OS MISERAVEIS DE+A ARISTOCRACIA ROMANCE SOCIAL CONTEMPORANEO POR A. Varela G. & G. VOLUME I LISBOA Escriptorio da Sociedade Editora 38 , rua dos Gallegos , 38 1864 JOSГ‰ PEREIRA , O DEMOCRATA Em 1850 , vivia em Lisboa um mancebo de dezoito annos , chamado JosГ© Pereira , em companhia de seus paes , pobres anciГЈos desprotegidos da fortuna . O pae , que n ' esta epocha contava sessenta annos , havia assistido aos combates do Bussaco , Vimeiro e RoussilhГЈo , como simples soldado voluntario , movido unicamente pelo amor da liberdade patria , e odio ao jugo oppressor do grande contra o pequeno . A recompensa dada a este heroe , defensor da sua patria , por todos os governos , desde 1820 atГ© 1850 , foi a que teem tido muitos heroes , quer com a espada ou com a penna , o menospreГ§o e a desprotecção . O pae de JosГ© Pereira requereu uma vez um mesquinho emprego ; zombaram cynicamentc com elle e disseram-lhe que fosse oppositor a um concurso . Elle assim o fez , porГЄm ficou preterido , como muitos outros o teemsido injustamente , por jГЎ estar dado o logar quando seprocedeu ao concurso . Desilludido e amargurado , por sevГЄr sem posição social , porque os serviГ§os ГЎ patria lhe haviam obstado a que completasse a arte de relojoeiro , que começára a aprender , o pobre homem , sem soltar uma queixa contra os seus tyrannos , nГЈo pediu mais nada ao governo , e comeГ§ou a trabalhar incessantemente , leccionando inslrucção primaria , para alimentar sua esposa e seu filho . JosГ© Pereira nasceu pois do seio da pobreza , e assim viveu atГ© ГЎ idade de dezoito annos , sendo educado e instruido por seu pae , o qual nГЈo quiz mandal- o aprender um officio por se persuadir , pela viveza e intelligenciaque o filho demonstrava , que poderia sobresahir no futuro ГЎ sorte do pobre operario , que sempre vive apoquentado e mesquinhamente . O mancebo , dotado de bondoso caracter , sempre foi grato aos paes , e na epocha que descrevemos , jГЎ elle os ajudava com o pequeno producto de copias de comedias que tirava para os theatros . PorГЄm uma grande desgraГ§a e desgosto o feriram repentinamente : seu pae morreu , e um mez depois falleceu tambem sua mГЈe . O pobre orphГЈo , oppresso de magoa e desgraГ§a , viu-se obrigado a pedir protecção a um tio materno , o Conselheiro M , o qual , pela sua posição aristocratica , nunca quizera relacionar-se com os paes de JosГ© Pereira . Dirigiu pois a seguinte carta ao tio : " Meu tio : " Muito estimo que Vossa Excellencia goze do perfeita saude e venturas , assim como quanto lhe diz respeito . " Com a morte de meus queridos e infelizes paes fiquei duplicadamente desgraГ§ado ; privado da sua amizade e protecção . Vossa Excellencia bem sabe que viviamos em commum , e que nos ajudavamos mutuamente ; meu pae com os seus pequenos proventos das lições , minha mГЈe com o producto da sua costura , e eu ... com o meu incerto ganho de copista . JГЎ vГЄ Vossa Excellencia que de ora ГЎvante me serГЎ impossivel subsistir e conservar decencia no vestuario , tencionando seguir vida hon ' esta , e nГЈo tendo alguem que me ampare e proteja : peГ§o , portanto , a Vossa Excellencia , se me recolhe por caridade a um canto da sua casa , no seio da sua nobre familia , por algum tempo , emquanto eu procuro algum meio pelo qual possa viver . PeГ§o me recommende a minha tia . " Sou com toda a consideração , seu sobrinho , servo e muito obrigado antecipadamente : JOSГ‰ PEREIRA S.||_C. C.|_C. Rua da CondeГ§a , nВє 20 , 3Вє andar ; 12 de dezembro de 1850 . Esta carta enviou elle a seu tio , nГЈo se atrevendo a procural- o pessoalmente no seu palacio , por vergonha e receio de nГЈo ser bem accolhido . No dia seguinte ГЎquelle em que mandou a carta , recebeu , pelo correio , a seguinte de seu tio : " Meu sobrinho : " Sinto os seus incommodos . Consultando a opiniГЈo de sua tia a respeito do que vocГЄ me pede , nГЈo duvido admittil- o em minha casa ; porГЄm sob a condição , por conveniencias sociaes , de que serГЎ considerado como um hospede meu , e nГЈo parente . Comprehende ? NГЈo me chame seu tio . PГіde vir quando lhe aprouver , que muito prazer darГЎ ao seu tio e amigo " Luiz M " JosГ© Pereira sentiu-se vexado , e revoltou-se com a recommendação de seu tio , fazendo tenção , quando acabou de ler a carta , de nГЈo aceitar o que pedira ; porГЄm , reflectindo depois , preferiu o abrigo d' um parente que sabia a sua triste posição , embora se envergonhasse em chamar-lhe sobrinho , a ir pedir a algum amigo seu , o que havia implorado a seu tio , dando-lhe d' este modo a conhecer o que ignorava . Decidiu , portanto , aproveitar-se da amarga caridade do Conselheiro M , entrando em sua casa a 15 de dezembro de 1850 . O Conselheiro M habitava uma bella casa na rua do Alecrim , tinha quarenta annos , era casado com a filha do BarГЈo de , senhora de trinta e dois annos , e que possuia uma fortuna de quarenta contos . Era muito economico ; o pessoal de sua casa compunha-se simplesmente de duas criadas e um criado . NГЈo tinha carruagem e raras vezes ia ao theatro . Dava partidas em casa , porque tanto elle como a mulher gostavam muito do jogo , e de nenhum qualquer outro divertimento . Alem das pessoas que citГЎmos , tinha em sua companhia uma joven de dezeseis annos , orphГЈ , filha d' um negociante portuguez , a qual possuia uma forluna de oitenta contos , e era sua pupilla . JosГ© Pereira entrou pois em casa de seu tio , sendo ali recebido friamente , ainda que com uma bonhomia apparente e um aperto de mГЈo do Conselheiro , o qual , analysando-o dos pГ©s ГЎ cabeГ§a , e vendo que ia decentemente vestido , lhe disse com um sorriso protector , levantando a voz para ser ouvido de dois amigos , o Visconde de e o BarГЈo de * , que se achavam n ' essa occasiГЈo em casa do Conselheiro : -- JГЎ hontem o esperavamos , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira ; o seu quarto estГЎ prompto , pГіde transportar para lГЎ o seu bahu . E indicou ao moГ§o de fretes , que levava o bahu de JosГ© Pereira , uma porta que dava para o interior da casa , dizendo a este , que estava immovel : -- VГЎ com o moГ§o ; nГЈo faГ§a ceremonia , nem se constranja . Depois de JosГ© Pereira sair da sala , o Conselheiro , dirigindo-se aos dois amigos : -- Г‰ um pobre rapaz , lhes disse , orphГЈo de pae e mГЈe , que recolhi por caridade em minha casa , e ... quero vГЄr se o emprГ©go . -- Vossa Excellencia Г© demasiadamente bondoso , disse o Visconde ; talvez ainda se arrependa por exercer tГЈo bem a caridade . -- Г‰ nobre ? perguntou o BarГЈo . -- Coitado ! respondeu o Conselheiro em tom de lastima ; Г© filho d' um mestre eschola , homem de baixa esphera , que foi n ' outro tempo soldado de linha . -- Oh ! Conselheiro , atalhou o Visconde ; lastimo deveras Vossa Excellencia , agora que sei que o rapaz Г© filho do povo . Presentemente os fidalgos e os nobres nГЈo podem nem devem dispensar obzequios ГЎ classe baixa , porque nos querem dar leis , os mesquinhos , e julgam-se iguaes a nГіs . NГЈo acha , BarГЈo ? -- N ' outro tempo ainda se podia fazer bem aos villГµes , quando estes nos temiam , respondeu o interrogado , porГЄm hoje , que nГЈo podemos castigar a sua insolencia , devemos , pelo menos , tirar a nossa desforra , nГЈo os protegendo , e odiando-os . A conversação continuou n ' este sentido na sala do Conselheiro M atГ© irem todos , visitas e donos da casa , para a meza de jogo . JosГ© Pereira , depois de installado em casa de seu tio , vivia apoquentado por vГЄr que o tempo ia passando , que elle nГЈo podГ©ra ainda arranjar qualquer occupação d' onde tirasse proventos certos , e que seus tios o encarregavam constantemente de commissГµes ; elle de levar officios , e mesmo d' alguns recados , quando o criado estava fГіra , e ella de bilhetes para as suas amigas e convites aos parceiros nos dias de partida , fazendo-lhes o serviГ§o de criado , sem salario . o que lhe minorava porГЄm as magoas , por se vГЄr sГі no mundo , e sem posição , era a voz de D. Julia , a pupilla de seu tio , quando se assentava ao piano e cantava , acompanhando-se . Esta joven era dotada pela natureza , d' um rosto , senГЈo lindo no todo , ao menos muito regular e sympathico . Tinha uma expressГЈo nos olhos , de todas as feições a mais bella , que indicava ao mesmo tempo intelligencia e bondade ; era instruida ; sabia a sua lingua , a historia e a choropraphia do seu paiz , arithmelica , francez , italiano , musica , desenho , e tocava piano com alguma maestria . Alem d' isto , possuia uma voz de soprano , afinada , e de tГЈo agradavel timbre , que arrebatava quem a ouvia . JosГ© Pereira , ouvindo pois a voz da erudita joven , nГЈo foi invulneravel ao seu encanto . Pela primeira vez , pareceu-lhe um sonho , depois uma feliz realidade . A ambição porГЄm , que nГЈo tem limites , comeГ§ou a nГЈo o satisfazer em sГі ouvir cantar a donzella . Desejou vГЄl- a perto de si , por muito tempo , conversar com ella e appreciar-lhe os dotes do espirito ; coisa que elle ainda nГЈo podГ©ra gozar , como gozГЎra o canto , desde que entrГЎra em casa de seu tio . -- NГЈo poder , dizia elle comsigo , relacionar-me com D. Julia , dizer-lhe que o Conselheiro Г© meu tio ! Viver condemnado a ser um humilde servo n ' esta casa , quando , se meu tio quizesse , podia empregar-me , publica ou particularmente , mesmo com um mesquinho salario ! Ao menos nГЈo seria considerado criado de servir , quando tenho alguma instrucção e podia ainda adquirir mais , estudando , se ao menos me deixassem . Oh ! meu Deus ! que martyrio e que infortunio ! Assim decorriam os mezes , e havia perto d' um anno que JosГ© Pereira estava em casa do Conselheiro , sem ainda ter encontrado as suas fallas com D. Julia , porque esta , quando saГa do seu quarto , ia , ou para a sala , local onde elle nГЈo se atrevia a entrar , por acanhamento , para a casa de jantar , onde elle tambem nГЈo entrava , pois que comia na cozinha com os criados , ou para a rua a passeiar com a mulher do Conselheiro , onde , da mesma fГіrma , nГЈo a podia seguir . Elle notГЎra por mais d' uma vez que D. Julia , quando o encontrava de passagem n ' alguma casa , o cortejava com benevolencia , e JosГ© Pereira ainda notou mais : que o examinГЎra um dia rapidamente durante o comprimento , e que desde entГЈo , o que era muito lisonjeiro para JosГ© Pereira , lhe dispensГЎra comprimentos mais affaveis e olhares mais prolongados . Era jГЎ completo um anno desde que JosГ© Pereira fГґra para casa de seu tio , e uma tarde , depois de jantar , que o Conselheiro estava na sala com sua mulher , recebendo uns diplomatas inglezes , servindo-lhe esta de interprete , porque o Conselheiro M nГЈo sabia o inglez , entrou na cozinha D. Julia , e dirigindo-se ГЎ criada , disse-lhe : -- O JoГЈo jГЎ trouxe aquella musica que eu comprei no Sasseti ? -- Ainda nГЈo , menina , respondeu a criada , creio que se esqueceu , mas eu logo , quando elle vier do chafariz , o obrigarei a ir buscar-lh ' a. -- Quem sabe a que horas elle virГЎ , disse D. Julia , e se o armazem jГЎ estarГЎ fechado . Precisava tanto hoje d' aquellas peГ§as para as estudar ... -- O JoГЈo vem cedo , atalhou a criada , nГЈo ha hoje carreira , e entГЈo nГЈo se demora . JosГ© Pereira entrou n ' este momento na cozinha para perguntar ГЎ criada se o Conselheiro a encarregГЎra d' alguma commissГЈo para elle . Seu tio costumava encarregar os criados de lhe transmittirem as incumbencias ou darem-lhe as cartas que devia entregar . Procurava sempre evitar o contacto com o sobrinho . JosГ© Pereira entrou pois , como dissemos , na cozinha , porГЄm ao vГЄr D. Julia , parou confuso e ficou immovel e cabisbaixo , sentindo violentas e variadas commoções que o opprimiram e alegraram ao mesmo tempo . A criada , porГЄm , tirou-o d' este horrivel combate e embaraГ§o . Vendo-o entrar , exclamou alegremente , dirigindo-se a D. Julia e indigitando JosГ© Pereira : -- Ora ahi tem a menina Julia quem lhe vai buscar a tal musica , Г© o senhor||_Pereira Pereira|_Pereira . D. Julia , subindo-lhe o rubor ГЎs faces , depois de comprimentar cortezmente o mancebo , disse em tom aspero ГЎ criada , envergonhada pela grosseria que esta commettГЄra para com JosГ© Pereira : -- PorГЄm este senhor nГЈo Г© meu criado , Г© hospede do senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro , e estou convencida de que seu amo teria grande desgosto se ouvisse a sua insolente proposta . -- Mas , minha senhora , acudiu a serva perturbada , como este senhor faz os recados ao senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro , eu julguei ... -- Os recados ! atalhou D. Julia attonita e cada vez mais vexada , tanto pela phrase da criada , como por vГЄr a horrivel perturbação e pallidez de JosГ© Pereira , as quaes descobriam quanto estava solTrendo . Os recados ! Г© impossivel ! Senhor||_Pereira Pereira|_Pereira , continuou , dirigindo-se ao mancebo , peГ§o-lhe que desculpe aquella rapariga que , de certo , ou perdeu o juizo , ou escolheu um pessimo gracejo . -- Oh ! minha senhora ! ... balbuciou JosГ© Pereira . N ' este momento abriu-se o reposteiro da sala , e o Conselheiro , atravessando um corredor que dava communicação para a cozinha , entrou n ' esta . Ficou , porГЄm , contrariado vendo D. Julia e JosГ© Pereira juntos . Observou por um momento sua pupilla , e depois perguntou-lhe com voz affectuosa , na qual , comtudo , se conhecia a colera reprimida : -- Oue fazia a menina na cozinha ? precisa d' alguma coisa ? -- Vim , respondeu D. Julia , saber se o JoГЈo jГЎ me trouxe a musica que comprГЎmos hontem no Sassetti . -- E entГЈo ? continuou o Conselheiro , jГЎ a trouxe ? -- Disseram-me que nГЈo . -- Oh seu Pereira : vГЎ ao Sassetti , e diga-lhe que lhe entregue a musica que hontem lГЎ comprei ; disse o Conselheiro ao mancebo em tom aspero e de commando . De caminho , continuou elle , vГЎ a casa do senhor Visconde de e traga a minha capa , que hontem me esqueceu lГЎ . E vendo que JosГ© Pereira ficГЎra preplexo e nГЈo se movia : -- EntГЈo , senhor , avia-se ? ! gritou-lhe encolerisado . JosГ© Pereira , ouvindo o grito do Conselheiro , fez um movimento machinal , inclinou a cabeГ§a e saiu . -- A modo que este senhor , a quem dou casa , cama e meza por caridade , disse o Conselheiro dirigindo-se a D. Julia , quer ser absoluto e independente em minha casa , esquecendo que me implorou para eu o receber aqui , com a condição de ser meu criado particular , por se achar morrendo ГЎ fome . A menina ainda nГЈo sabia a sua condição , pois de contrario nГЈo se baixaria a estar em contacto e conversando com nm homem de filiação obscura , que nГЈo tem posição social ... D. Julia , commovida em extremo pelas deploraveis scenas que presenciГЎra , ГЎs quaes se attribuia innocentemente culpada , respondeu a seu tutor com voz sumida pela commoção : -- Eu nГЈo sabia que aquelle sugeito era criado de Vossa Excellencia ... julguei , pelas suas maneiras distinctas e delicadas ... -- Pois Г© um miseravel , atalhou o Conselheiro , a quem expulsarei de minha casa , se tiver outra vez a insolencia de me nГЈo obedecer logo , quando o mandar com pressa a cumprir alguma commissГЈo . Dizendo isto , saiu . D. Julia retirou-se ao seu quarto , e , como era senhora intelligente , depois de meditar no que havia visto e ouvido , tirou por conclusГЈo , que JosГ© Pereira era de certo uma victima de seu tutor , por qualquer extraordinario , e para ella mysterioso , acontecimento . Sentiu-se , por um presentimenlo estranho , impellida para o mancebo por uma singular sympathia e desejo de o proteger contra o Conselheiro . Tencionou , portanto , embora arrostasse a colera de seu tutor , procurar saber , se nГЈo toda , ao menos a parte da historia de JosГ© Pereira , que o obrigГЎra a ser criado do Conselheiro . -- Г‰ impossivel , dizia ella comsigo , que um mancebo , sendo criado , mostre a confusГЈo e vexame , que eu notei no infeliz Pereira quando a criada e o Conselheiro o insultaram na minha presenГ§a . Sim , foram dois insultos : um lanГ§ado pela estupidez , e o outro pela maldade . Alguns dias depois das scenas que descrevemos , uma tarde em que JosГ© Pereira estava no seu quarto , meditando tristemente na sua vida , ouviu baterem-lhe ГЎ porta . Foi abrir , e encontrou a criada grave , que lhe disse em voz baixa e como em mysterio , que D. Julia estava na sala e lhe pedia o obzequio de ali se dirigir , nГЈo o incommodando , porque necessitava fallar-lhe . JosГ© Pereira , admirado com tal noticia , dirigiu-se immediatamente ГЎ sala e ahi encontrou D. Julia , que o esperava assentada n ' um sophГЎ , a qual , ao vГЄl- o entrar e ficar parado respeitosamente longe d' ella depois de a comprimentar , disse-lhe affectuosamente : -- Tem a bondade de se assentar , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira ? E indicou-lhe com o gesto um sophГЎ que estava proximo ao d' ella . JosГ© Pereira , cГіrando e empallidecendo alternativamente , respondeu-lhe perturbado : -- Oh ! minha senhora , pois Vossa Excellencia quer que eu ? ! ... PorГЄm , o senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro pГіde zangar-se comigo e com Vossa Excellencia , e eu nГЈo quizera que por minha causa soffresse qualquer dissabor ... -- Nada receie a esse respeito , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira , disse D. Julia ; o Conselheiro saiu com a esposa , e eu aproveitei esta occasiГЈo para , em primeiro logar , pedir perdГЈo ao senhor , das grosserias e insultos que meu tutor e a criada praticaram para com o senhor||_Pereira Pereira|_Pereira , tudo por minha causa , ainda que involuntariamente ... PorГЄm , assente-se , por quem Г© , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira ... continuou ella com meiguice , vendo que o mancebo ainda se conservava de pГ© . JosГ© Pereira assentou-se quasi machinalmente , movido pelo imperio d' aquella encantadora voz , e ia para fallar quando D. Julia , interrompendo-o graciosamente com o gesto , continuou : -- E em segundo , pedir-lhe , me conte as razГµes que teve para se submetter , com tanta humildade , a ser n ' esta casa o que me constou . NГЈo posso acreditar que o senhor||_Pereira Pereira|_Pereira seja criado do Conselheiro . PeГ§o desculpa , por ser tГЈo ousada que queira penetrar a sua vida ; porГЄm rogo-lhe que seja franco , porque pretendo protegel- o e livral- o de meu feroz tutor ... se o senhor quizer aceitar a minha sincera protecção e amizade ... JosГ© Pereira ficou tГЈo admirado e aturdido pelo que acabava de lhe propГґr D. Julia , que , sem saber o que fazia , lanГ§ando-se de joelhos a seus pГ©s , exclamou amorosa e apaixonadamente : -- Oh ! minha senhora ! serГЎ possivel que Vossa Excellencia queira baixar-se a proteger um homem que nГЈo conhece ? ! ... Oh ! conceda-me que lhe beije as mГЈos ... -- Cuidado , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira ... disse a joven sorrindo-se ; quem o visse n ' essa posição poderia julgar que me faz uma declaração d' amor ... e ... -- E se assim fosse , minha senhora , atalhou JosГ© Pereira , a quem as proposições de D. Julia haviam excitado a ardente paixГЈo amorosa que de ha muito nutria em seu peito ; se assim fosse , Vossa Excellencia me-hia ? ... D. Julia , perturbada por tГЈo inesperada declaração , cГіrou em extremo e , fazendo um exforГ§o por se mostrar severa , disse ao mancebo : -- PeГ§o-lhe que se levante , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira , porque essa posição pГіde comprometter-nos , e eu nГЈo quizera ... Depois , vendo que o mancebo executГЎra o seu pedido , e que a contemplava em delicioso extasis , continuou , baixando os olhos e adoГ§ando a voz : -- Como o senhor disse ha pouco , eu ainda nГЈo o conheГ§o ... -- E depois de contar a minha triste vida a Vossa Excellencia , aceitarГЎ o meu amor ? perguntou JosГ© Pereira arquejante . -- Talvez , continuou a joven depois d' uma leve hesitação . JosГ© Pereira , ouvindo o bemaventurado " talvez , " que , pelo tom de D. Julia , se traduzia por um " sim , " esqueceu o incognito que promettГЄra a seu tio ( e quem , no caso do mancebo , faria o contrario ? ) , contando ГЎ joven a historia da sua vida . D. Julia , depois de o ouvir , indignada pelo procedimento de seu tutor , disse ao mancebo : -- Senhor||_Pereira Pereira|_Pereira , acredito que foi verdadeiro no que acaba de me contar , e portanto vou ser franca . Saiba que atГ© agora sympathisava com o senhor ; porГЄm , desde este momento , amo-o e quero fazer a sua fortuna , esposando-o , porque sou rica . -- Oh ! minha senhora , redarguiu JosГ© Pereira transportado , o que eu aprecio Г© o seu amor ! -- Acredito , respondeu D. Julia ; porГЄm , deve tambem apreciar a minha fortuna , porque sem ella nГЈo poderiamos encetar a lucta em que vamos empenhar-nos . OiГ§a-me com attenção , continuou ella vendo que JosГ© Pereira se lhe apoderГЎra d' uma das mГЈos e a estreitava amorosamente entre as suas sem parecer ouvil-a ; oiГ§a-me com attenção , para nos vГЄrmos livres brevemente do jugo de meu tutor . O senhor nГЈo pГіde ficar n ' esta casa , depois dos insultos que tem recebido ... -- Diz muito bem ! gritou o Conselheiro entrando na sala , e que ouvira as ultimas palavras da joven ; a menina Г© quem lhe dictou a sentenГ§a . E , dirigindo-se a JosГ© Pereira , furioso , vociferou , indigitando-lhe a porta : -- Saia no mesmo instante de minha casa , infame seductor ! Eram jГЎ passados oito dias desde que JosГ© Pereira fГґra expulso de casa de seu tio ; e D. Julia , a quem a subita apparição do Conselheiro , a scena que presenciГЎra entre este e o mancebo , e o aspero modo com que seu tutor a tratou , lhe fizeram perder os sentidos , ainda nГЈo a abandonГЎra a febre ou o delirio , durante o qual , em orações desordenadas , chamava por JosГ© Pereira e por seu pae , pedindo-lhes soccorro contra seu tutor . O medico que lhe assistia , lembrou ao Conselheiro que mandasse chamar o mancebo por quem a enferma clamava , accrescentando que nГЈo achava outro qualquer remedio para um delirio febril tГЈo extenso e arreigado , e muito receiava que a joven fosse victima da febre , nГЈo a satisfazendo no que ella pedia delirante , n ' algum momento em que o delirio a deixasse . O Conselheiro ficou estupefacto e desesperado quando o medico lhe communicou similhante coisa . Elle nГЈo queria de modo algum aproximar da joven um mancebo que podia transtornar-lhe os seus planos ; porque o Conselheiro pretendia nГЈo entregar D. Julia por esposa senГЈo ao Visconde , o qual lhe promettГЄra , ultimando-se o consorcio , dar-lhe metade da fortuna da joven . ГЃ vista , porГЄm , do que o medico avançára , e receiando que a pupilla fallecesse , rcsolveu-se a mandar chamar o sobrinho . Indagou , pois , onde este parava e , sabendo que estava n ' uma imprensa , como aprendiz de compositor , mandou-lhe uma carta , pedindo-lhe desculpa do modo por que o tratГЎra e ao mesmo tempo que viesse a sua casa , pois era para seu interesse . JosГ© Pereira recebeu a carta do tio ; porГЄm o mancebo considerava-se tГЈo aviltado e insultado pelo Conselheiro que , apezar de lhe constar que era para seu interesse , fez tenção de nГЈo voltar a casa de seu tio , mandando-lhe dizer com franqueza , por escripto , o motivo da sua recusa . O mancebo havia recebido tГЈo graves insultos de seu tio , do irmГЈo de sua mГЈe , do homem que o devia proteger e amar como pae , que quasi odiava os fidalgos . -- Oh ! os grandes ! os nobres ! ... dizia elle muitas vezes comsigo ; como sГЈo soberbos e mГЎus ! ... Que mal fiz eu a meu tio ... eu que sempre o tratei com amor e respeito , e sempre procurei comportar-me dignamente em sua casa ? ... Г‰ verdade que aquelle desgraГ§ado encontro , quando D. Julia me pediu a entrevista , fez desesperar o Conselheiro , obrigando-o a insultar-me ; porГЄm , antes d' isso como me tratava elle em sua casa , tanto moral como physicamente ? ... Oh ! nem o quero pensar ! PorГЄm Julia , a quem eu amava fervorosamente e de quem era amado , que Г© feito d' ella ? nunca mais a verei ! ... E o desgraГ§ado mancebo , quando chegava a este ponto das suas tristes recordações , se estava deitado , levantava-se e passava o resto da noite velando , sem poder conciliar o sonmo , se estava comendo , parava repentinamente e nГЈo podia engulir mais nada n ' esse dia , e se estava na imprensa , ficava mudo e abstracto a ponto de ser admoestado pelo proto da officina por nГЈo prestar attenção aos trabalhos que devia aprender , e classificado em voz baixa de palerma , pelos companheiros . JosГ© Pereira poucos progressos fazia , pois , na arte a que se dedicГЎra , jГЎ pela aspereza de quem o ensinava , jГЎ pelas suas preoccupações d' espirito . O pobre mancebo , cada vez mais desgostoso da vida , por vГЄr como era acolhido pelos seus e pelos alheios , via-se reduzido ГЎ ultima extremidade ; sem presente nem futuro certo que lhe promettesse viver com a decencia em que fГґra educado . Nem sequer ganhava para se subsistir , porque , durante o tempo que esteve em casa de seu tio , perdГЄra o pouco lucro das copias de comedias , pois estava substituido jГЎ por outro copista . Apezar porГЄm de , no dia em que recebeu a carta de seu tio , nГЈo ter ainda comido , por se lhe haver acabado o producto d' uns objectos seus , que vendГЄra para pagar um mez de renda d' uma agua-furtada onde estava habitando , e alimentar-se durante os oito dias desde que saГra de casa do Conselheiro , apezar d' isto o mancebo , como acima dissemos , respondeu a seu tio que nГЈo podia aceitar o convite . O Conselheiro recebeu a carta do sobrinho e , depois de a ler , dirigindo-se a sua mulher e mostrando-lhe o escripto , disse-lhe : -- Que lhe parece o orgulho e insolencia de meu sobrinho , e que remedio havemos de dar a isto ? -- Quem tem a culpa d' isso , respondeu ella , Г© o senhor , que o recebeu em casa e foi o motor da paixГЈo que a pequena sente pelo vadio de seu sobrinho . O senhor nГЈo pensa o que faz ... Que lhe disse eu quando consultou a minha opiniГЈo a esse respeito ? ... Quer que lh'o recorde ? -- NГЈo precisa , atalhou o Conselheiro com mГЎu modo ; agora de que se trata Г© de como havemos cumprir o que o medico ordenou a respeito da doenГ§a de minha pupilla . o que havemos de fazer para obrigar o miseravel de meu sobrinho a vir aqui ? NГЈo se lembra d' algum meio ? ... -- Pois o senhor , que Г© conselheiro ... nГЈo sabe ? ... tornou-lhe ella rindo . NГЈo tem uma idГ©a qualquer para uma coisa tГЈo simples ? ... -- Eu entendo que este caso Г© muito serio , continuou o Conselheiro , e que Г© occasiГЈo impropria para rir como a senhora estГЎ fazendo ... Conhece perfeitamente que , se a pequena morrer ... Г© uma duplicada ruina para nГіs ... o meu descredito depois da liquidação da sua fortuna e a fallencia do seu casamento com o meu amigo Visconde ... que nГЈo ultimarГЎ comigo o negocio que sabe . Estas ultimas palavras foram ditas quasi em voz baixa , e depois de se certificar que estava a sГіs com a esposa . -- Descance , tornou-lhe esta ; em primeiro logar a pequena nГЈo morre , como diz o medico , se nГЈo tornar a vГЄr seu sobrinho . NГіs , as mulheres , assim como facilmente nos apaixonГўmos , com a mesma facilidade nos esquecemos do motivo da nossa paixГЈo . O medico engana-se , porque , sem duvida , nГЈo estudou o coração feminino ... Г© pouco physiologista o tal medico ! -- PorГЄm a febre e o delirio nГЈo a deixam ... replicou o Conselheiro , e ha perigo ... -- Em segundo logar , continuou a mulher do Conselheiro , se a pequena for uma excepção , o que duvido , e se continuar a soffrer esses assustadores symptomas , ha um meio muito simples de fazer comparecer aqui seu sobrinho ... -- Qual Г© ? atalhou o Conselheiro , o qual opinava acirradamente pelo segundo caso . -- Г‰ mandar dizer-lhe a verdade , respondeu desdenhosamente a mulher do Conselheiro . EntГЈo julga que um miseravel pobretГЈo , constando-lhe que uma menina rica o quer a seu lado , durante uma doenГ§a , ainda mesmo que elle a nГЈo ame e tenha sido muito insultado pelo dono da casa onde estГЎ essa menina , nГЈo correrГЎ aqui immediatamente , pondo de parte e esquecendo todos os insultos recebidos ? ... O senhor escreveu-lhe um bilhete methaphorico , sem me consultar , dizendo-lhe que se tratava do interesse d' elle ... elle nГЈo percebeu e por isso recusou . Participe-lhe a verdade e creia que hade vir . O Conselheiro deve distinguir d' ora ГЎvante os negocios em que pГіde mentir , d' aquelles em que sГі deve fallar verdade ... Г‰ certo que nГіs estamos tГЈo costumados a mentir ... O Conselheiro , contentissimo , jГЎ nГЈo a ouvira , e correndo ao seu gabinete escreveu outra carta ao sobrinho , na qual lhe contava o que se estava passando em sua casa , e isto com a mais carregada verdade . Quando terminou nГЈo poude deixar de exclamar : -- Minha mulher sempre tem uma cabeГ§a ... que completamente offusca a minha ! Depois d' esta enthusiastica exclamação mandou a segunda carta ao sobrinho , recommendando ao criado que lh'a entregasse com a maior brevidade . A segunda carta do Conselheiro foi pois entregue a JosГ© Pereira , no mesmo dia , causando grande admiração na officina uma correspondencia tГЈo activa e repetida . Um typographo critico e commentador , chegou a fazer esta observação aos dois companheiros da direita e esquerda : -- O granjola do caloiro Г© de certo algum redactor encoberto ou empregado na policia secreta ! -- SГЈo talvez cartas d' amores , respondeu um dos outros typographos . -- Se o meu olho me nГЈo mente , accrescentou o terceiro rindo , o rapaz estГЎ relacionado com diversos fidalgos , e as cartas sГЈo convites para jantares , para soirГ©es ... Deixem estar que brevemente , por intervenção d' elle , seremos nГіs convidados para casa d' alguns fidalgos de moralidade duvidosa ... -- SГі se for isso , atalharam os dois rindo . JosГ© Pereira , depois de ler a segunda carta , dirigiu-se apressadamente , ainda que contrafeito , a casa de seu tio , por lhe constar que se tratava da existencia da mulher que elle amava . Quando o criado veio abrir a porta e conheceu JosГ© Pereira , foi apressadamente participar ao Conselheiro quem era . Este ordenou-lhe que conduzisse o mancebo para a sala . JosГ© Pereira tornou pois a transpГґr os umbraes da habitação de seu tio e foi introduzido na sala , local para elle de bem tristes e alegres recordações . O criado , depois de o comprimentar e de lhe dar os parabens , perguntou-lhe : -- EntГЈo vem outra vez para cГЎ ficar , senhor||_Pereira Pereira|_Pereira ? -- NГЈo sei , respondeu o mancebo . O criado , nГЈo satisfeito com a resposta , tinha vontade de continuar o interrogatorio ; porГЄm , sentindo que se aproximava o Conselheiro , saiu da sala , dizendo a JosГ© Pereira em voz baixa : -- Ahi vem o patrГЈo . O Conselheiro entrou , e depois de receber os comprimentos do sobrinho e de lh'os retribuir com requintada polidez , pediu-lhe desculpa do modo por que o tratГЎra quando o surprehendcu com D. Julia , e terminou dizendo-lhe com voz magistral : -- Bem sabe que eu , como tutor , devo e tenho rigorosa necessidade de vigiar e zelar de minha pupilla tanto os bens como a honra , o que todo o homem probo e honrado deve fazer . Depois d' esta tirada moralisadora , o Conselheiro pediu ao sobrinho que o acompanhasse , a vГЄr se poderia ser apresentado ГЎ sua pupilla . E encaminhou-o para o quarto da enferma . D. Julia , quando elle chegou , estava livre do delirio , porГЄm ardendo em febre . JosГ© Pereira foi-lhe apresentado . Quando os dois jovens se avistaram , por um movimento unisono e espontaneo quizeram lanГ§ar-se nos braГ§os um do outro ; porГЄm , vendo que nГЈo estavam sГіs , contiveram-se , e D. Julia , com voz debil e febril , disse a seu tutor : -- Oh ! ainda bem que m ' o trouxeram , senГЈo eu morria ! O Conselheiro pediu a JosГ© Pereira que se demorasse alguns dias em sua casa , visto ser o verdadeiro medico da enferma , a vГЄr se D. Julia se restabelecia . JosГ© Pereira annuiu a este pedido , e no fim dalguns dias , D. Julia , achando-se consideravelmente melhor , mandou chamar ao seu quarto o Conselheiro e , quando este chegou , disse-lhe : -- Senhor : eu amo JosГ© Pereira , e como sem o consentimento de Vossa Excellencia , pela minha menoridade , nГЈo posso esposal- o , rogo-lhe me conceda que eu seja esposa do homem a quem amo . O Conselheiro , aturdido por tГЈo inesperada declaração , ficou um momento em silencio , depois do que respondeu ГЎ sua pupilla , n ' um tom affavel , porГЄm desmentido pelo tremor da colera concentrada : -- Mas , minha senhora , bem sabe que a destino para esposa do meu amigo Visconde , e que Г© impossivel ... -- PorГЄm , senhor , interrompeu D. Julia , eu nГЈo amo o Visconde , e acredito que elle serГЎ bastante cavalheiro e generoso para renunciar ГЎ minha mГЈo , se eu lhe declarar que amo outro homem . PeГ§o , portanto , a Vossa Excellencia , que o mande chamar para lhe participar os meus sentimentos , a seu respeito , e para salvar a responsabilidade que meu tutor possa ter para com elle . -- SerГЈo cumpridas as suas ordens , minha senhora ; balbuciou o Conselheiro . Em seguida , fazendo-lhe um leve comprimento , saiu do quarto da convalescente . O Visconde foi pois chamado , e depois d' uma secreta conferencia entre o Conselheiro e elle , dirigiram-se , acompanhados de JosГ© Pereira , ГЎ sala , onde os esperava D. Julia , que estava quasi restabelecida . Depois dos comprimentos usuaes , D. Julia expoz- lhe o que communicГЎra a seu tutor , ao que o Visconde , sorrindo , respondeu : -- Oh ! minha senhora , longe de mim estГЎ a idГ©a de querer contrarial-a ! Vossa Excellencia ama este mancebo ( e indigitou JosГ© Pereira ) , Г© amada por elle e julga-o digno de ser seu esposo ? ... Eu tambem sou da mesma opiniГЈo , visto que isso lhe dГЎ ventura . Houve o projecto , Г© verdade , o deploravel projecto , entre mim e o Conselheiro , de que Vossa Excellencia seria minha esposa ... porГЄm , isto nГЈo foi mais do que um castello no ar , porque ... quem pГіde dizer ao coração d' uma dama que ame um homem , se o orgГЈo das sensações o nГЈo pГіde amar ? ... NГЈo fallemos mais n ' isto . Acredite que muito prazer terei em a vГЄr unida a quem deseja , e , para prova , se nГЈo recusa , offereГ§o-me desde jГЎ para um dos padrinhos dos ditosos noivos . JosГ© Pereira , ouvindo isto , julgava-se victima de uma visГЈo , e esteve quasi abraГ§ando o Visconde por vГЄl- o praticar uma acção tГЈo nobre e generosa , e que tГЈo venturoso o fazia . Foram pois determinadas , para d' ali a um mez , as nupcias dos dois jovens . Um mez depois dos acontecimentos que acabГўmos de narrar , pelas dez horas da manhГЈ , grande numero de seges e carruagens , e uma multidГЈo de pobres estavam parados na rua do Alecrim , ГЎ porta do Conselheiro M Todos diziam : " Г‰ um casamento . " Entre a chusma dos pobres , distinguiam-se dois , um do sexo masculino , outro do feminino , que praticavam acaloradamente um com o outro . O homem tinha mais de setenta annos , a mulher os seus sessenta . -- NГЈo Г© assim , senhor||_Eloio Eloio|_Eloio ! gritava a sexagenaria ao ouvido do velho , porque este era surdo , a filha do senhor||_BarГЈo BarГЈo|_BarГЈo de , casada hoje com o senhor||_Conselheiro_M Conselheiro|_Conselheiro_M M|_Conselheiro_M , nunca fugiu de casa do pae com amante nenhum , isso foi a mГЈe , a mГЈe da sobredita cuja . -- Г“ sГґra , respondeu o mendigo , pois vocГЄ diz-me isso a mim ! que estou Гі fato de tudo o que se passou em casa do senhor BarГЈo de em certo tempo ? ! ... Olhe que quem me deixou tudo isto escrevido foi meu pae , que era criado confidente do senhor BarГЈo , e torno-lhe a dezer que quem fugiu foi a filha ; por signal que intГ© se safou com um fato de meu pae , e que o defunto , que Deus tenha em gloria , nunca poude engulir da guela p ' ra baixo , por ser o melhor fato que tinha . Mas , como lhe ia dezendo , a menina fugiu para o Porto vestida de hГіme em companhia d' um sargento que despois de estar na cidade invita , lhe passou as palhetas para o ultramar , deixando a pobre creanГ§a abandonada . Foi antГЈo que o senhor||_Conselheiro_M Conselheiro|_Conselheiro_M M|_Conselheiro_M , que n ' esse tempo estava no Porto , travou conhecimento com ella ; soube de quem era filha , que tinha boas loiras e arrecebeu-se com a filha do senhor BarГЈo de . -- Ora vocГЄ , munto me conta , sГґr||_Eloio Eloio|_Eloio ! Declaro-lhe francamente que inorava o que me acaba de contar ; mas olhe que isso nГЈo tira para que a mГЈe da dita pessoa nГЈo fugisse tambem de casa do senhor BarГЈo ; pГіde acarditar que a Baroneza tambem fugiu ao marido , e essa fugiu de tal maneira que nunca mais appareceu . -- Pois olhe , isso tambem eu nГЈo sabia , e antГЈo cГЎ tomo nota no canhenho , e vocГЄ pГіde contar afoitamente como vridico o acontecimento que lhe contei . Agora diga-me uma coisa , tia||_Graviella Graviella|_Graviella , sabe quem sГЈo os noivos e os padrinhos ? -- Ora se sei ! IntГ© estou admirada que o senhor||_Conselheiro_M Conselheiro|_Conselheiro_M M|_Conselheiro_M entregue aquella linda menina , rica como o Quintella , a um pelintra que nГЈo tem nada de seu , nem officio nem beneficio ! O demonio do rapaz enfeitiГ§ou por forГ§a o senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro e a menina ! -- Ora qual ! Como sabe vocГЄ ? ... -- Eu lh'o conto , sГґr||_Eloio Eloio|_Eloio , eu lh'o conto . Minha filha lava e engomma a roupa ao criado do senhor||_Conselheiro_M Conselheiro|_Conselheiro_M M|_Conselheiro_M . Pois elle contou-lhe que o patrГЈo tinha admittido em casa , por caridade , um rapaz orphГЈo e muito pobre , e que este rapaz tivera a pitulancia de querer seduzir a menina de quem o senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro Г© titor , e que praticou tantas poucas vergonhas que o senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro se viu obrigado a pГґl- o na rua ; e que nГЈo o metteu em justiГ§a por ter dГі d' elle . Mas a pequena , assim que viu isto , comeГ§ou a apaixonar-se , e todos disseram que morria phtisica senГЈo casasse com o melcatrefe do engeitado , porque , segundo diz o criado do senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro , elle Г© engeitado . Vaibo titor da pequena , que Г© um bello hГіme e muito amigo d' ella , segundo diz o criado , em logar de a levar para fГіra da terra a espairecer , mandou chamar o pelintrГЈo e deu-lhe aquella linda menina , que Г© mesmo um anjo ! Olhe que Г© preciso ser um bello hГіme , sГґr||_Eloio Eloio|_Eloio , para fazer isto , ou antГЈo estar enfeitiГ§ado . Olhe que isto nГЈo se conta a todos , porque o criado pediu segredo a minha filha , porque o senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro tambem lhe contou o caso , pedindo-lhe segredo ; mas para vocГЄ , que tambem me contou o outro caso , nГЈo tenho segredos . -- Obrigado , tia||_Graviella Graviella|_Graviella , jГЎ sei mais uma historia ; agora diga-me quem sГЈo os padrinhos , para eu deitar os meus cГЎlculos a vГЄr se apanhamos babuje . -- Olhe , um Г© o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde de , que diz o criado do senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro , Г© um bellissimo rapaz , muito generoso ... -- Bem , bem ; e o outro ? -- O outro Г© o senhor BarГЈo de outro excellente senhor , tambem muito generoso . Diz o criado do senhor||_Conselheiro Conselheiro|_Conselheiro , que quando ganha ao jogo , sempre lhe dГЎ cinco tostГµes . -- Bem bom , bem bom ... Aqui foi interrompido o dialogo entre os dois mendigos pelo movimento ( las carruagens , o que queria dizer que o cortejo ia caminhar para o templo . De feito , a noiva , acompanhada pela madrinha , e o noivo , pelos padrinhos , subiram ГЎs primeiras carruagens , e toda a comitiva se dirigiu para S. Domingos . Dava meio dia . Ao chegar porГЄm ГЎ porta da igreja a carruagem ondo ia o noivo , e , no momento em que este se apeiava , chegaram-se a elle dois empregados do Governo civil , e um d' elles perguntou-lhe com voz de juiz criminal : -- O senhor chama-se JosГ© Pereira ? ... -- Chamo , respondeu o mancebo . -- EntГЈo estГЈ prezo ГЎ ordem do senhor governador civil , continuou o beleguim . -- Eu , senhor ! perguntou JosГ© Pereira , admirado , porque ? ! -- Depois o saberГЎ . -- Oh ! meu Deus ! exclamou o mancebo , ao qual , refluindo-lhe todo o sangue ГЎ cabeГ§a , quasi- lhe tirГЎra a vista ; oh ! meu Deus , o que serГЎ de mim ? Depois , dirigindo-se como doido aos dois agentes de policia , bradou-lhes em tom lastimoso : -- Estou innoccnte , senhores , nГЈo commetti crime algum ! Dizendo isto , caiu privado de sentimento nos braГ§os de D. Julia , que se lhe aproximГЎra n ' este momento , a informar-se do succedido . FIM DE+O PROLOGO . PRIMEIRA PARTE O VISCONDE As obreiras Em uma fria madrugada do mez de dezembro do anno 1853 , n ' uma velha agua-furtada de Lisboa , quasi desguarnecida de mobilia , porГЄm onde se divisava o aceio , trabalhavam aГ§odadamente duas pobres obreiras , ГЎ luz d' uma vela , em um rico vestido de selim bordado . Por intervallos as pobres creaturas estremeciam , sem duvida pelo intenso frio que lhes penetrava a medulla dos ossos , largavam a obra e assopravam os dedos como para os desentorpecer e poderem continuar o apressado trabalho . A mais idosa d' estas desventuradas , senhora de cincoenta annos , demonstrava na cadaverica physionomia graves padecimentos , tanto physicos como moraes ; nГЈo carecia de ser grande observador , quem lhe examinasse o rosto com attenção , para conhecer pela finura da pelle , bonhomia e delicadeza das feições , que esta senhora nГЈo era o que vulgarmente se chama " uma mulher ordinaria . " A outra , donzella de dezeseis annos , parecia qual linda flГґr que vegetando em acanhado vaso , ao desabrochar se ostenta , ainda que com o viГ§o , brilho e frescura da mocidade , um tanto infezada e debil no todo . O seu oval e bem talhado rosto , ornado de lindos olhos pardos , onde reluzia a candidez , bondade e ternura , de acarminados labios e alvos dentes ; o seu bello rosto , ainda que um tanto pallido e desfeito , com tГЈo relevantes attractivos fazia com que a sua possuidora fosse classificada de " formosa " pelos que sГі vГЄem belleza physica , e reconhecida por " um bondoso espirito " pelos que procuram descobrir os dotes moraes , isto Г© , os physionomistas . Depois de mostrarmos aos leitores as duas obreiras , de lhes analysarmos , ainda que rapidamente , o caracter physico e moral , e esta analyse ser em abono d' ellas , nГЈo devemos demorar-nos mais , como historiador da sua vida intima , em narrar qual a razГЈo por que as duas senhoras trabalhavam com tanto affinco a uma hora tГЈo impropria de trabalho e sГі conveniente ao repouso , para nos nГЈo arriscarmos a ser taxado de haver feito a apologia de duas ambiciosas e avarentas . -- Que frio tenho , minha mГЈe ... estou mesmo regelada ! disse a joven ГЎ outra senhora , largando de repente a costura e mettendo as mГЈos debaixo dos braГ§os . A pobre senhora estremeceu , pois embebida em profunda meditação , quando sua filha rompeu o sepulchral silencio que reinava entre ambas n ' uma tristonha madrugada d' inverno , em que tudo parece estar morto , tanto no interior como no exterior das habitações , a pobre senhora , diziamos , teve medo da inesperada exclamação da filha , que echoou por toda a casa como se esta fosse um d' esses grandes templos que repetem com estrondosa forГ§a qualquer palavra pronunciada nos seus recintos . -- Tambem eu , Amelia , disse a obreira a sua filha , depois de se lhe tranquillisar o nervoso ; tambem eu ... tenho os pГ©s quasi gelados e estou soffrendo horriveis dГґres nos braГ§os ; mas que lhe havemos de fazer ? ... -- Vou accender o lume e aquecer-lhe uma pouca de agua , minha mГЈe , respondeu a joven , levantando-se . -- NГЈo o podes fazer , Amelia , porque nГЈo ha , nem carvГЈo nem agua ... -- Ah ! Г© verdade , diz Amelia caindo outra vez machinalmente na cadeira , nГЈo me lembrava ... -- E bem sabes , continuou sua mГЈe , que ainda que nos quizessemos outra vez valer da nossa visinha , como hontem lizemos , ella ainda estГЎ recolhida e nГЈo a havemos incommodar ... Resignemo-nos , minha filha , e trabalbemos o mais que podermos para acabar o vestido hoje . Bem sabes que Г© a nossa taboa de salvação . -- Ah ! minha mГЈe , Deus queira que tenhamos forГ§as para isso ... sobretudo vocemecГЄ , que sГі comeu hontem uma vez ... -- E tu , minha filha , nГЈo te succedeu o mesmo ? -- Г‰ verdade ... mas minha mГЈe , para que eu comesse mais , nГЈo quiz comer quasi nada . -- NГЈo tinha vontade , minha filha ... -- Isso diz minha mГЈe para me consolar . -- PorГЄm , minha filha , replicou a mГЈe d' Amelia , estamos perdendo um tempo precioso com coisas futeis ... vamos , deixemo-nos de recordações tristes e trabalbemos ... Olha , jГЎ nГЈo precisГўmos da luz da noite , proseguiu ella apagando a vela ; vem rompendo o sol e parece-me que teremos um bonito dia . NГЈo tarda que sejamos aquecidas pelo sol ... isto anima , nГЈo Г© assim , minha filha ? -- Г‰ verdade , minha mГЈe , respondeu a donzella , n ' um tom que desmentia totalmente as palavras . Depois d' isto , reinou profundo silencio na agua-furtada , sГі interrompido , por intervallos , pelas respirações mais longas , arfar do peito e bocejos das duas obreiras . Eram nove horas quando o vestido foi dado por prompto pela mГЈe e filha . Amelia recuperГЎra a esperanГ§a que quasi sempre acompanha a mocidade , e que , por momentos , nos transes espinhosos da vida a desampara . Por isso a donzella , contentissima , esquecendo-se jГЎ de que comГЄra na vespera sГі uma vez , e nada tinham para se alimentar n ' aquelle dia , ella e sua mГЈe , disse a esta rindo , ao mesmo tempo que a abraГ§ava : -- O demonio do vestido deu-nos que fazer , minha mГЈe ; mas ao menos dГЎ-nos honra , porque ficou lindo , e estou convencida que a Viscondessa hade afreguezar-se com+nГіs . -- E o cГ©o permilta , Amelia , que assim aconteГ§a , porque teremos mais que fazer , e com maior lucro . -- Mas a Viscondessa , replicou Amelia como assaltada por uma triste idГ©a , disse a minha mГЈe que o mandava buscar hoje pelas nove horas ... sГЈo quasi dez , e nada de novo ! ... Deus queira que ella se nГЈo esqueГ§a , para assim podermos almoГ§ar . -- Tranquillisa-te , disse-lhe a mГЈe para a socegar , porque jГЎ lhe assaltГЎra a mente a mesma idГ©a ; ella precisa o vestido para o proximo baile do seu anniversario ... hade querer proval- o com antecedencia e mostral- o a alguma sua amiga ... logo , nГЈo falta . -- Oh ! com os dez tostГµes do feitio , accrescentou Amelia dando pulos de contentamento , seremos duas rainhas ! -- Mas o nosso reinado , respondeu a mГЈe , durarГЎ sГіmente tres dias , se a Providencia nos nГЈo deparar mais trabalho . -- Ora , minha mГЈe , para que estГЎ com essas idГ©as tГЈo tristes ? entГЈo a sua amiga , a que lhe inculcou a Viscondessa , a qual nos tem sempre protegido desde que perdi meu pae , nГЈo nos hade dar que fazer ? ... DГЎ , dГЎ . N ' este momento , ouviram as duas senhoras pГ©s na escada , e logo depois bateram ГЎ porta da agua-furtada . Amelia foi prestes abrir , mesmo sem indagar quem seria , e viu no patamar um homem que trazia uma bandeja e uma toalha , o qual lhe disse que era criado da senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa de e vinha buscar um vestido de setim bordado . A mГЈe de Amelia convidou-o a entrar e , depois de ler um pequeno bilhete da Viscondessa , dobrou a obra hermeticamente , com uma agitação febril , cobrindo-a com a toalha , e deu-a ao criado , o qual saiu . Depois d' isto , empallidecendo horrivelmente , deixou-se cair n ' uma cadeira e disse a sua filha , com voz quasi sumida pelo desalento : -- Estamos perdidas ! -- PorquГЄ , minha mГЈe ? perguntou Amelia , summamente assustada por vГЄr o estado de abatimento em que estava sua mГЈe . -- LГЄ , disse-lhe a pobre senhora , estendendo a mГЈo onde tinha o bilhete da Viscondessa . Amelia pegou no bilhete e leu o que se segue : " Senhora : " Mande-me o vestido pelo portador , que Г© um dos meus servos . Creio que deve estar prompto , porque a senhora assim mo prometteu . No fim do mez mande buscar o importe do seu trabalho . 10 de dezembro de 1853 . " Viscondessa de " -- Que serГЎ de nГіs ? ! diz-lhe a mГЈe na maior angustia , por ter perdido totalmente o animo para poder conservar firmeza e placidez em tГЈo horrivel situação . -- Tenho uma idГ©a , minha mГЈe : a Viscondessa hade ser compassiva ... e se vocemecГЄ lhe mandar dizer as circumstancias em que nos achГўmos , estou certa que nos mandarГЎ o dinheiro . -- Dizes bem , minha filha . E a infeliz senhora vai immediatamente escrever um bilhete ГЎ Viscondessa , ainda que a muito custo pela debilidade em que estГЎ , no qual lhe expГµe a desgraГ§ada situação em que se acham , ella e sua filha ; depois , dizendo a esta que chame um aguadeiro , emquanto ella faz o sobrescripto , diz comsigo : -- Oh ! foi uma bella lembranГ§a a que minha filha teve ; Г© impossivel que a Viscondessa nГЈo se commova ao saber a posição em que nГіs estamos . Amelia chamou o aguadeiro , o qual chegou ГЎ agua-furtada resmungando por ter subido tanta escada , e dando a todos os demonios predios tГЈo altos . A mГЈe de Amelia entregou o bilhete , recommendando ao aguadeiro que esperasse pela resposta . As duas senhoras , animadas pela esperanГ§a , aguardavam a resposta , quando a porta da escada fronteira ГЎ d' ellas se abriu , e a visinha veio bater-lhes ГЎ porta , ao mesmo tempo que lhes perguntava : -- Г“ visinhas , querem alguma coisa de fГіra ? Eu vou sair ... e entГЈo nГЈo faГ§am ceremonia . Amelia foi logo abrir . A visinha entrou e , depois dos comprimentos matinaes , olhando por toda a casa como quem procurava alguma coisa , exclamou : -- Ah ! jГЎ cГЎ nГЈo estГЎ , jГЎ o mandaram buscar , nГЈo Г© verdade ? ... E eu que tinha tanta vontade de o vГЄr acabado ... Nunca eu me enganei quando ainda agora ouvi vozes na escada , e que fallavam em vestido cГЎ , vestido lГЎ ... Com que entГЈo a fidalga mandou-o jГЎ buscar ? -- Г‰ verdade , minha visinha , respondeu-lhe a mГЈe de Amelia , e mal sabe a pena que tenho de nГЈo poder satisfazer o seu gosto . -- Ah ! que se eu ainda agora adivinhasse que a visinha jГЎ estava levantada , accrescentou Amelia , tinha-a ido chamar . Ora que pena nГЈo o vГЄr ... ficou tГЈo bonito ! -- NГЈo se apoquentem , visinhas , ha mais marГ©s que marinheiros ... As senhoras teem muita habilidade , trabalham muito bem , e entГЈo teremos occasiГЈo de vГЄr alguma peГ§a d' obra bonita ... mesmo atГ© me parece , que nГЈo hade tardar muito tempo que eu lhes nГЈo traga obra d' umas senhoras ricas do meu conhecimento , a quem jГЎ fallei nas senhoras e gabei o seu talento . -- Oh ! minha visinha , muito agradecidas por tanto favor , respondeu a mГЈe de Amelia , emquanto que a joven , cheia de contentamento , dizia : -- VГЄ , minha mГЈe ? vamos brevemente ter outra fregueza nova . Estavam n ' este ponto da conversação , quando o aguadeiro chegou e entregou ГЎ mГЈe de Amelia um bilhete , o qual a infeliz senhora , depois de pedir licenГ§a ГЎ visinha , abriu . Continha o seguinte : " Creio que hoje nГЈo Г© o fim do mez ; quando fГґr mande cГЎ , jГЎ lh'o disse . " Viscondessa de " A visinha , vendo a pallidez da mГЈe de Amelia , perguntou-lhe apressadamente : -- Que Г© isso , visinha , tem alguma coisa ? Amelia entГЈo , mostrando-lhe os dois bilhetes da Viscondessa , contou-lhe o resto , e accrescentou em voz baixa ao ouvido da visinha : -- O que mais nos custa n ' esla occasiГЈo Г© nГЈo termos com que pagar ao aguadeiro . -- Ah ! graГ§as a Deus , tenho eu com que as possa remediar atГ© ГЎmanhГЈ , respondeu a visinha do mesmo modo . Depois , a boa mulher pagou ao moГ§o e , saindo , voltou d' ahi a pouco com comestiveis para si e para as suas duas desventuradas visinhas . Ir por lГЈ , e vir tosquiado Alguns dias depois das scenas precedentes , que apresentГЎmos ao leitor , em uma das ricas salas do palacio do Visconde de , amigo intimo do Conselheiro M , e que casГЎra ha um anno com a filha do Conde de , estavam a criada grave da Viscondessa e o criado particular do Visconde em um curioso e , para elles , interessante dialogo , que começára d' este modo : -- EntГЈo que lhe parece isto , menina Josephina ? jГЎ deu meio-dia e nem o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde ou a senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa ainda se levantaram ! A que horas almoГ§aremos nГіs hoje ? -- EntГЈo que quer o senhor||_Francisco Francisco|_Francisco ? Bem sabe que o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde recolheu esta madrugada , e que a senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa entrou muito depois d' elle no seu quarto ; por consequencia Г© justo que ainda estejam adormecidos ... Mas vocemecГЄ jГЎ tem vontade de comer , tendo ceiado quasi de dia ? ! ... -- Г‰ porque tenho o estamago forte e dirijo muito bem ; mas o que me vale para enterter a fome Г© estar ao pГ© da menina Josephina , por quem morro de amores de tal modo ... que sou capaz de estar tres dias e tres noites sem comer , vendo-me sempre ao seu lado . -- EstГЎ bom , modere o seu enthusiasmo oratorio que pГіde ouvir-nos terceira pessoa e ser esse o motivo de funestas consequencias para nГіs ambos . -- EntГЈo que receia vocemecГЄ , menina Josephina ? pergunta o criado olhando em torno de si como receioso . -- Pois vocemecГЄ nГЈo sabe que todos os patrГµes odeiam mortalmente os amores dos criados , chegando atГ© a despedil- os quando os surprehendem em flagrante ? ... -- Sim ... mas se os nossos estГЈo recolhidos , como Г© possivel ? ... -- NГЈo sabe que as paredes teem ouvidos , senhor||_Francisco Francisco|_Francisco ? N ' este momento ouviram ambos o agudo som d' uma campainha . -- SerГЎ o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde ? diz o criado , correndo apressadamente para fГіra da sala . -- Parece-me que Г© a senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , responde a criada , fazendo o mesmo . Francisco , encaminhando-se para o quarto do Visconde , encontrou o porteiro do palacio , que o procurava para lhe dizer que um sugeito , que dizia ser caixeiro d' uma loja de fazendas , procurava o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde . Francisco ouvindo isto fez um gesto ao porteiro , como dizendo-lhe que esperasse um pouco , entrou no quarto do Visconde e saindo alguns segundos depois disse ao porteiro participasse ao sugeito que procurava o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde , que , ou esperasse um bocado , ou viesse d' ahi a uma hora . Meia hora depois do que acabГўmos de contar , na sala de refeição do palacio estavam almoГ§ando o Visconde e sua mulher . A Viscondessa , senhora de vinte e oito annos , esvelta , bella e elegante , estava negligentemente recostada n ' um sophГЎ , sustendo n ' uma das mГЈos a chicГЎra e tendo na outra um biscoito , o qual era diminuido por intervallos , entre os seus alvos e preciosos dentes . Estava um tanto pensativa e parecia que graves contrariedades , a alguma idГ©a sua , lhe cruzavam a mente e a faziam taciturna . O Visconde , homem de trinta e seis annos , magro , baixo e pallido de rosto ; nГЈo podendo fictar ninguem de frente , nem mesmo sua mulher ; tinha os seus pequenos e verdes olhos , pregados na meza de pГ© de gallo onde estava o almoГ§o , e parecia meditar profundamente . A Viscondessa porГЄm veio tiral- o d' esta immobilidade sapal , perguntando-lhe com a sua argentina e flexivel voz , habituada a todos os tons : -- NГЈo almoГ§a , Visconde ? Este , ouvindo o triste e magnifico tom menor em que foi feita a pergunta , e o qual poucas vezes ouvia ГЎ Viscondessa , despregou os olhos da meza passeiando-os rapidamente pelos de sua mulher , ao mesmo tempo que lhe responde : -- Ah ! sim , almГіГ§o , menina ... Г© que estava pensando ... EntГЈo , continГєa elle , mudando de tom , divertiu-se muito na reuniГЈo do BarГЈo ? -- Nem por isso ; sempre os mesmos convites ... ali vГЄem-se continuamente as mesmas physionomias e , o que ainda Г© mais , o mesmo vestuario . Se ao menos o dono da casa convidasse familias do povo , ricas , vГЎ ; mas convidar pobretonas que nunca passam do rococГі vestido branco ... Г© d' uma semsaboria insupportavel ! -- Com que entГЈo aborreceu-se , Viscondessa , nГЈo Г© assim ? -- Horrivelmente ! -- Pois eu tambem nГЈo fui feliz em casa do Conselheiro M , nГЈo me aborreci , Г© verdade , porГЄm perdi duzentos mil rГ©is ao jogo ... fiquei esgotado das algibeiras e ainda sou devedor ao Conselheiro , de cento e cincoenta mil rГ©is , os quaes nГЈo sei como lhe heide pagar . -- Ora ! dividas de jogo , disse a Viscondessa em tom de mofa , nunca se saldam . DГЄ-me o Visconde antes as vinte libras que eu tenho de pagar d' aqui a pouco pelo corte do meu vestido de setim bordado . -- Ah ! ah ! ah ! E , depois de dar uma estrepitosa gargalhada , o Visconde , levantando-se e comeГ§ando a passeiar pela casa , em circulos ГЎ roda da meza , disse a sua mulher : -- A Viscondessa dГЎ-me vontade de rir com esse seu ingenuo pedido . Eu estou completamente desprovido de metal cunhado , e isto talvez por oito dias , se me falhar uma transaeção que negociei , o que muito desconfio me succeda . -- EntГЈo , disse a Viscondessa em tom brilhante e maior e um tanto picada , o Visconde quer dizer com isso que me obriga a faltar vilmente ГЎ minha palavra , hoje , perante o caixeiro da casa de modas , que nГЈo deve tardar ? -- Ora ! pois Vossa Excellencia , respondeu o Visconde com um sorriso ironico misturado de compaixГЈo , pois Vossa Excellencia nГЈo acha no seu intelligenle e atilado cerebro algum meio com que possa descartar-se airosamente do pobre diabo ? ... Oh ! eu de certo o nГЈo posso acreditar ! -- Mas o Visconde , que Г© tГЈo fertil em meios complicados , disse a Viscondessa no mesmo tom , porГЄm crescendo , Г© que me deve indigitar o que eu tenho a seguir n ' esta critica occasiГЈo . -- Pois serГЎ verdade que queira baixar-se ГЎ minha humilde intelligencia , pedindo-me conselho para o que deve fazer ? -- NГЈo desejo outra coisa , senhor ; bem vГЄ o embaraГ§o em que me adio , e meu marido , como representante da nossa casa , nГЈo hade querer que os seus brazГµes fiquem deslustrados por um vil logista , que serГЎ capaz de dar ordem aos caixeiros para apregoarem por todo o arruamento que o Visconde de Г© um caloteiro , e pretende vestir sua mulher ГЎ custa d' outrem . -- NГЈo nos zanguemos , Viscondessa : vou-lhe provar , apezar de nГЈo ser a divida feita por mim , e de nГЈo receiar quaesquer dicterios da canalha em meu desabono , vou-lhe provar , digo , que pГіde sair-se perfeitamente dos apuros em que estГЎ . E preparava-se para lhe ensinar o que devia fazer , quando a criada grave da Viscondessa entrou na sala de refeição para a consultar sobre umas cortinas em projecto . O Visconde , vendo-a entrar , consultou o relogio , e vendo que jГЎ passava da uma hora , aproximou-se da Viscondessa e , collando-lhe a boca ao ouvido como se a beijasse na face para illudir a criada , disse-lhe rapidamente em voz sumida : " Escamoteie-lhe a conta . " Depois , dirigindo-se apressadamente para a porta da sala , disse-lhe em tom de ineffavel carinho : -- AtГ© logo , minha querida . E desappareceu . Pouco depois o criado particular do Visconde veio participar ГЎ Viscondessa que se achava no portГЈo do palacio o individuo que jГЎ havia procurado Sua Excellencia , o senhor||_Visconde Visconde|_Visconde , porГЄm que este havia saido . -- Mande entrar esse sugeito para o salГЈo nobre , disse a Viscondessa em tom breve . O criado saiu , e ella , chegando-se a um espelho , depois de se consultar e arranjar o cabello , disse comsigo : -- Veremos por qual dos meios o vencerei , se pelo que imaginei , ou pelo que me apresentou meu marido . Depois encaminhou-se para a sala , entrando na qual , viu um mancebo bem vestido e de agradavel physionomia , que a comprimentou respeitosamente em silencio . -- EntГЈo que pretende o senhor ? perguntou-lhe a Viscondessa , ao mesmo tempo que lhe indigitava um sophГЎ para elle se assentar . -- Senhora Viscondessa , respondeu o mancebo , conservando-se de pГ© , eu sou portador d' uma conta d' um vestido que Vossa Excellencia fez a honra de comprar a meu patrГЈo . -- Ah ! jГЎ sei , disse a Viscondessa n ' um tom que mostrava a pouca importancia que dava a similhante noticia ; queira demorar-se um pouco , que estou esperando o meu mordomo , o qual nГЈo tardarГЎ : porГЄm assente-se , senhor ... como se chama ? E , assentando-se em frente do joven , obrigou-o com o gesto a fazer o mesmo . O mancebo assentou-se e , respondendo ГЎ pergunta da Viscondessa , disse-lhe : -- Eu chamo-me JosГ© da Silva , excellentissima senhora . -- EntГЈo o senhor||_Silva Silva|_Silva vai dizer-me que novidades vieram de FranГ§a , sim ? disse a Viscondessa aproximando a sua cadeira do caixeiro , de modo a ficar-lhe bem de frente para o poder fascinar pelos seus dardejanles olhares . -- Minha senhora , replicou o mancebo baixando os olhos modestamente , nГЈo se atrevendo a affrontar o olhar que lhe lançára a Viscondessa , desde que Vossa Excellencia esteve na loja de meu patrГЈo ainda nГЈo chegaram figurinos alguns , e entГЈo nГЈo posso dar-lhe novidades a esse respeito . -- Ora que pena ! disse a Viscondessa com um gracioso sorriso , que sГі as pessoas altamente generosas ou grandes actores da comedia humana sabem patentear quando sentem qualquer pezar e nГЈo querem aflligir a outrem ; que pena o senhor||_Silva Silva|_Silva nГЈo poder aconselhar-me a comprar qualquer enfeite , que porventura podesse apparecer , para eu o estreiar no proximo baile do meu anniversario . E , vendo que o mancebo se conservava calado e como contrafeito , deu um geito ao corpo de modo que um dos seus joelhos foi encontrar-se com o do caixeiro , e ahi permaneceu alguns segundos , como instigando-o a deixar de ser reservado . PorГЄm o mancebo , respeitando o logar em que se achava , ou por temer dar-se ao ridiculo , recuou um pouco a cadeira em que estava assentado . A Viscondessa , vendo este movimento , disse-lhe vivamente : -- Incommodei- o , senhor||_Silva Silva|_Silva ? -- Oh ! minha senhora , respondeu o mancebo cГіrando , eu Г‰ que receiei que Vossa Excellencia nГЈo estivesse ГЎ sua vontade ... -- Ah ! nГЈo ! estava perfeitamente , redarguiu a Viscondessa em tom menor sentimental , que se traduzia por estas palavras : " nГЈo me comprehendeu " , ou " Г© frio como rocha ! " -- EntГЈo em quanto importa a conta ? continuou a Viscondessa , mudando assim de conversação para depois continuar de subito o seu projectado ataque . -- Em noventa mil rГ©is , respondeu o caixeiro , tirando ao mesmo tempo do bolso furtado do fraque uma bonita carteira de marroquim verde ; pГіde Vossa Excellencia examinar ... E dispunha-se a abrir a carteira . PorГЄm a Viscondessa , impedindo-o com o gesto , disse-lhe com intimativa : -- NГЈo Г© necessario mostrar-m ' a ; agora me recordo que Г© isso mesmo . O mancebo , obedecendo ГЎs ordens da fidalga , tornou a metter a carteira no bolso e esperou em silencio . A Viscondessa entГЈo , levantando-se e dando uma volta pela sala , ostentando d' este modo a sua elegante estatura , conservou-se silenciosa alguns instantes , sem dГєvida edificando na idГ©a os seus projectados planos , e fazendo comsigo estas reflexГµes : -- Parece-me que falha o meu plano , e que terei de recorrer ao de meu marido . Depois , aproximando-se do caixeiro , que se conservГЎra immovel na cadeira , perguntou-lhe em tom de leviandade protectora : -- Diga-me , senhor||_Silva Silva|_Silva , o senhor danГ§a ? -- Um pouco , minha senhora , respondeu o mancebo levantando-se para nГЈo commetter a incivilidade de conversar assentado com a Viscondessa , estando esta de pГ© . -- Talvez se admire de eu lhe fazeir esta pergunta , continuou a Viscondessa , sem o mandar assentar ; porГЄm eu lhe explico a razГЈo porque o fiz . Desejava que o senhor||_Silva Silva|_Silva viesse ao meu baile , e entГЈo como danГ§a , desde jГЎ fica intimado a fazer parte dos meus convidados . -- Oh ! minha senhora , respondeu o caixeiro , aturdido com similhante e inesperada proposição ; Г©-me impossivel aceitar o obzequioso convite de Vossa Excellencia , porque estamos dando balanГ§o , e meu patrГЈo nГЈo pГіde dispensar-me de noite ... -- Tenho immensa pena , tornou a fidalga , figurando observar o caixeiro dos pГ©s ГЎ cabeГ§a , porque o senhor||_Silva Silva|_Silva Г© um elegante cavalheiro , e faria uma brilhante figura nas minhas salas . Ah ! mas este favor que lhe vou pedir nГЈo me recusarГЎ , continuou ella , como tocada d' uma idГ©a repentina , o senhor tem a estatura de meu marido ... tem certamente , disse ella de novo , examinando o caixeiro ; pois entГЈo hade fazer-me o favor de vestir , em quanto nГЈo chega o meu mordomo , uma casaca que o alfayate ainda agora trouxe para meu marido , porque desconfio nГЈo estar elegante . Elle nГЈo estava cГЎ quando o alfayate veio , e nГЈo a poude provar . Faz-me este favor , senhor||_Silva Silva|_Silva ? ... -- Oh ! minha senhora , pois nГЈo heide fazer , respondeu o caixeiro inclinando-se respeitosamente diante da Viscondessa . -- EntГЈo , com licenГ§a , que eu jГЎ volto . A Viscondessa , dizendo islo , saiu , porГЄm vollou quasi no mesmo instante , trazendo na mГЈo uma casaca nova , porГЄm , que o Visconde jГЎ havia vestido nГЈo poucas vezes . Depois , apresentando-a ao caixeiro , disse-lhe desabusadamente : -- Dispa o fraque sem ceremonia , senhor||_Silva Silva|_Silva . O mancebo despiu o fraque com acanhamento ; a Viscondessa antecipou-se em collocal- o sobre um sophГЎ ao alcance da sua mГЈo e , ajudando aГ§odadamente o caixeiro a vestir a casaca com a mГЈo direita , foi , com a esquerda , tirando a carteira do bolso furtado . Depois de estar de posse d' ella , dizendo ao mancebo que tivesse a bondade de andar atГ© ella lhe dizer que parasse , para notar bem qualquer prega que a casaca fizesse , a astuciosa fidalga abriu a carteira , e , com a ligeireza digna de Hermann , escamoteou a conta depois de se assegurar ser a d' ella , e , fazendo com que o mancebo se aproximasse outra vez do sophГЎ onde estava o fraque , porГЄm , sempre com as costas voltadas para o movel , tornou a introduzir no bolso a carteira do mesmo modo que a subtraira . -- EstГЎ muito boa , nГЈo faz nem uma prega , disse a Viscondessa depois de terminada a escamoteação . PГіde despil-a , senhor||_Silva Silva|_Silva , e muito agradecida . E , dando-lhe o fraque com toda a delicadeza e pegando na casaca , tornou a leval-a , e , voltando logo , disse ao caixeiro : -- Ora , atГ© que chegou o meu mordomo ; vai receber o seu dinheiro . O mancebo , ouvindo isto , puxou da carteira e abriu-a para tirar a conta , porГЄm , empallidecendo e cГіrando alternativamente , balbuciou afllicto : -- NГЈo estГЎ cГЎ , desappareceu , porГЄm eu trouxe-a ... -- Que tem o senhor ? perguntou a Viscondessa em tom de susto , magnificamente representado . -- Г‰ que , respondeu o caixeiro tendo uma vaga e repentina desconfianГ§a contra a Viscondessa , trazia a conta comigo , n ' esta carteira , e nГЈo a tenho . Isto Г© horrivel ... -- Talvez que o senhor a tirasse e a mettesse em alguma algibeira , procure bem ... -- Nada , minha senhora , disse o mancebo , allucinado por similhante catastrophe . E , pegando no chapГ©o e comprimcntando a Viscondessa , saiu apressadamente do palacio . Baldados exforГ§os O pobre caixeiro , saindo apoquentadissimo de casa do Visconde , foi ter com o patrГЈo , e dizendo-lhe que lhe desapparecГЄra a conta , sem saber como , pediu-lhe que lhe passasse outra . O patrГЈo , homem severo e endurecido no negocio , depois de o ouvir , fazendo uma careta e tomando uma pitada , disse-lhe em tom aspero e com voz fanhosa : -- Parece-me que vocГЄ , ha uns tempos para cГЎ , anda com essa cabeГ§a a razГЈo de juros . Eu estimo e aprecio muito os caixeiros circumspectos , e aborreГ§o muitissimo os levianos . ГЃmanhГЈ lhe passarei outra conta , e heide estimar que me traga os noventa mil rГ©is . Dizendo isto voltou as costas ao mancebo , deixando-o immerso em tristes reflexГµes . Na occasiГЈo da scena que descrevemos , no palacio do Visconde passava-se outra entre os dois fidalgos , marido e mulher : -- EntГЈo , senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , dizia o Visconde , estendido n ' um sophГЎ e saboreando um bello charuto de contrabando , como se deu com o meu conselho ? Saiu-se bem da escamotagem ? -- Muito bem ; pГіde verificar , respondeu a Viscondessa tirando d' uma algibeira a conta extorquida ao caixeiro e entregando-a ao Visconde . -- Caspite ! exclamou este rindo , nunca julguei que fosse tГЈo boa discipula e tirasse tanto resultado da prestidigitação que lhe tenho ensinado ! ... Sim senhora , faz progressos em bem pouco tempo . E tornando a dar a conta ГЎ Viscondessa , continuou em tom de superioridade magistral : -- Agora sabe o que tem de fazer para ultimar este negocio com limpeza ? -- EntГЈo ainda m ' o pergunta ? respondeu a Viscondessa em tom de quem desdenha de conselhos alheios . Quer sabel- o ? -- NГЈo serГЎ mГЎu , replicou o Visconde como zombando antecipadamente da idГ©a de sua mulher ; quero aconselhal-a , se caminhar mal ... -- NГЈo hade ser necessario , atalhou a Viscondessa com uma tal energia e firmeza que espantou o Visconde , e o fez pensar se o mestre estaria convertido em discipulo . -- Bem , bem , senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , nГЈo vale zangar por tГЈo pouco ... nГЈo me queira mal por eu desejar encaminhal-a bem em veredas difficultosas ; porque ... se Vossa Excellencia n ' este negocio nГЈo tivesse o necessario sangue frio para receber a nova conta que o logista hade enviar-lhe , perdia de certo a reputação e fazia-me perder a minha duplicadamente , na qualidade de seu mestre e na de seu marido . Por consequencia estou convencido que , o que tenciona fazer Г© dar essa conta a um criado , e encarregal- o de dizer ГЎ pessoa que vier com a nova conta , que Vossa Excellencia jГЎ pagou a mesma e foi para o campo . D ' este modo o patrГЈo queixa-se do caixeiro e o caixeiro nГЈo sabe de quem hade queixar-se , a menos que a escamoteação fosse por elle observada . -- PГіde estar descanГ§ado a esse respeito , Visconde ; a sua ultima idГ©a Г© infundada , porque o pobre rapaz viu tanto a operação como Vossa Excellencia . -- PeГ§o desculpa , Viscondessa , e proclamo-a um modГЄlo de talento e atilação , replicou o Visconde espargindo pela sala nuvens de fumo de tabaco . N ' este momento appareccu um criado a uma das portas da sala e , dirigindo-se aos aristocratas , disse-lhes : -- Senhor||_Visconde Visconde|_Visconde e senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , tenho a honra de annunciar a Vossas Excellencias que o jantar acaba de ser posto na meza . O Visconde levantou-se e caminhou para a casa de refeição seguido de sua mulher , que pengou pelo caminho : -- Ainda bem que elle me indigitou o que devo fazer , pois de contrario estava tolalmente desacreditada sem saber como dirigir e ultimar esto pequeno negocio . SГі tenho a fazer uma simples alteração em nomes ... PorГЄm ao menos ignora que lhe devo mais esta lição . Que gloria para mim ! No dia seguinte ГЎs scenas d' este capitulo , pela uma hora da tarde , JosГ© da Silva , munido da nova conta , dirigiu-se ao palacio do Visconde . O guarda-portГЈo , jГЎ prevenido , mandou-o subir . O caixeiro subiu e participou a um criado quem era , e o que vinha fazer . O criado deixou-o sГі por um momento e , voltando com um papel na mГЈo , disse ao mancebo : -- O senhor||_Visconde Visconde|_Visconde foi para o campo e entregou esta conta ГЎ senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa para que a mostrasse ao senhor , dizendo-lhe que jГЎ pagou ao seu patrГЈo . -- Mas quem pagou esta conta ? perguntou o caixeiro com anciedade , depois de ter examinado o papel e conhecer a firma do patrГЈo . -- JГЎ lhe disse que foi o senhor Visconde , respondeu o servo admirado da exclamação do caixeiro e sem comprehender nada , porque ignorava tudo . -- E a quem ? retorquiu este . -- Tambem jГЎ lhe disse que a seu patrГЈo , replicou o criado . -- E a senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa , estГЎ em casa ? -- EstГЎ , mas acha-se incommodada e nГЈo pГіde fallar a ninguem . Esta ultima noticia do criado Г© que foi um raio luminoso para o mancebo e o fez convencer de que havia sido victima d' uma fraude , porque tendo examinado bem a sua carteira para vГЄr se acharia a conta , notou que alguns papeis estavam amarrotados e como se houvessem sido remechidos por mГЈo estranha . Cabisbaixo e pensativo , saiu portanto do palacio do Visconde e foi depositar o succedido com elle em um seu intimo amigo , contando-lhe minuciosamente o que lhe acontecГЄra , terminando por dizer receiava bastante que o patrГЈo o despedisse por nГЈo acreditar similhante infamia . -- NГЈo despede , diz-lhe o amigo , porque eu te empresto os noventa mil rГ©is para tu me pagares como poderes , porque sei que Г©s um rapaz honrado . E pegando em vinte libras entregou-as ao venturoso mancebo , que possuia um tal amigo , o qual , depois de lhe dar os gratos agradecimentos e o abraГ§ar , chorando de alegria , foi contentissimo levar ao patrГЈo o dinheiro que nГЈo recebГЄra , de quem o devia e podia perfeitamente pagar , tendo de valer-se d' um amigo para nГЈo ficar com o labГ©o de ladrГЈo . O baile Pelas oito horas da noite do dia 20 de dezembro de 1853 , anniversario natalicio da Viscondessa de , nas salas do palacio do Visconde , seu marido , brilhantemente illuminadas e ornadas para baile , comeГ§avam a entrar os convidados para a festa . Entre as poucas pessoas que jГЎ se achavam nas salas viam-se , n ' um grupo , os nossos antigos conhecidos , o Conselheiro M , sua mulher , o BarГЈo de e o Visconde , sempre juntos . A Viscondessa conversava com as suas amizades intimas , n ' outro grupo distante do primeiro . -- EntГЈo o Conselheiro , perguntava o Visconde em voz baixa ao amigo , dizia que estГЎ arrependido de contribuir para que o rapaz saisse tГЈo cedo do Limoeiro ? ... -- Certamente , porque ... se o demorasse lГЎ mais dois ou tres mezes , com certeza jГЎ estaria mais esquecida a morte de minha pupilla , e bem sabe o amigo Visconde , continГєa o Conselheiro baixando mais a voz , que o testamento d' ella ... -- Hum , hum ... fez o Visconde , indigitando ao mesmo tempo significativamente o BarГЈo , que conversava com a mulher do Conselheiro . -- Г‰ tambem dos nossos , continГєa este ; o Visconde bem sabe que estando nГіs associados em certas emprezas ... D ' esta vez foi o BarГЈo que , deixando de conversar com a esposa do Conselheiro e voltando-se rapidamente para este , lhe disse com impaciencia : -- Essas conversações nГЈo sГЈo para aqui , Conselheiro ; falle n ' outra coisa , homem ! -- Este meu marido , diz sentenciosamente a mulher do Conselheiro , de dia para dia vai accumulando cada vez inais inconveniencias . Nunca vi ! Ninguem dirГЎ que Г© um Conselheiro ! ... -- Bem , bem , atalhou o Conselheiro levantando-se , nГЈo fallemos mais n ' isso . E separou-se do grupo . -- EntГЈo onde comprou a minha querida Viscondessa , esse lindo corte de vestido ? perguntava a Condessa de ГЎ dona da casa , no outro grupo . -- Na Levaillant , respondeu a Viscondessa . Mas realmente , acha-o bonito , Condessa ? -- Oh ! que Г© lindo ! respondeu esta examinando bem a fazenda , e d' um tecido tГЈo forte , que a minha querida amiga com certeza nГЈo o romperГЎ , por se aborrecer d' elle e nГЈo querer incorrer na critica da eternidade . Depois d' esta tirada critica , que a arteira Condessa sabia ser lisongeira para a dona da casa , e vendo que estamparecia ufanar-se com a sua opiniГЈo , continuou com essa meiguice requintada tГЈo propria dos aristocratas : -- O meu amor vai levantar-se , sim ? para eu vГЄr se lh'o talharam bem ... Foi mesmo feito onde comprou o corte ? -- Foi , respondeu a Viscondessa , ao mesmo tempo que se levantava para deixar vГЄr ГЎs amigas a elegancia do vestido . -- Fez bem , porque noutra parte estragavam-lh ' o ... sobretudo se o mandasse fazer a qualquer inepta modista portugueza . E levantando-se , assim como todas as damas e cavalheiros que estavam no grupo da Viscondessa , exclamou , ajudando a fazer roda em torno d' esta : -- Oh ! que elegante , que perfeito e que bem acabado estГЎ ! Bem se vГЄ que Г© obra franceza . -- EstГЎ lindo , disseram em cГґro homens e damas . -- E quanto custou ? continuou a curiosa Condessa . -- Foi um brinde que me fez meu marido , respondeu a Viscondessa , e nГЈo me quiz dizer o preГ§o . -- Г‰ o mesmo , atalhou a Condessa , eu logo lh'o perguntarei e elle hade dizer-m ' o , olГ© ! em eu lhe declarando que Г© para comprar um d' igual qualidade . -- E quanto levaram a Vossa Excellencia de feitio ? perguntou ГЎ Viscondessa uma joven demasiado feia e trigueira , filha do Commendador F . -- Г‰ verdade , quanto lhe levaram pelo feitio ? perguntou tambem a Condessa , atalhando a resposta que a sua amiga ia dar ГЎ joven pallida . -- Uma libra , respondeu a Viscondessa , e foi por ser para mim , quando nГЈo ... -- De certo , de certo , atalhou outra vez a Condessa ; Г© muito barato , muito ! N ' este momento entraram mais convidados , o que deu motivo a ser interrompida a conversação sobre o vestido . As salas foram-se enchendo , e quando eram nove horas , uma orchestra , composta de dezeseis artistas mediocres e regida pelo senhor||_Freitas Freitas|_Freitas , deu comeГ§o ao baile , executando com maestria a linda abertura da opera comica , A Marqueza , finda a qual , e depois d' um momento de repouso , executou o ritournello da bella quadrilha franceza , Les filles d' Г‰ve . Gruparam-se os pares . A Viscondessa teve por cavalheiro um mancebo , filho da falladora e curiosa Condessa de O Visconde danГ§ou com uma encantadora joven , filha d' uma aristocrata hespanhola , tendo por vis-Г -vis um homem alto , magro e verdenegro , de olhar obliquo , chamado o Commendador F , o qual tinha por par a joven pallida , sua filha . O BarГЈo de danГ§ou com a mulher do Conselheiro , e foi vis-Г -vis da Viscondessa . O Conselheiro , ficando mudo espectador , por ser quasi incommunicavel para os que nГЈo eram os seus intimos , foi ler os jornaes . Durante a contradanГ§a , o Visconde , lanГ§ando ternas olhadellas ao seu lindo par , como podem ser as d' uns olhos verde-duvidoso e pequeninos , dizia-lhe , depois de lhe apertar amorosamente a mГЈo , emquanto l ' autre partie fazia as evoluções coreographicas : -- Vossa Excellencia Г© a creatura mais bella que tenho visto ... e danГ§a com uma graГ§a , que arrebata o homem mais blasГ© em amor ! Como o filho da Condessa de vai ser feliz casando com Vossa Excellencia ... e como Vossa Excellencia tambem vai ser venturosa ! ... -- PГ©ro yo no lo amo ... disse com intimativa a joven hespanhola . Mi madre ha querido hacer esto ... y hace mal , os digo yo , seГ±or Visconde ! -- Era isto o que eu desejava ouvir , diz comsigo o aristocrata . Depois , fallando com a joven : -- Estimo muito saber isso , lhe diz elle , porque conheГ§o a inconstancia do rapaz e sei que nГЈo Г© digno de ser amado . Ha porГЄm um homem , que por uma unica palavra de amor de Vossa Excellencia seria capaz de morrer de alegria ... e sei tambem que nГЈo Г© indifferente a Vossa Excellencia . -- Quien Г©s ? perguntou com curiosidade a donzella . EntГЈo o Visconde , baixando a voz o indigitando ГЎ joven o BarГЈo de que n ' este momento terminava airosamente uma figura , respondeu-lhe : -- Г‰ o sensivel , apaixonado e sentimental BarГЈo de . A donzella sorriu e cГіrou um pouco , porque conhecia jГЎ o BarГЈo e deveras sympathisava com elle , porГЄm nГЈo sabia que tambem era amada . O arteiro Visconde , que conheceu nГЈo ter errado o alvo , disse comsigo : -- Ganhei , porque o BarГЈo venceu . E na occasiГЈo em que conduzia a assentar-se o seu par , por haver terminado a quadrilha , o Visconde perguntou ГЎ joven , sorrindo-se : -- EntГЈo , posso dar os parabens ao BarГЈo ? -- Despues hablaremos , respondeu a joven assentando-se . Agora uma explicação aos leitores , ГЎ cerca d' este enigma . O Visconde , d' intelligencia com o BarГЈo , e sabendo d' este que a donzella hespanhola estava em caminho de o amar , receiando que a mГЈe d' esta effectuasse o casamento da filha com o primogenito da Condessa falladora , procurou sondar o grГЎu d' amor que a joven tributava ao mancebo , e conhecendo , como jГЎ presumira , pelas palavras d' aquella , que nГЈo amava este , lembrou-lhe logo o seu intimo BarГЈo para avivar na donzella o comeГ§o d' amor que sentia pelo mesmo . A razГЈo d' este acerrimo empenho era a joven possuir de rendimento tres contos de rГ©is , e o BarГЈo ter feito com o Visconde uma transacção particular para , consummado o consorcio com aquelle , poder este tambem gozar parte dos rendimentos da fidalga hespanhola . Agora continuemos . Acabada a primeira quadrilha , chegou-se ao Visconde um mancebo de vinte e cinco annos , alto , elegante e bello , se bem que com as feições prematuramehte envelhecidas pelas continuas dissipações e aturados excessos ; e dando o braГ§o ao que elle chamava seu amigo , disse-lhe : -- NГЈo sabes , Visconde , a coisa fez o effeito que esperavas . -- Sim ! tornou o Visconde , ainda bem . EntГЈo enganei-me , meu creanГ§ola ? -- Chorou , continuou o mancebo , desesperou-se , e maldisse quem lhe perturbava a paz domestica . Estive quasi confessando-lhe tudo , porque agora conheГ§o pelo desespero em que a vi , quando lhe disse que estavamos para sempre separados , que a minha pobre Adelia amava-me deveras . -- NГЈo sejas tolo , homem , sГЈo todas assim , disse-lhe o Visconde rindo . Se nГЈo foi d' esta vez , continuou elle batendo no hombro do mancebo , serГЎ para outra . -- Dizes talvez bem , replicou este pensativo e principiando a duvidar outra vez da virtude feminina , pela depravada eschola que cursГЎra desde a adolescencia , dizes talvez bem , porГЄm minha mulher atГ© hoje tinha sido o modГЄlo das casadas , apezar de eu contribuir para o contrario . -- Mas estГЎs livre , atalhou o Visconde , o qual , sabendo que o mancebo era um apologista da liberdade desenfreada , procurava desvanecer-lhe o arrependimento que patenteava , estГЎs livre , e , o que ainda Г© melhor , podes gozar os rendimentos de tua mulher , porque tens um filho e estГЎs legalmente habilitado a poder administrar-lhe os bens , percebes ? -- Tens razГЈo , respondeu o mancebo embriagado com as idГ©as que lhe suggeria o Visconde . -- Agora conta-me , continuou este , como executaste o que te ensinei . -- Olha , entrei em casa , tendo primeiro o cuidado de entregar a um gallego e recommendar-lhe que a levasse d' ahi a pouco , a carta , cujo rascunho tu me dГ©ste e eu mandei copiar por um ratГЈo que Г© magnifico para estas coisas . D ' ahi a alguns segundos pucham a campainha da escada : eu , que de proposito me conservava na sala , perto de minha mulher , que estava tocando piano , instiguei-lhe a curiosidade para que ella se anticipasse a algum criado , dizendo-lhe com certo modo misturado de receio e mysterio : -- Quem serГЎ ? -- Eu vou vГЄr , me respondeu ella , sem saber o que lhe resultaria de similhante desejo . E , indo ГЎ porta , recebeu a carta que o gallego lhe entregou , e que vinha sobrescriptada para ella . Disse-me que nГЈo conhecia a letra , com um vago receio que me serviu ГЎs mil maravilhas para me dar campo ГЎ scena que se seguiu ГЎ leitura da carta , lanГ§ando-lhe em rosto a hesitação rcceiosa que mostrГЎra , a qual claramente dizia que era peccadora e indigna de viver comigo . -- Bem , disse o Visconde , caminhaste perfeitamente . Agora , continuou elle com voz assucarada , nГЈo te esqueГ§as do que combinГЎmos , hein ? -- Ah ! descanГ§a , respondeu o mancebo ; tГЈo depressa possa liquidar a minha parte , heide gratificar-te . N ' este momento a orchestra comeГ§ou uma polka , e todos os pares danГ§antes se pozeram em movimento nas salas do Visconde de . A familia MendonГ§a ( Continuação do capitulo antecedente ) Eram dez horas da noite quando entrou no palacio do Visconde de um sugeito de perto de cincoenta annos , demasiadamente baixo , proprietario d' um abdomen das dimensГµes de pipa , com o rosto avermelhado , encaixilhado em duas enormes suissas loiras , que o fariam passar perfeitamente por inglez , senГЈo fallasse claramente o portuguez , e uns grandes olhos entrincheirados em dois enormes vidros d' oculos , do diametro das moedas de vintem . Este sugeito dava o braГ§o direito a uma senhora que podemos afoutamente classificar , ser a sua antithese . Reparem : a senhora teria trinta annos ; era demasiado alta , bastante magra , tinha o que vulgarmente se chama feições miudas , e olhos pequeninos e penetrantes , o que denotava ter boa vista . O sugeito em questГЈo entrou pois azafamado pelas salas do Visconde , dando , como dissГ©mos , o braГ§o direito ГЎ esposa ( porque a senhora alta e magra era sua esposa ) , e a mГЈo esquerda a uma menina de treze a quatorze annos , que era sua filha . Parecia que a natureza se empenhГЎra em contrabalanГ§ar a abundancia e escassez de carne que lhe legaram seus progenitores , porque a joven , jГЎ entrando na adolescencia , era o que se chama uma bonita creatura , de formas regularissimas , assaz desenvolvida e fГіra da infancia . O tal sugeito , a quem chamaremos o senhor||_MendonГ§a MendonГ§a|_MendonГ§a , era um rico proprietario de Traz-os-Montes , aferrado ГЎ mania de comprar o titulo de barГЈo , o qual casГЎra , sendo ainda pobre , ( caseiro d' uma quinta ) com a senhora que jГЎ conhecemos , que era filha d' um antigo sachristГЈo , porГЄm jГЎ rica no tempo em que namoricou o senhor||_MendonГ§a MendonГ§a|_MendonГ§a , porque o acolyto das missas herdГЎra do pae , o prior , uma immensa fortuna . A educação infantil que tiveram os dois esposos , vГЄ-se claramente que , sem dГєvida , fГґra bem pouca , e ainda menos esmerada . A filha recebeu pois dos seus progenitores a severa e rispida educação que costumam dar os nossos provincianos da raia , educação a que chamaremos fanatismo e hypocrisia . Chegava a tal ponto a rigidez da mГЈe , que obrigava a filha a andar vestida como se tivesse oito ou nove annos : punha-lhe papelotes nos lindos cabellos , e vestia-lhe ainda fato curto , o que obrigava a pobre menina a ser devassada pelas vistas profanas dos curiosos em dias de chuva . Eis o resultado que se lira da severa rigidez de costumes . O senhor||_MendonГ§a MendonГ§a|_MendonГ§a entrou , como dissГ©mos , pelas salas do Visconde , arrastando sua familia caricatamente . -- Vamos , meninas , dizia em voz alta o gordo trasmontano , dirigindo-se ГЎ mulher e filha , vamos , que jГЎ Г© tarde . E amarrotando todos os vestidos que achava na sua passagem , e pizando todos os homens , chegou finalmente em frente da Viscondessa . -- Ainda bem que topei com a dona da casa , exclamou elle n ' um tom que denotava respirar mais ГЎ vontade , julguei que nГЈo dava com ella ! E apresentando sua mulher e filha ГЎ Viscondessa , disse a esta , desfazendo-se em mesuras e rapapГ©s : -- Minha senhora , tenho a distincta honra de lhe apresentar minha esposa a senhora||_D._Pulcheria D.|_D._Pulcheria Pulcheria|_D._Pulcheria , e minha filha , D. Filomena Maria da Conceição MendonГ§a . E , voltando-se para sua mulher e filha , continuou : -- Apresento-lhes a vocГЄs a senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa de , filha do senhor||_Conde Conde|_Conde de e esposa do senhor||_Visconde Visconde|_Visconde de , em cuja casa nos achГўmos . Depois d' este preparatorio apresentativo , o gordo trasmontano , suando por todos os pГіros , tirou um lenГ§o da algibeira , e limpando as bagas de suor que lhe corriam pelo rosto , exclamou : -- Arre que calor ! Esta ultima e delicada phrase acabou por encolerisar todos os fidalgos que circumdavam a Viscondessa , os quaes perguntaram em voz baixa uns aos outros : -- Quem Г© este tremendo alarve ? Entretanto a Viscondessa tomava conhecimento com a esposa e filha de MendonГ§a , beijando com caricias aristocraticas a pequena , e abraГ§ando do mesmo modo a mГЈe , dizendo-lhes ao mesmo tempo com o seu lindo tom menor sentimental : -- Como Vossas Excellencias vem canГ§adas ! Tenham a bondade de se assentar . Depois , emquanto as conduzia para uma sala reservada aos intimos , disse em voz baixa ГЎ mulher do Conselheiro M : -- Que tres originaes nos entraram em casa ! A mulher de MendonГ§a assenlou-se , dizendo ao mesmo tempo : -- Aquelle meu hГіme Г© mesmo um farnezim ! ... Esqueceu-se de dar ordem , esta tarde , ao nosso cocheiro para apparelhar ГЎs nove horas , e nГЈo quiz esperar que o trem estivesse prompto , por causa da demora , pregando com+nГіs pela rua a correr como se abalassemos atraz d' algum cyrio . Credo ... NГЈo sei como nГЈo emmagrece , sendo tГЈo farnetigo ! A Viscondessa e as pessoas que estavam na sala reservada , mordiam os beiГ§os para reprimir o riso que lhes provocГЎra tГЈo burlesca tirada . -- AntГЈo tu nГЈo dizes nada , Nina , proseguiu D. Pulcheria dirigindo-se ГЎ filha ; estГЎs enfadada , meu amor ? -- NГЈo senhor , maman , tenho somno ... ergui-me tГЈo cedo hoje ! ... -- Eu bem dezia a teu pae que eram jГЎ que horas para virmos ГЎ festa universal da senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa ; mas teu pae , que Г© teimoso como um jumento , embirrou ... N ' este momento ouviu-se a voz de MendonГ§a , bradar fГіra da sala : -- AntГЈo adonde estГЈo ellas ? E entrando , conduzido por um criado , e vendo sua mulher e filha em companhia da Viscondessa e mais convidados , exclamou , rindo brulalmente : -- Oh hГіme ! Eu jГЎ julgava que se tivessem perdido ! Topei lГЎ fГіra o Visconde e fiquei um bocado entretido a conversar com elle ; vai senГЈo quando lembro-me de vocГЄs , volto-me ... E , querendo juntar a acção ГЎ palavra , o gordo trasmontano volta-se , e n ' este movimento vai com a cabeГ§a d' encontro ГЎ barriga do Conselheiro M , que o escutava de pГ© e estava por detraz d' elle , sendo tГЈo violento o embate que o Conselheiro deu um grito de dГґr e caiu para traz sobre um sophГЎ ; e MendonГ§a , perdendo tambem o equilibrio , estendeu-se no pavimento para o lado opposto onde caira o Conselheiro . EntГЈo Г© que nГЈo foi possivel aos convidados presentes reprimirem por mais tempo o accesso de riso que os apoquentava desde a entrada da familia MendonГ§a . Rebentou pois um tal estrondo de gargalhadas , em todos os tons , que attrahiram alguns curiosos que estavam nas outras salas . O Conselheiro , menos pezado que o gordo transmontano , ergueu-se mais depressa , mesmo porque nГЈo chegou a cair no pavimento , impedido pelo sophГЎ . Sua esposa correu a elle e perguntou-lhe : -- Deu n ' alguma parte ? -- Dei , mas levemente , respondeu o Conselheiro com a voz tremula pelo susto ; agora o peior foi o que levei pela barriga ... Creio que me quebrou alguma coisa , continua elle apalpando as algibeiras . -- Talvez o relogio ? atalhou com interesse a mulher ; veja , veja lГЎ ... -- Diz bem , respondeu o Conselheiro , puchando da algibeira esquerda do collete um relogio de ouro com o vidro partido ; escangalhou-me o vidro . -- Pois o senhor , continuou a mulher enraivecida , porГЄm baixando a voz para nГЈo dar escandalo , pГµe-se atraz d' um bruto d' aquelles ? ! ... Ninguem dirГЎ que Г© um conselheiro ! -- Mas senhora , quem podia adivinhar que ? ... -- Ora qual ! Um conselheiro deve adivinhar tudo ! Proferindo esta ultima sentenГ§a , separou-se do marido , e foi tranquillisar os convidados que se interessavam em saber se o Conselheiro soffrГЄra com a pancada , respondendo a todos : -- Nada , nГЈo teve nada ... agora o relogio , esse Г© que ficou escangalhado e hade custar caro o concerto . Entretanto MendonГ§a , que caindo de lado deu com a cabeГ§a no tapete da sala , partira um vidro dos oculos e tentando pГґr-se de pГ© ficГЎra de bruГ§os , posição na qual ainda se conservava , fazendo a figura d' um estudante de natação , tal era o bracejar e o escoucear do rotundo trasmontano , suspenso na proeminencia da barriga , a qual o obrigava a fazer rodizio com o corpo em torno da sala . Sua mulher , para o ajudar a levantar-se , caira-lhe em cima dando gritos , de modo que produziu o effeito contrario obrigando o pobre homem a pedir soccorro , hurrando com voz abafada : -- Alliviem-me , com todos os diabos , nГЈo me carreguem em cima ! DГЄem-me cГЎ a mГЈo ! E bracejava , escouceava e estrebuchava cada vez mais , porГЄm debalde , porque sua mulher continuava sempre gritando e carregando-lhe em cima do corpo . Felizmente para o pobre homem , sua filha que tambem gritava e chorava ao mesmo tempo , para fazer a segunda ГЎ mГЈe , poude ouvir o que o pae implorava , e dando-lhe a mГЈo , para o ajudar a levantar-se , gritou ao mesmo tempo a sua mГЈe : -- O papГЎ diz que se tire de cima d' elle , maman , e que lhe dГЄ a mГЈo . -- Sim , filha ? AntГЈo vamos ajudal- o . E dispunha-se a dar a mГЈo ao marido para finalmente o levantar , porГЄm nГЈo foi necessario , porque dois dos convidados que atГ© ali se haviam conservado risonhos espectadores , vendo que MendonГ§a comeГ§ava a estar afflicto , correram immediatamente a elle e ajudaram-no a levantar . O gordo trasmontano foi pois erguido do chГЈo . O rosto d' elle passГЎra de cГіrado a rГґxo purpurino ; os olhos parecia terem-lhe crescido nas orbitas ; e os oculos , que lhe haviam caГdo para o nariz , estavam com o vidro do olho direito de menos . Tudo isto contribuia para vГЄr no pobre MendonГ§a a mais original caricatura que imaginar se pГіde ; e ainda mais desafiava a hilaridade nos convidados , o riso que o pobre homem queria patentear , mostrando que nГЈo estava molestado . -- Nada Г© ... dizia elle em voz alta a sua mulher , rindo , porГЄm discordemente . Depois , acariciando a filha , accrescentou : -- AntГЈo tu , filha , cuidavas que eu estava morto ? ... Sempre fazias um berreiro que nem um rebanho de cabras ! Ah ! ah ! ah ! Ao ouvirem a ultima phrase de MendonГ§a , e a sua estridente e discorde risada , todos os convidados lhe responderam , em cГґro de gargalhadas , com tal forГ§a , que aturdiram e fizeram entrar em si o pobre ricasso gordo , o qual , dando por pretexto ter de se erguer muito cedo , despediu-se assalvajadamente de todos e arrastou a familia para fГіra do palacio do Visconde , do mesmo modo que entrГЎra . A mulher do Conselheiro , vendo sair a familia MendonГ§a , nГЈo poude deixar de fazer a seguinte observação : -- NГЈo sei onde a minha amiga Viscondessa foi desencantar uma familia selvagem a tal ponto , que Г© indignissima de estar em contacto com pessoas civilisadas e que tenham relogios de preГ§o . -- Pois se aquelle papalvo , responde a Viscondessa rindo , anda atraz do Visconde para que elle influa no PaГ§o afim de lhe obter o titulo de barГЈo ! ... E caminharam para a sala do baile . O Conselheiro , dando o braГ§o a sua esposa , amparava , com a mГЈo do outro braГ§o livre , a barriga , como se estivesse accommettido de dГґres de colica . Os " intimos " reunidos ( ConclusГЈo do baile ) Depois da tumultuosa saГda da familia MendonГ§a , de socegarem os animos , e findarem commentarios e gargalhadas ridicularisando o provinciano , continuou o baile nas salas do Visconde . A Viscondessa , que continuГЎra danГ§ando com o filho da Condessa de , jГЎ dera molivo a conversações em voz baixa , quasi todas suscitadas pela joven pallida , filha do Commendador F . -- Г‰ par effectivo da Viscondessa , nГЈo tem reparado , meu pae ? ... dizia a donzella trigueira ao Commendador F . Teem danГ§ado toda a noite um com o outro ! -- EntГЈo que queres ? respondeu-lhe o pae , rapazeadas . -- Mas nГЈo Г© assim , replicou a filha ; os pares effectivos sГЈo pessimos n ' um baile onde ha poucos cavalheiros , e o que resulta d' ahi Г© que , quem nГЈo tem par effectivo ... por exemplo , eu , que ainda nГЈo dancei senГЈo contradanГ§as com o papГЎ e gosto tanto de polkar ! ... -- EntГЈo que queres , minha filha ? Eu jГЎ nГЈo estou para rapazeadas . -- Eu tambem nГЈo digo o contrario ; muito tem o papГЎ feito ; agora o que desejava era que alguem me viesse tirar para uma polka ao menos ... Se o papГЎ me fizesse um favor ... continuou ella ameigando a voz com velhacaria estudada para conseguir o que pretendia do trigueiro Commendador . -- EntГЈo que Г© ? ... Dize , minha filha . -- Se o papГЎ fosse pedir ao filho da Condessa de , porГЄm em seu nome , se danГ§ava comigo qualquer coisa que nГЈo seja contradanГ§a ... era o papГЎ bem bonito . -- Oh ! minha filha , isso era bom se fosse no tempo das minhas rapazeadas . -- O papГЎ tambem , replicou a joven em tom acre , contrastando inteiramente com a meiguice ha pouco fingida , em se lhe pedindo alguma coisa que nГЈo queira fazer , vem logo com as suas rapazeadas ! -- EntГЈo que queres , minlia filha ? ... Bem vГЄs que Г© verdade estar eu jГЎ lia muito fГіra das minhas rapazeadas ... A filha , zangada , levantou-se bruscamente e foi conversar , para longe do Commendador , com as suas amigas danГ§antes em disponibilidade . -- EntГЈo Vossa Excellencia jura amar-me ? perguntava em voz baixa ГЎ Viscondessa , o filho da Condessa de . -- O senhor Г© incredulo , sem contradicção , respondeu a Viscondessa rindo . Quantas vezes quer que lhe repita mais o que jГЎ lhe confessei ? -- E quando tenciona dar-me uma prova d' esse amor ? perguntou o mancebo , extasiado com o que acabava de ratificar-lhe a Viscondessa . PorГЄm n ' este momento , passando perto d' elles o Visconde , o qual dava o braГ§o ГЎ linda hespanholinha , o mancebo disse com voz receiosa ГЎ Viscondessa : -- Seu marido parece vigiar-nos ; eu retiro-me de ao pГ© de Vossa Excellencia , sim ? -- NГЈo seja crcanГ§a , respondeu a fidalga com todo o sangue frio ; nГЈo vГЄ que meu marido anda distrahido ? ! Podemos conversar afoitamente , que elle nГЈo darГЎ por tal . O peior , continuou ella , reparado para o grupo onde estava a filha do Commendador F , Г© a negrinha estar a observar-nos . E levantando-se , pediu ao mancebo que lhe dГ©sse+esse o braГ§o , e caminhando desaffrontadamente pela sala , conduziu o joven para outra , dizendo-lhe pelo caminho : -- Agora vamos ficar ao abrigo da critica . N ' este momento a orchestra comeГ§ou uma mazurka . A joven hespanhola , que estava compromettida com um cavalheiro , largou o braГ§o do Visconde e tomou o do novo par . O BarГЈo de , que ficГЎra livre n ' esta mazurka , e que havia tempo procurava fallar a sГіs com o Visconde , assim que viu este desembaraГ§ado do lindo par , correu a elle immediatamente e perguntou-lhe com aquella voz sumida que os tratantes sГі sabem empregar nos seus contratos particulares : -- EntГЈo , ha boas noticias ? -- Magnificas , homem ! respondeu o Visconde radiante ; a pequena gosta de ti ... e entГЈo Г© fazeres-lhe fogo activissimo se quizeres tomar a praГ§a com brevidade . -- Oh ! que fortuna ! exclamou no mesmo tom de voz o BarГЈo . N ' esse dia pago um jantar no Matta a todos os nossos amigos . -- E eu ... atalhou o Visconde hesitando . -- E tu has de ter a tua recompensa fГіra parte , por seres tГЈo bom procurador n ' este negocio . -- Bom , isso Г© no futuro , continuou o Visconde ; porГЄm agora pensemos no presente , em que estou tГЈo falto de dinheiro . Dize-me cГЎ , quem serГЎ hoje o pato , como dizem os jogadores da plebe , que nos hade cair nas unhas para a jogatina ? o alarve do MendonГ§a succedeu-lhe aquella catastrophe ... o Conselheiro , esse Г© seguro como todos os demonios ... -- Ah ! exclamou o BarГЈo , como quem teve uma subita idГ©a ; convidГўmos o pateta do Commendador F para a nossa partida depois do baile . -- Boa lembranГ§a ! accrescentou o Visconde ; elle Г© rico , gosta do jogo ... e entГЈo cГЎe . -- Tu dizes que nГЈo tens dinheiro ? perguntou-lhe o BarГЈo , mettendo uma das mГЈos na algibeira da calГ§a e fazendo tinir bastantes peГ§as metalicas . -- E assim Г© , respondeu o Visconde . -- EntГЈo aqui tens para para r , e nГЈo te esqueГ§a o que sabes ; assim que lhe ganhares , guarda logo o d' elle e continГєa a casar d' este . E entregou-lhe dez lindas libras com o cunho da rainha||_Victoria Victoria|_Victoria , as quaes tinham todo o brilho do ouro cunhado que tem tido pouca circulação . -- Bem , percebo , tornou-lhe o Visconde , lanГ§ando-lhe um olhar significativo . Eram jГЎ tres horas da madrugada . As salas do Visconde de , comeГ§avam a estar desguarnecidas de convidados , porque a orchestra tocГЎra a ultima quadrilha e jГЎ se havia distribuido o chocolate . Pouco a pouco foram pois os convidados desapparecendo , e sГі ficaram na sala principal os donos da casa , o Conselheiro M e a mulher , o BarГЈo de , o Commendador F e a filha . Este septimino passou , portanto , para a sala de refeição , onde jГЎ estava na meza uma lauta ceia volante de comidas frias , vinhos generosos , fructas , etc. As sete dentaduras comeГ§aram pois a trabalhar para fortalecerem os estomagos , e depois de haverem esgotado nГЈo poucas garrafas de bachico licГґr de diversas qualidades , o BarГЈo de , vendo que o Commendador F jГЎ estava fГіra do seu estado normal , propoz uma partida de ronda . O Commendador , ouvindo isto , bradou enthusiasmado , por ser um acerrimo amador de jogo : -- Bravo , viva a rapaziada ! Passaram pois todos para um gabinete onde havia uma meza propria para este fim , e logo na primeira parada , na qual foi banqueiro o Visconde , perdeu o inepto Commendador cinco libras que apostГЎra sobre o az de copas . O Visconde recolheu o dinheiro , e depois de ter extrahido d' entre as dez libras da parada , as cinco que haviam pertencido ao Commendador F , como arrependendo-se de nГЈo affrontar a parada , exclamou , depois de substituir as libras que subtraira por outras cinco das suas : -- Nada , vou as dez libras ! E assim continuou a limpar as algibeiras do tolo Commendador . O Conselheiro M * , que nГЈo fizera senГЈo apalpar a barriga toda a noite , depois da cabeГ§ada que lhe dera MendonГ§a , e que bebГЄra ГЎ ceia por quatro , conservava-se de parte , sendo espectador , dizendo alguns alegres dichotes , coisa que surprehendeu os demais convidados , e deu motivo a ser asperamente reprehendido por sua mulher . PorГЄm o Conselheiro tinha a cabeГ§a em tal estado que nada attendia , e dirigindo-se ao Visconde com um risinho avinhado e com os olhos amortecidos , disse-lhe , dando ГЎ cabeГ§a : -- Eu nГЈo me admiro que o Visconde ganhe , porque Г© um portento para todas as emprezas . Nunca me poderГЎ esquecer como elle fez com que o piegas de meu sobrinho jazesse seis mezes no Limoeiro ... NГЈo poude acabar , porque a mulher , tapando-lhe a boca com um lenГ§o , disse-lhe desabridamente : -- Ninguem dirГЎ que Г© um conselheiro ! Forte estupido ! Vamo-nos embora , continuou ella atando-lhe o lenГ§o ГЎ cabeГ§a ; nГЈo tire o lenГ§o da boca para nГЈo se constipar , porque faz muito frio lГЎ fГіra . E arrastou o marido para fГіra do gabinete quasi sem se despedir de ninguem . -- O Commendador , diz o Visconde ao pato depennado , talvez se admire do que ouviu ao Conselheiro M a meu respeito . -- Ora qual ! respondeu o Commendador levantando-se e arranjando-se para sair . Rapazeadas , meu caro ! rapazeadas ... Todos nГіs fizemos o que podГ©mos . E despediu-se da companhia , chamando sua filha , que adormecГЄra com o pezo do alcohol que lhe subira ГЎ cabeГ§a . SEGUNDA PARTE A JUSTIГ‡A D' ESTE MUNDO . As prizГµes em Portugal Os leitores hГЈo de estar lembrados de que deixГЎmos no prologo d' esta obra o infeliz JosГ© Pereira desmaiado nos braГ§os de D. Julia , e entre as garras da policia . Quando tornou a si , o desgraГ§ado mancebo viu-se n ' uma sege que rodava apressadamente , apezar da magreza dos dois quadrupedes que a arrastavam , tendo por companheiros dois individuos da policia , os mesmos que o haviam prendido , os quaes pareciam ter-se encarnado no corpo do pobre orphГЈo . O mancebo , abrindo os olhos , pareceu coordenar as idГ©as e recapitular na memoria alguma coisa jГЎ passada , emquanto um dos dois esbirros dizia ao outro companheiro : -- AntГЈo o que te dezia eu , vГЄs ? JГЎ o melro acordou . Como se vai aproximando ГЎ gaiola Г© como todos os outros passaros : quer naturalmente vГЄr se pГіde bater as azas e fugir . Pois estГЎ enganado , porque se a tal se atrever , eu cГЎ por mim venho disposto a tudo ; e tu Гі ManГ©l ? -- Que estГЎs tu para ahi a bramar , homem ? Bem se vГЄ que o rapaz teve um desmaio de susto . Se te parece que era para menos , com os modos com que eu o prendi ! Espera que eu parece-me que elle quer fallar , continuou o beleguim reparado que JosГ© Pereira abrira totalmente os olhos e olhava para os dois companheiros de viagem com um ar como de quem acorda d' um profundo somno . Com effeito , JosГ© Pereira , tornando totalmente a si , pareceu-lhe primeiro que o presente era o passado , isto Г© , que caminhava para o templo a receber por esposa D. Julia ; porГЄm , puchando pela idГ©a e encarando os dois beleguins , teve uma vaga recordação de ter ouvido vozes de prisГЈo contra si : portanto , dirigindo-se aos dois agentes de policia , perguntou-lhes com anciedade e receio :