URBANO LOUREIRO A Infâmia de Frei Quintino ( ROMANCE DE+UMA FAMÍLIA ) LIVARIA CHARDRON , DE LÉLO & IRMÃO , EDITORES . E. Das CARMELITAS , 144 . PORTO PRIMEIRA PARTE Pelas trevas Era por 1830 , uma noite carrancuda e tenebrosa , como tôdas as noites de janeiro , cm que espessas nuvens negras , impelidas por um forte vento sul , rolam pesadamente nos ares , não deixando entrever sequer a limida fosforecência duma estrêla . O Douro , cujas águas , escuras e profundas , eram mais volumosas e mais rápidas do que de ordinário , marulhava , como que remordendo indecifráveis palavras de raiva e de impaciência , cachoando de encontro aos pequenos , estorvos , que se opunham à sua passagem nas proximidades das margens . Não chovia , mas o terreno estava encharcado , o relâmpago iluminava fugitivamente , o vento gemia por entre os galhos nús das árvores e assobiava pelas cornijas das tôrres . Adivinhava-se uma noite de temporal pegado . Eram os prelúdios do terrível concêrto , que dentro em pouco a natureza principiaria de executar no espaço , desferindo não sei que estranha música nas cordas de água , que se precipitariam das nuvens , por entre o ribombo do trovôo e os formidáveis arrancos da borrasca . Pouco mais seriam de seis horas da tarde -- ou da noite , para falarmos com mais verdade . Na margem esquerda do Douro , completamente abandonada por aquele tempo e Ãquela hora , no logar onde vem abrir um beco estreito e sombrio , fronteiro ao monte em cujo cimo se alongam ainda hoje as vastas ruínas do Seminário , estava atracado um pequeno barco descoberto , dò prôa e pòpa aguçadas , em que as mulheres de Avintes costumam trazer as suas canastras acuculadas de bróas de milho " à cidade " . A todo o comprimento do barco estendiam-se dois remos . Um barqueiro , de carapuça e camisola de lã , fumava plácidamente à ré , tendo o cuidado de tapar o lume , fazendo concha da mâo que segurava o cigarro , certamente para que de longe não se suspeitasse que estava ali alguêm . Fumado o cigarro até onde era possível fumar-se , aquele homem arremessou a ponta ao rio , tirou a carapuça , coçou a nuca , tornou a cobrir-se , e com uma certa impaciência tentou mergulhar a vista nas trevas , em direcçào ao caminho de travessia , que desembocava ali perto . Tinha decorrido meia hora . E rosnava entretanto : -- Ora o raio da minha vida ! ... Se eu agora tinha de passar aqui a noite por um raio de tempo assim ! Não ! dessa é que êles estáo livres ! Só com um raio de diabos ! Inda s ' aquele raio do Neto viesse , sempre bordejávamos até casa ! mas nem êle nem o frete ! ... Má raios partam o diabo do inferno , que não hei-de ter d' oitras fortunas em lôda a minha vida ! Os relâmpagos , mais próximos , alumiavam de uma luz fantástica e azulada as nuvens espêssas e movediças , a escura massa granítica da margem direita com as suas pequenas casas brancas e os seus grandes despenhadeiros , e a água do rio , que , como uma enorme serpente negra com reflexos de aço polido , coleava inlerminávelmente na direcçáo do mar . Era um espectáculo grande , majestoso , que inspiraria uma bela estrofe a qualquer poeta medíocre , mas que só conseguia arrancar pragas ao barqueiro , que apenas via em tudo aquilo prenúncios de um temporal medonho . Daí a pouco , apurado o ouvido na direcçáo do beco escuro , que vinha dar á margem , punha-se de pé . Efectivamente distinguia-se pelo rumor de passos , que alguém se avizinhava . Um vulto apareceu . -- És tu , Neto ? -- perguntou o barqueiro . -- Há novidade ? -- disse de lá o outro com voz áspera e sem responder à pergunta , que o do barco lhe acabava de fazer . -- não ; mas avia-le , que daqui a pouco não sei como será isto . O frete veio ? Do escuro do caminho saíram mais dois vultos . -- não há novidade , meu fidalgo -- observou o Neto , o segundo barqueiro , dirigindo-se a um deles , que mostrava ser ainda moço apesar da barba crescida , e que trajava grosseiramente , como os almocreves e recoveiros , chapéu de abas largas , encascado de poeira , jaquela de saragoça , camisa desabotoada no peito , faixa vermelha à cinta , pantalonas com alguns remendos , meias de lá até ao joelho e grossos sapatos ferrados . O " fidalgo " vollou-se entáo para o companheiro , homem de meia idade , baixo , trajando como êle , e disse-lhe : -- Tem a certeza de que estaráo da outra banda à nossa espera ? -- Como dois e dois serem quatro -- respondeu o interrogado . -- Mas isso sabe-se já , meu amo . E metendo dois dedos da mâo direita na bôca , despediu um silvo agudíssimo , que se reproduziu pelas quebradas alé se extinguir inteiramente . Da outra banda respondeu um assobio igual . -- Era mais que certo -- acrescentou o tal com um sorriso . -- Eu cá sei a gente que me serve , e bastava o tio de vossoria dizer-me a qualidade de negócio que ... -- Bem . Vamos lá então -- inlerrompeu com impaciência o mais moço dos quatro , que era evidentemente aquele por cuja causa se encontravam ali os outros . O barqueiro , que viemos encontrar fumando à pôpa do barco , pegou num rêmo , apoiou-o no fundo do rio , que era ainda margem nos dias em que o volume da água não aumentava pelas grossas invernias , e fê-lo aproar ao tempo que o segundo barqueiro desamarrava a corda , que o prendia a uma grossa estaca enterrada no solo ! -- Queira entrar , patrício . Entre , seu Tôrres ; o negócio inda nos vai dar um bocado d' água pela barba , mas num quarto d' hora estamos do outro lado . A noite é que está mesmo ao pintar . Saltaram os dois homens para o barco , que oscilava um pouco ; em seguida fez outro tanto o Neto ; e os dois barqueiros principiaram , de remar rio- acima , não se afastando da margem . Depois , a uma determinada altura , aproaram à margem direita . Sucedeu o que os barqueiros tinham previsto . Apesar dos seus esforços vigorosos , a corrente impetuosa do rio começou de nrrnstar o barco e houve um instante em que quáse desesperaram de a vencer . As palavras , que soltavam , entrecortadas pela fadiga , diziam bem que a operação era custosa . -- É agora ! -- Rema p ' ra o pêgo ! -- Alma , rapazes ! -- Rema sempre ! -- Falta pouco ! -- Agora ! ... Agora ! ... O suor cata em bica pelas faces tostadas dos dois barqueiros . Os remos dobravam-se sob o impulso daqueles braços vigorosos , levantando grandes espadanas de água . O relâmpago alumiava sempre , a espaços , para tornar mais espêssas as trevas ao apagar-se nelas . Dir-se-ia-que navegavam num abismo . O trovão rolava longinquo . Aquele que ouvimos chamar fidalgo e patrão conservava-se sentado à pópa , vollado para a prõa do barco , de braços cruzados no peito , com o chapéu fora da cabeça e o olhar fixo não sei em que ponto fantástico . No que êle pensava , ignoro-o ; no que não pensava , quáse posso afiançá-lo , era no perigo iminente que corria com os seus três companheiros , se partisse uma das pás ou o movimento compassado e frequente dos remos afrouxasse um instante . Estava pálido , mas duma palidez serena , como a que provêm de longas noites mal dormidas , de íntimos sofrimentos concentrados . Num dado momento como que despertou . -- Ainda falta muito ? -- perguntou êle , passando a mão pelos olhos . -- Agora é um instante , meu amo . O pior já lá vai . não que nem vossoria sabe que estivemos por uma unha negra p ' ra ir todos ao charco , co'um raio de diabos ! -- Importava pouco -- murmurou o da pópa num tom quáse imperceptível . -- Olha lá -- disse o homem baixo e atarracado para o barqueiro mais próximo -- e que horas sáo isto ? -- Isto ... já deve passar das sete um bô bocado . Inda o que valeu foi a chuva não começar a zimbrar e o sudoeste não apertar de mais , quando não , o remédio era a gente acolher-se por esta noite nalguma casa da povoação e fazer a travessia de madrugada . -- Isso é bom de dizer ; mas eu não havia de deixar o rapaz com os machos no caminho , p ' ra os achar amanhã estalicados , e até quem sabe se a boiar pelo rio abaixo , levados no enxurro das águas ! -- Pois será assim , mas o que lhe protesto é que não havia de ser eu que o trouxesse cá p ' ra acudir aos seus machos . E sabe porquê ? É porque não queria que me assucedesse a mim , o que estava p ' ra lh'assuceder a êles : ir a boiar pelo rio abaixo ; ora ai está ! E voltando-se para o companheiro , ordenou : -- Atraca de ré , vira de bordo . Tinham chegado n uma pequena língueta , nas fraldas do monte , em que hoje se vê ainda , como disse já , o derrocado edificio do " Seminário " . O barco atracou . O moço almocreve pôs na cabeça o chapéu , ergueu-se e saltou a terra com o outro , o Tôrres . Os barqueiros tinham levado as máos Ãs carapuças e esperaram . O " fidalgo " tirou dentre a camisa e a faixa uma bôlsa de couro e entregou-a ao Neto . -- Deve ter cinco pintos . Não trago mais comigo . Estão satisfeitos ? -- Muito obrigado a vossoria , patrão . Deus Nosso Senhor o livre de trabalhos , que é o que mais se topa hoje em dia , meu amo . Passe vossoria muito bem . Adeus , seu Tôrres . -- Adeus , rapaziada -- tornou aquele que dava por ésse apelido , seguindo adiante do seu companheiro por uma pequena rampa , que levava ao caminho marginal . Chegados acima , o Tôrres buscou penetrar com a vista as trevas circunstantes , quando um relâmpago iluminou , como por um cspléiylido dia , o céu , a água , as quebradas de uma e outra banda e o estreito caminho em que estavam . A pequena distância , Tôrres viu distintamente um vulto segurando pela arreata uma récua de machos . -- Ele lá eslá -- disse baixo o Tôrres ao seu companheiro , que permanecia silencioso ; e como as trevas , rasgadas pelo raio no lapso de dois segundos , envolveram de novo o céu , a água , as quebradas e o caminho , dirigirum- se ambos , quáse pelo tino , ao ponto que o primeiro dos dois homens apontara ao outro . Uma voz de adolescente interrogou , revelando sobressalto : -- Quem vem lá ? -- Sou eu , homem ! Que demónio ! Parece que estás assustado ! -- Eu mêdo , por mim , não tinha ; o pior eram as bêstas ... -- não viste ninguém por ' hi ? -- Nem viv ' alma . Estou aqui há bôs sete quartos d' hora , e ainda nem fôlego vivo . -- Também a noite não é d' apetecer . Ora aqui tem , meu amo -- disse o Tôrres pegando na arreata das alimárias , que estavam carregadas como se viessem de jornada longa ; e apresentando-a ao companheiro : -- O sôr dr. põe-se à frente dos machos , com perdão de vossoria , e passa a corda do da frente por baixo do braço ; os outros seguem atrás . E agora ... que andas tu a fazer ? -- interrogou , voltando-se para o rapaz . -- Estou a desamarrar as campainhas , que tinha atado p ' ra não tocarem . -- Fizeste bem , homem . Tens mais tino do que eu pensava . O rapaz acabou definitivamente de desamarrar as campainhas e os chocalhos , que pendiam à volta da coleira de cada cavalgadura e deram logo sinal de si . -- Agora , salta p ' ra riba do macho da frente , e vossorin vá tirando nas bostas até à rua do Loureiro , que , em chegando á pousada , já lá devo estar . Ande , que assim não haverá novidade . O moço vai p ' ra ensinar o caminho , sendo preciso . O rapaz colocou-se entre os dois fardos , que compunham a carga da primeira cavalgadura , e o Tôrres , dando duns palmadas no anca da última , fez estalar três vezes a lingua no céu da bôca , de um modo particular aos almocreves e arrieiros quando querem fazer caminhar ou apressar a andadura aos muares . Pôs-se o moço a caminho à frente das alimárias , que chocalhavam as suas coleiras de campainhas e guizos , tomando em direcção á cidade por aquela tenebrosa noite alumiada de quando em quando por clarões rápidos e deslumbrantes . Tôrres ficou-se quieto por algum tempo a ver desfilar a récua , e , metendo súbito pernas á estrada , naquele passo largo e movimento de braços cadenciado , que caracleriza os homens afeitos Ãs grandes jornadas , passou adiante do seu antigo companheiro , dizendo-lhe a meia voz : -- Eu cá vou . Daqui a meia hora lá devo estar . Corage , meu amo ! falta pouco ! E desapareceu no escuro . O almocreve A chuva começou de cair em grossas gotas , como acontece de ordinário no avizinhar-se uma grande trovoada . O moço almocreve seguia vagarosamente , importando-lhe pouco os prelúdios do temporal . Murmurava consigo , repetindo us últimos palavras do companheiro : -- Falta pouco ! ... Mas quem disse Ãquele homem que faltava pouco , se eu mesmo não sei quanto me falta ? se apenas sei que principia agora ? ... -- E depois de alguns instantes de recolhimento intimo : -- Qual será o meu destino ? ... e qual me valia mais : arrojar de mim êste fardo insuportável da vida , amolgar o crânio na cruzeta de ferro da primeira masmorra em que me fechassem , ou lançar-me no acaso das aventuras duma vida nómada , errante , sem futuro ? ... Morrer ! mas a morte é um beneficio quando ... O murmúrio da última silaba gelou-se-lhe nos lábios , -- recuou como horrorizado . O espaço acabava de iluminar-se , e o infeliz viu diante de si um abismo . Dois passos mais na direcção que levava , e teria desaparecido num precipício talhado a pique , na rocha , e em cuja profundidade o rio fazia ouvir o marulhar confuso dos suas ondas escamosas . E mudou de direcção , rentando pela base do monte , que murava de um lado o caminho marginal que seguia para o Pôrto . Aquele caso parecia vir de molde para responder Ãs suas consternadas ideias . Instintivamente arredára- se da morte , cujos benefícios naquele instante mesmo reconhecia . -- Que infame natureza esta ! -- pensou êle pouco depois , revoltando-se contra si próprio . -- Como é covarde e miserável esta criatura , que se chama rei da criação ! ... Porque estremeci , porque recuei diante daquele precipício ? ... -- Depois dum breve silêncio , mudando-lhe&lhes+o de expressão o rosto : -- E êles ? ... Egoista ! egoista é que sou ! porque nem sequer me lembravam os novos desgostos que lhes ia causar ! Egoista e ingrato ! Os grossos pingos de chuva caíam com mais frequência , rolando no chapéu desabado do pensativo recoveiro ; o trovão ribombava mais perto , rolando pelas quebradas , o vento gemia com mais estranhos gemidos por entre os galhos nus das árvores e assobiava com mais agudos silvos nas arestas dos rochedos , o temporal estava iminente . O alheado caminheiro , todo recolhido consigo , nem por isso alargára o passo indolente e incerto . Não parecia da mesma opinião o rapazola , que encavalgava nas cargas do macho dianteiro , porque principiou de chamar : -- Ó snr. ! ó meu amo ! psiu ! não ouve ? Ó patrão ! Efectivamente êle não ouvia , tão profundo era o seu recolhimento . O outro continuou elevando a voz : -- Ó patrão ! ó patrãosinho ! ó meu amo ! O pensativo condutor dos machos como que despertou . -- Que é ? que queres ? -- interrogou êle surpreendido . -- Com perdão de vocemecê , afoite o passo , quando não nem daqui a três horas estamos na pousada . Só então é que o distraído almocrêve percebeu que a chuva caía já com tal frequência , que em breve o deixaria alagado . Fez o que o rapaz lhe disse . Apressou o passo . Dentro em pouco chegaram ao cais da Ribeira , uma parte do vélho burgo portuense , com a sua muralha negra dominada por edificações mais recentes de dois e três andares , com os seus espêssos arcos de cantaria , soturnos e misteriosos , e a sua ponte de barças , fronteira , a cuja história anda ligada a notícia do maior desastre , que enlutou o Pôrto , -- a pavorosa hecatombe de algumas centenas de homens e mulheres , vélhos e crianças , afogados no Douro , fugindo à sanha das tropas de Soult . Entre dois arcos , o vento fazia bamboar uma lanterna aceza , cuja luz débil projectava uma frouxa claridade Indecisa , cortada de sombras hesitantes , sóbre um retábulo pintado a óleo , que era , e é ainda hoje , assunto de muita veneraçáo para grande parte da população portuense e arredores . A pintura representava e representa , apesar de já não ser a mesma , aquele mesmo local da Ribeira , e o povo , debandando na frente dos invasores franceses , que o atropelam com os seus cavalos , ou retalham com as suas espadas , ou fuzilam a tiros de espingarda ; o povo , homens com trouxas , mulheres com crianças , vélhos de muletas , invade a ponte , que , rôla a mais de meia distância , para evitar a passagem da soldadesca , lhe abre a voragem , que o engole , até formar um cugulo de cadáveres . Ao passarem pela frente do retábulo , cuja lanterna o vento agitava com fúria , o rapaz , que se instalára entre as duas cargas do primeiro macho , tirou reverentemente o seu chapéu , conservando-o algum tempo fora da cabeça . O companheiro nem sequer deu pela lanterna e pelo retábulo , sempre abstracto e maquinal . Subiram a ingreme ladeira da rua de S. João , atravessaram o largo de S. Domingos , entraram na rua das Flores ... Eram oito noras e meia da noite , e nem viva alma em todo êste trajécto , a não ser um ou outro vulto que recolhia pressuroso , rebuçado no seu capote , com o manifesto propósito de escapar ao temporal , que principiára de desencadear-se rebramindo por sôbre as habitações da cidade e esfusiando a todo o comprimento das ruas e travessas . Percorreram a rua das Flores , e , apesar de ser , ao tempo em que principia esta narrativa , a rua mais comercial do Pôrto , Ãquela hora nada o fazia suspeitar ; a escuridão era profunda ; e apenus o chocalhar e tropear dos machos nas lages da calçada quebrava o silêncio , em que tóda estava mergulhada . Quando chegaram à extremidade da rua , que desemboca num largo , tendo quáse na sua frente , erguendo-se como uma grande mole escura , o gradeado e triste mosteiro de S.||_Bento_das_Freiras Bento|_Bento_das_Freiras das|_Bento_das_Freiras Freiras|_Bento_das_Freiras , o almocreve , na sua ignorância ou na sua abstracção , em vez de dobrar para a direita , para a rua do Loureiro , onde o estava esperando o Tôrres , seguiu para diante com os animais . Chamou-o do seu êrro o moço , a quem já tardava a fumegante malga de caldo e a enxêrga remendada . -- Ó senhor ! ó patrão ! não é p ' r ' aí ! tome p ' ra trás ! -- Entáo para onde é ? ... Quáse que não sei onde estou ... -- disse o outro a meia voz , parando e buscando orientar-se nas trevas . -- Aqui é o largo de S. Bento , meu amo ; mas já agora tem de virar com os machos e ao depois rodear o convento ... -- Ah ! sim ; já sei ... E meteu pela rua indicada , murmurando num tom de profunda tristeza : -- Vou finalmente vê-los ... e Deus sabe depois até quando ! ... Para alêm dum oratório , que ainda hoje se vê na rua do loureiro , e em cujo interior bruxuleava a pequena luz de uma lftmpada , suspensa de um braço de ferro chumbado na parede , a rua fáz um cotovelo e era justamente ai que estava situado o albergue de que falára o Tôrres , e que , apesar de reformado , -- quáse diriamos aristocratizado -- ainda hoje é para tôda a gente a estalagem do cantinho . Ali se recolhiam os forasteiros menos abustados para se darem o luxo duma hospedaria ; na sua vasta cavalariço imunda recolhiam os almocreves as suas récuas e buscavam dormida os recoveiros que vinham do sul . O rapaz ia dizer : -- É aqui , patrão ! Pare lá . Mas antes disso já um homem se havia aproximado do moço almocreve e lhe dizia em voz baixa : -- O tio de vossoria está lá em muito cuidado , e já mandou aqui duas vezes perguntar por mim . Era o Tôrres . -- Que lhe respondeu ? -- Da primeira vez ainda eu não testava cá ; da segunda mandei-lhe dizer que vossoria não se podia demorar , e que tam depressa chegasse como corria logo a casa . -- Bem ; mande recolher os machos ; eu vou só ... Daqui à rua Chã são dois passos , e a noite está escura e chuvosa para que andem por fora os espiões do paternal govêrno de el-Rei Nosso Senhor ... -- e sublinhou estas palavras com um sorriso doloroso . -- Agora , adeus , snr. Tôrres ; e mil agradecimentos por todos os seus serviços , que foram muitos e valiosos . O mancebo apertava a mão do prestimoso homem . Entretanto o rapaz tinha descavalgado e recolhia as alimárias . -- Ora ! vossoria tem coisas ... -- redarguiu o Tôrres -- mas há-de vir molhado por dentro ... apanhou uma bátega , que não era p ' ra cristões . Se quer mudar de roupa antes de ir ... -- Não ; mudo em casa ... adeus ... -- Queira-me vossoria desculpar , mas eu é que não posso consentir que vá só . Não há nada mais fácil do que topar por ' hi um aguasil , que lhe dê a voz de preso por suspeitas , e é preciso haver quem lhe responda logo com meio palmo de aço pela barriga dentro . O outro tentou replicar . Tôrres prosseguiu com modo resoluto : -- Demais a mais eu prometi ao tio de vossoria , a quem devo muitas obrigações e que me faz a mercê de ser meu amigo , que lhe apresentaria o sobrinho livre de perigo , e não dormirei sossegudo em toda a noite , se o não vir entrar p ' ra a sua casa dele . Mas assossegue ; irei cá de longe na alcateia , e em vendo que já não faço mingua , são dois saltos emquanto me apresento na pousada , e outros dois p ' ra cair em cheio em vale de lençóis ... seis léguas por dia e por mau tempo , quáse sempre de noite , cinco dias a fio sem parar , estafa um cadáver ! ... e eu , o que me admira mais , é vossoria ter agúentado todo o caminho , ai como qualquer recoveiro ! -- Quando se é novo ... -- disse o outro encolhendo os ombros ; e resolutamente : -- Bem , meu amigo ; faça o que entender : até ámanhâ ... -- Até ámanhâ . Passe vossoria bem a noute , e nada de scismas ! O moço almocreve seguiu pela rua do Loureiro , e , tendo chegado a meio da rua Chã , orientou-se pelas casas , olhou em tômo , esforçando-se por devassar as trevas . Depois , empurrando rápidamente uma porta , que estava apenas encostada , entrou , fechando-a sôbre si . Tôrres , que o tinha seguido muito na sombra , cosido com os prédios , articulou um monossílabo , que revelava a sua satisfação por haver conduzido a bom têrmo aquela emprésa , cujo risco mal nos é dado suspeitar , e voltou para a estalagem donde saíra ao encontro do companheiro . Entretanto éste último , depois de seguir ao longo do portal , começou de subir as escadas do interior do prédio alumiadas pela indecisa luz de um candeeiro , pousado num degrau do segundo lanço . -- És tu ? -- perguntaram de cima . -- Sou eu , meu tio -- volveu o recêm-chegudo , apressando-se a subir . Alguns segundos depois o moço almocreve , tendo arrojado o amplo chapéu para longe , estava nos braços de um homem de quarenta e quatro anos , de uma senhora por igual idosa , e de uma pálida e trémula menina de dezoito , que o rodeavam de soluços e o molhavam de lágrimas . Ao mesmo tempo dizia êle com a voz embargada pela comoção , esforçando-se por incutir-lhes ânimo : -- Entáo , que é isso , meu tio ? Porque chora assim , minha tia ? Quem tem , Leonor ? E abraçando-o de novo , o homem , a quem o recém-chegado chamára tio , soluçou a custo : -- Ah ! Frederico ! meu pobre Frederico ! E , por algum tempo , foi impossível aos actores desta scena articular uma só palavra . In vino veritas Ia entrar na grande ampulheta do tempo o ano de 1830 . Coimbra , e mais particularmenle a academia sentia-se trabalhada por essa febre violenta , que tinha a sua origem na ânsia da liberdade e o seu fim provável nos ferros da prisão , no abandono do destêrro ou no laço armado na ponla duma corda suspensa do triângulo . Como acontece em todas as febres , contava as suas horas de exaltação e de delírio , e nesse estado era terrível , medonha ; clamava , estrebuchava , assassinava ; -- depois vinham as denúncias , as devassas , as prisões , e sucedia umu nova fase , a do abatimento da prostração , e tramava e conspirava e tudo era mistério . Nesse estado , porém , como no outro , ou abatida ou exaltada , o Ídolo era sempre o mesmo , a adoração calorosa e fervente . A data em que principia êste capitulo , Coimbra conservava-se ainda muda diante do terrível espectáculo que , trés meses antes , lhe oferecêra no Pôrto a alçada , arrojando para o vácuo , suspensos pelo gasnete , os corpos hirtos de alguns mártires da nova religião politica . Alêm disto , Ãs fechaduras das portas , nas mesas dos botequins , ao tabique das alcovas , em tôda a parte onde se encontrassem duas pessoas , havia a certeza de existir algures um ouvido a mais , com que não se contava , a receber as palavras , os projectos ou as confidências do adventício , do correligionário ou do amigo para as transmitir , nem sempre fielmente , ao respectivo juiz do crime . Depois seguia-se o processo ordinário contra aquele ou aqueles de quem rezava a denúncia , -- a ordem de captura , a cadeia , o julgamento , a condenação -- o cárcere , o destêrro ou o patíbulo . Acrescentemos ainda que êsses espiões não se limitavam à sua tareia , a escutar Ãs portas . Êles possuiam artes de arrancar o segredo das suas convicções liberais Ãqueles mesmos que tinham sabido guardá-los como num cofre . Para os espíritos concentrados tinham as inequívocas provas de simpatia , os bons serviços prestados , as atenções da amizade solicita , até chegarem ao capítulo das confidências mútuas , -- alvo das suas muquinaçôes . Para os caracteres exaltados , ainda que precavidos , tinham a polémica violenta em que fervilhava , com a defesa das mais negras atrocidades , o insulto covarde à memória de homens que tinham o respeito de todo o coração lial e generoso ; -- daí a explosão , o protesto . Quando o infeliz caia do seu entusiasmo na realidade , era como se um abismo se lhe tivesse desmascarado aos pés . Estava irremediávelmenle perdido . Desde êsse momento não tinha a fazer senão uma destas coisas , fatais como as pontos diamantinas de um dilema terrível : Esperar o cárcere ; Apressar a fuga . Digamos ao que vem tudo isto . Frederico , o moço almocreve , que vimos atravessar o Pôrto em direcçáo à estalagem da rua do Loureiro , por uma noite aspérrima de janeiro , guiundo uma récua de machos , estudava então o 3.o ano jurídico na Universidade de Coimbra . Era inteligente , dedicado e bom . Isto bastará para que o leitor fique sabendo que no seu coração tinham deitado fundas raízes as novas idéas , que então fruleavuin frutos de perseguição e de sangue . No entanto , graças aos reiterados conselhos de seu tio , abastado negociante portuense , aos pedidos de sua lia , que o estimava como filho , e á doce imagem de sua prima Leonor , Frederico tinha conseguido sofrear dos , de cálice em punho e os olhos fitos nos lábios do orador , esperavam a continuação do discurso . Depois de uma pequena pausa , tendo traçado demosténicamente a sua longa capa , e , por um movimento sacudido de cabeça , desemburaçando a testa das negras madeixas de cabelo , que principiavam de lhe&lhes+a afagar com tenacidade , prosseguiu : -- Eu espero com verdadeira ânsia a duodécima badalada , que nos anunciará o último inslante dêste+este ano de 1829 , fatal para quantos teem na consciência o culto sagrado da justiça , da razão e da liberdade ! Até êsse momento estarei debaixo duma pressão medonha , e considerar-me hei sob a influência nefasta duma estrêla maligna . Vejo-o daqui , esperando a sua hora , como um criminoso , ínclinando- se no vasto abismo dos séculos , com todo o seu cortejo de inocentes vitimas supliciadas , a sua alçada feroz e sanguinária , os seus patíbulos aos pares , e os seus póstes rematando por cabeças lívidas , com os lábios entreabertos . Meus srs. ... -- e inlerrompendo-se , porque o relógio naquele instante batia compussadarnente a meia noite : -- Começam de soar as dôze badaladas fúnebres , que anunciam o desaparecimento da nuns fúnebre data ! ... Depois , esperou que o martelo batesse a última pancada , e o rosto como que se lhe iluminou de súbito . Ergueu então o cális e exclamou com a voz desoprimida . -- Finalmente ! ... Meus amigos ! Saúdemos o ano de 1830 ! que êle seja bemvindo ! ... Académicos ! bebamos ao futuro ! -- Ao futuro ! -- repetiram os estouvados moços , esvaziando os cálices , sem atentarem nos desconhecidos , que os observavam , trocando-se olhadas de inteligência . -- In vino veritas -- disse por entre dentes o indivíduo de barba grisalha e aspecto severo para os seus dois comensais . -- Não acha v. s.a prudente que nos retiremos ? -- observou-lhe o da direita , homem nédio , de morosas e poucas palavras , o mais completo exemplar do comodista . -- Não ! -- volveu o outro com certa autoridade , e num relâmpago de cólera . -- Cumpre ver tudo ! Hoje são apenas estróinas , àmanhâ serão conspiradores ! A êste tempo já Frederico Veloso se tinha erguido com o cális a trasbordar . Tinha o olhar brilhante , os cabelos em desalinho , os lábios sêcos , a mão trémula . -- Académicos : -- disse êle . -- Há um ano que a esta mesma hora , em tórno desta mesa , éramos os mesmos a saudar 1829.. . e mais Irés honrados moços , cheios de talento e de futuro , cuja sorte lembro com o coração trespassado de dór . Um diz-se que percorre a França , quâse mendigo ; os outros esperam na cadeia a sentença que os deverá atirar para os sertóes de África ... Condiscípulos ! liu bebo ao próximo regresso do primeiro , e à libertação completa dos segundos ! Acolheu eslas palavras um clamor entusiástico e os cálices esvaziaram-se de novo . O dono da estalagem entrou na sala relanceando olhares consternados sôbre os moços académicos . O homem da barlia grisalha observava-o e bateu com a faca no prato para lhe chamar a atenção . O dono da estalagem acudiu respeitoso . -- Previno-te de que , se fazes o mfnimo sinal a êstes rapazes , dormes já hoje na cadeia -- disse êle baixo , mus com intimativa . -- Conhece-los ? -- Saiba vossa senhoria que sim ... -- Sáo todos estudantes ? -- Sáo , meu senhor . -- Bem : ámanhã irás dar-me os seus nomes . Por hoje ... -- e como se lhe acudisse uma idéa : -- Trazes-me tambêm uma garrafa de vinho e cálices . Os dois comensais olhurnm- no com espanto . -- Sim , meu senhor -- disse o hospedeiro apressando-se a cumprir as ordens recebidas . -- £ preciso que êles se declarem mais abertamente , se é possivel ... -- Mas corremos um grande risco , ilustríssimo snr. . . -- disse o comodista bastante inquieto . -- Eles são muitos e ... -- E estão bêbedos , sossegue , João Manuel . Se não aproveitássmos a ocasião , não se proporcionaria outra tam cedo , e é preciso acabar com êste núcleo de rebelião , que traz sobressaltados os espíritos dos bons e liais portugueses . Mas a justiça quer provas irrefragáveis paru a condenação dos réus , e eu obtê-las hei dêstes+estes , por forma que a satistaçam a ela e tranquilizem a minha consciência de magistrado . Vai ver . O desconhecido ergueu-se , -- tinha uma nobre presença , -- e dirigindo-se aos académicos , que prosseguiam na série não interrompida das suas libações , tendo passado da liberdade ao amor , disse com uma grande serenidade aparente : -- Meus snrs. : Há quáse trinta anos que eu deixei os bancos da Universidade , e recordo saudoso o tempo feliz em que me reunia nesta mesma sala , com os meus condiscípulos ; por forma que , voltando hoje a Coimbra , depois de uma tam longa ausência , o meu primeiro cuidado foi vir até aqui recordar-me ; e ao ver-vos e ouvir-vos , o passado como que reviveu na minha alma , iluminado pela doce e meiga luz da saudade . Srs. ; o académico de 1802 pede aos seus irmãos , os académicos de 1830 , em nome da bôa camaradagem escolar nunca desmentida , a honra de o acompanharem num brinde patriótico , que , na época presente , quáse conslilue um dever nas mesas onde se levantam brindes ... Ouviram-se vozes de aprovação : -- Troquemos ! -- disse o primeiro dos oradores , enchendo os cálices dos três novos convivas , ao passo que o homem da barba grisalha esvaziava a sua garrafa nos cálices dos académicos , que se conservavam de pé ... Ao cabo de alguns segundos , o orador prosseguiu : -- Meus snrs. , o brinde , que tenho a fazer , dispensa todo o exórdio e todo encarecimnto . O objecto dele está no coração de quantos prezam sinceramenle a grandeza e a prosperidade do berço em que nasceram . Eu brindo , pois , ao legitimo rei -- Portugal , o snr. D. Miguel I ! Um raio , que tivesse atravessado naquele momento o teto da sala , onde se tinham reunido aqueles moços estouvados com o único Um de saudarem o ano que despontava no horizonte , e eslalnssc no meio deles , não teria produzido niais assombroso efeito . Os cálices , que já quáse tocavam os lábios , pararam no caminho ; o véu da embriaguez , què mais ou menos velava a razáo de todos , desfez-se como ao sopro dum tufáo ; a palidez substituiu a côr alegre e radiante daqueles rostos juvenis , a língua paralizou-se-lhes , e cada um viu aos pés rasgar-se-lhe um abismo . Os três comensais esgotaram os cálices . -- Nunca ! -- bradou por último Frederico voltando a si do pasmo que o loniára , e esmigalhando O cálice cheio na parede fronteira . -- Nunca ! Então o sujeito , que propusera a saúde , arredou a cadeira , sem desviar os olhos dos circunstantes , talvez para lhes prevenir qualquer movimento agressivo , e disse com uma grande placidez na voz : -- Noto que o meu brinde não teve a nprovaçáo de vv. s.as . Nós retiramo-nos . E os três homens , que haviam abancado próximo da porta , sairam naturalmcnte . Tudo isto foi sucessivo e rápido . Alguns dos académicos sentiram dobrar os joelhos sob a violência daquele golpe , e sentaram-se para não cair ; a maior parte , contudo , fleou de pé , como petrificada , c dois ou trés cálices estalaram apertados entre os dedos convulsos dos convivas . Sobreveio a reacçáo . Quáse no mesmo tempo aqueles dez indivíduos como que despertaram , sacudidos pela mesma corrente eléctrica , c pela mesma voz bradaram : -- São espiões ! Ainda os três adventícios não tinham desaparecido completamenle na penumbra do patamar da escada sôbre que abria a saleta , e já os académicos , empunhando as facas e arremeçando para trás as cadeiras , se precipitavam como furiosos para a porta , repetindo num rugido : -- Sáo espióes ! matemos-los ! A embargar-lhes o passo , aflitíssimo , com os braços erguidos e com a voz lacrimosa , apareceu o estalajadeiro . Pelo amor de Deus , senhores , não me desgracem ! Deixem-nos ir ! não lhes toquem ! não são espiões ! -- clamava êle atarantado e suplicante . -- Mas quem é aquele homem ? quem é ? Dize já ! -- intimou um dos académicos segurando o estalajadeiro pela gola da jaqueta . -- Ê ... é ... mas , por quem são , não me desgracem ! eu quis preveni-los com tempo e ... -- Quem é êle ? ou respondes ou ... ! -- repetiu o outro abanando-o convulsivamente . -- É o novo corregedor de Coimbra , snrs. ! Por quem são , não me percam ! Os braços , como fulminados por uma paralisia , penderam inertes , e as facas ao mesmo tempo caíram ao chão . Uma voz , que traduzia um grande desalento , murmurou : -- Estamos perdidos ... Um refúgio Entre os poucos académicos que , tendo assistido Ãquela ceia de ano bom , conseguiram escapar à sanha do corregedor , contava-se Frederico , a quem êle distinguia mui particularmente , reclamando a sua prisão a lodo o custo . Mas o terceiranista contava uma valiosa protecção em Coimbra , quáse inteirnmcnte ignorada dos seus próprios condiscípulos , pois que nunca se tinha valido dela . Era um professor de Humanidades , natural do Pôrto como êle , o dr.||_Gustavo Gustavo|_Gustavo , e para cuja formatura seu pai havia contribuído , facultando-lhe os precisos meios pecuniários . Lembrou-lhe , pois , naquele desesperado lance , o protegido de seu pai e os seus reiterados oferecimentos , que ambos estavam bem longe de supôr que um dia seriam utilizados de um modo tam extraordinário . Para não darem tempo a que a estalagem fôsse cercada , os académicos saíram para a rua , e trocando um cordeal aperto de mâo , que para alguns devia ser o último , cada qual tralou de procurar um asilo , tendo carregado o gorro para a testa e rebuçando-se na larga capa até aos olhos . A noite estava tenebrosa e como que os envolvia num segundo manto prelo , quase tam impenetrável como o primeiro . Deslizaram silenciosos , cosendo-se com as paredes das casas e parando sobressaltados ao mínimo sussurro . Frederico dirigiu-se para casa do protegido de seu pai . na rua do Cego , murmurando a espaços : -- Perdido ! perdido ! Como acontece de ordinário nos prédios , onde há mais de um inquilino , a porta da casa do dr.||_Gustavo Gustavo|_Gustavo estava apenas cerrada . Frederico empurrou-a , entrou no portal esguio e húmido , encostou-a de novo cuidadosamente , e , às apalpadelas , foi subindo no meio da mais completa cscu-ridfto até ao primeiro andar . Era ai que habitava o amigo de seu pai . Através do orifício da fechadura e das frestas da porta , que dava sôbre o patamar , coava-se a branda claridade de uma luz serena . -- Está cá ! -- disse êle consigo mesmo , experimentando como um profundo alivio . Aproximou-se recatadamente da porta para escutar . Nenhum ruído interior . Espreitou ; a luz estava colocada em logar que não se via . Contudo , aquele era o quarto de dormir do professor . Estará no primeiro sono ? -- mas para o acordar , terá de bater , e despertará também os outros moradores . Esperará que êle acorde ? -- mas entretanto pode subir as escadas algum inquilino dos andares superiores , descobri-lo , gritar por socorro c ficaria cntáo irremissívelmenfe perdido ... Prolongavam-se já por minutos , que eram horas de cruel sofrimento , estas hesitações , repartidas entre o aplicar do ouvido sobressaltado á porta da saleta , onde brilhava a luz , e o escutar Ãs escadas , onde as trevas eram profundas . O desventurado moço principiava de sentir trémulos os joelhos , a cabeça atordoada e um ruído de campainhas nos ouvidos . Alguns instantes mais o leria caído no chão . De repente pressentiu o arrastar duma cadeira no interior do aposento . Cobrou Animo . -- Estava a lêr sem dúvida ! Ainda não se deitou ! -- disse consigo . E com os nós dos dedos bateu levemente á porta . Depois de um instante de silêncio , uma voz entre espantada e duvidosa , perguntou : -- Quem está aí ? Frederico aplicou os lábios à fechadura da porta , e segredou : -- Por quem é , snr. dr. , abra ! Novo instante de silêncio . -- Mas abrir a quem ? -- tornou o mesmo indivíduo . Frederico disse o seu nome . -- não ouvi bem ; repita -- insistiu o oculto interlocutor , querendo talvez reconhecer o acadêmico pelo metal da voz . Ele repetiu o nome pelo buraco da fechadura , acentuando em cada silaba . -- Ah ! sim ! conheço ! -- tornou o mesmo sujeito , o dr.||_Gustavo Gustavo|_Gustavo . A porta abriu-se imediatamente . A luz avermelhada de um candeeiro de cobre bateu de chapa no rosto do académico . Estava inteirnmenle desfigurado . O gorro tinha-lhe fugido para a nuca . Os negros cabelos anelados caíam-lhe sôbre a testa inundadn de um suor frio ; o olhar parecia espantado , como do homem que , despertando dum pesadelo , fica por algum tempo sob a impressão dele interrogando com a vista tudo o que o cerca ; as faces , duma palidez mortal , estavam cobertas de um verniz húmido , os lábios eram da côr desmaiada de uma rosa de lodo o ano já murcha . O doutor , homem dos seus trinta e oito anos , recuou de espanto . Que tem o snr. ? que o traz aqui ? ! -- perguntou Ale assombrado . Cumpre observar que o dr.||_Gustavo Gustavo|_Gustavo consagrava a maior simpatia a Frederico , talento prometedor da Universidade , estudioso , cumprindo os seus deveres escolares com a máxima pontualidade , fazendo-se estimar de todos pela lhaneza do seu trato , pela nobreza do seu carácter e pelo seu exemplar comportamento . Acrescia ainda para o caso presente que , tendo a certeza da protecçáo do dr.||_Gustavo Gustavo|_Gustavo , Frederico nunca o tinha ocupado , mesmo na hora solene dos exames . -- Que tem o snr. ? ! -- repetiu êle . -- Eu ... -- redarguiu o moço estudante com voz quáse imperceptivet pelo cansaço e pela comoção , fechando a porta da sala . -- Desculpe-me v. exc.a . . eu venho pedir-lhe que me dá um asilo ... que me salve ! E vendo que se apoiava num móvet para não cair , o dr. apresentou-lhe uma cadeira , dizendo-lhe com bondade : -- Sente-se ... e explique-se . Não o compreendo . Que lhe aconteceu ? Frederico deixou-se cair sem fôrças na cadeira , e , sorvendo um longo hausto de ar , murmurou : -- Perdôe- me v. exc . " ; mas preciso de coordenar as minhas ideas ... Parece que se me parte a cabeça -- e apertava-a nas mãos , como receando que ela efectivamente lhe estalasse . -- Pois sossegue -- tornou o doutor||_Gustavo Gustavo|_Gustavo -- e creia desde já , que , se é o que penso , esta casa lhe será asilo seguro , enquanto o julgar necessário . Perseguem-no ? -- Eu conto a v. exc.a ... -- disse Frederico mais animado e mais sereno de espírito . E narrou , abreviando-os , os episódios daquela noite na estalagem do " Rubalo " . -- Que imprudentes ! -- exclamou o doutor ao ouvir o remate da história . -- Quando hoje até dos próprios amigos deve a gente precatar-se , dez rapazes cheios de fogo procuram a mesa duma estalagem para fazerem proflssáo de fé liberal , de copo na mâo . e em presença de homens desconhecidos ! Na verdade , não mc parece de académicos , e menos do snr. , que eu tive sempre na conta de um moço exemplar e prudente ! -- O vinho estonteava-nos . -- Creio isso . O mal , porém , está feito , e agora o que lhe resta é abandonar Coimbra , deixar mesmo Portugal , fugir á perseguiçáo , que necessáriamente se vai mover contra o snr. e contra os seus desditosos condiscípulos . Mas é Já tarde e eu vou arranjar-lhe uma cama . Àmanhá nos ocuparemos do que importa fazer . Apesar dos protestos de Frederico , o dr.||_Gustavo Gustavo|_Gustavo montou sôbre um canapé e cadeiras um dos colchões da sua cama e deu-lhe metade da sua roupa . Por volta das quatro horas da rnanhá , depois da mais trabalhada insónia , o académico cerrava as pálpebras para continuar , dormindo , o inferno do idoas , que o tinham perseguido acordado . Antes das ? horas estava de pé . Trabalhos Bastára uma noite para lhe alterar inteiramente a fisionomia . Era um desenterrado . Tinha o rosto duma palidez baça , o olhar espasmódico , as faces cavadas , as órbitas fundas . O viço dos vinte e dois anos tinha desaparecido inteiramente . Ninguém lhe&lhes+os daria com tôda a certeza . Quando o dr.||_Gustavo Gustavo|_Gustavo acordou , viu o académico sentado a uma mesa com o rosto oculto nas mãos . Abreviemos . Frederico escreveu ao tio do Porto , seu segundo pai , -- porque ficára órfão de catorze anos , -- expondo-lhe a sua situação e rematando por estas palavras : " Estou , pois , resolvido a seguir o caminho de tantos desgraçados , que , para não caírem em escuras masmorras ou subirem ao cadafalso , leem de abandonar a pátria , e de refugiar-se lá fora . Antes , porém , de deixar Portugal , eu queria poder dar-lhes um abraço , que talvez seja o último , a si , a minha querida tia e a Leonor , êsse anjo de candura e bondade , que eu entrevejo , como uma estréla de brilho azulado e meigo , no tenebroso firmamento da minha vida . Irei disfarçado em mendigo , em moleiro , seja no que fôr , e saberei afastar-me das povòaçõs para nAo despertar suspeitas . Será mais longa a jornada , mas não oferece tanto risco . Fico esperando uma palavra do meu bom tio para me pôr a caminho . " Antes das nove horas da manhá procurava o dr. Gustavo um homem de sua plena confiança , um próprio , e encarregava-o da melindrosa missAo de ir no Pôrto entregar a Lufe Maria , o segundo pai de Frederico e seu tio , a missiva do sobrinho , na sua casa da rua Chá ou na sua loja da rua das Flores , e aguardar a resposta . Partiu o recoveiro , levando a carta oculta entre dois remendos sobre-cosidos e com o seu alforje acavalado no ombro , como quem se propunha percorrer as aldeias próximas solicitando a caridade dos fiéis . Dôze dias depois , durante os quais o novo corregedor de Coimbra conseguira meter em ferros oito dos estudantes , comensais do terceiranista portuense na estalagem do " Rubalo " , e prometia recompensar a quem lhe apresentasse Frederico , o único que tinha protestado abertamente contra o brinde erguido por êle a el-rei||_D._Miguel D.|_D._Miguel Miguel|_D._Miguel ; -- dôze dias depois , o moço académico recebia uma carta do tio , na qual , com as lástimas imagináveis , filhas da muita estima em que o tinha , lhe dizia que naquella mesma noite seria procurado pelo Tôrres , o intrépido arrieiro que tantas vezes o acompunhára do Pôrto para Coimbra , devendo combinar entre ambos o meio seguro da fuga . Pelus oito horas da noite , efectivamente , insinuava-se no escuro portal do professor o vulto do almocreve e entrava para o quarto , que já conhecemos , onde estava Frederico e o seu protector . Falaram , discutiram , combinaram os três . E por volta das 11 horas da noite imediata subia a rua do Cego um almocreve com a sua récua de cavalgaduras , que se anunciavam ruidosamente a distância pelo estrugir dos chocalhos , e do porlal da casa , em que habitava o dr.||_Gustavo Gustavo|_Gustavo , safa a juntar-se ao recoveiro um vulto que , pelo traje , parecia igualmenle homem de estrada . Era Frederico , no disfarce em que o vimos ao abrir éste livro , na margem esquerda do Douro : -- camisa de estôpa , jaqueta de saragoça , faixa à cinta , meias de lâ e grossos sapatos ferrados . -- Vamos conversando -- disse-lhe o Tórres . -- Traz vossoria o par de pistolas ? -- Trago . -- Então , com mais duas , que vâo aqui , já bastam para os ter em respeito , caso nos saiam ao caminho a intrometer-se com+nós . E os dois almocreves deixaram a cidade sem que tos vultos suspeitos , que estacionavam em diversos pontos , se lembrassem de lhes meter â carn u lanterna de furta-fogo , que traziam debaixo dos capotes . A meia légua de Coimbra esperava-os na estrada rial um homem , a quem o Tórres entregou a arreata das bêslas , e que voltou com elas para a cidade . -- Bem -- disse o arrieiro , -- do primeiro perigo estamos nós livres . Daqui por diante , com sua licença , as béstas não faziam senão embaraçar-nos o passo . Agora já um homem pode meter po b atalhos , esconder-se atrás dum muro , ou , caso sejain muitos , dar terra p ' ra feijões . Pois não é assim , snr. dr. ? Frederico eslava longe de ouvir o que lhe dizia o seu companheiro de jornada . Pouco mais era do que um autómato . Sentia-se aniquilado , impotente . Aquele inesperado revés prostrava-o . Relanceava os olhos por fisse caminho além , menos tenebroso , do que o seu futuro , caminho que tantas vezes cruzára , já com o coração a palpitar de iinpaciéncia , já com a alma cortada de saúdades , e murmurava : -- Nunca mais ! Ah ! Quem pode ai , com o espirito sereno , medir o imenso abismo de dôr e desânimo , que aquelas palavras representam , proferidas por um desgraçado como Frederico ? Nunca mais -- diz o amante desditoso ao considerar o corpo hirto e frio daquela que tantas vezes o cingira num abraço febril . Nunca mais -- diz o náufrago ao lembrar-se da mulher e dos fllhos , sentindo que as fôrças o abandonam , que os sentidos lhe fogem , que o abismo o chama , o atrái , o sorve com uma fôrça crescente , irresistível , fatal . Nunca mais -- diz o vélho trabalhador alquebrado , ao ver num monte de ruínas o edifício de felicidade , que durante meio século estivera construindo para o resto dos seus dias . Nunca mais -- murmurava igualmcnte Frederico , fugindo à perseguição , deixando atrás de si todo um futuro de esperanças , de amor , de felicidade , e quem sabe se de glória ! Nunca mais ! Ao cabo de seis dias de jornada , muitas vezes por atalhos e quáse sempre de noite , evitando os povoados e debaixo de água , chegaram os dois homens a um logarejo distante meia légua do Pôrto , conhecido pela " Madalena " . Aí ficou o académico numa casa de gente pobre , emquanto o Tôrres foi ao Pôrto combinar com o tio a conclusão do feito . O grande receio dos dois era se já teria chegado ordem de captura da parte do corregedor de Coimbra , e a casa do negociante estaria sendo vigiada de perto . Voltou no dia imediato o almocreve e trouxe ao estudante a resposta seguinte : " Que não tinha chegado ainda a denúncia ao Pôrto , e que , com as devidas reservas , poderia demorar-se em casa de seu tio um ou dois dias , partindo para a fronteira em seguitm . Que , mesmo dado o facto de chegar em antes o mandado de prisão , haveria meio de o reler na intendência de polícia durante êsse tempo . Assim o afiançara o melhor amigo de seu tio , o snr. frei||_Quintino Quintino|_Quintino ... -- Frei Quintino ! frei||_Quintino Quintino|_Quintino ! -- exclamou o moço académico sentindo uns assomos de cólera : -- mas quem me afiança a mim que êsse frade nfio será o meu denunciante ? -- Oh ! snr . dr. , pois acha ... ? -- obtemperou Torres entre admirado e incrédulo . -- Acho-os capazes de tudo 1 -- interrompeu Frederico , sobreexcitado . -- Pois , quer vossoria me acredite quer não ; eu nunca entrei nisto de política nem me importa , ainda que se tivesse de escolher , certamente que não séria dos que mandaram presentes de vinho ao Joâo Branco ( 1 ) ; mas que o tal frade pratique uma dessas , e juro-lhe pela minha salvação que lhe meto uma bala no estômago pelo caminho mais curto ! Olé ! e depois ... o mundo é grande , e em tôda a parte se come pilo ! -- Ê um homem de bem e um coraçáo liai , Tôrres ! -- disse o académico , bastante comovido e apertando nas suas as mãos calosas do arrieiro . -- Obrigado , meu amigo . Como as coisas se passaram até o momento de Frederico se lançar nos braços de seu tio , que o espe- ( 1 ) João Branco , célebre carrasco , que em 1829 executou na Praça Nova os dôze liberais condenados a morrerem na forca de morte natural para sempre . Depois de lhes decepar as eabeças diante dum limitado publico simpático e de um notável concurso de religiosos , que ao mesmo tempo se banqueteavam Ãs janelas do convento de Santo António dos Congregados , que defrontava com os patíbulos , fazendo saúdes , João Branco esbofeteou as cabecas dos justiçados , que suspendia pelos cabelos ou pela nuca pingando sangue . Nos dois dias . 7 de maio e 9 de outubro , em que tiveram logar essas execuções , foi o carrasco obsequiado com vários presentes de vinbo c com um lauto Jantar , recebendo mais alguns delirados mimos de senhoras nobremenle aparentadas de Braga e Guimarães . rava ansioso com a mulher e a filha na sua casa da rua Chá , não o ignora o leitor , se acrescentarmos que os dois , ao cair da tarde , -- uma tarde lúgubre , de nuvens negras acasteladas e vento sul rijissimo -- deixaram a " Madalena " em companhia dum barqueiro , o Neto , que os guiou por caminhos mal trilhados olé à margem esquerda do Douro , em frente do " Seminário " . Lágrimas Não tentarei descrever a scena de pranto e soluços , arrancados do coraçáo e como estrangulados nos lábios dos qualro nctores dela . Seria além de difícil , monótono . A dôr profunda e concentrada é assim . Desentranha-se em manifestações sempre as mesmas , invariáveis , silenciosas ; e , parecendo que o cansaço deveria tomá-la afinal , cada vez requinta mais . -- Bem -- disse Luís Maria , querendo dar o exemplo de ombridade ; -- agora já não se remedeia nada ... e consumir-se a gente por o que não tem remédio ... acho que sâo dois prejuízos ... Tu vais ... e ... -- a voz começou a achar dificuldade em formar-se-lhe na garganta -- e ... nós cá te ficamos esperando , até ... que Deus ... Foi-lhe impossível continuar . A comoção embargou-lhe a palavra , e o período terminou-o proferindo alguns monossílabos incoerentes . Frederico tinha a jaqueta de saragoça ensopada em água . -- Vai mudar de roupa . Tens lá tudo no teu quarto -- disse-lhe por último o negociante . Daí a pouco o académico aparecia com o seu fato ordinário . Era inteiramente outro . Foram para a sala de jantar , onde esperava o estudante uma suculenta refeição . A mesa estava coberta com unm alvíssima loallia de linho adamascado , das que saem dos teares de Guimarães e teem a preferência em lodo o pais ; à volta os talheres , os pratos e os copos ; ao centro , além de um candeeiro de metal amarelo , de três pavios , iluminando o recinto com uma luz avermelhada e serena , uma garrafa de cristal com vinho e uma terrina , da qual se escapava uma fumarada branca e dum cheiro delicioso . Abancaram ... Mal sucedido esfôrço . Dez minutos depois erguiam-se da mesa , sem haverem tocado na ceia , que teria feito as delícias do mais pechoso gastrónomo . Em seguida Frederico dava as bôas noites a seu tio , a sua tia||_Clara Clara|_Clara , a sua prima Leonor , e retirava-se com o espirito fatigado das comoções violentas daquela noite para o seu quarto . E pôs-se a contemplar tudo o que o cercava , e a recordar-se ... Havia oito anos , desde que morrêra seu pai e o tio o chamára para a sua companhia , que habitava nquele pequeno recinto , testimunha silenciosa de tôdas as suas tristezas e alegrias de adolescente . A cada móvel , a cada objecto , estava ligada uma reoordação , que lhe era lanto mais dolorosa quanto mais grata . A pequena estante onde se viam alguns livros por que estudara preparatórios , a meia cómoda em que tinha a sua roupa mais tratada , a pequena banca-de estudo , confidente dos seus ensaios poéticos , tam depressa tentados como reduzidos a cinzas , o leito de pau preto e pés torneados , onde dormia noites sossegadas e felizes , embalado pelas mais risonhas esperanças , aquela janela solitária em que tnntas vezes se debruçára escutando o silêncio em que a cidade jazia mergulhada , por calmosas noites de estio ... tudo lhe recordava -- e tudo o pungia dum modo atroz . A saudade havia-se antecipado cruelmente . Frederico sofria e sofria muito . Arremessou-se vestido para cima da cairm . ergueu os braços apertando a cabeça nas mãos enclavinhadas , fitou vagamente um ponto escuro do teto . e.pálido , imóvel , hirto , assim esteve por tempo esquecido . Depois , como despertando daquela abstraeção , apagou a luz . Balia meia noite na próxima tôrre da Só . Fora , a tempestade rugia desenfreada . O vento , a chuva e o trovão faziam um concórto medonho . O raio esialava pró . ximo ; e o relâmpago iluminava com uma luz fosforecente e rápida , penetrando pelas fendas da janela , o quarto mergulhado em trevos espessas . Era a primeira noite , depois de seis dias de jornada , em que Frederico encontrava o aconchógo dum pequeno quarto agasalhado e de um repouso cheio dc confiança . Naturalmcnte os olhos cerrarnm- se-lhe ... adormeceu . Na manhã seguinte o académico ergueu-se e foi , como costumava dantes , beijar a mão a seu tio e a sua tia , e dar o bom-dia a Leonor . Depois pediu licença para se retirar de novo ao seu quarto . -- Não , Frederico , não posso consentir ... Daqui vamos para a mesa . Hás-de almoçar com+nós . Ontem não ceaste coisa alguma ; estás a cair de fraqueza . Basta de pièguices . Estas coisas não há remédio senão aceitá-las como elas veem . Tudo será pelo melhor . E usando de uma frase consagrada no livro de filosofia prática , que tem por titulo " Provérbios e Sentenças " , concluiu : -- O que não tem remédio , remediado está . Como sucede afinal tôdas as vezes que se empenha a luta entre o espirito , que se sustenta de ideas , e o músculo , que tira as suas fòrças da suculência dos alimentos , o estômago do terceiranista conseguiu por alguns minutos impôr silêncio à sua imaginação . Com prévia recomendação de Luis Mara , e graças nos seus esforços , durante o almõço , sustentando que melhor devia ser assim -- retirar-se com tempo de Portugal , pois que mais cedo ou mais tarde se denunciaria , e em vez da liberdade no estrangeiro teria a cadeia no pais , -- não se repetiu a scena da véspera à noite , e Frederico mostrou-se nmis resignado e composto de ânimo . Entretanto , se o mancebo , por um movimento rápido de cabeça , fitasse Clara e Leonor , mais de uma vez as teria surpreendido , olhando-o com os olhos rasos de água ou deixando cair nas chávenas as lágrimas , que se lhes desprendiam silenciosas das pálpebras . -- Bem -- -- disse Luís Maria , erguendo-se da mesa afinal ; -- agora vamos tratar do que importa . A tua mala deve estar quáse pronta e eu vou escrever duas ou três carias . Logo virá o Tôrres e combinaremos tudo . Ah ! sim , o que urge também é falar com o snr. frei||_Quintino Quintino|_Quintino ... Ele nos dirá se convêm apressar para quanto antes a partida . Devemos-lhe imensos favores , meu rapaz . Apesar de ser um absolutista exaltado , tem-se havido em tudo isto com verdadeira dedicação . Todos os dias vai à intendência iníormar-sc dos mandados de captura . E como tem a confiança daquela gente , fácil lhe é saber o que deseja . -- Eu não duvido , meu caro tio , dos bons serviços do snr. frei||_Quintino Quintino|_Quintino ... sómente , para saber os limites que deveria marcar à minha gratidáo , desejava adivinhar o fim próximo ou remoto , que o move a prestar êsses serviços . -- Os reveses fazem-te injusto , Frederico . O snr. frei||_Quintino Quintino|_Quintino , se procede assim , é porque nos estima e se interessa por ti . -- Por mim ? ! -- exclamou o académico , não podendo disfarçar um pálido sorriso de dúvida : -- interessa-se por mim sua reverendíssima ! ? ... -- Desgostas-me , sobrinho . Ser liberal não é ser ingrato -- disse Luis Maria com uma severidade triste . -- Mas espero que te convencerás brevemenle do teu êrro . Quando mais não seja , é preciso abrir exropçáo à regra geral , e uma delas é indubitávelmente o snr. frei||_Quintino Quintino|_Quintino . Frederico , sem dúvida por motivo de delicadeza , fácil de compreender , baixou os olhos e calou-se . Então Luis Maria tomando-lhe uma das máos : -- Ora vamos , meu rapaz ; sê razoável . não te deixes levar pelo ódio , que ó péssimo conselheiro . Em tudo há bom e mau ... Agora vou escrever algumas cartas de recomendação para ti e depois irei até à loja da rua das Flores para que nflo seja notada a minha ausência . Poderiam suspeitar . O académico , protundamentc abalado , sacudiu a mão do tio com reconhecimento e dirigiu-se vagarosamente para o seu quarto . Luís Maria entrou na sala , que lhe servia de escritório . Resignação Seriam 11 horas da manhã dêsse+esse mesmo dia . Clara , sentada numa pequena cadeira de palhinha fazia um pacote de lenços de bretanha de linho , e chorava silenciosamente . Tinha uma bôa alma esta senhora . Admitida como noviça no convento de Santa Clara donde saíra para casar com Luís Maria , era de natureza tímida , e , por educação , religiosa , quáse devota . O padre para ela tinha o quer que fôsse de superior , de divino , a quem ouvia de cabeça baixa e olhar penitente , como um réu contrito , e cujas palavras , exortações , conselhos jàmais discutia . Por frei||_Quintino Quintino|_Quintino , a visita habitual , o amigo da casa , tinha mais do que o respeito devoto , que lhe inspirava o hábito ou a sotaina em geral ; tinha por êle a receosa veneração , que tributaria a um juiz implacável iluminado pela auréola da santidade , -- a idea vulgar de Deus inoculada pelos exploradores religiosos no espirito da turba ingénua ! Frei||_Quintino Quintino|_Quintino fácilmente havia conseguido insinuar-se-lhe no ânimo e dominar-lhe&lhes+o . Quanto a Luís Maria , educado na vida prática do comércio , ao balcão , para a qual entrára aos 11 anos , todo reserva e egoísmo mercantil , que Iralava de justificar por esta frase -- se eu o não ganhar , ninguém mo dará , -- e ainda por esta outra , quando o acusavam da sua indiferença pelo movimento que agitava o país -- o meu reino 6 a minha casa , -- era no Intimo , sem nunca o ler confessado a ninguém , sem mesmo o ler confessado a si próprio , sincero liberal , como por índole são , devem ser os , corações bons e generosos . Resumia tôda a sua felicidade , tôda a sua vida , na filha que Deus lhe deu , Leonor , um anjo de meiguice e candura , que destinou com alvorôço para espôsa do sobrinho órfão , apenas , tocado o oiro puríssimo do coração de Frederico , reconheceu que enlrc os dois se havia estabelecido uma corrente natural de simpatia mútua . Daí por dianle foi esta a sua idea , o seu sonho constante : acabada a formatura , casá-los . A meio caminho , porém , da realização do seu sonho doirado , ergucu- se de súbito o espectro da fatalidade , e o futuro , que previa tam límpido e prometedor de intimas alegrias , turvou-se , escureceu-se , como se , diante dele , se houvesse desdobrado uma larga cortina de crepes funerários . Voltaria o sobrinho ? -- quem sabe ! E , mesmo se voltassse , que tempo demoraria por lá ? Depois , voltaria só ? ... Estas e outras interrogações assaltavam-no de tempo a tempo , e obrigavain- no* a meditar sériamente . Mas uma cega confiança em dias melhores , o quer que era dc superior e inexplicável que lhe dizia ao coração -- espera , -- restabelecia-lhe a tranquilidade do espírito sôbre o futuro da sua querida Leonor . Nisto mesmo se espelhava a bondade da sua alma , que acreditava sinceramente na providência dos bons , a doce quimera dos que não foram ainda provados tenaz e fortemente na desgraça . Concluídas as cartas que estava escrevendo , Luís Maria dobrou-as metódicamente , e , preparando-se para as sobrescritar , ia dizendo : -- Ao menos não lhe faltará tudo ; pobre rapaz ! -- e atentando em Clara , que levava naquele momento o avental branco aos olhos : -- Então que é isso ? E preciso resignarmo-nos . Eu também lhe quero como se fôsse meu filho , e contudo ... Luís Maria começou de passear na sala a largos passos , com as mãos atrãs das costas e a vista no chão . Clara tinha-se erguido com o pequeno embrulho dos lenços e atava-o cuidadosamente com uma fita de nastro . Ao mesmo tempo replicava : -- Mas dize-me se não é triste educar a gente um rapaz , há perto de oito anos , afagá-lo , dirigi-lo , guiá-lo , chegar a ler-lhe uma amizade tam funda , que nem eu sei dizer , mandá-lo estudur para Coimbra , fazer todos os sacrifícios por êle , e no resto , quando está um homem , vê-lo partir por essas terras de Cristo além , fugindo à jusliça , como se fôsse um grande criminoso ! Oh ! é triste , muito triste , Luís ! E os soluços embargavam-lhe a voz . Luis Maria aproximou-se então da esposa , e , comovido , lomou-lhe as mãos ao tempo que procurava resigná-la , o mísero , que não carecia menos de resignação : -- Mas se não há outro remédio , minha pobre Clara ! Cumpre esperar ! É impossível que estas coisas continuem assim por muito tempo , e então êle virá para a nossa companhia e acabará a sua formatura sossegadamente . Houve um instante de silêncio , e o negociante prosseguiu , como continuando alto o curso das suas ideas : -- ... E a nossa filha ! ... Como há-de sofrer êste golpe ! Eles , que se amam tanto e com um amor tam puro , sem mesmo o terem dito um ao outro ! Pobres crianças ! E mudando de tom : -- Emfim , estava escrito ; acabou-se ! Foi uma imprudência o que êle praticou , mas o resultado é que não podia ser outro : vir abraçar-nos e partir ... sabe Deus até quando ! -- Dizes bem ! sabe Deus até quando ! -- repetiu Clara com um acento triste . Neste lance do diálogo , entrava Leonor na sala , tam distraída que não se apercebeu dos dois . -- Aí vem a pequena . Nada de lamentações -- disse o negociante à espôsa a meia voz . Leonor deu alguns passos , e só então , erguendo os olhos , viu os actores da scena precedente . -- Ah ! -- exclamou ela parando . -- Que foi ? -- interrogou Luís Maria fingindo surprêsa . -- Estavas aí ? -- Entrei agora ; mas ... eu retiro-me . -- Não , não , fica . Teu primo ? -- O primo Frederico ... tem estado no quarto a escrever . Clara aproximou-se da filha , e cravando-lhe o olhar , com um sorriso forçado : -- E tu ? -- Eu , minha mãe ? ... -- repetiu , hesitando . -- Sim , tu . -- Estive no meu quarto a rezar . Luís Maria atentou-lhe fixamente nos olhos , e disse-lhe num tom meigamente repreensivo : -- Choraste , Leonor ! ... Que tens , filha ? -- Nada ; não tenho nada ... meu querido pai ... -- Ora vamos , sossega -- interveio Clara passando-lhe o braço à volta da cintura e conduzindo-a a uma cadeira . -- Ele , com Deus , há-de voltar . -- E então será para nunca mais sair da nossa beira , verás -- acrescentou Luís Maria . -- Mas tu não provaste quase nada ao almõço , e ontem não comeste nada em todo o dia , Leonor ! -- observou Clara , reparando na palidez da filha . -- Deves estar a cair de fraqueza ... -- Não estou , minha mãe ; afianço-lhe que não estou . -- E , como se nada roais a preocupasse : -- Poderá êle ao menos escapar sem risco ? Se o prendem ... -- Sossega -- atalhou o negociante . -- Está tudo prevenido . De mais a mais em Coimbra julgam que ticou por lá oculto nalgumu trapeira , e ate agora ainda não apareceu denúncia na intendência da polícia , ou do contrário já leríamos sido prevenidos pelo snr. frei||_Quintino Quintino|_Quintino . A propósito , Clara . Vai-lhe passar uma vista de olhos peia mala , e que não lhe falte nada . Vê bem ! A bôa senhora tomou de cima da secretária o pacote de lenços , que estivera acamando . -- Não tem dúvida , Luís -- disse ela ; e acrescentou dirigindo-se para uma das portas de comunicação interior : -- Exactamente como todos os anos , quando ia para Coimbra ! ... E contudo , agora , que diferença ! Houve um instante de silêncio . -- Não te quero ver assim , Leonor -- observou Luís Maria . -- A ausência de teu primo não há-de ser eterna ... e ao menos resta-nos a certeza de que nenhum perigo o ameaçará . Antes isso , minha filha , do que termos àmanhã de o ir visitar á cadeia , que seria de tudo o mais provável . -- Meu Deus ! -- disse ela ; e em seguida arriscou timidamente : -- Se , ao menos pudesse escrever-nos ... ! -- Há-de poder . Sossega que havemos de ler notícias suas . Dize a verdade : tu estima-lo muito ? A filha de Luís Maria hesitou ; depois , erguendo para o pai os olhos espelhados de lágrimas , respondeu : -- É como se fôssemos irmãos ... -- Tens razão -- aplaudiu o negociante . -- Pelo menos quero-lhe tanto como se fôsse meu filho ... e deixa estar que há-de ser . Pois quê ! Assim estas coisas serenem e êle volte a Portugal ! Palavras não estavam ditas , e a porta da sala abria-se no tempo que uma voz pausada e soturna entoava a fórmula sabida : -- A paz de Deus seja nesta casa . E na penumbra destacou um vulto esgrouviado , trajando o hábito prelo dos monges de S. Bento . Luis Maria apressou-se a sair-lhe no encontro , dizendo açodado : -- Oh , snr. frei||_Quintino Quintino|_Quintino , por quem é ! queira entrar v. rev.ma ! Sua reverendíssima Frei||_Quintino_da_Expectação Quintino|_Quintino_da_Expectação da|_Quintino_da_Expectação Expectação|_Quintino_da_Expectação , o novo personagem , que acabava de entrar em seena , era um homem alto , magro , de uma palidez térrea , feições duras , testa pequena , sobr'olho severo , nariz ósseo , um pouco exagerado , lábios finos , malares salientes e voz áspera , que se esforçava por tornar untuosa e grave . A sua corôa , irrepreensivelmente escanhoada e larga como a palma da mão , tinha a côr tostada e os reflexos baços do marfim antigo . Ninguém lhe daria mais de quarenta anos , e contudo já passava dos quarenta e oito . Professára novo , convencido de que o chamava para o claustro a sua vocação tôda propensa no misticismo . Era de família mais que remediada . Seu pai tinha sido meirinho-mór , e naquele emprêgo , cujos proventos . de si medíocres , eram enormes explorados convenicnlemente , pôde amealhar algumas dezenas de mil cruzados . Frei||_Quintino Quintino|_Quintino fôra único herdeiro daqueles haveres , tendo o cuidado de guardar grande maquia num falso da sua cela , depositando a mesquinha parte restante , com devota abncgaçáo e completo desprèzo dos bens terrestres , nas mãos do superior da ordem . Era prègador e dos mais considerados . Violento , declamatório , cheio de trechos e citações teológicas , êle trovejava do púlpito fulminando ameaças e excomunhões , cujo epílogo era um chôro desfeito e a altos brados da parte feminina do auditório -- o seu grande triunfo ! No dia em que , ao terminar um sermão , fôsse êle apologético dus virtudes e milagres dalgum santo , não fizesse romper clamores de arrependimento . Irei Quintino abandonaria o púlpito para sempre . S. rev.ma falava devagar , espaçando as palavras -- por cálculo ; e tomava rapé ... também por cálculo . Nus consultas graves , nos trances difíceis , nas ocasiões em que precisava observar a fisionomia do interlocutor ou estudar uma resposta em assunto de melindre , a pitada pra- lhe infalível , e começava de arrastar a voz . As suas ideas eram pelo mais puro e entranhado absolutismo . Tinha sido condecorado com a medalha de prata , mandada cunhar pelo snr. D. Miguel com a sua rial efigie para galardoar aqueles dos seus vassalos mais devotados à causa do trono e do altar . O seu rancor pelas novas ideas , que até êsse tempo não tinham produzido senão vitimas , era notório em tôda a diocese do Pôrto , e acentuava-o tôdas as vezes que se erguia a falar na cadeira da verdade . Temos presente um dos sermões de Frei Quintino , impresso em 1831 -- com licença da Rial Comissão de Censura . Algumas pequenas transcrições não prejudicam o seguimento desta história , e servem para acentuar o carácter da grande maioria dos humildes servos de Deus naquele tempo calamitoso . Prègava frei||_Quintino Quintino|_Quintino trovejando do alto do púlpito de S.||_Bento_da_Vitória Bento|_Bento_da_Vitória da|_Bento_da_Vitória Vitória|_Bento_da_Vitória sôbre uma turba de fiéis de ambos os sexos e de tôdas as idades , mais curiosa talvez do que contrita : " Só vos lembro o meio de que esta corja infernal , sempre tem procurado servir-se para lançar por terra o Trono e o Altar , acabar com os Reis e com a religiáo de Jesus Cristo , a quem tem ódio infernal , e é a soberania popular tanto in civilibus como in sacris . " O povo é o soberano , a Soberania reside essencialmente em a naçáo , dizem estas bõcas Ímpias , e tam ímpias que chegaram a chamar ao contrário , sédiço Direito Divino . Daqui concluem que o rei não tem mais poder que aquele que o povo lhe quer dar ; e como êles se intitulam representantes da naçáo , se arrogam todo o poder . Aqui assenta seu sistema ímpio e blasfemo , pois é inteiramente oposlo ao que Deus nos diz nas Sagradas Escritoras , cm qoe files não crêem , mas em que nos devemos fundamentar a nós mesmos e aos povos , paro que não se deixem levar com o vento de suas ímpias doutrinas . " Segue a refulação das sobreditas doutrinas pelas palavras de S.||_Paulo Paulo|_Paulo -- omnis anima poleslatibux ... -- e por estoulras , que se lêem no Livro da Sabedoria -- amlite , Reges , el intelligite ... -- depois acrescenta da sua lavra o indignado orador : " Deus é o Rei dos Reis , é o que tira e faz Reis , é o que constitue Reis . e é o que tira e dó Reinos a quem fi sua vontade . Esta fi a linguagem e a frase das Divinas Escrituras , e é o que nelas diz o mesmo Senhor , e não o que diz essa corja de ímpios blasfemos . " Referindo-se à então projectada instituição do júri cm Portugal , lendo insinuado que as suas- atribuições abrangiam não só as cousas civis mas as eclesidsUcas e espirituais -- louvável má fé num benemérito filho da Igreja -- exclama " frei||_Quintino Quintino|_Quintino : " Que impia blasfêmia ! Debaixo dêste+este impio e blasfemo principio , vós védes em suas infernais constituições e cartas constitucionais o desprfizo que fazem da Côrte Romana , dos Papas e suas Ruías e Decisões , dos Rispos e tôda a Igreja , sujeitando a mesma Santa Fé não só a êles , chamados representantes da nação , mas uté mesmo aos jurados , ou júris , que podem ser sapateiros , alfaiates e outros da mesma categoria ! " E rematando a sua vigorosa argumentação contra " a influência do júri civil nas cousas ectesiãsticas e espirituais " , interroga : " Quem teem sido os que formaram e compuseram os Concilios , que sempre teem formado a Igreja e que verdadeiramenle a representam ? Teem sido os Papas e os Rispos , ou teem sido os júris e jurados de Inglaterra , França , ou Portugal moderno ? Corja Ímpia saída ou abortada pelo inferno na face da terra ! " Assim prègavam o evangelho de Cristo , pelos anos de 1829 e 1830 , em quãsc todos os púlpitos de Portugal , uns homens rancorosos e fanáticos , que se diziam intérpretes da sua doutrina de liberdade e amor . Frei||_Quintino Quintino|_Quintino era havido em tôda a diocese portuense como o mais esforçado compeáo da causa santa do trono e do altar . Daí a consideração que lhe dispensavam não só os confrades de superior hierarquia , mas as principais autoridades eclesiásticas e civis , e as mais gradas familias do Pôrto , ligadas á causa do absolutismo . Entre os que lhe celebravam o entranhado ódio Ãs blasfemas doutrinas do liberalismo nascente , corria uma frase dôle , proferida na ocasião em que lhe davam a grata noticia de terem perneado nas forcas da Praça Nova mais alguns maJhados , dos de pior casta . Disse frei||_Quintino Quintino|_Quintino : -- Ainda Bem . Morreram como judas , o discípulo traidor . Sómente Judas acabou como homem -- contrito , e êles morreram como cães -- impenitentes ! O romance de frei||_Quintino Quintino|_Quintino Frei||_Quintino Quintino|_Quintino tinha tido tambêm o seu pequeno romance , como qualquer pecador . Tentaremos resumi-lo , posto que as variadas peripécias dele nos fornecessem assunto para um volume à parte . Foi por meado de 1811 . Dirigia-se frei||_Quintino Quintino|_Quintino , que , por esse tempo , ainda não contava trinta anos , em puro D. Basílio , de seu hábito preto e o seu amplo chapéu de abas revôltas , do largo dos Lóios para o convento , subindo a ingreme e suja ladeira da rua de Trás . Ao seu lado direito ia um secular de grave aparência , cabeleiru de rabicho , casaca de calção de briche , meia de sôda preta e sapatos com Avelas de prata . Falavam de Napoleão , o temido conquistador , e incriminavam-lhe o proceder feroz e herético , que estava bradando ao céu por uma justa e assombrosa punição . -- Que eu lhe digo a v. rev.ma : tantas coisas extraordinárias tem feito aquele homem , e lam bem se tem saído delas , continuando-se as vitórias umas atrás dns outras , que me tem lembrado se Deus o ajudará ! -- Credo ! Tal suposição é um insulto à divindade ! Êsse apregoado general é um ímpio , que nem mesmo respeitou a cadeira de S. Pedro ! -- Não tive a fortuna de me exprimir de modo que fôsse compreendido o meu pensamento -- volveu o homem do rabicho . -- Eu queria dizer , vendo a fortuna que cérca o tal Napoleão nas suas mais arriscadas empresas . se êle não será mais do que um castigo mandado por Deus para punir os homens de seus erros e pecados . Ia responder frei||_Quintino Quintino|_Quintino , quando ouviu um chôro abafado atrás de si . Voltou-se . Era uma rapariga de cabelos prelos e olhos rasgados e expressivos , airosa de porte , com um vestido de chita de ramagens talhado segundo a moda , um pequeno chaile ao pescoço e um lenço mal atado na cabeça , indicando a precipitaçáo com que saira de casa . O pranto inundava-lhe as faces ; os soluços embargavam-lhe a voz . -- Que tem , minha fllha ? -- interrogou o frade parando . -- Pelas divinas cinco chagas , queira v. rev.ma vir a nossa casa confessar a minha avósinha , que está a despedir ! -- Eu vou , eu vou -- tornou frei||_Quintino Quintino|_Quintino . -- Era mesmo desnecessário socorrer-se do valimento das divinas cinco chagas para isso . não é outro o meu dever . -- E voltando-se para o companheiro : -- V. s.a dá-me licença ... ? Frei||_Quintino Quintino|_Quintino desceu a rua alguns passos , acompanhado da chorosa rapariga , e , guiado por ela , entrou numa dessas vélhas edificações esguias , sem luz e sem ar , que ainda hoje se encontram naquela noutras ruas tortuosas do antigo burgo portuense . Subiram a escada carunchosa e penetraram na saleta do primeiro andar , onde gemia uns gemidos prestes a extinguir-se , estendida num catre , tendo a roupa em desordem , uma velhinha tòda engilhada , com o olhar apagado e fundo , os lábios sumidos , dando à bôca entreaberta e sem dentes o aspecto de um buraco escuro ; linha os braços fóra da roupa e o esqueleto das mãos afiladas era coberto duma pele rugosa e tisnada como a superfície dum velho pergaminho . Ansiava . -- É esta a enfêrma ? -- interrogou frei||_Quintino Quintino|_Quintino parando aos pés do catre e contemplando a face macilenta da moribunda . Era ociosa a interrogaçáo . A rapariga respondeu desatando em chôro mais aberto . -- Etá bom , minha filha ; sossegue . Deus é cheio de misericórdia -- tomou o religioso esforçando-se por aveludar numa expressão untuosa o áspero metal do sua voz , -- e em caso algum devemos desesperar dela . Além disso repare que , com o espectáculo da sua dôr -- observou mais baixo , -- está lacerando o coração daquela cuja morte chora antecipadamente . Nestes momentos supremos , compreende-se , adivinha-se tudo . Vamos : enxugue as lágrimas e reze ... a oração infunde alivio e confiança nos corações atribulados . A pobre moça , que tinha o nome de Isabel , voltando a face para o lado oposto Ãquele em que estava a enfêrma , enxugou disfarçadamente as lágrimas a uma das pontas do lenço que tinha na cabeça . Depois olhou novamente . A vélha mexeu os lábios sem conseguir articular uma palavra e fez-lhe um quásc imperceptivel sinal com a mào descarnada aponlondo-lhe a porta . -- Eu vou , minha avósinha , eu vou -- e voltando-se para o religioso : -- V. rev.ma não tem mais do que chamar quando fôr preciso ... Estou ao fundo do corredor . Saiu Isabel da sala , a porta cerrou-se , e quáse por espaço de meia hora se ouviu o sussurro da voz do confessor , com pequenos intervalos de silêncio , em que era de presumir , a decrépita criatura murmurava alguma resposta ou alguma oração . Isabel , no fundo do corredor escuro , com os olhos fitos na claridade que dificilmente coava pelas fendas da poria , que se fechara nas suas cosias , escutava ansiosa o rumor da voz de frei||_Quintino Quintino|_Quintino e parecia-lhe a cada instante ouvir dizer : -- Está morta ! Aquela meia hora pareceu-lhe inflnita . Por último Isabel ouviu passos na sala dirigindo-se para a porta . unia vertigem passou-lhe pela cabeça , a luz abandonou-lhe os olhos , um suor frio inundou-lhe a fronte ... Se efectivamente a sua avósinha tivesse morrido , emquanto a interrogava o religioso ? ... Abriu-se a porta na extremidade do corredor e o vulto do frade destacou no fundo luminoso que o enquadrava . -- Pode entrar -- disse file a meia voz para fóra . Isabel acudiu . -- Sossegue , minha filha ... A sua avósinha , que tanto parece estimar , nflo está Iam perigosa , como supunha ... Acha-se no gôzo de tódas as suas faculdades : bôa memória , bom ouvido , e eu ainda espero em Deus , por intervenção do meu bemuventurudo S. Bento , que ela há-de viver . A moribunda , a estas palavras , enrugou levemente a bôca , talvez num sorriso de dúvida ; Isabel , porém , ajoelhando aos pés do beneditino , beijou-lhe com efusão a manga do hábito , e levantando para êle os olhos suplicantes , exclamou numa voz comovida : -- Que Deus nosso Senhor o oiça ! Frei||_Quintino Quintino|_Quintino pegou-lhe na mão e ergueu-a lentamente , encarando-a pela primeira vez . -- Há-de ouvir , minha filha ... Deus escuta as preces de quantos o imploram -- disse êle sem lhe ter deixado a mão ; e , consigo mesmo , num urroubumento , acrescentava : -- Como é bonita ! -- Devo mandar chamar o Nosso Pai ? -- Sem dúvida , e quanto antes . É preciso preparar para tôdas as eventualidades . Só Deus , Senhor nosso , lê no dia de àmanhã . Na dúvida , cumpre-nos prevenir . Tem por quem mande aviso ao pároco ? -- Temos uma mulher . que nos foz os recados , mas ainda hoje não apareceu cá em casa . -- Pois bem ; nfto se aflija por isso . Eu vou à igreja prevenir as coisas , de modo que os saulos sacramentos estejam aqui dentro do mínimo espaço de tempo . -- Muito obrigada n v. rev.ma -- disse Isabel sinceramente gruta por lanta bondade . -- Não tem que me agradecer , minha filha . Cativaram-me os seus extremos de amor por essa pobre velha , que para si é como se fosse uma segunda mãe ; e alêm de bôa , vejo que é religiosa e temente a Deus . Conte comigo . Frei||_Quintino Quintino|_Quintino aproximou-se da moribunda , chegou-lhe aos lábios frios a cruz de um bogalhudo rosário , e dirigindo-se gravemente para a porta , ia dizendo : -- Vou cumprir com a possível diligencia a grata missão de que me encarreguei . Dentro em três quartos de hora a sua avósinha poderá adormecer neste mundo o sono eterno para acordar no outro cm meio de córos de anjos . Chegado próximo da escada , a meio do escuro corredor , frei||_Quintino Quintino|_Quintino voltou-se para Isabel , que o seguia : -- Escusa de vir mais adiante -- disse êle alongando o braço naturalmente com a mão espalmada , acontecendo receber o embate do seio rijo e , túmido da chorosa rapariga , que não previra aquela paragem repentina . -- Amanhã , quando passar por aqui , virei saber como está a enfêrma . E creia nisto , minha filha : Deus nunca abandona os bons . Isabel ia ajoelhar . Frei||_Quintino Quintino|_Quintino ergueu-a pela cintura brandumente . murmurando com certa agitação na voz : -- Rasto , basta . E desceu precipitadamente a escada . No dia seguinte o frade apresentou-se em casa de Isabel , que rezava diante dum crucifixo de madeira , que tinha sôbre a meia cómoda , e cuja lamparina estava diante dele apagada e sem óleo . Ao ver entrar o religioso , anunciando-se por um -- louvado seja Nosso Senhor||_Jesus_Cristo Jesus|_Jesus_Cristo Cristo|_Jesus_Cristo , -- Isabel interrompeu as suas orações e foi-lhe ao encontro beijar a manga do hábito . Frei||_Quintino Quintino|_Quintino relanceou-lhe um rápido olhar terno , e disse : -- Vejo com prazer que a minhn filha se vai resignando com os altos juízos de Deus ... Encontro-a mnis confiada ... Milagres da oração ! Diga-me : como tem passado a enfêrma ? -- Depois que tomou nosso Pai , parece que ficou mais sossegada . Já bebeu dois caldos , e tem-os conservado no estômago . Lembro-me se seráo as melhoras da morte ... E as lágrimas caíram em fio pelo rosto da pobre rapariga . -- Não hâo-de ser , querendo Deus nosso Senhor . Frei||_Quintino Quintino|_Quintino aproximou-se da enfêrma , e como ela indicasse querer dizer alguma cousa , o religioso achegou o ouvido daquela bôca entreaberta . Em seguida ergueu a cabeça e disse para Isabel : -- Quer que a encostem para cima , nas travesseiras . Ajude-me . E ambos , cada um pelo seu lado , conseguiram , depois de algum tempo , erguer a meio corpo o descarnado esqueleto da vélha , que respirava ainda . No rosto transluziu-lhe um certo bem estar . Em seguida , com um gesto , mandou retirar a neta . Ela obedeceu . Mas daí a dez minutos Isabel acudiu à voz de frei||_Quintino Quintino|_Quintino , que a chamava . Entrou aflita , ansiada . Nas braços do religioso , com os olhos cerrados , o queixo pendente c o corpo hirto , a vélha parecia cadáver . Isabel soltou um grito e correu a ela , a apertá-la nos braços , a chamá-la , a abrir-lhe os lábios , como para lhe facilitar uma resposta . Frei||_Quintino Quintino|_Quintino , entretanto , experimentava comoções de bem diversa natureza . Com os olhos sôfregos pousados no rosto da aflita rapariga , parecia devorá-la com a vista , alheio ao doloroso quadro de que êle era ... a sombra . Depois sôbre uma das suas mâos fradescas , de pele setinosa e bem tratada , caíram algumas lágrimas ardentes ; essa estranha sensação coou-lhe no sangue um ardor febril , que lhe percorreu os membros , e perturbou os sentidos ; depois , como ambos sustinham o corpo inanimado da vélha , uma das máos da pobre rupariga enlaçou-se numa das dele , e o frade sentiu , a par dêste+este contacto , o calor da respiração apressada e a ondulação do seio ofegante dela . Frei||_Quintino Quintino|_Quintino compreendeu que nfto podia estar ali por mais tempo . Tinha mudado de côr , as palpitações do roraçfto atropelavam-se-lhe e as fonles da cabeça batiam-lhe violentamente . Assim , com a voz estrangulada na garganta , disse : -- É melhor encostá-la para trás . não passa de um desmaio ... Eu ... vou chamar um médico ... e já volto . Isabel ficou só , banhada em lágrimas , chegando a face aos lábios da enfêrma , arregaçando-lhe as pálpebras , aquecendo-lhe as mãos entre as as suas . Passado algum tempo , a vélha mexeu as sobrancelhas numa leve contracçáo nervosa , em seguida crispou os dedos das máos , e pareceu respirar . Isabel , alvoroçada com êstes inesperados sinais de vida , deu em chamá-la pelos nomes mais ternos , -- e ela entreabria os olhos para os tornar a cerrar , quando frei||_Quintino Quintino|_Quintino entrava de novo na saleta da moribunda , acompanhado de um médico vizinho . -- Vive ! está viva ! -- clamou ela ao aperceber o religioso . O médico auscultou a vélha , que mais parecia múmia , fez um gesto indicativo de pouca ou nenhuma esperança , receitou uma tisana e saiu . Frei||_Quintino Quintino|_Quintino aproximou-se de Isabel , para lhe dizer baixo : -- Minha filha , sua avó deu-me a entender as circunstâncias pouco lisonjeiras a que estão reduzidas . Era quáse exclusivamente do seu trabalho que a menina tirava para a subsistência de ambas . Hoje , as poucas economias que conseguiu amealhar , dispendeu-as com a doença da sua avó , e essa mesma doença a tern impedido de trabalhar . A minha presença aqui , pois , é providencial . Foi o Senhor ou algum dos seus santos , que a inspirou , quando ontem correu a chamar-me . Rogo-lhe , minha Dlha , que aceite esta peça de oiro para pagar a tisana , que o médico receitou , e satisfazer ainda outras necessidades ... Vamos , entáo ? -- Perdôe- me s . rev.ma . porêm ... graças a Deus , nós ainda temos alguma coisa , e ... -- Que teem ? ... Não falte à verdade . -- Não falto , meu snr. ; temos ainda estas quatro cadeiras com ... -- Está bom -- interrompeu êle ; e insistindo com branda autoridade . -- Aceite , repito ... ou não tem confiança neste hábito em que eu ando amortalhado ? Isabel recebeu trémula a peça de oiro , que o frade lhe oferecia . A prova de que não tinha um triste rial em casa -- é que estava sem gota de azeite a lamparina do crucifixo . A bôa rapariga quis agradecer no seu bemfeitor beijando-lhe e regando-lhe as mãos de lágrimas .