas ambiciosas e avarentas .  -- Que frio tenho , minha mãe ... estou mesmo regelada !  disse a joven á outra senhora , largando de repente a costura e mettendo as mãos debaixo dos braços .  A pobre senhora estremeceu , pois embebida em profunda meditação , quando sua filha rompeu o sepulchral silencio que reinava entre ambas n ' uma tristonha madrugada d' inverno , em que tudo parece estar morto , tanto no interior como no exterior das habitações , a pobre senhora , diziamos , teve medo da inesperada exclamação da filha , que echoou por toda a casa como se esta fosse um d' esses grandes templos que repetem com estrondosa força qualquer palavra pronunciada nos seus recintos .  -- Tambem eu , Amelia , disse a obreira a sua filha , depois de se lhe tranquillisar o nervoso ;  tambem eu ... tenho os pés quasi gelados e estou soffrendo horriveis dôres nos braços ;  mas que lhe havemos de fazer ? ...  -- Vou accender o lume e aquecer-lhe uma pouca de agua , minha mãe , respondeu a joven , levantando-se .  -- Não o podes fazer , Amelia , porque não ha , nem carvão nem agua ...  -- Ah !  é verdade , diz Amelia caindo outra vez machinalmente na cadeira , não me lembrava ...  -- E bem sabes , continuou sua mãe , que ainda que nos quizessemos outra vez valer da nossa visinha , como hontem lizemos , ella ainda está recolhida e não a havemos incommodar ... Resignemo-nos , minha filha , e trabalbemos o mais que podermos para acabar o vestido hoje .  Bem sabes que é a nossa taboa de salvação .  -- Ah !  minha mãe , Deus queira que tenhamos forças para isso ... sobretudo vocemecê , que só comeu hontem uma vez ...  -- E tu , minha filha , não te succedeu o mesmo ?  -- É verdade ... mas minha mãe , para que eu comesse mais , não quiz comer quasi nada .  -- Não tinha vontade , minha filha ...  -- Isso diz minha mãe para me consolar .  -- Porêm , minha filha , replicou a mãe d' Amelia , estamos perdendo um tempo precioso com coisas futeis ... vamos , deixemo-nos de recordações tristes e trabalbemos ... Olha , já não precisâmos da luz da noite , proseguiu ella apagando a vela ;  vem rompendo o sol e parece-me que teremos um bonito dia .  Não tarda que sejamos aquecidas pelo sol ... isto anima , não é assim , minha filha ?  -- É verdade , minha mãe , respondeu a donzella , n ' um tom que desmentia totalmente as palavras .  Depois d' isto , reinou profundo silencio na agua-furtada , só interrompido , por intervallos , pelas respirações mais longas , arfar do peito e bocejos das duas obreiras .  Eram nove horas quando o vestido foi dado por prompto pela mãe e filha .  Amelia recuperára a esperança que quasi sempre acompanha a mocidade , e que , por momentos , nos transes espinhosos da vida a desampara .  Por isso a donzella , contentissima , esquecendo-se já de que comêra na vespera só uma vez , e nada tinham para se alimentar n ' aquelle dia , ella e sua mãe , disse a esta rindo , ao mesmo tempo que a abraçava :  -- O demonio do vestido deu-nos que fazer , minha mãe ;  mas ao menos dá-nos honra , porque ficou lindo , e estou convencida que a Viscondessa hade afreguezar-se com+nós .  -- E o céo permilta , Amelia , que assim aconteça , porque teremos mais que fazer , e com maior lucro .  -- Mas a Viscondessa , replicou Amelia como assaltada por uma triste idéa , disse a minha mãe que o mandava buscar hoje pelas nove horas ... são quasi dez , e nada de novo ! ...  Deus queira que ella se não esqueça , para assim podermos almoçar .  -- Tranquillisa-te , disse-lhe a mãe para a socegar , porque já lhe assaltára a mente a mesma idéa ;  ella precisa o vestido para o proximo baile do seu anniversario ... hade querer proval- o com antecedencia e mostral- o a alguma sua amiga ... logo , não falta .  -- Oh !  com os dez tostões do feitio , accrescentou Amelia dando pulos de contentamento , seremos duas rainhas !  -- Mas o nosso reinado , respondeu a mãe , durará sómente tres dias , se a Providencia nos não deparar mais trabalho .  -- Ora , minha mãe , para que está com essas idéas tão tristes ?  então a sua amiga , a que lhe inculcou a Viscondessa , a qual nos tem sempre protegido desde que perdi meu pae , não nos hade dar que fazer ? ...  Dá , dá .  N ' este momento , ouviram as duas senhoras pés na escada , e logo depois bateram á porta da agua-furtada .  Amelia foi prestes abrir , mesmo sem indagar quem seria , e viu no patamar um homem que trazia uma bandeja e uma toalha , o qual lhe disse que era criado da senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa de e vinha buscar um vestido de setim bordado .  A mãe de Amelia convidou-o a entrar e , depois de ler um pequeno bilhete da Viscondessa , dobrou a obra hermeticamente , com uma agitação febril , cobrindo-a com a toalha , e deu-a ao criado , o qual saiu .  Depois d' isto , empallidecendo horrivelmente , deixou-se cair n ' uma cadeira e disse a sua filha , com voz quasi sumida pelo desalento :  -- Estamos perdidas !  -- Porquê , minha mãe ?  perguntou Amelia , summamente assustada por vêr o estado de abatimento em que estava sua mãe .  -- Lê , disse-lhe a pobre senhora , estendendo a mão onde tinha o bilhete da Viscondessa .  Amelia pegou no bilhete e leu o que se segue :  " Senhora :  " Mande-me o vestido pelo portador , que é um dos meus servos .  Creio que deve estar prompto , porque a senhora assim mo prometteu .  No fim do mez mande buscar o importe do seu trabalho .  10 de dezembro  de 1853 .  " Viscondessa de "  -- Que será de nós ? !  diz-lhe a mãe na maior angustia , por ter perdido totalmente o animo para poder conservar firmeza e placidez em tão horrivel situação .  -- Tenho uma idéa , minha mãe :  a Viscondessa hade ser compassiva ... e se vocemecê lhe mandar dizer as circumstancias em que nos achâmos , estou certa que nos mandará o dinheiro .  -- Dizes bem , minha filha .  E a infeliz senhora vai immediatamente escrever um bilhete á Viscondessa , ainda que a muito custo pela debilidade em que está , no qual lhe expõe a desgraçada situação em que se acham , ella e sua filha ;  depois , dizendo a esta que chame um aguadeiro , emquanto ella faz o sobrescripto , diz comsigo :  -- Oh !  foi uma bella lembrança a que minha filha teve ;  é impossivel que a Viscondessa não se commova ao saber a posição em que nós estamos .  Amelia chamou o aguadeiro , o qual chegou á agua-furtada resmungando por ter subido tanta escada , e dando a todos os demonios predios tão altos .  A mãe de Amelia entregou o bilhete , recommendando ao aguadeiro que esperasse pela resposta .  As duas senhoras , animadas pela esperança , aguardavam a resposta , quando a porta da escada fronteira á d' ellas se abriu , e a visinha veio bater-lhes á porta , ao mesmo tempo que lhes perguntava :  -- Ó visinhas , querem alguma coisa de fóra ?  Eu vou sair ... e então não façam ceremonia .  Amelia foi logo abrir .  A visinha entrou e , depois dos comprimentos matinaes , olhando por toda a casa como quem procurava alguma coisa , exclamou :  -- Ah !  já cá não está , já o mandaram buscar , não é verdade ? ...  E eu que tinha tanta vontade de o vêr acabado ... Nunca eu me enganei quando ainda agora ouvi vozes na escada , e que fallavam em vestido cá , vestido lá ... Com que então a fidalga mandou-o já buscar ?  -- É verdade , minha visinha , respondeu-lhe a mãe de Amelia , e mal sabe a pena que tenho de não poder satisfazer o seu gosto .  -- Ah !  que se eu ainda agora adivinhasse que a visinha já estava levantada , accrescentou Amelia , tinha-a ido chamar .  Ora que pena não o vêr ... ficou tão bonito !  -- Não se apoquentem , visinhas , ha mais marés que marinheiros ... As senhoras teem muita habilidade , trabalham muito bem , e então teremos occasião de vêr alguma peça d' obra bonita ... mesmo até me parece , que não hade tardar muito tempo que eu lhes não traga obra d' umas senhoras ricas do meu conhecimento , a quem já fallei nas senhoras e gabei o seu talento .  -- Oh !  minha visinha , muito agradecidas por tanto favor , respondeu a mãe de Amelia , emquanto que a joven , cheia de contentamento , dizia :  -- Vê , minha mãe ?  vamos brevemente ter outra fregueza nova .  Estavam n ' este ponto da conversação , quando o aguadeiro chegou e entregou á mãe de Amelia um bilhete , o qual a infeliz senhora , depois de pedir licença á visinha , abriu .  Continha o seguinte :  " Creio que hoje não é o fim do mez ;  quando fôr mande cá , já lh'o disse .  " Viscondessa de "  A visinha , vendo a pallidez da mãe de Amelia , perguntou-lhe apressadamente :  -- Que é isso , visinha , tem alguma coisa ?  Amelia então , mostrando-lhe os dois bilhetes da Viscondessa , contou-lhe o resto , e accrescentou em voz baixa ao ouvido da visinha :  -- O que mais nos custa n ' esla occasião é não termos com que pagar ao aguadeiro .  -- Ah !  graças a Deus , tenho eu com que as possa remediar até ámanhã , respondeu a visinha do mesmo modo .  Depois , a boa mulher pagou ao moço e , saindo , voltou d' ahi a pouco com comestiveis para si e para as suas duas desventuradas visinhas .  Ir por lã , e vir tosquiado  Alguns dias depois das scenas precedentes , que apresentámos ao leitor , em uma das ricas salas do palacio do Visconde de , amigo intimo do Conselheiro M , e que casára ha um anno com a filha do Conde de , estavam a criada grave da Viscondessa e o criado particular do Visconde em um curioso e , para elles , interessante dialogo , que começára d' este modo :  -- Então que lhe parece isto , menina Josephina ?  já deu meio-dia e nem o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde ou a senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa ainda se levantaram !  A que horas almoçaremos nós hoje ?  -- Então que quer o senhor||_Francisco Francisco|_Francisco ?  Bem sabe que o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde recolheu esta madrugada , e que a senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa entrou muito depois d' elle no seu quarto ;  por consequencia é justo que ainda estejam adormecidos ... Mas vocemecê já tem vontade de comer , tendo ceiado quasi de dia ? ! ...  -- É porque tenho o estamago forte e dirijo muito bem ;  mas o que me vale para enterter a fome é estar ao pé da menina Josephina , por quem morro de amores de tal modo ... que sou capaz de estar tres dias e tres noites sem comer , vendo-me sempre ao seu lado .  -- Está bom , modere o seu enthusiasmo oratorio que póde ouvir-nos terceira pessoa e ser esse o motivo de funestas consequencias para nós ambos .  -- Então que receia vocemecê , menina Josephina ?  pergunta o criado olhando em torno de si como receioso .  -- Pois vocemecê não sabe que todos os patrões odeiam mortalmente os amores dos criados , chegando até a despedil- os quando os surprehendem em flagrante ? ...  -- Sim ... mas se os nossos estão recolhidos , como é possivel ? ...  -- Não sabe que as paredes teem ouvidos , senhor||_Francisco Francisco|_Francisco ?  N ' este momento ouviram ambos o agudo som d' uma campainha .  -- Será o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde ?  diz o criado , correndo apressadamente para fóra da sala .  -- Parece-me que é a senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , responde a criada , fazendo o mesmo .  Francisco , encaminhando-se para o quarto do Visconde , encontrou o porteiro do palacio , que o procurava para lhe dizer que um sugeito , que dizia ser caixeiro d' uma loja de fazendas , procurava o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde .  Francisco ouvindo isto fez um gesto ao porteiro , como dizendo-lhe que esperasse um pouco , entrou no quarto do Visconde e saindo alguns segundos depois disse ao porteiro participasse ao sugeito que procurava o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde , que , ou esperasse um bocado , ou viesse d' ahi a uma hora .  Meia hora depois do que acabâmos de contar , na sala de refeição do palacio estavam almoçando o Visconde e sua mulher .  A Viscondessa , senhora de vinte e oito annos , esvelta , bella e elegante , estava negligentemente recostada n ' um sophá , sustendo n ' uma das mãos a chicára e tendo na outra um biscoito , o qual era diminuido por intervallos , entre os seus alvos e preciosos dentes .  Estava um tanto pensativa e parecia que graves contrariedades , a alguma idéa sua , lhe cruzavam a mente e a faziam taciturna .  O Visconde , homem de trinta e seis annos , magro , baixo e pallido de rosto ;  não podendo fictar ninguem de frente , nem mesmo sua mulher ;  tinha os seus pequenos e verdes olhos , pregados na meza de pé de gallo onde estava o almoço , e parecia meditar profundamente .  A Viscondessa porêm veio tiral- o d' esta immobilidade sapal , perguntando-lhe com a sua argentina e flexivel voz , habituada a todos os tons :  -- Não almoça , Visconde ?  Este , ouvindo o triste e magnifico tom menor em que foi feita a pergunta , e o qual poucas vezes ouvia á Viscondessa , despregou os olhos da meza passeiando-os rapidamente pelos de sua mulher , ao mesmo tempo que lhe responde :  -- Ah !  sim , almóço , menina ... é que estava pensando ... Então , continúa elle , mudando de tom , divertiu-se muito na reunião do Barão ?  -- Nem por isso ;  sempre os mesmos convites ... ali vêem-se continuamente as mesmas physionomias e , o que ainda é mais , o mesmo vestuario .  Se ao menos o dono da casa convidasse familias do povo , ricas , vá ;  mas convidar pobretonas que nunca passam do rococó vestido branco ... é d' uma semsaboria insupportavel !  -- Com que então aborreceu-se , Viscondessa , não é assim ?  -- Horrivelmente !  -- Pois eu tambem não fui feliz em casa do Conselheiro M , não me aborreci , é verdade , porêm perdi duzentos mil réis ao jogo ... fiquei esgotado das algibeiras e ainda sou devedor ao Conselheiro , de cento e cincoenta mil réis , os quaes não sei como lhe heide pagar .  -- Ora !  dividas de jogo , disse a Viscondessa em tom de mofa , nunca se saldam .  Dê-me o Visconde antes as vinte libras que eu tenho de pagar d' aqui a pouco pelo corte do meu vestido de setim bordado .  -- Ah !  ah !  ah !  E , depois de dar uma estrepitosa gargalhada , o Visconde , levantando-se e começando a passeiar pela casa , em circulos á roda da meza , disse a sua mulher :  -- A Viscondessa dá-me vontade de rir com esse seu ingenuo pedido .  Eu estou completamente desprovido de metal cunhado , e isto talvez por oito dias , se me falhar uma transaeção que negociei , o que muito desconfio me succeda .  -- Então , disse a Viscondessa em tom brilhante e maior e um tanto picada , o Visconde quer dizer com isso que me obriga a faltar vilmente á minha palavra , hoje , perante o caixeiro da casa de modas , que não deve tardar ?  -- Ora !  pois Vossa Excellencia , respondeu o Visconde com um sorriso ironico misturado de compaixão , pois Vossa Excellencia não acha no seu intelligenle e atilado cerebro algum meio com que possa descartar-se airosamente do pobre diabo ? ...  Oh !  eu de certo o não posso acreditar !  -- Mas o Visconde , que é tão fertil em meios complicados , disse a Viscondessa no mesmo tom , porêm crescendo , é que me deve indigitar o que eu tenho a seguir n ' esta critica occasião .  -- Pois será verdade que queira baixar-se á minha humilde intelligencia , pedindo-me conselho para o que deve fazer ?  -- Não desejo outra coisa , senhor ;  bem vê o embaraço em que me adio , e meu marido , como representante da nossa casa , não hade querer que os seus brazões fiquem deslustrados por um vil logista , que será capaz de dar ordem aos caixeiros para apregoarem por todo o arruamento que o Visconde de é um caloteiro , e pretende vestir sua mulher á custa d' outrem .  -- Não nos zanguemos , Viscondessa :  vou-lhe provar , apezar de não ser a divida feita por mim , e de não receiar quaesquer dicterios da canalha em meu desabono , vou-lhe provar , digo , que póde sair-se perfeitamente dos apuros em que está .  E preparava-se para lhe ensinar o que devia fazer , quando a criada grave da Viscondessa entrou na sala de refeição para a consultar sobre umas cortinas em projecto .  O Visconde , vendo-a entrar , consultou o relogio , e vendo que já passava da uma hora , aproximou-se da Viscondessa e , collando-lhe a boca ao ouvido como se a beijasse na face para illudir a criada , disse-lhe rapidamente em voz sumida :  " Escamoteie-lhe a conta . "  Depois , dirigindo-se apressadamente para a porta da sala , disse-lhe em tom de ineffavel carinho :  -- Até logo , minha querida .  E desappareceu .  Pouco depois o criado particular do Visconde veio participar á Viscondessa que se achava no portão do palacio o individuo que já havia procurado Sua Excellencia , o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde , porêm que este havia saido .  -- Mande entrar esse sugeito para o salão nobre , disse a Viscondessa em tom breve .  O criado saiu , e ella , chegando-se a um espelho , depois de se consultar e arranjar o cabello , disse comsigo :  -- Veremos por qual dos meios o vencerei , se pelo que imaginei , ou pelo que me apresentou meu marido .  Depois encaminhou-se para a sala , entrando na qual , viu um mancebo bem vestido e de agradavel physionomia , que a comprimentou respeitosamente em silencio .  -- Então que pretende o senhor ?  perguntou-lhe a Viscondessa , ao mesmo tempo que lhe indigitava um sophá para elle se assentar .  -- Senhora Viscondessa , respondeu o mancebo , conservando-se de pé , eu sou portador d' uma conta d' um vestido que Vossa Excellencia fez a honra de comprar a meu patrão .  -- Ah !  já sei , disse a Viscondessa n ' um tom que mostrava a pouca importancia que dava a similhante noticia ;  queira demorar-se um pouco , que estou esperando o meu mordomo , o qual não tardará :  porêm assente-se , senhor ... como se chama ?  E , assentando-se em frente do joven , obrigou-o com o gesto a fazer o mesmo .  O mancebo assentou-se e , respondendo á pergunta da Viscondessa , disse-lhe :  -- Eu chamo-me José da Silva , excellentissima senhora .  -- Então o senhor||_Silva Silva|_Silva vai dizer-me que novidades vieram de França , sim ?  disse a Viscondessa aproximando a sua cadeira do caixeiro , de modo a ficar-lhe bem de frente para o poder fascinar pelos seus dardejanles olhares .  -- Minha senhora , replicou o mancebo baixando os olhos modestamente , não se atrevendo a affrontar o olhar que lhe lançára a Viscondessa , desde que Vossa Excellencia esteve na loja de meu patrão ainda não chegaram figurinos alguns , e então não posso dar-lhe novidades a esse respeito .  -- Ora que pena !  disse a Viscondessa com um gracioso sorriso , que só as pessoas altamente generosas ou grandes actores da comedia humana sabem patentear quando sentem qualquer pezar e não querem aflligir a outrem ;  que pena o senhor||_Silva Silva|_Silva não poder aconselhar-me a comprar qualquer enfeite , que porventura podesse apparecer , para eu o estreiar no proximo baile do meu anniversario .  E , vendo que o mancebo se conservava calado e como contrafeito , deu um geito ao corpo de modo que um dos seus joelhos foi encontrar-se com o do caixeiro , e ahi permaneceu alguns segundos , como instigando-o a deixar de ser reservado .  Porêm o mancebo , respeitando o logar em que se achava , ou por temer dar-se ao ridiculo , recuou um pouco a cadeira em que estava assentado .  A Viscondessa , vendo este movimento , disse-lhe vivamente :  -- Incommodei- o , senhor||_Silva Silva|_Silva ?  -- Oh !  minha senhora , respondeu o mancebo córando , eu É que receiei que Vossa Excellencia não estivesse á sua vontade ...  -- Ah !  não !  estava perfeitamente , redarguiu a Viscondessa em tom menor sentimental , que se traduzia por estas palavras :  " não me comprehendeu " , ou " é frio como rocha ! "  -- Então em quanto importa a conta ?  continuou a Viscondessa , mudando assim de conversação para depois continuar de subito o seu projectado ataque .  -- Em noventa mil réis , respondeu o caixeiro , tirando ao mesmo tempo do bolso furtado do fraque uma bonita carteira de marroquim verde ;  póde Vossa Excellencia examinar ...  E dispunha-se a abrir a carteira .  Porêm a Viscondessa , impedindo-o com o gesto , disse-lhe com intimativa :  -- Não é necessario mostrar-m ' a ;  agora me recordo que é isso mesmo .  O mancebo , obedecendo ás ordens da fidalga , tornou a metter a carteira no bolso e esperou em silencio .  A Viscondessa então , levantando-se e dando uma volta pela sala , ostentando d' este modo a sua elegante estatura , conservou-se silenciosa alguns instantes , sem dúvida edificando na idéa os seus projectados planos , e fazendo comsigo estas reflexões :  -- Parece-me que falha o meu plano , e que terei de recorrer ao de meu marido .  Depois , aproximando-se do caixeiro , que se conservára immovel na cadeira , perguntou-lhe em tom de leviandade protectora :  -- Diga-me , senhor||_Silva Silva|_Silva , o senhor dança ?  -- Um pouco , minha senhora , respondeu o mancebo levantando-se para não commetter a incivilidade de conversar assentado com a Viscondessa , estando esta de pé .  -- Talvez se admire de eu lhe fazeir esta pergunta , continuou a Viscondessa , sem o mandar assentar ;  porêm eu lhe explico a razão porque o fiz .  Desejava que o senhor||_Silva Silva|_Silva viesse ao meu baile , e então como dança , desde já fica intimado a fazer parte dos meus convidados .  -- Oh !  minha senhora , respondeu o caixeiro , aturdido com similhante e inesperada proposição ;  é-me impossivel aceitar o obzequioso convite de Vossa Excellencia , porque estamos dando balanço , e meu patrão não póde dispensar-me de noite ...  -- Tenho immensa pena , tornou a fidalga , figurando observar o caixeiro dos pés á cabeça , porque o senhor||_Silva Silva|_Silva é um elegante cavalheiro , e faria uma brilhante figura nas minhas salas .  Ah !  mas este favor que lhe vou pedir não me recusará , continuou ella , como tocada d' uma idéa repentina , o senhor tem a estatura de meu marido ... tem certamente , disse ella de novo , examinando o caixeiro ;  pois então hade fazer-me o favor de vestir , em quanto não chega o meu mordomo , uma casaca que o alfayate ainda agora trouxe para meu marido , porque desconfio não estar elegante .  Elle não estava cá quando o alfayate veio , e não a poude provar .  Faz-me este favor , senhor||_Silva Silva|_Silva ? ...  -- Oh !  minha senhora , pois não heide fazer , respondeu o caixeiro inclinando-se respeitosamente diante da Viscondessa .  -- Então , com licença , que eu já volto .  A Viscondessa , dizendo islo , saiu , porêm vollou quasi no mesmo instante , trazendo na mão uma casaca nova , porêm , que o Visconde já havia vestido não poucas vezes .  Depois , apresentando-a ao caixeiro , disse-lhe desabusadamente :  -- Dispa o fraque sem ceremonia , senhor||_Silva Silva|_Silva .  O mancebo despiu o fraque com acanhamento ;  a Viscondessa antecipou-se em collocal- o sobre um sophá ao alcance da sua mão e , ajudando açodadamente o caixeiro a vestir a casaca com a mão direita , foi , com a esquerda , tirando a carteira do bolso furtado .  Depois de estar de posse d' ella , dizendo ao mancebo que tivesse a bondade de andar até ella lhe dizer que parasse , para notar bem qualquer prega que a casaca fizesse , a astuciosa fidalga abriu a carteira , e , com a ligeireza digna de Hermann , escamoteou a conta depois de se assegurar ser a d' ella , e , fazendo com que o mancebo se aproximasse outra vez do sophá onde estava o fraque , porêm , sempre com as costas voltadas para o movel , tornou a introduzir no bolso a carteira do mesmo modo que a subtraira .  -- Está muito boa , não faz nem uma prega , disse a Viscondessa depois de terminada a escamoteação .  Póde despil-a , senhor||_Silva Silva|_Silva , e muito agradecida .  E , dando-lhe o fraque com toda a delicadeza e pegando na casaca , tornou a leval-a , e , voltando logo , disse ao caixeiro :  -- Ora , até que chegou o meu mordomo ;  vai receber o seu dinheiro .  O mancebo , ouvindo isto , puxou da carteira e abriu-a para tirar a conta , porêm , empallidecendo e córando alternativamente , balbuciou afllicto :  -- Não está cá , desappareceu , porêm eu trouxe-a ...  -- Que tem o senhor ?  perguntou a Viscondessa em tom de susto , magnificamente representado .  -- É que , respondeu o caixeiro tendo uma vaga e repentina desconfiança contra a Viscondessa , trazia a conta comigo , n ' esta carteira , e não a tenho .  Isto é horrivel ...  -- Talvez que o senhor a tirasse e a mettesse em alguma algibeira , procure bem ...  -- Nada , minha senhora , disse o mancebo , allucinado por similhante catastrophe .  E , pegando no chapéo e comprimcntando a Viscondessa , saiu apressadamente do palacio .  Baldados exforços  O pobre caixeiro , saindo apoquentadissimo de casa do Visconde , foi ter com o patrão , e dizendo-lhe que lhe desapparecêra a conta , sem saber como , pediu-lhe que lhe passasse outra .  O patrão , homem severo e endurecido no negocio , depois de o ouvir , fazendo uma careta e tomando uma pitada , disse-lhe em tom aspero e com voz fanhosa :  -- Parece-me que você , ha uns tempos para cá , anda com essa cabeça a razão de juros .  Eu estimo e aprecio muito os caixeiros circumspectos , e aborreço muitissimo os levianos .  Ámanhã lhe passarei outra conta , e heide estimar que me traga os noventa mil réis .  Dizendo isto voltou as costas ao mancebo , deixando-o immerso em tristes reflexões .  Na occasião da scena que descrevemos , no palacio do Visconde passava-se outra entre os dois fidalgos , marido e mulher :  -- Então , senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , dizia o Visconde , estendido n ' um sophá e saboreando um bello charuto de contrabando , como se deu com o meu conselho ?  Saiu-se bem da escamotagem ?  -- Muito bem ;  póde verificar , respondeu a Viscondessa tirando d' uma algibeira a conta extorquida ao caixeiro e entregando-a ao Visconde .  -- Caspite !  exclamou este rindo , nunca julguei que fosse tão boa discipula e tirasse tanto resultado da prestidigitação que lhe tenho ensinado ! ...  Sim senhora , faz progressos em bem pouco tempo .  E tornando a dar a conta á Viscondessa , continuou em tom de superioridade magistral :  -- Agora sabe o que tem de fazer para ultimar este negocio com limpeza ?  -- Então ainda m ' o pergunta ?  respondeu a Viscondessa em tom de quem desdenha de conselhos alheios .  Quer sabel- o ?  -- Não será máu , replicou o Visconde como zombando antecipadamente da idéa de sua mulher ;  quero aconselhal-a , se caminhar mal ...  -- Não hade ser necessario , atalhou a Viscondessa com uma tal energia e firmeza que espantou o Visconde , e o fez pensar se o mestre estaria convertido em discipulo .  -- Bem , bem , senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , não vale zangar por tão pouco ... não me queira mal por eu desejar encaminhal-a bem em veredas difficultosas ;  porque ... se Vossa Excellencia n ' este negocio não tivesse o necessario sangue frio para receber a nova conta que o logista hade enviar-lhe , perdia de certo a reputação e fazia-me perder a minha duplicadamente , na qualidade de seu mestre e na de seu marido .  Por consequencia estou convencido que , o que tenciona fazer é dar essa conta a um criado , e encarregal- o de dizer á pessoa que vier com a nova conta , que Vossa Excellencia já pagou a mesma e foi para o campo .  D ' este modo o patrão queixa-se do caixeiro e o caixeiro não sabe de quem hade queixar-se , a menos que a escamoteação fosse por elle observada .  -- Póde estar descançado a esse respeito , Visconde ;  a sua ultima idéa é infundada , porque o pobre rapaz viu tanto a operação como Vossa Excellencia .  -- Peço desculpa , Viscondessa , e proclamo-a um modêlo de talento e atilação , replicou o Visconde espargindo pela sala nuvens de fumo de tabaco .  N ' este momento appareccu um criado a uma das portas da sala e , dirigindo-se aos aristocratas , disse-lhes :  -- Senhor||_Visconde Visconde|_Visconde e senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , tenho a honra de annunciar a Vossas Excellencias que o jantar acaba de ser posto na meza .  O Visconde levantou-se e caminhou para a casa de refeição seguido de sua mulher , que pengou pelo caminho :  -- Ainda bem que elle me indigitou o que devo fazer , pois de contrario estava tolalmente desacreditada sem saber como dirigir e ultimar esto pequeno negocio .  Só tenho a fazer uma simples alteração em nomes ... Porêm ao menos ignora que lhe devo mais esta lição .  Que gloria para mim !  No dia seguinte ás scenas d' este capitulo , pela uma hora da tarde , José da Silva , munido da nova conta , dirigiu-se ao palacio do Visconde .  O guarda-portão , já prevenido , mandou-o subir .  O caixeiro subiu e participou a um criado quem era , e o que vinha fazer .  O criado deixou-o só por um momento e , voltando com um papel na mão , disse ao mancebo :  -- O senhor||_Visconde Visconde|_Visconde foi para o campo e entregou esta conta á senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa para que a mostrasse ao senhor , dizendo-lhe que já pagou ao seu patrão .  -- Mas quem pagou esta conta ?  perguntou o caixeiro com anciedade , depois de ter examinado o papel e conhecer a firma do patrão .  -- Já lhe disse que foi o senhor Visconde , respondeu o servo admirado da exclamação do caixeiro e sem comprehender nada , porque ignorava tudo .  -- E a quem ?  retorquiu este .  -- Tambem já lhe disse que a seu patrão , replicou o criado .  -- E a senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , está em casa ?  -- Está , mas acha-se incommodada e não póde fallar a ninguem .  Esta ultima noticia do criado é que foi um raio luminoso para o mancebo e o fez convencer de que havia sido victima d' uma fraude , porque tendo examinado bem a sua carteira para vêr se acharia a conta , notou que alguns papeis estavam amarrotados e como se houvessem sido remechidos por mão estranha .  Cabisbaixo e pensativo , saiu portanto do palacio do Visconde e foi depositar o succedido com elle em um seu intimo amigo , contando-lhe minuciosamente o que lhe acontecêra , terminando por dizer receiava bastante que o patrão o despedisse por não acreditar similhante infamia .  -- Não despede , diz-lhe o amigo , porque eu te empresto os noventa mil réis para tu me pagares como poderes , porque sei que és um rapaz honrado .  E pegando em vinte libras entregou-as ao venturoso mancebo , que possuia um tal amigo , o qual , depois de lhe dar os gratos agradecimentos e o abraçar , chorando de alegria , foi contentissimo levar ao patrão o dinheiro que não recebêra , de quem o devia e podia perfeitamente pagar , tendo de valer-se d' um amigo para não ficar com o labéo de ladrão .  O baile  Pelas oito horas da noite do dia 20 de dezembro de 1853 , anniversario natalicio da Viscondessa de , nas salas do palacio do Visconde , seu marido , brilhantemente illuminadas e ornadas para baile , começavam a entrar os convidados para a festa .  Entre as poucas pessoas que já se achavam nas salas viam-se , n ' um grupo , os nossos antigos conhecidos , o Conselheiro M , sua mulher , o Barão de e o Visconde , sempre juntos .  A Viscondessa conversava com as suas amizades intimas , n ' outro grupo distante do primeiro .  -- Então o Conselheiro , perguntava o Visconde em voz baixa ao amigo , dizia que está arrependido de contribuir para que o rapaz saisse tão cedo do Limoeiro ? ...  -- Certamente , porque ... se o demorasse lá mais dois ou tres mezes , com certeza já estaria mais esquecida a morte de minha pupilla , e bem sabe o amigo Visconde , continúa o Conselheiro baixando mais a voz , que o testamento d' ella ...  -- Hum , hum ... fez o Visconde , indigitando ao mesmo tempo significativamente o Barão , que conversava com a mulher do Conselheiro .  -- É tambem dos nossos , continúa este ;  o Visconde bem sabe que estando nós associados em certas emprezas ...  D ' esta vez foi o Barão que , deixando de conversar com a esposa do Conselheiro e voltando-se rapidamente para este , lhe disse com impaciencia :  -- Essas conversações não são para aqui , Conselheiro ;  falle n ' outra coisa , homem !  -- Este meu marido , diz sentenciosamente a mulher do Conselheiro , de dia para dia vai accumulando cada vez inais inconveniencias .  Nunca vi !  Ninguem dirá que é um Conselheiro ! ...  -- Bem , bem , atalhou o Conselheiro levantando-se , não fallemos mais n ' isso .  E separou-se do grupo .  -- Então onde comprou a minha querida Viscondessa , esse lindo corte de vestido ?  perguntava a Condessa de á dona da casa , no outro grupo .  -- Na Levaillant , respondeu a Viscondessa .  Mas realmente , acha-o bonito , Condessa ?  -- Oh !  que é lindo !  respondeu esta examinando bem a fazenda , e d' um tecido tão forte , que a minha querida amiga com certeza não o romperá , por se aborrecer d' elle e não querer incorrer na critica da eternidade .  Depois d' esta tirada critica , que a arteira Condessa sabia ser lisongeira para a dona da casa , e vendo que estamparecia ufanar-se com a sua opinião , continuou com essa meiguice requintada tão propria dos aristocratas :  -- O meu amor vai levantar-se , sim ?  para eu vêr se lh'o talharam bem ... Foi mesmo feito onde comprou o corte ?  -- Foi , respondeu a Viscondessa , ao mesmo tempo que se levantava para deixar vêr ás amigas a elegancia do vestido .  -- Fez bem , porque noutra parte estragavam-lh ' o ... sobretudo se o mandasse fazer a qualquer inepta modista portugueza .  E levantando-se , assim como todas as damas e cavalheiros que estavam no grupo da Viscondessa , exclamou , ajudando a fazer roda em torno d' esta :  -- Oh !  que elegante , que perfeito e que bem acabado está !  Bem se vê que é obra franceza .  -- Está lindo , disseram em côro homens e damas .  -- E quanto custou ?  continuou a curiosa Condessa .  -- Foi um brinde que me fez meu marido , respondeu a Viscondessa , e não me quiz dizer o preço .  -- É o mesmo , atalhou a Condessa , eu logo lh'o perguntarei e elle hade dizer-m ' o , olé !  em eu lhe declarando que é para comprar um d' igual qualidade .  -- E quanto levaram a Vossa Excellencia de feitio ?  perguntou á Viscondessa uma joven demasiado feia e trigueira , filha do Commendador F .  -- É verdade , quanto lhe levaram pelo feitio ?  perguntou tambem a Condessa , atalhando a resposta que a sua amiga ia dar á joven pallida .  -- Uma libra , respondeu a Viscondessa , e foi por ser para mim , quando não ...  -- De certo , de certo , atalhou outra vez a Condessa ;  é muito barato , muito !  N ' este momento entraram mais convidados , o que deu motivo a ser interrompida a conversação sobre o vestido .  As salas foram-se enchendo , e quando eram nove horas , uma orchestra , composta de dezeseis artistas mediocres e regida pelo senhor||_Freitas Freitas|_Freitas , deu começo ao baile , executando com maestria a linda abertura da opera comica , A Marqueza , finda a qual , e depois d' um momento de repouso , executou o ritournello da bella quadrilha franceza , Les filles d' Éve .  Gruparam-se os pares .  A Viscondessa teve por cavalheiro um mancebo , filho da falladora e curiosa Condessa de  O Visconde dançou com uma encantadora joven , filha d' uma aristocrata hespanhola , tendo por vis-à-vis um homem alto , magro e verdenegro , de olhar obliquo , chamado o Commendador F , o qual tinha por par a joven pallida , sua filha .  O Barão de dançou com a mulher do Conselheiro , e foi vis-à-vis da Viscondessa .  O Conselheiro , ficando mudo espectador , por ser quasi incommunicavel para os que não eram os seus intimos , foi ler os jornaes .  Durante a contradança , o Visconde , lançando ternas olhadellas ao seu lindo par , como podem ser as d' uns olhos verde-duvidoso e pequeninos , dizia-lhe , depois de lhe apertar amorosamente a mão , emquanto l ' autre partie fazia as evoluções coreographicas :  -- Vossa Excellencia é a creatura mais bella que tenho visto ... e dança com uma graça , que arrebata o homem mais blasé em amor !  Como o filho da Condessa de vai ser feliz casando com Vossa Excellencia ... e como Vossa Excellencia tambem vai ser venturosa ! ...  -- Péro yo no lo amo ... disse com intimativa a joven hespanhola .  Mi madre ha querido hacer esto ... y hace mal , os digo yo , señor Visconde !  -- Era isto o que eu desejava ouvir , diz comsigo o aristocrata .  Depois , fallando com a joven :  -- Estimo muito saber isso , lhe diz elle , porque conheço a inconstancia do rapaz e sei que não é digno de ser amado .  Ha porêm um homem , que por uma unica palavra de amor de Vossa Excellencia seria capaz de morrer de alegria ... e sei tambem que não é indifferente a Vossa Excellencia .  -- Quien és ?  perguntou com curiosidade a donzella .  Então o Visconde , baixando a voz o indigitando á joven o Barão de que n ' este momento terminava airosamente uma figura , respondeu-lhe :  -- É o sensivel , apaixonado e sentimental Barão de .  A donzella sorriu e córou um pouco , porque conhecia já o Barão e deveras sympathisava com elle , porêm não sabia que tambem era amada .  O arteiro Visconde , que conheceu não ter errado o alvo , disse comsigo :  -- Ganhei , porque o Barão venceu .  E na occasião em que conduzia a assentar-se o seu par , por haver terminado a quadrilha , o Visconde perguntou á joven , sorrindo-se :  -- Então , posso dar os parabens ao Barão ?  -- Despues hablaremos , respondeu a joven assentando-se .  Agora uma explicação aos leitores , á cerca d' este enigma .  O Visconde , d' intelligencia com o Barão , e sabendo d' este que a donzella hespanhola estava em caminho de o amar , receiando que a mãe d' esta effectuasse o casamento da filha com o primogenito da Condessa falladora , procurou sondar o gráu d' amor que a joven tributava ao mancebo , e conhecendo , como já presumira , pelas palavras d' aquella , que não amava este , lembrou-lhe logo o seu intimo Barão para avivar na donzella o começo d' amor que sentia pelo mesmo .  A razão d' este acerrimo empenho era a joven possuir de rendimento tres contos de réis , e o Barão ter feito com o Visconde uma transacção particular para , consummado o consorcio com aquelle , poder este tambem gozar parte dos rendimentos da fidalga hespanhola .  Agora continuemos .  Acabada a primeira quadrilha , chegou-se ao Visconde um mancebo de vinte e cinco annos , alto , elegante e bello , se bem que com as feições prematuramehte envelhecidas pelas continuas dissipações e aturados excessos ;  e dando o braço ao que elle chamava seu amigo , disse-lhe :  -- Não sabes , Visconde , a coisa fez o effeito que esperavas .  -- Sim !  tornou o Visconde , ainda bem .  Então enganei-me , meu creançola ?  -- Chorou , continuou o mancebo , desesperou-se , e maldisse quem lhe perturbava a paz domestica .  Estive quasi confessando-lhe tudo , porque agora conheço pelo desespero em que a vi , quando lhe disse que estavamos para sempre separados , que a minha pobre Adelia amava-me deveras .  -- Não sejas tolo , homem , são todas assim , disse-lhe o Visconde rindo .  Se não foi d' esta vez , continuou elle batendo no hombro do mancebo , será para outra .  -- Dizes talvez bem , replicou este pensativo e principiando a duvidar outra vez da virtude feminina , pela depravada eschola que cursára desde a adolescencia , dizes talvez bem , porêm minha mulher até hoje tinha sido o modêlo das casadas , apezar de eu contribuir para o contrario .  -- Mas estás livre , atalhou o Visconde , o qual , sabendo que o mancebo era um apologista da liberdade desenfreada , procurava desvanecer-lhe o arrependimento que patenteava , estás livre , e , o que ainda é melhor , podes gozar os rendimentos de tua mulher , porque tens um filho e estás legalmente habilitado a poder administrar-lhe os bens , percebes ?  -- Tens razão , respondeu o mancebo embriagado com as idéas que lhe suggeria o Visconde .  -- Agora conta-me , continuou este , como executaste o que te ensinei .  -- Olha , entrei em casa , tendo primeiro o cuidado de entregar a um gallego e recommendar-lhe que a levasse d' ahi a pouco , a carta , cujo rascunho tu me déste e eu mandei copiar por um ratão que é magnifico para estas coisas .  D ' ahi a alguns segundos pucham a campainha da escada :  eu , que de proposito me conservava na sala , perto de minha mulher , que estava tocando piano , instiguei-lhe a curiosidade para que ella se anticipasse a algum criado , dizendo-lhe com certo modo misturado de receio e mysterio :  -- Quem será ?  -- Eu vou vêr , me respondeu ella , sem saber o que lhe resultaria de similhante desejo .  E , indo á porta , recebeu a carta que o gallego lhe entregou , e que vinha sobrescriptada para ella .  Disse-me que não conhecia a letra , com um vago receio que me serviu ás mil maravilhas para me dar campo á scena que se seguiu á leitura da carta , lançando-lhe em rosto a hesitação rcceiosa que mostrára , a qual claramente dizia que era peccadora e indigna de viver comigo .  -- Bem , disse o Visconde , caminhaste perfeitamente .  Agora , continuou elle com voz assucarada , não te esqueças do que combinámos , hein ?  -- Ah !  descança , respondeu o mancebo ;  tão depressa possa liquidar a minha parte , heide gratificar-te .  N ' este momento a orchestra começou uma polka , e todos os pares dançantes se pozeram em movimento nas salas do Visconde de .  A familia Mendonça  ( Continuação do capitulo antecedente )  Eram dez horas da noite quando entrou no palacio do Visconde de um sugeito de perto de cincoenta annos , demasiadamente baixo , proprietario d' um abdomen das dimensões de pipa , com o rosto avermelhado , encaixilhado em duas enormes suissas loiras , que o fariam passar perfeitamente por inglez , senão fallasse claramente o portuguez , e uns grandes olhos entrincheirados em dois enormes vidros d' oculos , do diametro das moedas de vintem .  Este sugeito dava o braço direito a uma senhora que podemos afoutamente classificar , ser a sua antithese .  Reparem :  a senhora teria trinta annos ;  era demasiado alta , bastante magra , tinha o que vulgarmente se chama feições miudas , e olhos pequeninos e penetrantes , o que denotava ter boa vista .  O sugeito em questão entrou pois azafamado pelas salas do Visconde , dando , como dissémos , o braço direito á esposa ( porque a senhora alta e magra era sua esposa ) , e a mão esquerda a uma menina de treze a quatorze annos , que era sua filha .  Parecia que a natureza se empenhára em contrabalançar a abundancia e escassez de carne que lhe legaram seus progenitores , porque a joven , já entrando na adolescencia , era o que se chama uma bonita creatura , de formas regularissimas , assaz desenvolvida e fóra da infancia .  O tal sugeito , a quem chamaremos o senhor||_Mendonça Mendonça|_Mendonça , era um rico proprietario de Traz-os-Montes , aferrado á mania de comprar o titulo de barão , o qual casára , sendo ainda pobre , ( caseiro d' uma quinta ) com a senhora que já conhecemos , que era filha d' um antigo sachristão , porêm já rica no tempo em que namoricou o senhor||_Mendonça Mendonça|_Mendonça , porque o acolyto das missas herdára do pae , o prior , uma immensa fortuna .  A educação infantil que tiveram os dois esposos , vê-se claramente que , sem dúvida , fôra bem pouca , e ainda menos esmerada .  A filha recebeu pois dos seus progenitores a severa e rispida educação que costumam dar os nossos provincianos da raia , educação a que chamaremos fanatismo e hypocrisia .  Chegava a tal ponto a rigidez da mãe , que obrigava a filha a andar vestida como se tivesse oito ou nove annos :  punha-lhe papelotes nos lindos cabellos , e vestia-lhe ainda fato curto , o que obrigava a pobre menina a ser devassada pelas vistas profanas dos curiosos em dias de chuva .  Eis o resultado que se lira da severa rigidez de costumes .  O senhor||_Mendonça Mendonça|_Mendonça entrou , como dissémos , pelas salas do Visconde , arrastando sua familia caricatamente .  -- Vamos , meninas , dizia em voz alta o gordo trasmontano , dirigindo-se á mulher e filha , vamos , que já é tarde .  E amarrotando todos os vestidos que achava na sua passagem , e pizando todos os homens , chegou finalmente em frente da Viscondessa .  -- Ainda bem que topei com a dona da casa , exclamou elle n ' um tom que denotava respirar mais á vontade , julguei que não dava com ella !  E apresentando sua mulher e filha á Viscondessa , disse a esta , desfazendo-se em mesuras e rapapés :  -- Minha senhora , tenho a distincta honra de lhe apresentar minha esposa a senhora||_D._Pulcheria D.|_D._Pulcheria Pulcheria|_D._Pulcheria , e minha filha , D. Filomena Maria da Conceição Mendonça .  E , voltando-se para sua mulher e filha , continuou :  -- Apresento-lhes a vocês a senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa de , filha do senhor||_Conde Conde|_Conde de e esposa do senhor||_Visconde Visconde|_Visconde de , em cuja casa nos achâmos .  Depois d' este preparatorio apresentativo , o gordo trasmontano , suando por todos os póros , tirou um lenço da algibeira , e limpando as bagas de suor que lhe corriam pelo rosto , exclamou :  -- Arre que calor !  Esta ultima e delicada phrase acabou por encolerisar todos os fidalgos que circumdavam a Viscondessa , os quaes perguntaram em voz baixa uns aos outros :  -- Quem é este tremendo alarve ?  Entretanto a Viscondessa tomava conhecimento com a esposa e filha de Mendonça , beijando com caricias aristocraticas a pequena , e abraçando do mesmo modo a mãe , dizendo-lhes ao mesmo tempo com o seu lindo tom menor sentimental :  -- Como Vossas Excellencias vem cançadas !  Tenham a bondade de se assentar .  Depois , emquanto as conduzia para uma sala reservada aos intimos , disse em voz baixa á mulher do Conselheiro M :  -- Que tres originaes nos entraram em casa !  A mulher de Mendonça assenlou-se , dizendo ao mesmo tempo :  -- Aquelle meu hóme é mesmo um farnezim ! ...  Esqueceu-se de dar ordem , esta tarde , ao nosso cocheiro para apparelhar ás nove horas , e não quiz esperar que o trem estivesse prompto , por causa da demora , pregando com+nós pela rua a correr como se abalassemos atraz d' algum cyrio .  Credo ... Não sei como não emmagrece , sendo tão farnetigo !  A Viscondessa e as pessoas que estavam na sala reservada , mordiam os beiços para reprimir o riso que lhes provocára tão burlesca tirada .  -- Antão tu não dizes nada , Nina , proseguiu D. Pulcheria dirigindo-se á filha ;  estás enfadada , meu amor ?  -- Não senhor , maman , tenho somno ... ergui-me tão cedo hoje ! ...  -- Eu bem dezia a teu pae que eram já que horas para virmos á festa universal da senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa ;  mas teu pae , que é teimoso como um jumento , embirrou ...  N ' este momento ouviu-se a voz de Mendonça , bradar fóra da sala :  -- Antão adonde estão ellas ?  E entrando , conduzido por um criado , e vendo sua mulher e filha em companhia da Viscondessa e mais convidados , exclamou , rindo brulalmente :  -- Oh hóme !  Eu já julgava que se tivessem perdido !  Topei lá fóra o Visconde e fiquei um bocado entretido a conversar com elle ;  vai senão quando lembro-me de vocês , volto-me ...  E , querendo juntar a acção á palavra , o gordo trasmontano volta-se , e n ' este movimento vai com a cabeça d' encontro á barriga do Conselheiro M , que o escutava de pé e estava por detraz d' elle , sendo tão violento o embate que o Conselheiro deu um grito de dôr e caiu para traz sobre um sophá ;  e Mendonça , perdendo tambem o equilibrio , estendeu-se no pavimento para o lado opposto onde caira o Conselheiro .  Então é que não foi possivel aos convidados presentes reprimirem por mais tempo o accesso de riso que os apoquentava desde a entrada da familia Mendonça .  Rebentou pois um tal estrondo de gargalhadas , em todos os tons , que attrahiram alguns curiosos que estavam nas outras salas .  O Conselheiro , menos pezado que o gordo transmontano , ergueu-se mais depressa , mesmo porque não chegou a cair no pavimento , impedido pelo sophá .  Sua esposa correu a elle e perguntou-lhe :  -- Deu n ' alguma parte ?  -- Dei , mas levemente , respondeu o Conselheiro com a voz tremula pelo susto ;  agora o peior foi o que levei pela barriga ... Creio que me quebrou alguma coisa , continua elle apalpando as algibeiras .  -- Talvez o relogio ?  atalhou com interesse a mulher ;  veja , veja lá ...  -- Diz bem , respondeu o Conselheiro , puchando da algibeira esquerda do collete um relogio de ouro com o vidro partido ;  escangalhou-me o vidro .  -- Pois o senhor , continuou a mulher enraivecida , porêm baixando a voz para não dar escandalo , põe-se atraz d' um bruto d' aquelles ? ! ...  Ninguem dirá que é um conselheiro !  -- Mas senhora , quem podia adivinhar que ? ...  -- Ora qual !  Um conselheiro deve adivinhar tudo !  Proferindo esta ultima sentença , separou-se do marido , e foi tranquillisar os convidados que se interessavam em saber se o Conselheiro soffrêra com a pancada , respondendo a todos :  -- Nada , não teve nada ... agora o relogio , esse é que ficou escangalhado e hade custar caro o concerto .  Entretanto Mendonça , que caindo de lado deu com a cabeça no tapete da sala , partira um vidro dos oculos e tentando pôr-se de pé ficára de bruços , posição na qual ainda se conservava , fazendo a figura d' um estudante de natação , tal era o bracejar e o escoucear do rotundo trasmontano , suspenso na proeminencia da barriga , a qual o obrigava a fazer rodizio com o corpo em torno da sala .  Sua mulher , para o ajudar a levantar-se , caira-lhe em cima dando gritos , de modo que produziu o effeito contrario obrigando o pobre homem a pedir soccorro , hurrando com voz abafada :  -- Alliviem-me , com todos os diabos , não me carreguem em cima !  Dêem-me cá a mão !  E bracejava , escouceava e estrebuchava cada vez mais , porêm debalde , porque sua mulher continuava sempre gritando e carregando-lhe em cima do corpo .  Felizmente para o pobre homem , sua filha que tambem gritava e chorava ao mesmo tempo , para fazer a segunda á mãe , poude ouvir o que o pae implorava , e dando-lhe a mão , para o ajudar a levantar-se , gritou ao mesmo tempo a sua mãe :  -- O papá diz que se tire de cima d' elle , maman , e que lhe dê a mão .  -- Sim , filha ?  Antão vamos ajudal- o .  E dispunha-se a dar a mão ao marido para finalmente o levantar , porêm não foi necessario , porque dois dos convidados que até ali se haviam conservado risonhos espectadores , vendo que Mendonça começava a estar afflicto , correram immediatamente a elle e ajudaram-no a levantar .  O gordo trasmontano foi pois erguido do chão .  O rosto d' elle passára de córado a rôxo purpurino ;  os olhos parecia terem-lhe crescido nas orbitas ;  e os oculos , que lhe haviam caído para o nariz , estavam com o vidro do olho direito de menos .  Tudo isto contribuia para vêr no pobre Mendonça a mais original caricatura que imaginar se póde ;  e ainda mais desafiava a hilaridade nos convidados , o riso que o pobre homem queria patentear , mostrando que não estava molestado .  -- Nada é ... dizia elle em voz alta a sua mulher , rindo , porêm discordemente .  Depois , acariciando a filha , accrescentou :  -- Antão tu , filha , cuidavas que eu estava morto ? ...  Sempre fazias um berreiro que nem um rebanho de cabras !  Ah !  ah !  ah !  Ao ouvirem a ultima phrase de Mendonça , e a sua estridente e discorde risada , todos os convidados lhe responderam , em côro de gargalhadas , com tal força , que aturdiram e fizeram entrar em si o pobre ricasso gordo , o qual , dando por pretexto ter de se erguer muito cedo , despediu-se assalvajadamente de todos e arrastou a familia para fóra do palacio do Visconde , do mesmo modo que entrára .  A mulher do Conselheiro , vendo sair a familia Mendonça , não poude deixar de fazer a seguinte observação :  -- Não sei onde a minha amiga Viscondessa foi desencantar uma familia selvagem a tal ponto , que é indignissima de estar em contacto com pessoas civilisadas e que tenham relogios de preço .  -- Pois se aquelle papalvo , responde a Viscondessa rindo , anda atraz do Visconde para que elle influa no Paço afim de lhe obter o titulo de barão ! ...  E caminharam para a sala do baile .  O Conselheiro , dando o braço a sua esposa , amparava , com a mão do outro braço livre , a barriga , como se estivesse accommettido de dôres de colica .  Os " intimos " reunidos  ( Conclusão do baile )  Depois da tumultuosa saída da familia Mendonça , de socegarem os animos , e findarem commentarios e gargalhadas ridicularisando o provinciano , continuou o baile nas salas do Visconde .  A Viscondessa , que continuára dançando com o filho da Condessa de , já dera molivo a conversações em voz baixa , quasi todas suscitadas pela joven pallida , filha do Commendador F .  -- É par effectivo da Viscondessa , não tem reparado , meu pae ? ...  dizia a donzella trigueira ao Commendador F . Teem dançado toda a noite um com o outro !  -- Então que queres ?  respondeu-lhe o pae , rapazeadas .  -- Mas não é assim , replicou a filha ;  os pares effectivos são pessimos n ' um baile onde ha poucos cavalheiros , e o que resulta d' ahi é que , quem não tem par effectivo ... por exemplo , eu , que ainda não dancei senão contradanças com o papá e gosto tanto de polkar ! ...  -- Então que queres , minha filha ?  Eu já não estou para rapazeadas .  -- Eu tambem não digo o contrario ;  muito tem o papá feito ;  agora o que desejava era que alguem me viesse tirar para uma polka ao menos ... Se o papá me fizesse um favor ... continuou ella ameigando a voz com velhacaria estudada para conseguir o que pretendia do trigueiro Commendador .  -- Então que é ? ...  Dize , minha filha .  -- Se o papá fosse pedir ao filho da Condessa de , porêm em seu nome , se dançava comigo qualquer coisa que não seja contradança ... era o papá bem bonito .  -- Oh !  minha filha , isso era bom se fosse no tempo das minhas rapazeadas .  -- O papá tambem , replicou a joven em tom acre , contrastando inteiramente com a meiguice ha pouco fingida , em se lhe pedindo alguma coisa que não queira fazer , vem logo com as suas rapazeadas !  -- Então que queres , minlia filha ? ...  Bem vês que é verdade estar eu já lia muito fóra das minhas rapazeadas ...  A filha , zangada , levantou-se bruscamente e foi conversar , para longe do Commendador , com as suas amigas dançantes em disponibilidade .  -- Então Vossa Excellencia jura amar-me ?  perguntava em voz baixa á Viscondessa , o filho da Condessa de .  -- O senhor é incredulo , sem contradicção , respondeu a Viscondessa rindo .  Quantas vezes quer que lhe repita mais o que já lhe confessei ?  -- E quando tenciona dar-me uma prova d' esse amor ?  perguntou o mancebo , extasiado com o que acabava de ratificar-lhe a Viscondessa .  Porêm n ' este momento , passando perto d' elles o Visconde , o qual dava o braço á linda hespanholinha , o mancebo disse com voz receiosa á Viscondessa :  -- Seu marido parece vigiar-nos ;  eu retiro-me de ao pé de Vossa Excellencia , sim ?  -- Não seja crcança , respondeu a fidalga com todo o sangue frio ;  não vê que meu marido anda distrahido ? !  Podemos conversar afoitamente , que elle não dará por tal .  O peior , continuou ella , reparado para o grupo onde estava a filha do Commendador F , é a negrinha estar a observar-nos .  E levantando-se , pediu ao mancebo que lhe désse+esse o braço , e caminhando desaffrontadamente pela sala , conduziu o joven para outra , dizendo-lhe pelo caminho :  -- Agora vamos ficar ao abrigo da critica .  N ' este momento a orchestra começou uma mazurka .  A joven hespanhola , que estava compromettida com um cavalheiro , largou o braço do Visconde e tomou o do novo par .  O Barão de , que ficára livre n ' esta mazurka , e que havia tempo procurava fallar a sós com o Visconde , assim que viu este desembaraçado do lindo par , correu a elle immediatamente e perguntou-lhe com aquella voz sumida que os tratantes só sabem empregar nos seus contratos particulares :  -- Então , ha boas noticias ?  -- Magnificas , homem !  respondeu o Visconde radiante ;  a pequena gosta de ti ... e então é fazeres-lhe fogo activissimo se quizeres tomar a praça com brevidade .  -- Oh !  que fortuna !  exclamou no mesmo tom de voz o Barão .  N ' esse dia pago um jantar no Matta a todos os nossos amigos .  -- E eu ... atalhou o Visconde hesitando .  -- E tu has de ter a tua recompensa fóra parte , por seres tão bom procurador n ' este negocio .  -- Bom , isso é no futuro , continuou o Visconde ;  porêm agora pensemos no presente , em que estou tão falto de dinheiro .  Dize-me cá , quem será hoje o pato , como dizem os jogadores da plebe , que nos hade cair nas unhas para a jogatina ?  o alarve do Mendonça succedeu-lhe aquella catastrophe ... o Conselheiro , esse é seguro como todos os demonios ...  -- Ah !  exclamou o Barão , como quem teve uma subita idéa ;  convidâmos o pateta do Commendador F para a nossa partida depois do baile .  -- Boa lembrança !  accrescentou o Visconde ;  elle é rico , gosta do jogo ... e então cáe .  -- Tu dizes que não tens dinheiro ?  perguntou-lhe o Barão , mettendo uma das mãos na algibeira da calça e fazendo tinir bastantes peças metalicas .  -- E assim é , respondeu o Visconde .  -- Então aqui tens para para r , e não te esqueça o que sabes ;  assim que lhe ganhares , guarda logo o d' elle e continúa a casar d' este .  E entregou-lhe dez lindas libras com o cunho da rainha||_Victoria Victoria|_Victoria , as quaes tinham todo o brilho do ouro cunhado que tem tido pouca circulação .  -- Bem , percebo , tornou-lhe o Visconde , lançando-lhe um olhar significativo .  Eram já tres horas da madrugada .  As salas do Visconde de , começavam a estar desguarnecidas de convidados , porque a orchestra tocára a ultima quadrilha e já se havia distribuido o chocolate .  Pouco a pouco foram pois os convidados desapparecendo , e só ficaram na sala principal os donos da casa , o Conselheiro M e a mulher , o Barão de , o Commendador F e a filha .  Este septimino passou , portanto , para a sala de refeição , onde já estava na meza uma lauta ceia volante de comidas frias , vinhos generosos , fructas , etc.  As sete dentaduras começaram pois a trabalhar para fortalecerem os estomagos , e depois de haverem esgotado não poucas garrafas de bachico licôr de diversas qualidades , o Barão de , vendo que o Commendador F já estava fóra do seu estado normal , propoz uma partida de ronda .  O Commendador , ouvindo isto , bradou enthusiasmado , por ser um acerrimo amador de jogo :  -- Bravo , viva a rapaziada !  Passaram pois todos para um gabinete onde havia uma meza propria para este fim , e logo na primeira parada , na qual foi banqueiro o Visconde , perdeu o inepto Commendador cinco libras que apostára sobre o az de copas .  O Visconde recolheu o dinheiro , e depois de ter extrahido d' entre as dez libras da parada , as cinco que haviam pertencido ao Commendador F , como arrependendo-se de não affrontar a parada , exclamou , depois de substituir as libras que subtraira por outras cinco das suas :  -- Nada , vou as dez libras !  E assim continuou a limpar as algibeiras do tolo Commendador .  O Conselheiro M * , que não fizera senão apalpar a barriga toda a noite , depois da cabeçada que lhe dera Mendonça , e que bebêra á ceia por quatro , conservava-se de parte , sendo espectador , dizendo alguns alegres dichotes , coisa que surprehendeu os demais convidados , e deu motivo a ser asperamente reprehendido por sua mulher .  Porêm o Conselheiro tinha a cabeça em tal estado que nada attendia , e dirigindo-se ao Visconde com um risinho avinhado e com os olhos amortecidos , disse-lhe , dando á cabeça :  -- Eu não me admiro que o Visconde ganhe , porque é um portento para todas as emprezas .  Nunca me poderá esquecer como elle fez com que o piegas de meu sobrinho jazesse seis mezes no Limoeiro ...  Não poude acabar , porque a mulher , tapando-lhe a boca com um lenço , disse-lhe desabridamente :  -- Ninguem dirá que é um conselheiro !  Forte estupido !  Vamo-nos embora , continuou ella atando-lhe o lenço á cabeça ;  não tire o lenço da boca para não se constipar , porque faz muito frio lá fóra .  E arrastou o marido para fóra do gabinete quasi sem se despedir de ninguem .  -- O Commendador , diz o Visconde ao pato depennado , talvez se admire do que ouviu ao Conselheiro M a meu respeito .  -- Ora qual !  respondeu o Commendador levantando-se e arranjando-se para sair .  Rapazeadas , meu caro !  rapazeadas ... Todos nós fizemos o que podémos .  E despediu-se da companhia , chamando sua filha , que adormecêra com o pezo do alcohol que lhe subira á cabeça .  SEGUNDA PARTE  A JUSTIÇA D' ESTE MUNDO .  As prizões em Portugal  Os leitores hão de estar lembrados de que deixámos no prologo d' esta obra o infeliz José Pereira desmaiado nos braços de D. Julia , e entre as garras da policia .  Quando tornou a si , o desgraçado mancebo viu-se n ' uma sege que rodava apressadamente , apezar da magreza dos dois quadrupedes que a arrastavam , tendo por companheiros dois individuos da policia , os mesmos que o haviam prendido , os quaes pareciam ter-se encarnado no corpo do pobre orphão .  O mancebo , abrindo os olhos , pareceu coordenar as idéas e recapitular na memoria alguma coisa já passada , emquanto um dos dois esbirros dizia ao outro companheiro :  -- Antão o que te dezia eu , vês ?  Já o melro acordou .  Como se vai aproximando á gaiola é como todos os outros passaros :  quer naturalmente vêr se póde bater as azas e fugir .  Pois está enganado , porque se a tal se atrever , eu cá por mim venho disposto a tudo ;  e tu ó Manél ?  -- Que estás tu para ahi a bramar , homem ?  Bem se vê que o rapaz teve um desmaio de susto .  Se te parece que era para menos , com os modos com que eu o prendi !  Espera que eu parece-me que elle quer fallar , continuou o beleguim reparado que José Pereira abrira totalmente os olhos e olhava para os dois companheiros de viagem com um ar como de quem acorda d' um profundo somno .  Com effeito , José Pereira , tornando totalmente a si , pareceu-lhe primeiro que o presente era o passado , isto é , que caminhava para o templo a receber por esposa D. Julia ;  porêm , puchando pela idéa e encarando os dois beleguins , teve uma vaga recordação de ter ouvido vozes de prisão contra si :  portanto , dirigindo-se aos dois agentes de policia , perguntou-lhes com anciedade e receio :