EL-REI DINHEIRO ROMANCE POR ARNALDO GAMA Es usted hombre ? pues basta . El dinero es su Dios unico , Y desde el bueno hasta el malo , Desde el sabio hasta el mas rudo , Podia o creer en Dios pero en el oro es seguro . GIL Y ZARATE . D. Frifon . PORTO Livraria DE JACINTO A. Pinto DE A SILVA-Y EDITOR 136 , Rua do Almada 136, 1876 AO ILLM.o E EXM . SNR . Dr. Arnaldo Anselmo Ferreira Braga Bacharel formado em medicina e philosophia pela Universidade de Coimbra , lente de zoologia na Academia Polytechnica do Porto , director do Consultorio Homeopathico Portuense , etc . , etc . , etc. OFFERECE Em testemunho de profundissima e indelevel gratidão , e do mais subido respeito EDITOR Jacinto Antonio Pinto da Silva . Ill.mo e Ex.mo Snr. Um dia a doença entrou na casa de um homem que na sua obscuridade vivia contente , por que era o amparo e o idolo dos seus , e roçando-o com a sua aza deleteria , disse-lhe : A minha presa vaes ser tu . E foi . Dias apoz dias , semanas apoz semanas , um mez depois de outro , o infeliz , prostrado no leito que lhe era ecúleo de tormentos , sentiu o corpo totalmente alquebrado , e o animo de todo desfallecido . A familia extremosa cercava-o de carinhos . Os homens mais altamente conceituados na divina arte de curar redobravam de disvelos para com elle . Mas tudo era inefficaz ; a doença progredia e o saber humano , já quasi se confessava vencido . N ' isto um medico distincto , illustre , abalisado -- sectario de uma doutrina , tão duramente combatida , mas tão eloquentemente triumphante -- foi , encaminhado e inspirado pela Providencia , sentar-se junto da cabeceira do enfermo , e ao ver as lagrimas que derramava uma familia inteira sobre o corpo semi-morto do seu chefe , disse com um sorriso benevolo , capaz de animar a mais pungente desesperança : -- Que pranto é este ? Nós temos aqui um doente , mas não um homem morto . Para o fazer voltar ao que era , só precisamos de algum tempo e de bons cuidados ... E a fagueira prophecia cumpriu-se . Dentro de poucas semanas , o homem que os seus chegaram a julgar perdido para o seu affecto , o homem que ninguem suppunha poder arrostar a ferina investida de uma enfermidade lethal , voltava , restabelecido , aos seus trabalhos , entregava-se , animado do antigo vigor , ás suas lides costumadas . Esse homem , Ex.mo Snr. , sou eu . O medico distincto , illustre , abalisado , que o salvou de uma morte , julgada infallivel por alguns dos mais distinctos vultos da medicina portuense , é V. Exc.a . Uma divida sagrada , immensa , ficou aberta no meu coração . Solvel- a é impossivel . Ella é insoluvel . Mas o que eu não posso , o que eu não devo , é deixar de lavrar uma publica obrigação d' ella . Escolhi para o fazer este livro , dedicando-o a V. Exc.a e inscrevendo n ' elle este convicto mas deseloquente testemunho da minha incommensuravel gratidão . O livro que tenho a honra de dedicar a V. Exc.a , é a ultima producção de um talento como o de V. Exc.a privilegiado : de um conterraneo de V. Exc.a , que se tornou illustre nas letras , como V. Exc.a o é na sciencia ; de um contemporaneo de V. Exc.a nos tempos saudosos da Academia de Coimbra , de que elle foi , como V. Exc.a é , ornamento distincto ; de um amigo , talvez , cujo talento V. Exc.a apreciou e cuja falta , como todos os amadores das boas letras , ainda hoje deplora . Mais que qualquer outro , escolhi este meio de patentear a V . Exc.a o meu indelevel reconhecimento . Alliando a confissão d' elle a uma obra que , como as demais de auctor tão illustre , viverá no porvir , assim consigo , como é intimo desejo meu , perpetuar n ' um padrão , que pela mão do artifice que o lavrou , julguei ser digno de V . Exc . a , a divida que nunca julgará satisfeita o que , cheio de profunda veneração , tem a honra de confessar-se De V . Exc.a venerador e criado eternamente grato Porto , 15 -- abril de 1876 . J. A. P . da Silva . EL-REI DINHEIRO PARTE PRIMEIRA Quanto tens , tanto vales Muchos amigos tuve cuando prospero ; todos me deseaban , me regalaban , y con sumission se me ofrescian ; cuando faltaron dineros , faltaron ellos , falescieron en un dia su amistad y mi dinero . M. Aleman . -- Gusman de Alfarache . O general Bernardo Tovar tinha , em 1841 , sessenta e dois annos de idade . Era de estatura regular , mais alto que baixo , muscular e de membros media namente cobertos de carnes . Tinha sido homem de grandes forças . Aos vinte e cinco annos fazia parar um boi na carreira , com um murro matava um cavallo , e de uma cutilada partia em duas metades o cráneo de um homem . A coragem correspondia-lhe a este valor muscular ; e no meio dos maiores perigos conservava uma serenidade e um sangue frio tão admiravel e tão natural que punha valor aos mais descoroçoados . Era de natureza bemfazejo e bondoso , mas rude e grosseiro como qualquer soldado de leva : apurava o sentimento da honra e do brio até o melindre , e , em geral , as suas ideias eram justas e sensatas ; -- mas era casmurro e teimoso como poucos , e depois de embirrar , cerrava os olhos a todas as considerações , e ia brutalmente para diante . A gotta aguçara-lhe , nos ultimos annos , este caracter naturalmente irritavel e rabugento . A paciencia e a resignação eram virtudes com que nunca travara amizade ; atacado , por tanto , por uma molestia que lhe violentava a natural actividade , e que lhe embaraçava de imprimir ao habito de mandar a expressão despotica que lhe lisongeava aquelle genio que tinha , póde bem imaginar-se o que elle seria depois que se viu amarrado ao terrivel éculeo da inerte podagra . Bernardo Tovar era filho segundo de uma casa nobilissima e vinculada do Minho ; quer dizer , era homem que nascera condemnado pelas velhas leis portuguezas a ser pobre e dependente toda a vida . Desde creança mostrou caracter rixoso , dado todo a valentias e exerciciosmusculares , e nada proprio para as letras , ás quaes jurara odio figadal , desde que lhe metteram o alphabeto nas mãos . Apezar d' esta natural inimizade , o pae , aconselhado por um tio bispoque tinha , dedicou-o desde o berço á egreja , e quiz fazer d' elle frade cruzio . Bernardo , mal teve consciencia da peça que lhe queriam pregar , reagiu desde logo contra ella com toda a violencia do seu genio . O pae quiz leval- o ao principio pela brandura , pintando-lhe com tintas fidelissimas todas as commodidades de aquella boa e santa vida fradesca ; mas vendo por fim que nada vencia com aquelle caracter casmurro , soccorreu-se a um bom marmeleiro , e Bernardo , persuadido por umas poucas de sovas que apanhou , cedeu da teima , e foi estudar . No fim de trez annos de latim , chegou a saber traduzir de cór o Mundus a Domino constitutus est . Mas toda esta sciencia e todo este longo tyrocinio nada puderam com aquelle caracter montaraz e quasi selvagem . Bernardo continuava a raivar desesperado diante da regencia emmaranhada da phrase latina , e vingava-se da coacção do marmeleiro do pae , quebrando a cabeça aos condiscipulos , e fazendo das folhas do compendio buchas para carregar a espingarda de caça . N ' esta occasião os francezes invadiram Portugal . O caracter bellicoso de Bernardo Tovar não pôde resistir a agitação febril , que concitou todo o paiz em favor da independencia . Em certo dia foi á cara ao professor de latim que suspirava pela paz , roubou ao pae dez moedas e um cavallo , fugiu , e foi assentar praça de soldado razo n ' um regimento de cavallaria . Seguiu-se a guerra com todos os seus heroicos episodios . Bernardo combateu em todas as batalhas até aos muros de Tolosa , ficou quatro ou cinco vezes estendido por morto no campo , e quando o exercito portuguez voltou á patria , já elle era coronel , tendo galgado por distincção uns poucos de postos . Mas em lugar de regressar com os seus camaradas , Bernardo continuou com os francezes para a frente . Lord Wellington , apesar dos muitos desgostos que aquelle genio casmurro lhe dava , tinha-lhe grande predilecção . Admirava-lhe aquella prodigiosa força muscular , e sobretudo aquella coragem de leão , e aquelle sangue frio maravilhoso , que tantas vezes testemunhara , no meio dos maiores perigos . Em consequencia d' esta amizade e sobre tudo persuadido por aquella mania bellicosa que tinha , Tovar continuou para a frente com lord||_Wellington Wellington|_Wellington , e com elle foi parar , a Waterloo , onde assistiu ao ultimo acto da grande tragedia que a Europa representava , havia annos , agitada pelo genio de um dos maiores capitães de que a historia do mundo faz menção . Em 1815 acabou a guerra . Então Bernardo Tovar achou-se , segundo a phrase vulgar , como o peixe fóra de agua . Por mais de dois mezes andou impertinente , e como pasmado , porque não podia habituar-se a paz , estado anormal para o seu genio e para o seu organismo . Por fim , desesperado e aborrecido , embarcou para a Asia , levando comsigo o seu camarada José Lopes , conhecido no exercito pelo nome de Pedreneira , em razão do genio teimoso e casmurro que tinha , no que , bem como em coragem e em força muscular , não cedia o passo ao general . Entre estes dois homens havia a mais bem atada e sentida amizade , apezar de parecerem inimigos figadaes , porque não consta que , durante a longa vida que viveram em commum , estivessem um só momento conformes , ou deixassem de ralhar um com o outro . Comtudo a amizade que os ligava era verdadeira ; deixar-se-iam-morrer um pelo outro sem vacillar um momento . Ligava-os um grande serviço que mutuamente se tinham prestado . Em Badajoz , o Pedreneira salvou a vida a Bernardo Tovar , arrancando-o , quasi exanime , debaixo de um montão de cadaveres , que tinham ficado metralhados á bocca da brecha ; em Talavera , Tovar salvou a vida ao Pedreneira , que de certo morreria desamparado no campo , onde cahira derribado por duas cutiladas e um tiro de pistola , se elle o não retirasse , atravessado sobre o cavallo , e o não tivesse conduzido ao hospital de sangue . Estes motivos ponderosissimos , actuando sobre aquelles dois caracteres verdadeiramente generosos e nobres , fizeram o prodigio de ligar , para a vida e para a morte , aquelles dois homens , que pela egual dade dos genios indomaveis e teimosos que tinham , pareciam haver nascido para serem inimigos irreconciliaveis um do outro . A longa convivencia completara a obra principiada pela gratidão generosa : Bernardo Tovar e o Pedreneira chegaram por fim aquelle grau de amizade em que bem se pode dizer que a mesma alma rege : os dois corpos , o que elles não deixavam de demonstrar praticamente , pela egualdade com que teimavam , rabujavam , gritavam e ralhavam de tudo e de todas as coisas deste mundo , não exceptuando , já se vê , elles mesmos . Como ia dizendo , em 1815 , depois de acabada a guerra , Bernardo Tovar embarcou com o Pedreneira para a India , e com elle e comsigo deu finalmente em Macau . Ahi o amor fez das suas , e , por ventura , para demonstrar quanto pode ou quanto é caprichoso , acommetteu o coração de Tovar , e levou-o litteralmente de assalto . Foi o caso . Quando Bernardo Tovar chegou a Macau , já tinha os seus quarenta annos de idade , isto é , estava no vigor da virilidade , e se não era bonito nem pintalegrete , à sua figura tinha comtudo certa elegancia varonil , adonairada primorosamente por um bem tirado desplante marcial . Havia em Macau uma rica herdeira , senhora de quatrocentos contos de reis , que tinha chegado solteira á idade de trinta annos por não ter encontrado o seu typo . Era uma scisma mas scisma que tem entrado na cabeça de muito boa gente do sexo , e que outrosim tem feito com que muitas raparigas fiquem solteiras , se por ventura não teem quatrocentos contos de reis de dote . Ora o typo da sobredita senhora era precisamente o typo marcial , e com quanto nas suas imaginações não tivesse prevenido a grosseria e a rudeza do Apollo bellicoso que sonhava , comtudo Bernardo , pelo lado da marcialidade , ultrapassava todos os limites de aquellas idealisaçeõs excentricas . Já se ve que quem espera trinta annos por um typo , quando o encontra , aferra-o como o naufragado se agarra ao cabo de salvação . A dita senhora começou , portanto , a namoral- o com todo o desgarre , esperando d' elle a solicitude , a que o seu amor e os seus quatrocentos contos lhe davam direito . Mas Bernardo era homem que nunca tinha namorado , e que era até incapaz para o namoro . Todas as suas campanhas amorosas tinham sido pelejadas com as vivandeiras do regimento , e quando muito com alguma tricana , apaixonada da farda , e todas ellas sem excepção tinham terminado pelo assalto da praça á viva força . O namoro , portanto , da millionaria era coisa nova para elle . Bernardo Tovar acommettido pois por um inimigo e por uma manobra desconhecida , ficou prudentemente na espectativa , suspeitoso e murando de nesga as evoluções do contrario . Por fim desenganou-se e entrou decididamente em campanha , já se vê , encarando a conquista pelo lado material , e sem que nem por fumos lhe entrasse na cabeça a idea de que a tudo aquillo presidia uma paixão , e que estas paixões nas mulheres teem e devem ter por desenlace final o matrimonio . Mas a coisa mostrou que havia de ter delongas e grandes delongas , e Bernardo , que não era homem para ellas , resolveu-se a levar a dama de assalto á laia de vivandeira ou de tricana . E d' esta resolução sahiu o amor e o casamento ! Se Bernardo Tovar se tivesse lembrado de tal , tinha-se suicidado primeiro . Resolvido portanto a decidir a batalha por um assalto á queima roupa , Bernardo chamou o Pedreneira a conselho , e os dois combinaram o plano de ataque , que havia de ser realisado no dia seguinte . Chegado este e a occasião propicia , Tovar entrou resolutamente em combate , mas quando , em sequencia das manobras combinadas , ia a pôr em pratica um atrevimento decisivo , a dama sacudiu-se-lhe corajosamente dos braços e assentou-lhe em cheio na cara a mais estoirada bofetada que mão de mulher , amadora de typos marciaes , pode estender em face de soldado affeito a ouvir assobiar as balas . Bernardo Tovar viu as estrellas ao meio dia , soltou um berro que fez fugir a Lucrecia macaense , poz-se a bravejar como um toiro , e por fim sahiu furioso pela porta fóra . O passeio até casa acalmou-lhe o ardôr da face ; quando chegou á porta sentiu o coração em vivas chammas de amor , ao pôr o pé no primeiro degrau da escada lembrou se de casar , ao chegar ao patamar deu um berro pelo Pedreneira , e ao entrar na sala ordenou lhe peremptoriamente que vestisse a farda nova , e que fosse perguntar á dama do bofetão se queria casar com elle esbofeteado . Um raio que tombe aos pés de qualquer christão não produz maior assombro do que esta ordem fez em Pedreneira . Ao principio quiz resistir , mas tudo foi baldado ; o amor fallou mais alto que todos os seus argumentos , e sobre tudo tinha contra elles o capricho do amo , que teimava que havia de casar , visto que o camarada dizia que era grande asneira fazel- o . Por fim , a pezar seu , Pedreneira partiu com a embaixada . Aquella pergunta marcial a dama respondeu marcialmente que sim ; e oito dias depois Bernardo Tovar e a sobredita senhora eram marido e mulher . Coisa admiravel ! A posse não fez n ' aquelle amor a pirraça costumada . Bernardo Tovar continuou a amar sua mulher , chegou a amal-a extremosamente é com toda a violencia do caracter que Deus lhe dera , e a tanto chegou aquelle amor que debaixo da pressão d' elle curvava-se como escrava aquella vontade indomavel e selvagem , que não vergara debaixo do rigor da estreita disciplina do exercito britannico . Dois annos depois a mulher de Bernardo Tovar morreu . No primeiro impeto Bernardo quiz matar-se n ' um accesso de desespero e de raiva ; valeu lhe então o Pedreneira , e por fim ... o tempo . Resignou-se com a vontade de Deus , e partiu para a Europa , trazendo comsigo os contos de reis , o Pedreneira e um filho que lhe tinha ficado , e que lhe garantia o usofructo da outra metade do dote . Ao chegar a Europa achou proclamada a constituição de 1820 . Fez-se liberal como toda a gente o era então , e por teima continuou a dizer , em 1828 , que a constituição era boa , apezar do irmão morgado e de toda a familia lhe gritarem que era pessima . Emigrou portanto para o Brazil , donde partiu para a Ilha Terceira , logo que recebeu uma carta de seu cunhado o conde de Vermoim , participando-lhe que ia arrebentar a guerra . Entrou então em todas as campanhas de 1832 , bateu-se como se tinha batido na guerra peninsular , fez parte das expedições mais audaciosas , e em 1834 appareceu no Minho , já marechal de campo , com mais umas poucas de cutiladas e de balas no corpo , e impertinentissimo por já não haver guerra . Em 1837 veio estabelecer-se no Porto , para completar a educação do filho , fazendo-o entrar no grande mundo . Comprou uma casa fora da barreira da Aguardente , mobilou-a com mais commodidade que luxo , ajardinou-lhe o quintalejo que tinha , e fez construir ao lado d' ella uma espaçosa cavalhariça , onde tinha sempre seis ou oito excellentes cavallos , em que passeava , entretanto que á gotta o não impediu de montar a cavallo . Com todo este luxo de cavalhariça , Bernardo Tovar não tinha uma unica sege . Debalde o filho tentara metter-lhe aquella commodidade em casa , ou mesmo um tilbury , ou um gig , em que viesse pintalegrar na cidade ; o general declarou peremptoriamente ao filho que podia comprar e montar toda a casta de cavallos conhecidos , mas que se tivesse a petulancia de lhe metter das portas a dentro aquellas affrontosas effeminações -- quebro-te a cabeça ! Esta era a phrase sacramental de que usava em todas as occasiões solemnes , em que entendia dever impôr energicamente a sua vontade , o que acontecia pelo menos duzentas vezes cada hora . São nove horas da manhã de um dia calmoso de junho . O general tinha acabado de almoçar , e , segundo o costume , subia vagarosamente pelo jardim acima em direcção a um caramanchão de madresilvas e lilazes , à sombra do qual costumava passar as horas mais calmosas do dia . Ia impertinentissimo ; acabava de entrar em convalescença de um ataque de gotta , e por isso caminhava difficilmente , encostado a uma grossa bengala de punho de oiro , e ao hombro robusto do seu amigo Pedreneira , que n ' estas occasiões lhe servia de moleta indispensavel . Atraz d' elle marchava , lento gradu , e de cabeça e rabo cabido um outro membro essencial da familia . Era um velho cão da Terra Nova , por nome Badajoz , rixão e casmurro como o amo , seu favorito e grande imitador , que se o amo berrava , rosnava com ar ameaçador ; se ria , espreguiçava-se , dando ao rabo e bocejando com estrepito ; se se sentava , deitava-se-lhe aos pés , e dormia como um bemaventurado ; afora , já se vê , quando tinha maus sonhos , em que arremettia , rosnava ou chorava , com grande espanto do general , que nunca pôde explicar o phenomeno , e por causa d' elle chegou a per suadir-se mais de uma vez que o seu cão era maluco . O general caminhava com difficuldade , e acompanhava o seu difficil caminhar com um regougo im pertinente mas imperceptivel . Por fim foi aclarando a palavra , até que deixou distinguir o que fallava . -- E tudo por tua causa , maroto -- dizia elle para o veterano -- tudo por tua causa ! Se me tivesses deixado ficar em Badajoz , não soffria agora isto . -- A culpa é toda sua -- respondeu o soldado em tom afinado pela impertinencia do amo -- Eu bem lh'o dizia ; se tivesse tomado os meus conselhos , não chegava a esta desgraça . A culpa é sua ; agora aguante- se . -- Quebro-te a cabeça ! ... A culpa é minha ! Com cem raios ! ... Mariola ! . . -- bradou o general parando e batendo com a bengala no chão , satisfeito de ter occasião de despeitorar o desespero em que ia . -- É como lhe digo -- replicou o veterano -- Quem quer bebesse menos . Eu bem lhe dizia que aquelle rhum havia de dar cabo de si . Meio quartilho para matar o bicho ! Só pelo diabo ! ... Agora aguente-se ; é como lhe digo . -- Mariola ! ... Quebro-te a cabeça ! -- regougou o general , e continuou a andar . Chegado ao caramanchão , sentou-se , arranjou-se e aconchegou se commodamente em uma pequena mesa que o veterano pôz diante d' elle , depois tirou da algibeira uma charuteira , e collocou-a defronte de si . O veterano foi então sentar-se a distancia em um banco de pedra , e o cão estendeu-se aos pés do amo , poz o focinho entre as mãos , e desandou a dormir . Passado alguns minutos de silencio , o general tirou um charuto da charuteira . -- Pedreneira -- disse em voz de commando . -- General . -- Lume para o charuto . O veterano tirou fuzil e isca da algibeira , petiscou lume , que offereceu ao general , e entretanto que elle accendia o charuto , preparava um cigarro para si . -- Raios e diabos ! -- gritou então Bernardo Tovar , arremeçando furioso o charuto : Não se accende e fede que tresanda ! . : Quebro-te a cabeça ! ... Que charutos ! . . puh ! que fetido ! ... Isto é veneno para envenenar uma divisão inteira ! Cem diabos ! ... -- É mais certo que foguetes á Congréve ! Pelo inferno ! . . -- regougou com raiva o veterano . -- -- E andar um homem ... quebro-te a cabeça ! . . a arriscar a sua vida para que haja um contracto do tabaco com direito de envenenar o povo ! Por mil raios ! Caçara-os eu em Almoster ... Cortava-lhes as orelhas ... -- E eu fazia-lhes fumar d' este tabaco ... E assim dizendo , o veterano , com os olhos abrazeados , apresentou ao general um cigarro bolorento que tinha nas mãos . O general tomou outro charuto , que acéendeu depois de muito trabalho , e poz-se a fumar . De ahi a pouco principiou a sorrir ironicamente e a balancear compassadamente a cabeça ... -- Hein ! E que te parece ? -- disse por fim -- O snr. Francisco ... ! O snr. meu filho ... dormiu está noite no Carmo , preso ... preso por bulhento , por desordeiro ! ... Cem diabos ! E eu aqui amarrado a esta cadeira ! ... -- Coisas -- rapaz ! -- respondeu fleugmaticamente o veterano . -- Coisas -- rapaz ? -- exclamou o general , dando um salto na cadeira -- Quebro-te a cabeça ! Coisas -- brejeiro , de garoto ... Jogar o socco na sua publica , quebrar as costellas a um cidadão honrado ... à vista de Deus e de todo o mundo ... sem respeito pela lei e sem vergonha ... Hein ! ... -- Ora adeus , não faça tanta bulha -- replicou o veterano fumando -- sempre aconteceram d' estas coisas . Lembre-se do seu tempo . -- Mariola ! Quebro-te a cabeça ! ... Pois tu desculpal- o ! ... Mas de certo ; se tudo isto é por tua culpa ! Ahi tens , anda , bate , as palmas ... Ahi tens os resultados da bella instrucção que lhe déste ! ... Anda , continua a encobrir-lhe as maroteiras ... Cem diabos ! Quebro-te a cabeça ! ... Andar ao socco no meio da rua ... quebrar as costellas a um homem pacifico ... Achas isto bonito ? ... -- Acho que quem tem telhado de vidro , não apedreja os dos visinhos -- respondeu o veterano , levantando-se e atirando rudemente com a ponta do cigarro para a frente . -- Mariola ! ... Quebro-te a cabeça ! Pois eu estive alguma vez preso no Carmo ? -- Não senhor , mas esteve preso em Valença ... cem diabos ! . . mas esteve preso na Hespanha muitas vezes : e em Tolosa , se não fosse o lord , era fusilado por querer cortar as orelhas ao general da divisão ... É como lhe digo ... Pelo inferno ! O rapaz não ha-de ser nenhum banana . Tenho dito . -- Mariola ! Quebro-te a cabeça ! -- bradou o general , dando um salto furioso na cadeira . -- Sentido ! -- disse então o Pedreneira , acenando com a cabeça para a rua que conduzia ao caramanchão . Depois deu uma volta sobre os calcanhares , e sentou-se resmungando . O general , com o rosto incendiado pela colera , olhou na direcção que o veterano lhe indicava . De repente operou-se n ' elle completa transformação . Os olhos brilharam-lhe de felicidade , e os labios encresparam-se-lhe com um leve sorriso de alegria intima . Pela rua acima caminhava um moço de figura esbelta e apessoada , e cujo rosto franco e cheio de viveza denunciava uma grande alma e uma grande intelligencia . Trajava com toda a elegancia e sem affectação , e nas maneiras desopprimidas e desaffectadas manifestava homem habituado ao grande mundo , mas franco e leal e incapaz de esconder o que sentisse nem por medo , nem por calculo . Era Francisco Tovar , o filho querido do general , que elle estremecia sobre todas as coisas d' este mundo , e contra o qual estivera a gritar até agora , porque havia passado a noite preso no Carmo . -- Bons dias , meu pae ; como passou ? -- disse o moço aproximando-se do general , cuja mão tomou e beijou respeitosamente . O general deixou ver no rosto toda a amizade extremosa que lhe tinha . Nos labios pronunciou-se-lhe mais o sorriso de felicidade , e a mão correu instinctivamente pela cabeça do filho , como se o quizesse afagar . De repente , porém , Bernardo Tovar atirou-se de repellão para o encosto da cadeira , crispou furiosamente as feições , e exclamou : -- Como passei ? Mariola ! ... Quebro-te a cabeça ! ... Quantas vezes lhe tenho dito que não quero que bulhe com ninguem ? Pelo inferno ! ... Quem sou eu ? -- Meu pae , oiça-me ... -- Quebro-te a cabeça ! Ouvir o que ? Que andaste a fazer de garoto , hontem à noite , ao sahir do theatro ! ... Cem diabos ! ... Que foi preso ... que dormiu esta noite no Carmo ? ... -- Porém , meu pae ... -- Qual porém , nem qual diabo ! Cale-se ! É a ultima vez que lh'o digo -- não quero garotos em minha casa . Andar a fazer desordens , e depois levar uma facada ... um tiro ... uma estocada ... E depois ... quebro-te a cabeça ! ... e eu aqui n ' esta cadeira ... -- E elle a dar-lhe -- regougou o veterano , accendendo um cigarro . -- Quebro-te a cabeça ! Tenho dito ; se me torna a constar que anda ás bulhas , vae tudo com um milhão de diabos ... Mariola ! Andar a fazer desordens por toda a parte , sem vergonha , nem respeito pela authoridade ... e depois poder levar um tiro , uma facada ... -- Dá-lhe que ainda bole ! -- resmungou outra vez o veterano . -- Com cem raios ! Que resmungas tu ? ... Quebro-te a cabeça ! ... -- trovejou o general voltando-se para o Pedreneira . -- Digo ... -- replicou este rudemente -- pelo inferno ! ... que não é preciso tanta bulha por tão pouco ? E olhem quem ! Já lhe disse , quem tem telhados de vidro não apedreja os do visinho ... É como lhe digo . -- Mariola ! Quebro-te a cabeça ! -- gritou o general , furioso como um toiro agarrochado vinte vezes no curro . -- Cala-te , Pedreneira -- disse Francisco Tovar , piscando o olho ao veterano -- meu pae tem razão , mas ... -- Tenho razão ! -- exclamou o general n ' um crescendo enfuriado -- não tenho , não senhor , não tenho . Mil diabos ! Andar a fazer desordens , e depois ... poder levar um tiro , uma facada . -- E elle a dar-lhe ... com cem raios ! ... e elle a dar-lhe -- rouquejou o veterano , levantando-se , e assentando , ao levantar-se , duas grandes palmadas nas coixas . -- Mariola ! ... Quebro-te a cabeça ! -- regougou o general , empurrando a mesa enfurecido . Francisco Tovar , que conhecia aquelles dois genios casmurros , e sentia ao mesmo tempo que tinham tocado n ' aquelle momento o ultimo grau da casmurrice , donde se seguia quasi sempre violenta e interminavel polemica , metteu-se de permeio , dizendo : -- Se me dá licença , meu pae , conto-lhe o que aconteceu , e creio que me dará razão ... -- Razão ! ... Quebro-te a cabeça ! -- bradou o general -- dar razão a uma desordem ! Esta só pelo diabo ! Tenho dito ; se torno a ouvir ... -- Porém , se me da licença ... -- Tenho dito ... tenho dito ... tenho dito ... Quebro-te a cabeça ! ... Não quero bulhas ... não quero bulhas ... não quero bulhas ... -- Oiça-o , com mil diabos ! -- gritou o Pedreneira furioso . -- Mas dê-me licença , meu pae ... -- acudiu Francisco Tovar , para desviar a attenção do general das palavras do veterano . -- Não dou licença , não senhor ; tenho dito , não dou licença ... dou licença , diga , diga lá o que tem a dizer . Ha-de ser bonito , não tenha duvida , ha-de ser bonito ... Quebro-te a cabeça ! Assim dizendo , o general aprumou-se teso contra o encosto da cadeira , e fitou o filho com cara avinagrada . O Pedreneira sentou-se , fazendo um gesto de desespero e de zanga . Francisco Tovar , que tinha conservado no meio da tempestade o mais admiravel sangue frio , puxou uma cadeira para perto da do pae , e disse-lhe sorrindo : -- Não é verdade , meu pae , que por mais de uma vez me tem dito que me dava um tiro se lhe constasse algum dia ter-me eu deixado insultar impunemente ? -- E dava . Quem o duvida ? -- exclamou o general -- Quebro-te a cabeça ! ... Antes morto que covarde . Mas não ser covarde não é ser bulhento , tenho dito . -- Bem o sei , meu pae , e tambem não fiz esta pergunta porque o não soubesse muito bem . Foi só para o recordar . Agora vou contar-lhe o que succedeu e depois veremos se me acha ou não razão . O general derribou-se mais sobre o encosto da cadeira , e contrahiu o pescoço n ' um tremulo que lhe balanceou a cabeça de um modo que significava perfeitamente a ironia teimosa , com que acceitava o desafio do " veremos " com que o filho o provocava . -- Hontem -- disse este sorrindo-se e tirando da charuteira do pae um charuto -- acompanhei ao theatro a familia do nosso amigo Francisco Ribeiro . Ao sahir da sege , dei o braço a D. Adelaide , e com ella me encaminhei para as escadas da segunda ordem , seguido por elle e por D. Manuela . Ao dobrar o patamar do segundo lanço ... Pedreneira tens ahi lume ? O veterano petiscou lume , e Francisco Tovar accendeu o charuto . Ao dobrar o patamar do segundo lanço , deparei pela frente com dois individuos , que estavam conversando um com o outro . Ora deve saber , meu pae , que ha mais de dois mezes que não fallo com aquelles dois homens , apesar de pertencerem ao grande mundo , e não fallo com elles porque ... porque emfim entendo que nenhum homem honrado deve fallar com elles . São dois miseraveis para os quaes não ha homem honrado , não ha senhora virtuosa , nem ligação franca e leal ; dois homens emfim para cuja maledicencia não ha no mundo coisa sagrada ; que por mais de uma vez tem levado com a sua má lingua a intriga e a desgraça ao seio de muitas familias . -- Raios e diabos ! -- regougou o general , aprumando-se na cadeira . -- E depois se aquella ma lingua fosse abonada por um caracter sem mancha , se fosse resultado da misantropia da honra que não transige com as conveniencias sociaes ... Mas nada ; aquelles dois Catões são dois caloteiros safados que vivem das mais abjectas fajardices , que deprimem a honra das mulheres para as rebaixarem até elles , e atacam a reputação dos homens para fazer do silencio mercadoria que lhes produza dinheiro . Ora já vè , meu pae , que um homem honrado não deve apertar a mão a estes homens . O mundo acceita-os e acaricia-os pela frente , reservando-se o direito de lhes dizer nas costas o que sente a respeito d' elles . Eu porém , que nem sempre costumo fazer o que vejo fazer aos outros , entendi que lhes devia dizer francamente : " Os senhores são uns infames ; não lhes consinto que me tornem a comprimentar " . -- Bravo ! ... Quebro-te a cabeça ! Muito bem ... muito bem , meu rapaz -- bradou o general , com os olhos brilhantes de satisfação . -- Ora -- continuou Francisco Tovar -- esta minha intimação teve logar ha dois mezes . Tive o trabalho de a fazer a cada um em separado , porque os não encontrei ambos juntos . Hontem porém encontrei-os reunidos , ao dobrar , com D. Adelaide pelo braço , para a segunda ordem do theatro de S . João . Ao passar por elles ouvi que diziam : " Olá ! então substituiu o primo ! -- pois olha que não lucrou muito com a acquisição . " -- Pelo inferno ! -- gritou o general , fazendo-se fulo de raiva . -- Com mil diabos ! -- regougou o Pedreneira , pondo-se de pé com os punhos cerrados . -- Ouvindo isto -- -- continuou placidamente Francisco Tovar -- já se vê que não fiquei muito contente ; mas para que Adelaide o não ouvisse tambem , levantei a voz , fazendo-lhe notar um rico vestido , que trajava uma senhora que atravessava para um dos camarotes da esquerda . Infelizmente , porém , Adelaide fez-me notar que o pae e a mãe tinham ficado conversando com uma familia no baixo das escadas , e que era preciso parar . Parei , que não tive remedio , e então elles , parece que de proposito , começaram a vomitar mil chanças insolentes contra a reputação de Adelaide , envolvendo-me n ' ellas e a Luiz , que é como o pae ha-de saber , o namoro d' ella . -- E tu ... e tu ... raios e diabos ! ... e tu que fizeste ? -- bradou o general em voz surda e abafando de colera . -- Eu -- respondeu fleugmaticamente Francisco Tovar -- conduzi Adelaide ao camarote ... -- E não esmagaste aquelles morotos ! ... raios de diabos ! ... E deixaste-te insultar e á filha do nosso Ribeiro ! ... Quebro-te a cabeça ! Covarde ! ... Mariola ! ... -- exclamou o general saltando desesperado , na cadeira . -- Oh ! meu pae , bem vê que dormi esta noite no Carmo ... -- Mas não os arrebentaste logo , logo , alli mesmo : mas tens sangue canalha que não se incendeia com esses insultos ! Milhões de diabos ! ... Quebro-te a cabeça ! ... E eu aqui amarrado a esta cadeira ! ... Os olhos de Francisco Tovar lampejaram como os olhos de um tigre . Fitou o general com um olhar , que á mingua de outras provas , era bastante para evidenciar que era legitimo filho d' elle ; depois tirou do charuto uma grande nuvem de fumo , sorriu-se com um meio sorriso ironico , mas forçado , e disse com a mais admiravel fleugma : -- Já vê , meu pae , que sou menos bulhento de que v. exc.a . No meu logar não teria respeitado a dignidade da senhora que acompanhava ; teria perdido a cabeça , e feito uma desordem com grave compromettimento d' ella ... -- Pelo inferno ! ... Que me importava a mim com essas historias ? ... -- Eu entendi o contrario -- interrompeu Francisco Tovar sempre com a maior placidez -- fui deixar Adelaide no camarote , fingindo que nada tinha ouvido , isto para a não amedrontar , e depois ... -- E depois ? Cem diabos ! -- regougou o Pedreneira , que durante a narração estivera olhando Francisco Tovar de maneira que bem demonstrava que , n ' aquella occasião , era em tudo e por tudo da opinião do general . -- E depois desci , e vim procural-os . Encontrei-os n ' uma roda de rapazes a dizer mil infamias a meu respeito e a respeito de Adelaide . Ainda ouvi algumas palavras . Cheguei-me a elles , agarrei cada um por um hombro ... -- Bravo ! bravo ! meu rapaz ... -- E disse-lhes : " Vocês são dois infames , dois canalhas , dois sevandijas ; se fossem dois homens de bem , esmagava-os aqui , mas como são dois pulhas abjectos e indignos , faço-lhes assim ! " e deitei um escarro na cara de cada um . -- Só isso ... só isso ! ... Raios -- diabos ! -- gritou o general que esperava que o filho dissesse que os tinha deixado ambos mortos aos pés . -- Só isto não -- -- continuou Francisco Tovar , accendendo outro charuto -- não pude ser senhor de mim n ' aquelle momento , e cai na fraqueza de quebrar nas costas d' elles a bengala que trazia commigo . -- Muito bem , muito bem , meu rapaz ! -- gritou o general , estendendo-lhe a mão -- se o não fizesses ... quebro-te a cabeça ! ... esmagava-te . -- Mas a coisa não parou aqui -- continuou Francisco Tovar -- depois é que vi , que os dois vinham combinados para se vingarem de aquella intimação que lhes tinha feito , havia dois mezes . Quando eu sahia da platea no fim do primeiro acto , um d' elles chegou-se a mim , e disse-me : " Se o senhor é capaz de fazer aqui fóra , o que acaba de fazer diante de gente , siga-nos " . -- E tu , mil demonios ? ... -- Eu segui logo apoz elle , que á porta se reuniu com o outro , e começaram a caminhar na direcção das Fontainhas . Ao chegar ao largo da Policia , pararam , e mal me aproximei , arremessaram-se logo contra mim armados de punhaes . -- Pelo inferno ! ... E eu aqui n ' esta cadeira ! -- gritou o general , fulo de colera . -- Canalhas ! -- regougou o Pedreneira , rangendo os dentes , e levando contra a cara os punhos cerrados pela raiva . -- Eu fiz pé atraz , e sustei-lhes o impeto com os braços ... : -- Bravo , bravo , meu rapaz ! -- Tirei-lhes os punhaes da mão ... -- Muito bem , muito bem -- Atirei um murro á cabeça de um que o fez ir sem sentidos a terra ... -- Bravo ! bravissimo ! muito bem , muito bem , meu Francisco ! -- Então o outro puxou de uma pistola , e desfechou sobre mim ... -- Milhões de diabos ! ... -- gritaram á uma o general e o veterano . -- Não houve duvida , fez-me apenas esta arranhadella -- disse fleugmaticamente Francisco Tovar , arregaçando a manga , e mostrando ao pae o braço esquerdo , ligado na parte superior . -- Então eu -- continuou , entretanto que os dois lhe examinavam anciosamente o braço -- perdi a cabeça com aquella infame traição . Tirei-lhe de repente a pistola das mãos , e com ella lhe atirei tal pancada , que lhe quebrei um braço e não sei quantas costellas . -- Bravo , bravo , meu rapaz ! -- bradou o general , pondo-se de pé , e atirando-se de repente aos braços do filho , que se viu obrigado a ajudal- o a sentar-se mais de vagar do que se tinha erguido , rangendo os dentes e jurando como um damnado entre as dôres da gotta , que aquelle excesso de enthusiasmo lhe tinha provocado . Depois que as dôres do general acalmaram , Francisco Tovar continuou : -- Ao som do tiro , a patrulha correu , viu aquelles dois homens em terra e a mim de pé , levou-me portanto para o Carmo , onde dormi deliciosamente . -- Pelo inferno ! Porque o não mandou dizer ? -- resmungou o Pedreneira . -- Para que ? Era muito tarde , não quiz incommodar meu pae . E agora diga-me -- continuou voltando-se para o pae -- tive ou não razão para o que fiz ? O espirito de contradicção occupou de repente o animo do general . Encostou-se para traz na cadeira , e disse com cara envinagrada : -- Se tens razão ? Conforme . Quebro-te a cabeça ! ... Se fosse no principio , vá ; mas depois ... -- Alto lá , sôr||_Francisquinho Francisquinho|_Francisquinho -- disse rudemente o Pedreneira , puxando-lhe pelo braço -- deixe-o fallar que elle desdiz sempre todo o mundo . É systema . Tem razão e muita razão ; portanto fez muito bem , e é como todo o homem honrado deve fazer , ainda que lhe arrumem em seguida com as seis balas da ordem no bucho . É como lhe digo ; mas para outra vez não se metta n ' essas alhadas , que o podiam matar . Encommende-me cá o negocio a mim que , pelo inferno ! ... é como lhe digo ... palavra de soldado ! não lhes ficava osso inteiro no corpo . -- Raios e diabos ! ... E eu aqui amarrado a esta cadeira ! Quebro-te a cabeça ! ... -- bradou furioso o general , a quem o alvitre officioso do veterano fizera sentir profundamente a impotencia a que o reduzira a gotta . Francisco Tovar sorriu-se como se sorri todo o homem , que tem a consciencia de que vale tanto como os que mais valem , mas que nas palavras que lhe poem em duvida esta verdade , conhece a amizade sincera que as inspira . N ' este momento chegou ao caramanchão um novo personagem . O recemchegado era nada menos que Francisco Ribeiro , amigo intimo do general e pae de aquella menina que o moço Tovar acompanhava , quando lhe deram motivo para a desordem que o fez ir passar uma noite ao Carmo . Francisco Ribeiro era homem alto , sobre o magro , e que affigurava ter para além de sessenta annos , apezar de que realmente pouco passava dos cincoenta e cinco . O rosto nada tinha de bonito , mas , em compensação , reflectia abundosamente uma grande alma , cheia de bondade , de cavalheirismo e de gene rosidade . Os modos livres e desaffectados , o olhar brilhante de benignidade e de alegria , e a jovialidade expressiva que lhe contrahia os labios n ' um sorriso cheio de franqueza e de lealdade , que ao mais leve motivo se disparava n ' uma gargalhada estrondosa e rasgada , quando fallava com os seus amigos , apresentavam-o como homem sem pretenções de qualidade alguma , serviçal e propenso a correr instinctivamente a valer á desgraça -- um homem emfim d' esses poucos , d' esses rarissimos , que ainda por ahi apparecem para honra da humanidade , na qual vêem em cada homem um egual , em cada egual um amigo ... -- Bons dias , compadre , bons dias -- disse elle sacudindo com força a mão que o general estendeu para elle affectuosamente -- bem sei porque está arrenegado . Olá , meu traga-moiros ( para Francisco ) . Cá está o Pedreneira , bons dias , bons dias . Assim dizendo , apertou a mão do Pedreneira com amizade , soltando uma das suas risadas atroadoras e joviaes ; depois puxou uma cadeira para junto da mesa do general , sentou-se , lançou uma perna sobre a outra , atirando ao mesmo tempo com o chapeu para cima de um banco de pedra que alli estava visinho . O chapeu rolou ao chão , sem o dono dar sequer por isso , e alli ficaria até ao final da conversa , se o Pedreneira não tivesse dado pela quéda , e não acudisse a levantal- o e a repôl- o no seu lugar , depois de o ter préviamente limpado com o cotovello . -- Então , meu compadre , está muito arrenegado com o heroe da batalha de hontem á noite ? Ha ! ha ! ha ! -- disse elle por fim -- pois aqui estou eu que venho fazer as pazes , e trago demais uma boa noticia para apimentar o pratinho . -- Então que tal ? -- disse o general , em cujo rosto bem como no de Francisco Tovar e no do veterano se fazia notar o quanto elle lhes era extremosamente caro -- Mas chega-te para cá , homem -- continuou o general , puxando-lhe por um braço -- Com os diabos ! não vês que te dá na cabeça o sol , que entra por aquella brecha , que não sei que maldito gato -- os diabos o levem ! -- me abriu acolá na muralha das madresilvas ? Francisco Ribeiro soltou estrondosa gargalhada , e desviou a cadeira na direcção que o general indicara . -- Pois a respeito do nosso Francisco ... -- disse elle . -- Basta ! Quebro-te a cabeça ! não quero ouvir fallar mais n ' isso -- disse o general , dando-se ares de pae severo , cujo resentimento se tinha acalmado com difficuldade . -- Então está feita a paz ? -- Sim , a paz ... ha paz . Está tudo acabado ; tenho dito . -- Está bom ; n ' esse caso calo-me , se não ... -- Raios e demonios ! -- interrompeu o general -- mas a tal noticia ? Francisco Ribeiro soltou uma grande gargalhada , batendo ao mesmo tempo duas grandes palmadas na meza , sobre a qual tinha estendidos os braços . -- Recebi hoje carta de Coimbra -- disse elle -- visitas do meu Paulo ... para todos -- accrescentou rodeando os olhos pelos tres amigos -- Fez acto antehontem , e sahiu-se ... nemine discrepante . Ha ! ha ! ha ! ... -- Então só isso ? -- disse o general , pondo-lhe a vista envinagrada . -- E creio que não é má noticia para um pae e para amigos . O general fez um tregeito de aborrecido . -- És um grande asno . Quebro-te a cabeça ! -- disse por fim -- agora vae dar-te por ahi ao desfructe , a apregoar pelas portas que teu filho ficou approvado . Francisco Ribeiro fitou surprehendido os olhos n ' elle . -- É como te digo -- continuou Bernardo Tovar em tom rabugento -- Pelo inferno ! Olhem o caso extraordinario , inesperado , para chrysmal-o de grande noticia ! És um asno , tenho dito . Quem te ouvir ha-de cuidar que teu filho é algum alarve , e que passou por misericordia : o Paulo é uma grande cabeça ; se o approvaram , é porque deviam , nem outra coisa havia a esperar d' elle . É caso corrente , tenho dito . -- Oh ! o meu compadre ... O meu compadre -- disse Francisco Ribeiro , rindo-se e esfregando as mãos , porque a sinceridade do comprimento do general sabia-lhe melhor , apezar da rudeza e da grosseria , que muitos outros que já tinha recebido em phrase alambicada , mas apenas nascidos dos labios dos congratuladores . -- É como te digo -- continuou o general em cujas maneiras se descobria claramente o sincero cuidado que lhe merecia tudo que dizia respeito ao seu amigo -- Asno nasceste , e asno has-demorrer , e quanto mais vais indo em idade , quanto mais asno parece que vais sendo ... Se isso é de natureza ! ... Pelo inferno ! é bom ter alma bem formada , mas ser um banana , um bom- serás ... A proposito , diz-me cá , quando É que tencionas ajustar as tuas contas com o teu grande amigo Vasco de Noronha ? Francisco Ribeiro soltou grande gargalhada , mas apezar da franqueza jovial com que a quiz soltar , deixou ver que não gostava da pergunta . -- Ora meu compadre , adeusinho ; deixemo-nos d' isso , fallemos de outra coisa -- disse elle por fim . O general aprumou-se na cadeira , e fitou os olhos no amigo com severidade e com aspecto irritado . -- A modo que estás maluco de todo -- disse elle por fim -- Raios e diabos ! fallemos n ' outra coisa ! Mas em que te hei-de fallar , senão dizer-te que és um asno , e que abras esses olhos , que parece que andam colados a breu e muito breu ? Francisco -- continuou , pretendendo amaneirar a voz -- -- eu sou teu amigo , pelo inferno ! e tenho dito . Se o duvidas és um mariola , quebro-te a cabeça ! ... Por isso é que não posso ver o que vae lá por tua casa , por isso é que quero fallar n ' isto , por que tu tens filhos , e por muitos milhões que tenhas ... ferve-me o sangue ao verte comido por um mariola , que se filou a ti como sanguesuga , que te suga , que te esfola , que te rouba , engrolando-te com bonito palavriado e com lisonjas pessoaes que não sei se acreditas nem se não . Mil diabos ! Francisco Ribeiro deu nova gargalhada , e depois respondeu , batendo com a mão no braço do general : -- Ahi está com os seus berros , compadre . Isso não é assim . Vasco de Noronha é meu amigo , fique n ' isto . Não precisa de mim , tem muito que comer . -- É teu amigo ! ... Tem muito que comer ! Ora esta ! -- -- exclamou o general fazendo-se fulo -- Quebro-te a cabeça ! Pois tu queres dizer-me quem é aquelle maroto ? ... Pelo inferno ! Quem é aquelle sevandija ? Um morgadete de provincia , pobretão é devasso , que depois de ter consumido o dote da mulher , achou um pobre diabo , um bom- serás como tu , senhor de uns poucos de milhões , a quem se agarrou com todas as unhas , e de quem tira todo o sangue que pode . O general calou-se um momento , e depois continuou : -- É como te digo , Francisco . Sabes que sou teu amigo , que o sou até por obrigação de familia , e por isso attende bem ao que te digo , homem . Põe fóra sentinellas perdidas , reforça os piquetes , e reune toda a força sobre o teu centro ; olha que o inimigo anda-te na cóla , e se pode flanquear-te , cae- te em cima e leva-te o diabo a geringonça . É como te digo . Francisco Ribeiro quiz soltar a sua gargalhada costumada , mas apenas conseguiu sorrir-se com um sorriso mais amplo do que costuma ser esta especie de contracção labial . -- Mas , compadre -- disse-lhe por fim -- que significa tudo isso ? Pois porque um homem é meu amigo , porque frequenta , elle e a familia , à minha casa assiduamente , aqui-d' el-rei sobre esse homem , é um tratante , um mariola , que me come , que me esfola , que me engrola ! ... Ora adeus ; se não lhe conhecesse o genio , compadre , punha-me medo . Isso tudo é filho da desconfiança que tem de toda a gente ; é uma grande desgraça para si . -- Que alarve ! -- exclamou o general voltando-se para o veterano que sorriu com ar de entendido -- Vejam vocês que pobre homem este , que ainda não percebeu a ideia de aquelle vagabundo ! Come-te e recome-te , meu Francisco , e o que é peior é que procura impingir a estouvada da filha ao teu Paulo , e casar a tua Adelaide , a minha afilhada , entendes bem ? raios de diabos ! a minha afilhada , com o estupido do filho , que , primeiro que isso aconteça , racho-o eu a cutiladas em qualquer parte onde o encontre . -- Que visões ! que visões ! -- exclamou Francisco Ribeiro -- mas supponhamos que é assim que não é , general , que não é -- que me importam todos esses planos , todas essas maquinações , se tudo isso cae diante do meu arbitrario " não quero " ? -- Não quero ! -- replicou o general -- Pobre homem ! Pois se elle conseguir desandar a cabeça aos teus filhos , que importa que digas que não queres ? rouba-t ' os , batendo-te até com as ordenações do reino na cara , leva-t ' os , quer queiras quer não , e com elles os teus milhões , pedaço d' asno ! que é o que elle pretende , aquelle troca-tintas . E depois o teu querer ! Raios -- diabos ! É para perder a paciencia ! Pois tu tens querer em tua casa ? Quem a governa ? a snr.a D. Manuela . Quem domina nos teus filhos ? A snr.a D. Manuela . Quem te manda como creado ? A snr.a D. Manuela . Quem decide dos teus negocios ? A snr.a D. Manuela . E tudo a snr.a D. Manuela ; para cima e para baixo a snr.a D. Manuela ; e a snr.a D. Manuela traz a cabeça derrancada pelas antiphonas de aquelle marmello , e quando elle lhe propuzer a negociação , approva-a com todas as forças , e obriga-te a casar os teus filhos com aquellas joias -- filhos d' elle , e tu tens medo , e dizes que sim , que és um Manel-côco , indigno de vestir calças . Francisco Ribeiro tinha soltado trez ou quatro gargalhadas durante esta longa e temerosa verrina . -- Misericordia ! O que ahi vae , compadre ! Dê-me porém licença de lhe dizer que minha mulher é demasiadamente amiga de seu marido e de seus filhos para sacrificar a felicidade da sua familia a imaginações parvoas e ridiculas ; mas quando assim não fosse , por muito amigo que seja d' ella , tenho o bom senso e a coragem sufficiente para lhe retirar a condescendencia , com que até hoje a tenho tratado . -- Que estás tu ahi a alanzoar , homem ? -- exclamou o general -- Vae com essas fanfurrices a outros . Tens medo d' ella que te pellas ... A apostar cem moedas que não és capaz de lhe dizeres isso mesmo na cara ? ... -- E a apostar duzentas que o compadre não se lhe atreve a dizer a ella isso que acabou de arrazoar ? -- replicou Francisco Ribeiro de modo que não deixava a menor duvida sobre a veracidade do que o general acabava de asseverar . Este , mal acabou de ouvir as palavras do amigo , deu um salto furioso na cadeira , e entoou um berro selvagem , como o de um tigre esfaimado na gaiola . -- Não me atrevo a dizer-lh ' o ! Raios -- diabos ! -- exclamou enfurecido -- Aqui mesmo , aqui mesmo , outro dia quando me veio visitar , disse-lhe coisas ainda mais pesadas . Mas quem diabo estava aqui ? Pedreneira , é ou não verdade o que digo ? O veterano , que fumava tranquillamente o seu cigarro , manifestando apenas a sua approvação ou desapprovação por olhadellas ou leves signaes de cabeça , não se dignou responder aquella interpellação . -- Com um milhão de diabos ! -- bradou então o general -- Quebro-te a cabeça ! Não ouves , mariola ? Pedreneira abanou mais outra vez a cabeça , despediu uma enorme baforada de fumo , e respondeu fleugmaticamente : -- É verdade , mas tambem é verdade que ella deu as costas em resposta , e que foi por ahi fóra regougando com uma cara que mettia medo . Pelo inferno ! Antes dez granadeiros da guarda pela frente , do que uma mulher das que fazem caras assim ás coisas de que não gostam . Francisco Ribeiro ficou estupefacto e como quem lhe custava a acreditar o que ouvia , tal era a consciencia que tinha do genio de D. Manuela . Por fim deu uma grande gargalhada , e exclamou , esfregando as mãos : -- -- Bravo ! bravo ! Então como foi isso ? Conta lá , compadre . -- Como foi ? Raios -- diabos ! Foi tudo raso ! -- respondeu o general -- Pilhei-a aqui , e disse-lhe que eras um pedaço d' asno , um banana , um são- bom-homem , que se tivesses figados como os meus , outro gallo lhe cantava a ella . E rematei dizendo-lhe : " A senhora traz essa cabeça trespoutada por aquelle velhaco do Noronha , mas olhe que elle desfructa-a , e o que quer é comela . Pois crê nas fumaças que elle lhe metteu na cabeça ? Tenha juizo . Todas aquellas basofias de fidalgo com que aquelle mariola a enloxa , é tudo peta , em que elle acredita tanto , como eu acredito em Mafoma , e de que se devia dar por offendida se tivesse dois dedos de senso commum . Fidalga a senhora ! Isto só por um milhão de diabos ! A neta de um extirpa-torrões e a filha de um ferrageiro , que ganhou meia duzia de contos de reis atroando os ouvidos aos visinhos a martellar em ferro ! Fidalga isto ! Arreda , atraz , villões ! Fidalgos e mais fidalgos ! ... Raios -- diabos ! quem falla aqui em fidalguias ? Aquelle bigorrilha de outro dia , aquelle villão entre a verdadeira nobreza ! Aqui estou eu que pertenço a uma familia , mais velha do que o reino , e que já antes de haver reis em Portugal tinha uns titulos de nomes arreveçados , de que já me não acordo , mas de que muitas vezes me fallou o padre-mestre , para me congraçar com os cartapacios , quando meu pae embirrou em me fazer estudar latim , aqui estou eu , mil diabos ! e dá-se-me tanto da fidalguia como de todos os diabos dos infernos . Que é isto de ser fidalgo ? Não percebo , por satanaz ! Se é coisa de comer e beber , eis-me aqui que sou fidalgo velho ; mas se é coisa de embofia e de toleima , arreda lá , que não presto para figurante de comedias parvoas . Portanto , tenho dito ; tenha juizo , e veja o que váe por sua casa . -- E ella , e ella meu compadre ? -- exclamou Francisco Ribeiro , estupefacto de tamanha audacia e em voz abafada de medo instinctivo . -- E ella , mil diabos ! -- respondeu o general -- ergueu-se , e foi-se por ahi fóra resmungando e com umas trombas de javali assanhado . E o mesmo , tenho dito . Não gostou ? que me importa ; cá para mim o pão é pão e o queijo é queijo . Se não voltar , que se vá com mil diabos , e tu com ella que és um asno e um banana . Francisco Ribeiro não se atreveu a responder . O general continuava a regougar palavras imperceptiveis com cara envinagrada e raivoso . -- Parece-me , meu pae -- disse então o moço Tovar -- que a sua amizade pelo nosso Francisco Ribeiro o leva longe de mais . A uma senhora tal linguagem ! ... -- Que me importa ? C ' os diabos ! Tenho dito ; quebro-te a cabeça ! -- exclamou o general -- Isto é um borrego , um pedaço d' asno , um alarve . Se soubesse pôr-se no seu logar , não me via eu obrigado a metter-me assim na vida d' elles . Com que direito o trata ella como quem trata um negro ? Por ventura é ella mais do que elle ? tem mais juizo ? tem mais força ? e por ventura a duzia de contos de reis que tem de dote são mais que os muitos milhões de cruzados que este pobre diabo tem ganhado com o suor do seu rosto ? Raios -- diabos ! se fosse minha mulher , tinha-a endireitado ; se não fosse a palavra , era a arrôcho . -- Oh ! meu pae , um cavalheiro bater n ' uma mulher ... -- Pelo inferno ! E que tem isso ? -- exclamou o general cada vez mais furioso -- Pois porque é mulher ha-de ter o direito de amargurar com insultos e vituperios a vida inteira de um homem ? É fraqueza bater em quem é mais fraco do que nós , é covardia , é de villão , pelo inferno ! sim senhor . Mas a mulher não é mais fraca que o homem , raios de diabos ! Se não tem as forças musculares de um homem , tem a lingua -- a lingua de mulher que é mais forte , que pode mais que os raios , os braços , os nervos , os musculos e toda a força de um homem . Por mil diabos ! Pois hei-de ter o direito de enfiar uma espada no corpo de um homem , porque me joga meio insulto n ' uma só palavra , e hei-de eu obrigal- o a aturar dez , vinte , trinta annos uma mulher , que me insulta pelo menos duzentas vezes cada hora , sem que eu tenha o direito de a aquietar com um arrôcho , quando não baste a palavra ! Isto nem os moiros da moirama . Tenho dito , quebro-te a cabeça ! Fôra eu marido d' ella , e veriamos quem governava em minha casa . Aquella sevandija tinha já ido a pontapés pela porta fóra . O general calou-se então . Francisco Ribeiro tirou um lenço da algibeira , com que limpou o suor que estas invectivas do general lhe tinham feito apparecer na fronte , e depois disse-lhe socegadamente : -- Obrigado , compadre , obrigado ; conheço que tudo isso é filho da muita amizade que me tem ; mas creia-me , nem tudo isso é exacto . Manuela é muito amante de seu marido e de seus filhos , e não me trata assim mal como diz ... -- Não te trata mal ! Raios -- diabos ! ... -- Não , não me trata assim . É verdade que tem impertinencias , rabugices , exaltações de genio , que poem em alarme toda a familia ; mas emfim aquillo não é por mal . Deus fel-a assim e demais tudo aquillo é nervoso . -- Nervoso ! nervoso ! -- disse o general abanando a cabeça , e fazendo com a mão uma pantomima expressiva , e que representava ao vivo qual era , segundo a opinião d' elle , o melhor remedio para curar o nervoso das mulheres de mau genio . Francisco Ribeiro sorriu-se . -- É o que lhe digo , e digo-lhe a verdade . Fallo- lhe com toda a franqueza que devo á sua verdadeira amizade , e á recordação de que meu avô foi creado de seu avô , e meu pae creado de seu pae ; e eu tambem , não me pejo de o dizer , antes de ser negociante . É isto que lhe digo , compadre : Manuela , apezar das suas exquisitices , não é capaz de sacrificar seu marido e nem os filhos a embofias , por mais brilhantes que sejam as que porventura lbe queiram metter em cabeça . Na occasião tudo desapparece , diante do amor extremoso que tem á sua familia . Francisco Ribeiro parou um momento , durante o qual o general abanou constantemente a cabeça sorrindo com ironia . -- Vasco de Noronha , compadre -- continuou Ribeiro -- tambem foi injustamente apreciado por si . Tenho esta convicção , e creio tanto na justeza d' elle , como creio em que hei-de morrer . Não digo que não tenha pensado muitas vezes em casar seus filhos com os meus . É pae , e como pae é n ' elle muito louvavel o desejo de estabelecer seus filhos convenientemente . E em quanto a Luiza , por mais que elle o pense e procure realisar , não sei porque lh'o hei-de levar a mal . O meu Paulo , casando com ella , não perde nada . -- Com um milhão de diabos ! Uma loureira , uma cabeça no ar , uma rede de arrastar rapazes ricos ! ... -- exclamou o general em tom de escarneo . -- Oh ! compadre , pelo amor de Deus , não faça tamanha injustiça aquella pobre creança . Não traduza por loucura de cabeça airada o que é pura manifes tação e jovialidade da innocencia . Luiza é um anjo que fazia o meu Paulo feliz . Se elle quizer casar com ella , pela minha parte não faço opposição . Aqui houve de novo um minuto de silencio . -- Em relação a Estevão . -- continuou depois de elle Francisco Ribeiro -- creio que tal casamento nunca se fará . Em quanto eu viver é um impossivel , na litteral e rigorosa significação da palavra . Não duvido que Vasco de Noronha se lembrasse como pae , alguma vez , d' esse enlace , mas como meu amigo , estou tambem convencido que havia de repellir a ideia de unir a minha adorada Adelaide , e sua querida afilhada , general , a um homem que , desgraçadamente , não pode fazer a felicidade de mulher alguma como marido . Esta é que é a verdade , compadre , tudo o mais são visões , são chimeras . Por muito banana que lhe pareça , creia de mim que sei mais da minha casa , e dirijo-a muito mais effectivamente do que a minha Manuela , apezar de todo o medo que põe com o seu nervoso e com as suas impertinencias . As palavras de Francisco Ribeiro tinham uma tal expressiva de convicção , que o general não se sentiu com animo de as contradizer ; mas como aquelle espirito de contradicção não era para se aquietar facilmente , soltou uma gargalhada de incredulidade ameaçadora , e fitou Francisco Ribeiro com cara de mangação e abanando com ironia a cabeça . Este ou não deu ou fingiu não dar por isso . Quando acabou de fallar , levantou-se , e aquelle rosto que exprimia sempre a mais completa jovialidade , deixou ver de repente a mais profunda tristeza . Deu alguns passos ao acaso pelo caramanchão , depois tornou a sentar-se junto do general . -- Devo ser franco , franco de todo comsigo , meu compadre -- disse elle depois de pensar alguns minutos -- devo-o como seu amigo e devo-o como creado que fui de seus paes . Ha algum tempo a esta parte que ando triste , é verdade ; direi até que sou infeliz , porque ... para que lh'o hei-de negar ? ... trago a alma verdadeiramente amargurada . Mas os motivos da minha tristeza , compadre , não são esses que allega , e que não passam de imaginações , de puras chimeras ; as causas da minha tristeza são outras que descobri ha pouco tempo em minha casa , e que me fazem verdadeiramente desgraçado . O general deu um pulo na cadeira , e deixou ver a maior anciedade no rosto . -- Mas então ? ... -- exclamou elle -- com mil diabos ! ... -- A razão da minha tristeza , o que me afflige devéras -- continuou Francisco Ribeiro -- vou revelal- o aqui francamente , porque sei que o revelo entre amigos . Descobri , meu compadre , descobri que minha filha ama seu sobrinho , e que desgraçadamente é amada por elle ... -- E isso afflige-o ? -- exclamaram a um tempo Francisco Tovar e o Pedreneira . -- Então é isso ? Pelo inferno ! ... -- bradou o general , soltando uma gargalhada que pedia meças ás mais atroadoras que Francisco Ribeiro costumava soltar . -- É isto , e isto afflige-me devéras , porque a culpa é toda minha -- continuou Francisco Ribeiro -- Eu devia-o na verdade prevenir , confesso até que me chegou a lembrar algumas vezes ; mas repellia sempre demim a ideia , porque estava convencido que o conde de Vermoim não se apaixonaria por ninguem da minha familia . -- Mas então ... -- balbuciou o general , franzindo as sobrancelhas . -- Suppunha- o de espirito mais alto e mais generoso -- continuou Francisco Ribeiro , cada vez mais triste -- suppunha que a minha familia seria respeitada por um homem , que ... -- Raios -- demonios ! ... pois tu pensas ? ... -- bradou o general , cujo rosto se tornara negro de colera , e os olhos chammejavam como os de uma fera . Pela cabeça passou lhe rapidamente a ideia de que Francisco Ribeiro suppunha o conde capaz de uma acção infame . O millionario comprehendeu-lhe immediatamente o pensamento . -- Penso -- respondeu elle com dignidade -- que o conde de Vermoim não pode casar com minha filha . Penso que o descendente dos Tovares e o representante dos Forjazes é muito nobre para se alliar com a filha de um plebeu . Penso que eu , como creado antigo de aquellas nobres casas , não devo consentir em que sangue tão illustre se deshonre misturando-se com o sangue de um villão . A voz de Francisco Ribeiro tinha ido pouco e pouco abaixándo ; quando acabou de fallar , as lagrimas corriam quatro e quatro pelas faces do bom do velho . -- Bem sei que a minha resolução -- continuou balbuciando -- é a infelicidade de minha filha . Aquelle amor está adiantado de mais . Mas que lhe hei-de eu fazer ? A honra está para mim acima de todas as considerações , e o sangue fidalgo não se compra com oiro . Estas palavras fulminaram Bernardo Tovar que espantou os olhos no amigo sem saber o que havia de dizer . O Pedreneira regougava não sei quê para o lado com ares de enfurecido . -- Snr. Francisco Ribeiro -- -- disse então o moço Tovar , que percebeu a necessidade de desenlaçar aquella situação -- desculpe a minha franqueza as verdades que lhe vou dizer . Essas ideias não fazem , na actualidade , muita honra á sua intelligencia , e o snr. de Vermoim , se estivesse aqui , não ficaria muito satisfeito de ouvir assim censurar seu pae por lhe ter dado um villão por padrinho . -- É verdade , raios de demonios ! -- bradou o general , que os argumentos do filho puzeram immediatamente a caminho -- mariola ! Quebro-te a cabeça ! ... Pois atreves-te a censurar meu cunhado , por te ter chamado para padrinho do filho ? -- Não censuro ... -- Não censuras ! Pelo inferno ! Pois não és tu padrinho do conde de Vermoim ? -- Mas ha uma differença muito saliente entre os dois casos , compadre -- replicou Francisco Ribeiro , que reconquistara a sua natural jovialidade -- Quando o snr. conde de Vermoim , que Deus haja , me deu ordem para assistir de padrinho ao baptisado de seu filho , estava emigrado , e nenhum dos seus parentes consentia em occupar este logar . Demais entre um baptismo e um casamento ha muita differença . E assim mesmo sabe Deus quanto trabalhei para arranjar para o filho do snr. conde um padrinho digno da fidalguia do seu nome ! -- Se me dá licença , snr. Francisco Ribeiro -- replicou o moço Tovar -- ainda assim não fica livre de ter censurado meu tio , porque me parece que , admittindo mesmo essas divinisações da fidalguia , se o conde de Vermoim actual , porque é fidalgo , não deve casar com a filha de um homem da sua cathegoria na sociedade , o velho conde de Vermoim não devia chamar para seu compadre um plebeu que nada valia e que acabava de sahir do numero dos seus creados . Ha-de concordar que se o filho tem espiritos baixos porque ama uma menina que está hoje n ' uma alta posição social , o pae tinha-os muito canalhas abaixando-se a dar a um pobre diabo de um villão o direito de estender a mão para os labios do representante dos Forjazes -- Vermoim . -- O oiro não faz um homem fidalgo , Francisco -- replicou Ribeiro -- O plebeu que comprou uma carta de fidalgo por um punhado de oiro que ajuntou , é tão villão com o seu pergaminho na algibeira , como antes do dia em que a vaidade parvoa o levou a alistar-se entre os actores da tola comedia que este seculo está vendo representar . A vaidade balofa póde transtornar-lhe a cabeça a ponto de o fazer considerar-se fidalgo , mas o ridiculo distingue-lhe pelo cheiro a villania do sangue , que tanto mais fede quanto mais se atreve a aproximar-se do sangue secular . Esta é que é a verdade , Francisco . -- Mais respeito e menos familiaridade , senhor||_Ribeiro Ribeiro|_Ribeiro -- disse o filho do general , tirando o charuto da bocca e sorrindo-se com o ar zombeteiro de quem apanha uma contradicção -- Francisco ! ... lembre-se de que tambem sou um Tovar . -- Raios -- diabos ! -- bradou então o general , que já não podia conter-se -- eu não sou para essas geringonças Pão , pão -- queijo , queijo , tenho dito . Pelo inferno ! Ou tu estás tolo , homem , ou estás a mangar com+nós . Que diabo quer dizer pergaminhos , sangue secular , fidalgo , infernos , diabos , e quantas parvoices estás ahi a alinhavar ? Um pergaminho é um pergaminho , e o sangue é todo um . Tenho dito , não me repliques . Isso hoje é uma borracheira ; os nossos avós , que eram uns lapuzes , acreditavam n ' essas parvoices . Hoje acabou isso , e má peste para o diabo ! que andasse eu ás cutiladas com os migueis , para que um lanzudo como tu me venha dizer essas tolices na cara ! Raios -- diabos ! Quebro-te a cabeça ! És um alarve . Que era d' antes um fidalgo ? Era um mandrião , um caloteiro , um parvo enfatuado , que se julgava superior aos outros , porque o pae , o avô e o bisavô e o diabo que os carregue , tinham vivido sempre lá na toca , mandrionando , comendo , bebendo e dormindo a somno solto , ao passo que o asno do povo trabalhava como jumento , e consentia em lhe respeitar o direito á mandrioneira , á embofia . Isso hoje acabou , foi-se tudo com mil diabos . A constituição dissipou a fumaceira que protegia os alarves . Bem haja ella . Hoje fidalgo é todo o homem honrado e util á sua patria . Eu sou fidalgo , porque vivo com honra e servi o meu paiz ; e tu és fidalgo e fidalguissimo , por que és util á nação e porque és honrado e honrado como poucos , se não que o diga eu , meu cunhado é toda a nossa familia , de quem tens sido fiel amigo , e foste em outro tempo o bemfeitor . Pelo inferno ! se o conde de Vermoim ama a minha afilhada , e a minha afilhada ama o conde de Vermoim , hão-de casar , e quebro-te a cabeça ! ... Tenho dito , e não me repliques , se não , pelo inferno ! racho-te aqui de meio a meio . Assim dizendo , o general levou da bengala que lhe servia de moleta , e ergueu-a , ameaçando um sexto , sobre a cabeça do millionario . -- Veja , meu pae , acolá vem quem decide a contenda -- disse o moço Tovar , apontando para a rua em frente da estrada do caramanchão . -- Anda depressa , Luiz -- bradou o general dirigindo a palavra na direcção indicada -- -- corre , meu rapaz , pelo inferno ! -- Oh ! compadre ... -- -- exclamou o millionario , como querendo fazer conhecer ao general a inconveniencia do seu procedimento . Mas este não lhe importou com as demonstrações do amigo , e continuou a berrar pelo sobrinho , que instado pelos brados do tio , apressou o passo quanto pôde . Francisco Ribeiro tomou então repentinamente o chapeu , correu para a porta do caramanchão , e escapando-se por uma rua lateral , desappareceu por traz de uma parede de cedros e larangeiras que corria em todo o comprimento de um dos lados do jardim . -- Agarra ! agarra ! -- bradou o general , como quem corre atraz de um criminoso . O conde de Vermoim parou , olhando estupefacto ; o Pedreneira ergueu-se para dar cumprimento ás ordens do general , mas antes de o levar a effeito , Francisco Tovar agarrou-o por um braço , e conteve-o . -- Raios -- diabos ! -- bradou o general , voltando-se furioso para o Pedreneira -- Quebro-te a cabeça ! Não ouviste ? O veterano ia à responder , mas o moço Tovar antecipou-se com a resposta . -- Deixe-o ir , meu pae ; n ' esta occasião é melhor que elle não esteja aqui . Momentos depois o conde de Vermoim entrou para dentro do caramanchão . Luiz Vasques Forjaz de Menezes Tovar , conde de Vermoim , era como o leitor já sabe , filho de outro conde do mesmo titulo e de uma irmã do general Tovar , que lhe queria como se fosse filho . O conde de Vermoim tinha vinte oito para vinte e nove annos de idade . A figura era a de um verdadeiro fidalgo , cheio de nobreza e de affabilidade . Era elegante e bem talhado de formas ; e as feições revelavam uma alma cheia de poesia , e um espirito melancolico e pensador . A fidalguia da sua figura e das suas maneiras , o seu titulo e a sua riqueza , a sua generosidade , o seu cavalheirismo e a sua coragem comprovadas por mais de uma occasião importante , tinham-lhe dado no grande e no pequeno mundo tão alta consideração , que muitos se lisongeariam vaidosamente de conquistar sequer metade egual a elle . -- Que é isto , meu tio ? Quem é que fugiu ? -- disse elle sorrindo-se , depois de beijar respeitosa mente a mão do general . Este , depois de atirar trez huns ! e quatro pragas horripilantes , disse-lhe em tom peremptorio , e remexendo-se inquieto na cadeira : -- Vieste em muito boa occasião . Raios -- diabos ! Senta-te ahi e responde . O conde sentou-se , e fitou o tio com curiosidade . -- Diz-me , amas Adelaide Ribeiro ? -- perguntou o general em tom militar . -- Porém , meu tio ... -- balbuciou o conde , não sabendo o sentido de aquella pergunta inesperada . -- Franqueza , franqueza . Falla para ahi e sem rodeios . Raios -- diabos ! Amas a minha afilhada ? Responde . O conde fitou Bernardo Tovar um momento , depois respondeu resolutamente : -- Amo , meu tio . -- Muito bem , pelo inferno ! E és amado por ella ? -- Não sei . -- Não sei ! Com mil diabos ! Quebro-te a cabeça ! Como se entende isso ? -- Amo Adelaide extremosamente , meu tio , mas como nunca lhe disse que a amava , não sei se sou amado por ella . O general soltou um berro estrepitoso , e assentou em cima da mesa um tal murro que a aba que o recebeu , voou em pedaços , fazendo saltar a distancia os pregos das dobradiças . -- Pelo inferno ! -- bradou este por fim -- Esta só pelo diabo ! Pois nunca lh'o disseste ? -- Não meu tio , nunca me atrevi a dizer-lh ' o . -- Nunca te atreveste a dizer-lh ' o -- exclamou o general balbuciando estupefacto -- Com mil diabos ! Eis o que são os rapazes de hoje ! Não tem coragem para dizer a uma rapariga que gostam d' ella ! Ah ! tempos ! tempos ! Pelo inferno ! No meu tempo cá os rapazes , como eu , faziam as coisas dentro em vinte e quatro horas . Olá , Pedreneira , com todos os diabos ! ouves isto ? Diz aqui como eu namorei a mãe d' este rapaz . O veterano regougou um momento e depois disse com mau modo : -- Que diabo me lembro eu d' isso ? Se tenho presente aquella bofetada , em que ella lhe pôz a cara n ' um bolo , por causa não sei de que atrevimento ... -- Porém , meu tio , o que significa tudo isto ? -- interrompeu o conde de Vermoim , que estava morto por descubrir a razão de aquella proposta tão inesperada . -- o que significa ? eu t ' o digo . Viste quem se foi agora por ahi fóra , fugindo que parecia que levava todos os diabos no corpo ? -- Vi atravessar um homem de repente , mas não o pude conhecer . -- Pois era Francisco Ribeiro . -- Francisco Ribeiro ! O pae de Adelaide ! ... -- Sim , elle mesmo , pelo inferno ! Eu te digo tudo ... O general contou então ao sobrinho o que tinha acontecido , e depois de jurar muita praga e de formular para alli uma argumentação que só elle era capaz de imaginar , accrescentou : -- Portanto , se amas Adelaide , e ella te ama , é casar , e está acabado . Mas , pelo inferno ! Vê lá se te achas capaz de fazer a felicidade da minha afilhada , entendes bem ? Se não , não , que emquanto eu fôr vivo , se alguem a maltratasse ... raios de demonios ! Quebro-te a cabeça ! ... E o general , a quem já se afigurava na imaginação o caso em questão , empunhou furioso a enorme bengala , e ergueu-a em forma de sabre por cima da cabeça , com as feições negras e contrahidas pela colera , e os olhos cheios de sangue e a luzir como dois carvões accesos . -- Nada tema por esse lado , meu tio -- disse sorrindo o conde de Vermoim -- sinto-me capaz de fazer feliz a mulher que adoro . Agradeço-lhe sinceramente o cuidado que tem pela felicidade de Adelaide ; mas o casamento que deseja , não pode ter logar por ora . -- Não pode ter logar por ora ! E porque ? Pelo inferno ! -- Por um motivo muito poderoso , meu tio . -- Quero sabel- o já , raios de diabos ! -- Não lh'o posso revelar . -- Mas porque ... porque ? -- Porque o impede a minha honra -- O que é , suspeito-o apenas ; se a suspeita se realisar , nunca serei marido de Adelaide , me-hei antes matar do que commetter uma tal infamia . Se se não realisar , irei então pedir a mão d' ella a Francisco Ribeiro , que apezar de todos os escrupulos não m ' a ha-de negar . -- Não sei se está enganado , Luiz -- disse o moço Tovar ao primo . -- Não me engano -- replicou elle -- Francisco Ribeiro não se ha-de oppôr á minha felicidade . Mas se se recusar como amigo ... ha-de obedecer como creado . Um lacaio entrou então para dentro do caramanchão , trazendo n ' uma salva de prata uma tira de papel escripta a lapis . O general tomou-a e depois poz-se a remexer em todas as algibeiras . -- Pelo inferno ! Lá me esqueceram os oculos -- tornou elle por fim -- Lê isso , Francisco . O moço Tovar tomou o papel , e leu : " De amanhã a oito dias são os annos da minha Adelaide . Espero que não faltem no baile . " -- O snr. Ribeiro foi quem te entregou isto ? -- disse elle ao creado . -- Saiba v . exc.a que sim . -- Podes retirar-te . O creado sahiu . -- Os diabos me levem , se eu lá faltar ! Ainda que va de rastos . Eu vos ensinarei -- disse o general . -- Pois eu só falto no caso de ficar essa noite no Carmo -- disse sorrindo Francisco Tovar . -- Eu ... não sei -- disse o conde tristemente . D ' ahi por algum tempo o general levantou-se e dirigiu-se para casa , encostado ao Pedreneira , apageado pelo velho Badajoz , e acompanhado pelo filho e pelo sobrinho . Eram horas de jantar . Findou uma valsa . E depois de findar , aconteceu no baile , dado por Francisco Ribeiro para solemnisar os annos da filha , o que é de uso acontecer em todos os bailes , depois que uma valsa termina . Os que não dansavam , e que tinham estado até então agrupados em circulo em torno dos valsantes , espraiaram se agora pelo salão ; os paes sorriam uns para os outros , como que a darem-se reciprocamente o parabem da perfeição com que as filhas se riam saltando , abraçadas nos seus cavalheiros ; e os gebos , isto é , aquella parte sensata dos frequentadores de bailes , que vão a elles porque as familias os obrigam e que portanto em todos aquelles episodios não veem com prazer senão os que dizem respeito ao estomago , arremeteram corajosamente com os taboleiros dos doces e dos fiambres , que os creados trouxeram para as salas . Ao mesmo tempo os pares , cavalheiros e damas , começaram a passear nos salões , uns enlevados ainda nas sensações anacreonticas da doença castissima ; outros pavoneando-se na vaidade pateta de terem figurado , um quarto de hora , de bonecos de realejo . Tudo alli manifestava felicidade , nenhuma cara espelhava , nem de leve , cuidado de pezo . Todos traziam a fronte levantada e o sorriso nos labios ; todos se requebravam em si e na festa , e para todos parecia tambem que a vida corria continua n ' aquella bemaventurança . É o que tem os bailes ; n ' aquella embriaguez da vaidade esquece-se tudo . Esquece-o porém quem nasceu para viver da vangloria das futilidades . Os outros não ; os que Deus formou incapazes de se deixarem possuir do genio das bagatellas , esses fogem dos bailes , sentem se mal , se lá vão , aborrecem-se , retiram-se , e sentem-se depois animados de profundo desprezo pela raça a que pertencem . São coisas ; póde bem ser que a razão esteja do lado das funcções ; pelo menos esta ultima opinião tem tão pouco pezo na balança das considerações sociaes , que não faz com que não haja bailes , e que a maior parte da humanidade se não sinta embriagada com o ruido das parvoas vanglorias d' elles . E é de certo por esta poderosissima razão que o baile de Francisco Ribeiro corria animado e n ' elle a felicidade reinava completa e sem gradações ; todos eram felizes e todos egualmente felizes , porque as provas que davam da felicidade : eram as mesmas em toda a gente . Todos sorriam , todos tinham caras : contentes , todos -- vagueavam pavoneando-se , e todos : emfim apontoavam a esmo semsaborias , que jorram somente dos labios de quem não precisa de pensar no dia de amanhã ... E comtudo , se Diogenes entrasse alli com a terrivel lanterna em punho , alli no meio de aquella admiravel bebedeira de luzes , de perfumes , de valsas , de vaidades e de semsaborias , não a procurar um homem que n ' essa não cahia ellet mas a procurar um ente de casaca ou saia balão , que lhe explicasse a razão de aquella felicidade , estou convencido que o não encontrava ... Um baile ! Se eu fosse fadado para altos destinos , dava de bom grado toda a gloria que me estivesse destinada , embora fosse egual á de Homero ou de Camões , a troco de subir com a intelligencia tão alto que chegasse a comprehender o valor razoavel de um baile . Quando eu era poeta , e por consequencia privilegiado por Deus com essa loucura sublime que fantasia e cria mundos na imaginação , e com a alma vive n ' elles vida tão real e verdadeira , como a que vive o corpo sobre este mundo da economia politica , arrebatado pela nobreza de sentimentos generosos que alli se respiram , descrevi assim o que era um baile : Isto dizia eu dos bailes quando era poeta . Hoje que o não sou , que abdiquei o titulo , depois que uns certos criticos do Porto me provaram triumphantemente que não tinha jus a elle -- -- 1.o porque , feita a devida contagem pelos dedos , os meus versos são errados ; 2.o porque não tenho vocação para cantar os olhos , a bocca , o nariz , os lagos , a lua , e nem sequer hoje , digo , que em logar de versos faço prosa chata e desenramalhetada , e que desenganado pelos Horacios cá da terra , troquei a poesia pelo officio de politico , reduzo-me a dizer tambem chatamente -- nunca em dias de vida pude comprehender , nem comprehenderei d' aqui por diante , o senso commum da realidade de um baile . O baile tinha chegado a este ponto . A turba dos convidados , para mais de seiscentos em numero , baloiçava-se , vagueando em mil meandros pelos salões e salas contiguas , alumiadas por mil lumes fulgurantes , perfumadas pelas essencias e adornadas por milhares de rosas , cujas folhas amarellecidas causavam compaixão , e faziam maldizer o capricho impio que as condemnara a morrer asfixiadas entre os miasmas odoriferos de Maugenat e de Coudray . Deixemos a turba , e aproximemo-nos d' esta porta , á umbreira doirada da qual está encostado um moço , cuja fronte espaçosa e desassombrada , e olhar profundo e cheio de luz revela o fogo sagrado do talento . É um poeta e escriptor afamado ... A sociedade respeita-lhe e venera-lhe o nome , não pelas , obras , como ella mentidamente assevera -- que essas poucos as leram , porque esta alta sociedade só lè reportorios e locaes de periodicos . -- -- mas por medo , mas pela mesma razão porque os malvados respeitam Deus quando troveja . Ferreira de Aguiar , que assim se chamava o poeta , tinha uma intelligencia , superior e cultivada , e era dotado , ao mesmo tempo , de um caracter mordaz e sarcastico , que sabia aproveitar com talento para fazer rir os alarves uns á custa dos outros .