ALFREDO MESQUITA A RUA DE+O OIRO ROMANCE LISBOETA LISBOA LIVRARIA EDITORA Viuva TAVARES CARDOSO Largo de Camões , 5 e 6 1905 Já as Camaras estavam abertas , havia quasi dois mezes , quando cheguei a Lisboa , numa enevoada quarta-feira de Comadres , com grandes ameaços de chuva , e um vento fórte , ás lufadas , que já dos lados da Barra soprava e espalhava no céo as cinzas de um aguaceiro , e me levava o chapéo de côco de rebolão , pela ponte da Alfandega , onde desembarcámos , até á casa do Despacho , onde deviamos esperar as malas . Tinhamos que esperar por essas malas ! Eu devia achar-me em Lisboa , segundo os meus calculos e os dos meus amigos politicos , desde os fins de dezembro , para comparecer nas Côrtes logo no dia da abertura , e acompanhar desde esse dia , com muita assiduidade e zelo , todos os trabalhos parlamentares . Para isso havia eu recebido aquelle muito honroso mandato ! Era bem certo , porém , como sempre ouvira dizer a minha Tia||_Maria_da_Assumpção Maria|_Maria_da_Assumpção da|_Maria_da_Assumpção Assumpção|_Maria_da_Assumpção , senhora de amplas nadegas e de profundos conceitos -- que o homem punha e Deus dispunha . Uma inesperada angina pectoris surprehendera-me na vespera da partida , já com a roupa mettida nas malas e a passagem tomada no paquete . Estive dez dias de cama , com febre de trinta e oito graus , cinco cobertores de papa , e duas tias á cabeceira : a minha querida Tia||_Genoveva_Sampaio_do_Amaral Genoveva|_Genoveva_Sampaio_do_Amaral Sampaio|_Genoveva_Sampaio_do_Amaral do|_Genoveva_Sampaio_do_Amaral Amaral|_Genoveva_Sampaio_do_Amaral d' um lado ; e a minha presada Tia||_Maria_da_Assumpção_Carneiro_de_Amarante Maria|_Maria_da_Assumpção_Carneiro_de_Amarante da|_Maria_da_Assumpção_Carneiro_de_Amarante Assumpção|_Maria_da_Assumpção_Carneiro_de_Amarante Carneiro|_Maria_da_Assumpção_Carneiro_de_Amarante de|_Maria_da_Assumpção_Carneiro_de_Amarante Amarante|_Maria_da_Assumpção_Carneiro_de_Amarante , do outro . Ao decimo dia tive alta , que me foi dada pelo complacente Doutor||_Tristão Tristão|_Tristão , o mais alegre facultativo que tem exercido clinica com a carta do curso da Escola Medica da Madeira , e que era o medico da nossa casa desde que eu me entendia -- mesmo já antes de eu me entender -- pois fôra elle quem assistira aos ultimos momentos de minha Mãe , que Deus haja , viuva ao Sexto mez de gravida , e victima , depois , de uma peritonite puerperal , sobrevinda ao parto infeliz de que eu vim ao mundo . Mas se eu fizera mal em pedir alta , peor fizera o Doutor||_Tristão Tristão|_Tristão em m ' a conceder promptamente -- sempre muito receioso de que o doente podesse suppôr ter elle empenho em demorar a doença para augmentar a conta das visitas . Quiz abreviar a convalescença , sahi de casa ao segundo dia depois de deixar a cama , apanhei humidade e recahi com febre ainda mais intensa . Minhas Tias , embora se guardassem bem de m ' o dizer , tinham tido com essa recahida um muito intimo jubilo . A Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , irmã de minha Mãe , e a quem minha Mãe pedira , á hora da morte , apertando-lhe muito ambas as mãos , e já com o vidro dos seus claros olhos azues embaciado -- que não me desamparasse e me amasse tanto como ella decerto me teria amado , se tivesse vivido -- a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , dizia eu , fôra das quatro filhas do Desembargador Manoel Augusto Soares do Amaral , a unica que se conservara solteira , e que muito propositadamente quizera ficar para tia -- para minha tia , tendo sido a mais formosa das quatro irmãs , e a mais requestada de todas ellas , já pelas condições de excepcional encanto com que a natureza a dotara , já pelas condições de desusada fortuna com que a dotara João Maria Soares do Amaral , que tendo voltado do Brazil com uma riqueza e um ataque de béri-béri , apaixonára- se tambem por a sobrinha , mas guardara comsigo o segredo d' essa paixão , de que só se veiu a saber quando se lhe abriu o testamento , em que elle constituia minha Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva sua universal herdeira ... Tanto a peito esta bondosa Tia tomou o meu triste caso de pequenino orfão desamparado , que só me não deu maminha porque não poude ; pois de tudo o mais quanto sabe dar-nos em cuidados , caricias e cueiros sempre frescos , um verdadeiro amor de mãe , a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva foi prodiga , e só comparavel , nesses extremos por mim , áquella nossa velha gata maltêsa Mangerona , que d' uma vez creou e acarinhou com muito enleio materno , a um canto da estrebaria , uma ninhada de patinhos cinzentos , como se fosse uma ninhada de gatos . Quando eu nasci , tinha a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva vinte annos , engrinaldados de purezas e de encantos simples , como de rosas brancas de toucar . O luto de que ella se cobriu por morte de minha mãe , ainda mais pôz em realce a formosura da sua pelle clara e dos seus cabellos loiros , e mais amavelmente contornou as maciesas redondinhas do seu busto . A nossa casa , que ainda hoje é a mesma , ficava situada no caminho do historico castello de São João Baptista , onde se achava aquartelado o regimento ; e como por ali transitasse , todos os dias , á ida e á volta do serviço , a briosa officialidade de Caçadores 10 , era de vêr , segundo ainda hoje se conta na familia , a chamma que brilhava no olho dos alferes , quando passavam , arrastando e tilintando as espadas , por baixo das nossas janellas , e a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva assomava , descuidosamente , a alguma d' ellas . Depois , quando se abriu o testamento do Tio||_João_Maria João|_João_Maria Maria|_João_Maria , e a noticia da herança correu de serra em serra como corre uma levada , já não eram só os alferes , eram outros officiaes de patente superior , majores e coroneis , que chegavam a pedir transferencia de regimento , e vinham , todos empennachados , passar por baixo das nossas janellas , com um barulho guerreiro de esporas e de espadas , como nas cargas rutilantes dos grandes quadros de Détaille ! Houve um momento em que o espirito occulto da Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva influiu poderosamente na Ordem do Exercito . E num dia de grande gala , em que o regimento sahia do Castello para vir formar em frente da Sé , onde havia Te-Deum , ao passar por casa do Desembargador Amaral , ruidosamente a banda rompeu o Noivado do Sepulchro , que era a musica predilecta da Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva . Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , porém , apenas sorria , muito á flôr dos labios , da maluqueira amoruda em que a sua pessoa lançava tanto official superior . Debalde as Primas Rochas e as Primas Noronhas , e o Primo Theodosio , secretario dos amantes e da Administração do Concelho , diligenciavam estimula-la ao amor , com aquelle empenho que tiveram sempre em arranjar casamentos , para sempre andarem mettidos em bodas e em baptisados . Em vão lhe preparavam ciladas de namoro , combinando entrevistas , entregando lhe missivas perfumadas , levando-lhe declarações e amores perfeitos espalmados entre folhas de livros de missa . Com um leve gesto de recusa , a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva sacudia-os a todos , galhofando ; e eram para mim , só para mim , exxlusivamente para mim , a festa dos seus affectos e a prodigalidade dos seus mimos . Tive sete amas , e todas ellas de freguezias diversas , porque desde que alguma se queixasse de uma dôrsinha no peito , ou acontecesse endefluxar-se nalguma corrente de ar , logo a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva a despedia , para que o leite perturbado não me contaminasse de algum mal , e contractava outra . Corri tres collegios , e todos elles de meninas , antes de ser admittido a exame de instrucção primaria . Todo o meu curso do Liceu o fiz com sentinella á vista , tendo sido necessario para a realisação d' este complicado desideratum da Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , que o Reitor auctorisasse a entrada nas aulas , como alumno livre , ao Manoel Ignacio , creado velho da casa de meu Avô , que andara com minha Mãe e minhas Tias ao collo , e agora me acompanhava á mathematica e á fisica , para tomar conta em mim , não perder de vista um unico dos meus movimentos . Tinha quinze annos quando acabei o curso , e todo um anno mais se passou antes que a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva se decidisse a separar-se de mim e a mandar-me para Coimbra cursar Direito , que era o meu sonho doirado de bacharel embrionario . Ainda se fosse viavel a idéa , que a boa senhora chegou a expender , de mandar o Manoel Ignacio acompanhar-me durante a formatura ! ... E como depois que me vira embarcar , muito recommendado ao capitão do navio e ao dispenseiro de bordo , nunca mais me tornara a ter junto de si senão durante o breve tempo de férias , agora , que eu regressara á Ilha , com o meu curso e com o meu diploma , feito doutor e homem feito , ella não se atrevia já a exercer sobre mim a mesma carinhosa vigilancia d' outros tempos , que era bem uma perseguição , mas uma dôce perseguição ; e chegava então a rejubilar com os meus incommodos de saude , desde que esses incommodos me obrigassem a não sahir de casa , sem que todavia tomassem o mais leve aspecto de gravidade . Quanto á Tia||_Maria_da_Assumpção Maria|_Maria_da_Assumpção da|_Maria_da_Assumpção Assumpção|_Maria_da_Assumpção , o motivo que a prendia á minha cabeceira , e o seu particular contentamento de me vêr assim prostrado no leito da dôr , eram bem outros . A Tia Maria da Assumpção Carneiro de Amarante , viuva aos trinta e oito annos de idade e ao segundo anno de casada , de meu Tio||_Manoel_Felisberto_de_Amarante Manoel|_Manoel_Felisberto_de_Amarante Felisberto|_Manoel_Felisberto_de_Amarante de|_Manoel_Felisberto_de_Amarante Amarante|_Manoel_Felisberto_de_Amarante , irmão de meu Pae , e grande exportador de laranja para a Inglaterra , nunca tivera por mim um decidido affecto , e bastas vezes me torcera beliscões em pequeno , para melhor demonstrar , por essa pratica facil e muito intuitiva , uma das suas ponderações favoritas : " que era de pequenino que se torcia o pepino . " Sempre embirrara commigo , nunca eu soube porquê , e me achava insupportavel , chamando-me de continuo grande bicho fervedoiro e alma do diabo , e não sendo eu senhor de mexer um dedo , nem dizer uma palavra em sua augusta presença , sem que ella revirasse logo para mim o olho verde ameaçador , reprimindo um Impeto e mordendo o beiço de baixo se a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva estivesse , chegando me logo um sopapo se eu estivesse só com ella . Tendo minha Mãe pedido á Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva que na pia do baptismo me pozessem o nome de Joaquim ( que era o nome de meu Pae ) e tendo depois a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva decretado a toda a gente da casa , creadas e creados , quinteiros e quinteiras , que não queria que me tratassem por -- " Joaquimsinho " , nem por -- " Menino Joaquim " , mas por esta mimosa abreviatura de o Quinino " , que ainda hoje familiarmente se emprega lá em casa , quando se fala de mim -- sempre a Tia||_Maria_da_Assumpção Maria|_Maria_da_Assumpção da|_Maria_da_Assumpção Assumpção|_Maria_da_Assumpção tirara d' esta simples coisa carinhosa , que era agradavel á Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , e de que eu gostava tambem , um estigma de ridiculo para lançar sobre a minha fraca pessoa : e quando a mim se referia , ou quando por mim chamava , tratando-me tambem por " Quinino " , de tal modo transtornava , e tão propositadamente , o que naquelle diminuitivo havia de mimo e de bondade , tal intonação de dois sentidos lhe dava , que eu bem percebia querer ella dizer , na sua , que aquelle " Quinino " lhe era tão desagradavel e antipathico como o outro quinino que se toma para as febres , e cujo mau sabor lhe vinha á bocca , desde uma vez que , ainda em solteira , se lhe esborrachara na lingua uma hostia d' esse sulfato . Só muito mais tarde , depois que conclui o meu curso do Liceu , e comecei a entrar , ás apalpadellas , no entendimento aproximado das coisas d' este mundo , é que me veiu á idéa , na conjectura retrospectiva de alguns factos e episodios que mais me haviam impressionado durante as primeiras lettras -- que o principio d' aquella atroz embirração de minha Tia por mim , coincidira justamente com o periodo agudo da sua desditosa viuvez , em que a pobre senhora soffrera de um permanente frenesi , frequentemente acompanhado de ataques de nervos que lhe davam para rasgar as mangas do roupão e morder o travesseiro . E cheguei então a pensar que , se a esse tempo eu já podesse saber o que depois vim a saber , talvez as coisas se tivessem harmonisado entre nós , a contento da Tia||_Maria_da_Assumpção Maria|_Maria_da_Assumpção da|_Maria_da_Assumpção Assumpção|_Maria_da_Assumpção e a meu contento , pois por mais d' uma vez eu pensara , contemplando a sua frescura , que muito devia ter custado ao Tio||_Manoel_Felisberto Manoel|_Manoel_Felisberto Felisberto|_Manoel_Felisberto separar-se d' ella tão cedo -- e para sempre ! Em Coimbra , com as noitadas e regabófes inherentes á Faculdade , prejudiquei tanto os meus bronchios , que , depois de concluir a formatura , e de voltar para a Ilha , continuei a soffrer d' elles amiudadas vezes ; e sempre era o alegre Doutor||_Tristão Tristão|_Tristão que me prestava os seus soccorros medicos . O meu escriptorio de advogado , ao voltar da Rua da Esperança para a Miragaia , ficava mesmo defronte da casa da Tia||_Maria_da_Assumpção Maria|_Maria_da_Assumpção da|_Maria_da_Assumpção Assumpção|_Maria_da_Assumpção ; e de cada vez que eu não ia ao escriptorio , era sabido que logo apparecia em nossa casa a Gertrudes Gaga , sua creada de fóra , a perguntar , com a fala muito tarda e a expremer-se muito nos ques -- se o senhor||_Doutor Doutor|_Doutor Quinino estava doente se já tinha sido preciso mandar chamar o medico ... E se lhe respondiam que sim , ahi largava ella a correr , a levar a noticia á Tia||_Maria_da_Assumpção Maria|_Maria_da_Assumpção da|_Maria_da_Assumpção Assumpção|_Maria_da_Assumpção , e ahi tinhamos nós , pouco depois , a Tia||_Maria_da_Assumpção Maria|_Maria_da_Assumpção da|_Maria_da_Assumpção Assumpção|_Maria_da_Assumpção , toda açodada , aos puxões na bórla de lã verde da campainha da porta , muito afflicta , a querer que lhe dissessem , ainda na escada , se já tinham mandado chamar o Doutor||_Tristão Tristão|_Tristão , e o que tinha elle dito , e se disséra que voltava . Depois , sentava-se me á cabeceira , e diría- se-que toda ella se desfazia em cuidados e disvelos , como se quizesse penitenciar-se para commigo , e por esse modo , do muito que me torcera e retorcera em pequenino , como quem torce e retorce um pepino . Eu nunca fui de guardar rancores , como certas creaturas que tenho conhecido em minha vida , ou como a mula do Papa , que sete annos guardou o formidavel coice ; e depressa esquecera , com a ida para Coimbra , os beliscões , as reprimendas e os maus olhados da Tia||_Maria_da_Assumpção Maria|_Maria_da_Assumpção da|_Maria_da_Assumpção Assumpção|_Maria_da_Assumpção , que tanto me irritavam e me affligiam . Mas de cada vez que a via apparecer á porta do meu quarto de doente , sorridente e affavel como uma irmã de caridade a consolar um triste , vinha me logo á lembrança o tempo em que ella me maltratava e me detestava , me chamava bicho fervedoiro , alma do diabo e Quinino ... mas quinino -- sulfato ! E attribuindo apenas a uma questão de tempo e de ausencia a profunda mudança que se havia operado nas nossas relações , que eram agora evidentemente cordeaes ( como no Discurso da Corôa as relações de Portugal com as demais potencias ) , dava graças a Deus por ter cessado esse conflicto , e não pensava sequer em descobrir outras razões . Bem longe estava eu , bacharel ingenuo em Direito , de suspeitar que andava sendo intrujado por tão sabida senhora ! Minha Tia Maria da Assumpção , vinte annos volvidos sobre o funeral de primeira classe de meu Tio||_Manoel_Felisberto Manoel|_Manoel_Felisberto Felisberto|_Manoel_Felisberto , não podera conformar-se com a pouca sorte de só ter estado casada dois annos ( lapso bem curto , com effeito , quando os casados se entendem e de bom grado se submettem ás leis da Natureza no que respeita ás relações dos sexos ) ; e todas as suas attenções de viuva inquieta e inconsolavel -- inconsolavel não pela perda do primeiro marido , mas por a falta de um outro -- se voltaram para quem ? Para o Doutor||_Tristão Tristão|_Tristão ! Eu nunca teria dado por tal , se o Theodosio , ainda hoje secretario da Administração do Concelho , m ' o não houvesse denunciado , declarando que era eu , em toda a Ilha , talvez em todo o Archipelago , a unica pessoa que o não sabia . Mas desde que o Theodosio m ' o disse , e entrei a observar as attitudes de minha Tia quando e onde quer que estivesse em presença do Doutor||_Tristão Tristão|_Tristão , facilmente percebi que ella perseguia o nosso medico com o mais porfiante e descarado namoro que se possa imaginar . Porque não era só com os olhos , verdes e fixos , que ella procurava perturbar a invejavel tranquillidade de alma do Doutor||_Tristão Tristão|_Tristão , que tão sabiamente e parcamente regulava as necessidades do seu celibato pelos conselhos prudentes de Raspail : era com o pé , pisando o d' elle , de cada vez que podia ; era com a perna , sempre que se sentava ao seu lado ; era com o joelho , se lhe ficava na frente . E auxiliando a acção d' estes meios mais directos , mas mais perigosos , de ataque , era com enormes travessas de fios d' ovos salpicados de confeitos , e levados a ponto pelas suas preciosas mãos ; ou com magnificos cabazes de fructa da sua quinta de São Carlos ; ou com soberbos ramos de dhalias colhidas no jardim da sua casa da cidade -- que ella se lhe declarava , se lhe escancarava ... Ella confessara uma vez á Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva que fizera a promessa de andar vestida ao Carmo , com escapulario e correia , até ao dia em que Nossa Senhora lhe permittisse voltar aos pés do altar para ser recebida outra vez em casamento . Mas parecia que Nossa Senhora gostava mais de a vêr com aquelle habito , de escapulario e correia , e não a deixava mudar de figurino . O alegre Doutor||_Tristão Tristão|_Tristão ia comendo e saboreando , ás sobremezas , as travessas de fios d' ovos ; devorava as peras e os pecegos de São Carlos , com a casca ; enchia de dhalias sempre frescas as jarras da sua sala ; e brandamente fugia á Tia||_Maria_da_Assumpção Maria|_Maria_da_Assumpção da|_Maria_da_Assumpção Assumpção|_Maria_da_Assumpção -- com a perna e com o joelho por causa das conveniencias , e com o pé por causa dos callos , que os tinha impertinentes , um em cada dedo mindinho ... A minha eleição para deputado tinha-se feito limpamente , independentemente , sem violencia , sem atropelo , sem carneiro e sem batatas . Eu sahira eleito pelo voto livre , e esta circumstancia anormal em actos eleitoraes , se por um lado era grata á minha vaidade ainda timida , e acariciava o meu amor proprio como a festa que se faz a um gato , passando-lhe a mão sobre o lombo , ao correr do pêlo , por outro lado impunha-me responsabilidades e enchia-me de inquietações . Eleito deputado a sério , eu tinha de ser um deputado a sério ; e esse caso intimidava-me , assustava-me quasi , porque o papel de um representante do povo a sério , no meio de cento e tantos que só o eram por troça , tinha de ser uma verdadeira creação . Mal eu chegara de Coimbra com o meu curso , e começara a exercer a advocacia , com uma certa frescura de loquela a que já não estavam habituados o auditorio e os jurados das causas crimes da minha Ilha , logo as attenções da terra se haviam voltado para mim , e se pensara e se disséra , á bocca pequena , que eu devia dar um excellente deputado . Mas ninguem se atrevera ainda a dizê-lo em voz alta , porque o respeito da tradição , solidamente enraizado nos animos terceirenses , não admittia a tentativa de uma disputa eleitoral , emquanto fossem vivos o Conego Pinto e o Machado da Botica , progressistas , o Barão da Terra-Chã e o Pompeu , regeneradores , que ha vinte annos se davam a alternativa nas candidaturas por Angra . Por isso , dobrado foi o espanto quando , uma vez , tendo chegado por uma mala inesperada a noticia de que haviam sido dissolvidas as Camaras , e em plena reunião do Centro regenerador , presidida pelo ferrenho Maia , grande amigo do Fontes , e cunhado e sustentaculo do Pompeu ; e tendo sido dada para ordem da noite " a attitude do partido em face da ultima prepotencia do governo " -- o Doutor||_Tarquinio Tarquinio|_Tarquinio , pedindo a palavra , se assoara e tossira com estrondo , arrastara os pés , estabelecera uma silenciosa atmosfera de anciedade ( porque a sua palavra era sempre esperada e ouvida como a ultima palavra ) e depois de muito ponderar , muito considerar e muito fundamentar a necessidade de escolher novos elementos de combate para as luctas , cada vez mais alterosas , do Parlamento , abertamente e á queima-roupa alvitrara a minha candidatura nas proximas eleições ! O golpe era de mestre , e mestre de maráus . Toda a gente sabia que o Doutor||_Tarquinio Tarquinio|_Tarquinio não podia vêr-me desde que eu abrira escriptorio e entrára a advogar -- porque advogado era elle , e para Angra elle bastava . E eu bem o sentia , sem lhe querer mal por isso , que Tarquinio era o meu grande inimigo ! Tarquinio exercia a advocacia desde os tempos remotos em que Tristão começara a exercer a clinica . Muito antes de mim , e muitos outros haviam tentado estabelecer na Ilha essa legitima concorrencia de jurisconsultos , a que se oppunham sempre , tão encarniçadamente , os interesses , aliás tambem legitimos , do açambarcante Doutor||_Tarquinio Tarquinio|_Tarquinio . Acobardavam todos , porém , e succumbiam . Tarquinio , triumfador , tornou se facilmente Tarquinio despotico ; e quando eu cheguei , e comecei , tive logo a minha sentença lavrada : Tarquinio me-como se esborracha uma pulga -- sob a pressão implacavel do seu muito saber e da sua unha muito crescida e muito suja . Alguns amigos e parentes chegaram a aconselhar-me que pozesse de parte a idéa de advogar , e que pensasse noutra coisa . A Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , essa , foi mais longe : chegou a confessar-me o susto constante em que a trazia agora o receio de que Tarquinio exercesse sobre a minha fraca pessoa alguma forte violencia ! Por modo que , quando Tarquinio pediu a palavra no Centro regenerador para lembrar o meu nome , quasi para propôr a minha candidatura , e quando depois , no Club , nessa mesma noite , e em toda a cidade ao outro dia , tal se ouviu e se espalhou , a surpreza fôra geral , não atinando ninguem com a explicação que tão estranho caso poderia ter ; e dos amigos e correliigonarios politicos do Doutor||_Tarquinio Tarquinio|_Tarquinio , os que não suppunham aquillo uma grande abnegação , diziam que o seu nobre amigo e correligionario perdera a mioleira . Só eu e a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva não creámos illusões a tal respeito . Evidentemente , para nós , Tarquinio lá tinha esta fisgada : preparar-me uma candidatura como se me preparasse uma embuscada ; fazer-me eleger como se me fizesse amordaçar ; e despenhar-me no Parlamento , como se me lançasse a um abismo . Todas estas imagens , que faziam estremecer de terror a Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , me fizeram apenas sorrir a principio , achando divino esse Tarquinio em quem Tristão quizera vêr já um começo de mania de perseguição , quando aquillo só era , afinal , um pittoresco e fundo despeito pelo modesto exito que eu mal começava a disfructar no fôro . Porém , franqueza , franqueza , a idéa da candidatura não me fôra desagradavel de todo em todo , antes determinara em mim um certo sobresalto , que não era outra coisa senão aquella vã cubiça do prestigio e da influencia politica , de que uma tão risonha noção eu tinha desde o segundo anno do meu curso de Direito . Procurei o Doutor||_Tarquinio Tarquinio|_Tarquinio , resolutamente , depuz nas suas mãos todos os penhores da minha gratidão , e declarei-lhe que não deixava de me convir a candidatura , embora me sentisse mal provido de forças para corresponder honrosamente á sua tão espontanea quanto generosa iniciativa . Elle rejubilou com a minha annuencia , abraçou me paternalmente , dissuadiu-me de pieguices , deu-me conselhos , veiu acompanhar-me até á porta , e chegou a sahir á rua , em chinelas de casimira bordadas . -- " O meu amigo está novo , tem todo o sangue na guelra , talento não lhe falta , um largo futuro o espera na politica e na publica administração . Folgo muito em que acceite a minha idéa , porque a sua eleição não será só um grande bem para o meu amigo , será um grande bem para a patria ! " E como sentisse que era boa a frase , e lhe seria penoso encontrar outra melhor , ou pelo menos tão boa , para sellar com solemnidade essa nossa primeira conferencia , apertou me muito sacudidamente a mão , e metteu-se á pressa para dentro , sem querer ouvir mais nada . Na Rua de Jesus , onde Tarquinio morava , não apparecia viv ' alma a essa hora da tarde . Era tarde de toiros em São João de Deus , e a cidade parecia morta . Olhei para o lado da Rocha , olhei para o lado da Rua da Sé , olhei para todas as casas e para todas as janellas , ninguem ... Tinha ido tudo para os toiros ! Dominado então por um unico pensamento , que me absorvia e me obcecava nesse instante , parei a meio do passeio , carreguei o sobr'olho , estendi um braço para a frente , e disse , em voz alta : -- " Senhor presidente , peço a palavra ! " Uma voz conhecida , diabolicamente occulta por detrás de mim , respondeu : -- " Tem a palavra o illustre deputado ... " Voltei-me , como por um salto de móla . E uma grande risota correspondeu a esse meu movimento . Era Theodosio , o Primo Theodosio , que de longe me vira entrar para casa do Doutor||_Tarquinio Tarquinio|_Tarquinio , no momento em que atravessava a Rua da Sé , indo para os toiros ; mas , voltando-se para trás , e mettendo-se num portão , ahi se pozera á espera de que a conferencia acabasse , para d' ella saber , antes de mais ninguem , o resultado . Perdera dois toiros , com certeza , e só Deus sabia quanto isso lhe custava ; mas não seria a elle que eu poderia negar ter-me demorado cinco quartos de hora em casa do Doutor||_Tarquinio Tarquinio|_Tarquinio , a combinar a eleição . -- " Agora , meu caro primo -- dizia me Theodosio -- passas a ter em mim um adversario politico de temer . No meu tempo , a verdadeira politica era servir os amigos , e d' esse nobre principio aproveitei eu ainda , que muito galopinei sempre ao lado do Maia , e pelo Maia fui servido ... Hoje , está tudo mudado , e o nobre principio , em politica , é servir os inimigos antes de mais ninguem . Ora , tu sabes que a Administração do Concelho me dá uma miseria -- desoito mil e tresentos , a secco . Ando ha cinco annos a pedir que me nomeiem para a bibliotheca do Liceu , que está entregue a um contínuo , desde que morreu o João Horacio , e o mais que tenho conseguido é que ainda não nomeiassem outro , á espera , diz agora o Maia , de que os regeneradores cáiam e voltem os progressistas , que talvez então me nomeiem ... Os progressistas , primo ! Nomeado pelos progressistas , eu , Theodosio , que tenho sido toda a minha vida , e com muita honra , o grande inimigo dos progressistas ! " Um foguete de tres respostas estalou no ar , ao longe , para os lados de São João de Deus . Devia ser o recolher do segundo toiro . Theodosio teve um sobresalto , apressou a conversa . -- " ... Sei que te propões a deputado independente . Não faço bem idéa do que seja um deputado independente , mas tu lá o sabes , e isso basta . Mas imagino que os deputados independentes se inventaram para contento de progressistas e regeneradores ao mesmo tempo , e eu preferia então que fosses tu quem me arranjasse o logar na bibliotheca . Era uma nomeação extrapartidaria , que me deixava os movimentos livres ... " -- " Pois está dito ! " respondi eu , para responder alguma coisa . Mas logo Theodosio tomou essas palavras ditas no ar , mais para me vêr livre d' elle do que para outra coisa , como um compromisso politico . E numa carreirinha , pela rua abaixo , raspou-se para os toiros . Só mais tarde é que eu vim a saber que , em politica , muitas vezes uma simples palavra dita no ar vem a trazer-nos depois embaraços muito peores que os que pode crear-nos** uma palavra de honra . O meu primeiro cuidado , logo que tive as malas despachadas , me metti numa tipoia e cheguei ao Hotel , foi informar-me com precisão do estado das coisas publicas , e do que se fizera no Parlamento durante a minha angina pectoris . O Hotel era o Borges , ao Chiado , no coração da metropole , em pleno fóco da civilisação , a dois passos da Havaneza e da missa do Loreto , que eram as primeiras e grandes emanações d' esse fóco . O Borges reunia , já então , uma avultada e distincta clientela de deputados , e embora o Governo se achasse sempre em maioria entre os hospedes , era cordeal o convivio de todos , e estava-se ali perfeitamente , extra-parlamentarmente á vontade . O meu quarto era lá em cima , no ultimo andar , numero 55 , num dos angulos do predio , com pouco pé direito mas com muito ar , que me entrava por duas janellas -- uma para a Rua Serpa Pinto , outra para o Chiado . Eu chegava a Lisboa quasi sem relações , porque a maior parte da colonia açoriana fugira da capital em agosto , com medo do cholera , e não se atrevera ainda a voltar das Ilhas , apesar do cholera nunca ter apparecido e já se estar em fevereiro , que não é tempo propicio a villegiatura de microbios ; e das amisades de Coimbra pouco mais duradoiras que as rosas de Malherbe , que nunca chegaram a durar o espaço d' uma formatura , apenas me restavam o Fausto Guimarães , secretario do Presidente do Conselho , o poeta Chico Patrocinio , chefe da novissima escola nefelibata , e a Margarida Tricana , que o Fausto Guimarães tinha deitado a perder , e a quem todos nós , mais ou menos , naquella saudosa republica da Couraça dos Apostolos , tinhamos dado alguma coisa a ganhar ... No Hotel Borges , porém , as relações eram faceis . Logo no primeiro dia , abrindo a janella que deitava para o Chiado , e abeirando-me do anteparo que corria em toda a volta da mansarda , ouvi ao lado um ligeiro trauteado do Boccacio , que então rejuvenescera na Trindade e andava muito em vóga . Para o lado do trauteado olhei , e deparei com um cavalheiro idoso , que catava uns jacinthos lindamente creados num caixote , entre o parapeito da sua janella e o anteparo da mansarda . Sem que désse+esse pela minha presença , esse cavalheiro idoso , que eu logo percebi ser meu vizinho de quarto , continuava catando os seus jacinthos e trauteando a serenata dos tres maridos humilhados ... A ' janella . Minha bella , Corre , corre , Ligeira gazela ! E a miudo olhava para o quarto andar fronteiro , onde as janellas se conservavam fechadas e de cortinas corridas , como num luto , ou numa ausencia de inquilinos . Uma certa curiosidade , e uma tal ou qual intuição dos pequeninos segredos da capital , por mais algum tempo me prenderam ao parapeito , na suspeita de que alguma das janellas d' aquella casa defronte não tardaria a abrir-se , e alguem , que o meu vizinho esperava , assomaria a ella . Meu dito , meu feito , e quem appareceu vinha a ser , nem mais nem menos , uma grande mulher de magnifica estampa e de cabellos ruivos , amarfanhados e enrolados em volta da cabeça como um farto turbante . Vestia uma bata ás riscas , enviezadas e largas , azues e côr de grão . E por baixo da bata , bem denunciados , quadris , braços e seios de tempera rija e de primeira grandeza . Correspondendo a um respeitoso cumprimento de cabeça do meu vizinho de quarto , um complacente sorriso aflorou-lhe á face , e sobre o labio superior mais lhe pronunciou a escurinha penugem de um ligeiro buço . Nesse momento espirrei , estranhando o clima ; e o meu vizinho , apanhado de surpreza , pois provavelmente suppunha que o 55 ainda estivesse sem gente , voltou-se , deu de cara commigo , e córou de leve . Discretamente , receiando tornar-me importuno , e constipar-me , metti-me para dentro , e fechei a vidraça . Ainda espirrei duas vezes , mandei preparar um banho morno , e tratei de passar para as gavetas d' uma commoda , que me atravancava metade do quarto , toda a roupa branca e o fato melhor que trazia nas malas . Puz a casaca a arejar nas costas d' uma cadeira , para perder as rugas que tomara na viajem ; colloquei sobre a meza de cabeceira , e voltado para a minha cabeceira , o retrato da Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , que para esse fim m ' o dera , e muito me recommendara o logar e a posição em que o queria , para ter a certeza de que assim , ao menos em efigie , podia continuar a velar por mim . Fiz a minha barba , tomei depois o meu banho morno com muito sabonete , vesti me de lavado , perfumei-me um pouco , e desci para o almoço . A ' meza do almoço fui encontrar , sentado na minha frente , o meu vizinho de quarto . Reconhecemo-nos , baixámos a cabeça . Eu passei-lhe os rabanetes , elle offereceu-me palitos . Nas alturas de um arroz de marisco , fortemente temperado de pimenta que parecia polvora , entabolámos conversa , com o céo da bocca a arder e as lagrimas nos olhos . A ' fructa estabelecera-se já entre nós uma certa corrente de simpathia . Durante o café , trocámos cigarros e algumas impressões . A respeito das coisas publicas , que era o que eu queria saber , o meu vizinho do 55 offereceu-me logo impressões muito peores que os seus cigarros , da ironica marca -- Delicias , capa de papel . Elle não dizia : -- " As coisas publicas ... " Singularisava , amesquinhava a expressão , dizendo simplesmente , depressivamente : -- " A coisa publica ... " E teve uma grande satisfação quando eu lhe disse que era deputado . Porque eramos collegas ! Porque tambem elle era representante da Nação . -- " Ha vinte annos -- accrescentou . Tenho visto muito , sei muito , conheço tudo e todos . Não fale Vossa Excellencia a mais ninguem para lhe abrir os olhos . Aqui tem Vossa Excellencia o meu cartão . Puxei tambem por a carteira , tirei um dos meus cartões , e entreguei-lh ' o , agradecendo . O cartão d' elle dizia : LIBERATO POÇAS Deputado da Nação Conhecia-o muito bem de nome . A fama dos seus ápartes tinha chegado aos Açôres . Muitas vezes eu ouvira o Barão da Terra-Chã , que tinha uma grande memoria e agradavel conversa , referir varios d' esses ápartes , que eram a nota mais pittoresca e mordaz das sessões parlamentares nos ultimos vinte annos . Lembrei-me até de que o Primo Theodosio , tendo vindo uma vez ao Continente para se tratar em Faro de uma trabusana que lhe ficara de emenda -- para nunca mais ! -- conhecera o senhor||_Poças Poças|_Poças em uma casa de hospedes do Ferregial de Baixo , e demorara-se dois mezes em Lisboa depois de curado , só para ouvir a Borghi-Mamo , porque era doido por operas , e para ouvir o senhor||_Poças Poças|_Poças , porque se pelava por piadas . E disse-lh ' o . O meu vizinho do 55 sorriu , lisongeado , e sem fingida modestia . De facto , o seu maior prazer -- logo a seguir áquelle que , acima de tudo , e em primeiro logar , lhe davam as mulheres -- era encontrar um bom dito , e mettê-lo bem a proposito . As Camaras prestavam-se excellentemente para isso . O caso era ir para lá sempre cedo , antes que abrisse a sessão , e estar sempre attento , para não perder uma só palavra do que elles dissessem . Por esse processo , e com uma certa pratica , como a que elle tinha , dos homens e dos ápartes , as piadas sahiam quasi sem a gente se sentir ... Não considerava isto um privilegio seu : eu que experimentasse , e veria . Mas a verdade era que , ha vinte annos , disfructava na Camara esse exclusivo da piada , e a tal especie de condão attribuia a circumstancia , muito curiosa , de se achar sempre de bem com todos os Governos e com todas as Opposições ... -- " Quanto á coisa publica , dizia elle , tenho muito gosto em informar Vossa Excellencia de que algumas surprezas e muitas decepções o esperam se , como julgo deprehender das suas palavras , Vossa Excellencia crê na possibilidade de que portuguêses possam fazer alguma coisa boa de Portugal , ou em favor de Portugal . Ha uma grande verdade universal , que não carece de justificação metafisica para ser facilmente admittida : é que ninguem , nenhuma força póde oppôr resistencia á chamada e bem conhecida força do Destino . Ora , meu caro senhor ... ( e tornando a olhar o meu cartão de visita , após uma curta pausa ... ) meu caro senhor||_Joaquim_Maria_do_Amaral_Amarante Joaquim|_Joaquim_Maria_do_Amaral_Amarante Maria|_Joaquim_Maria_do_Amaral_Amarante do|_Joaquim_Maria_do_Amaral_Amarante Amaral|_Joaquim_Maria_do_Amaral_Amarante Amarante|_Joaquim_Maria_do_Amaral_Amarante , o destino dos portuguêses , desde que este reino se tornou , geograficamente , um retalho integral da Peninsula Iberica , tem sido o de dar cabo de Portugal . E em boa verdade ninguem poderá dizer que não tenhamos cumprido á risca esse nosso destino . Tem havido alguns discolos , sem duvida , pois outra coisa não foram os Gamas e os Albuquerques , e todos os grandes descobridores e conquistadores que Vossa Excellencia conhece . Dobrámos , é certo , o Cabo da Boa Esperança , navegámos até á India e Ceylão , torneámos o promontorio de Singapura , estabelecemo-nos em Macau , d' onde explorámos as costas da China e do Japão . Ainda , seguindo outro rumo , descobrimos e colonisámos o Brazil . Lisboa foi , toda a gente o sabe , e não serei eu que o conteste , num dado momento , o entreposto e o centro de distribuição dos productos do Oriente , e então attingiu um grau de riqueza e luxo de que não havia memoria desde a antiga Roma ... Como sempre succede durante o periodo heroico da historia das Nações , a Litteratura e a Arte floresceram para nós . E ahi tem Vossa Excellencia outros discolos : Gil Vicente , Sá de Miranda , Camões ... Mas foram poucos . E o destino cumpriu-se ; e o destino cumpre-se . O Marquez de Pombal foi apenas uma sombra . Quem suppozer ainda que elle engrandeceu Portugal , leia o Camillo , e verá . O Pombal , meu caro senhor , não foi o nosso ultimo grande ministro ; foi o primeiro dos nossos pequenos ministros . Encheu-se . Fez elle muito b em . Depois , veiu o Senhor||_D._Pedro_Quarto D.|_D._Pedro_Quarto Pedro|_D._Pedro_Quarto Quarto|_D._Pedro_Quarto e outorgou-nos a Carta . Os senhores , lá em Angra , e na Praia da Victoria , sabem muito melhor do que eu como isso se passou . Nesse capitulo da Historia póde Vossa Excellencia dar-me quináu , se quizer ... Mas a partir da implantação do regimen constitucional para cá , e até aos nossos dias , prézo-me de poder dizer que poucos sabem tanto da nossa coisa publica , como eu . Olhe Vossa Excellencia ... ( e foi contando peles dedos ... ) Eu assisti á fundação da Sociedade de Geografia . E viu fazer-se o pacto da Granja . Eu andei encorporado no cortejo civico do centenario de Camões ... Na rotação dos partidos , vi o Braancamp succeder vinte vezes ao Fontes , e o Fontes , vinte vezes , succeder ao Braancamp . Nas finanças , vi contractar oito emprestimos em menos de oito annos , e vi gastar o dinheiro de cada um d' elles em menos de oito dias . Na economia , vi organisar o monopolio do tabaco , o monopolio do alcool , o monopolio da carne , o monopolio do pão , o monopolio do fosphoro , o monopolio do adubo , o monopolio da viação ... Neste momento trata se de organisar o monopolio do exgôto . Deve ser excellente ... O fomento agricola é uma coisa que só tem servido para arrotear o José Maria dos Santos . A Africa é uma villegiatura -- como agora se diz -- para funccionarios do Estado e administradores -- Companhias , ou , na alternativa , vinte annos de Penitenciaria . A balança do commercio é uma especie de balança de talho , que não regula . Toda esta coisa tem durado assim ha muitos annos , e ha de durar por mais alguns . Mas não muitos . Isto desmorona-se . Quem viver verá . Talvez eu ainda veja ! " O meu vizinho de quarto , dizendo isto , e meneando a cabeça calva , reluzente , fazia um gesto de profecia , entendido e profundo , que por um instante annuviou a clara esperança , em que eu vinha , de chegar ainda a tempo para alguma coisa de bom em beneficio da Patria . Um resto de café , no fundo da chavena , que distraiidamente levei aos labios , deu-me nesse momento o amargo da duvida . Cuspinhei , repontei com o Poças : -- " Mas o que pensa Vossa Excellencia do futuro ? -- " O Futuro , com F grande , a Deus pertence . O outro , o nosso , com f pequeno , pertence aos estrangeiros . É uma questão de tempo , de pouco tempo . Podemos dizer até que já tudo isto é d' elles . O trigo é americano ; a manteiga é inglêsa ; a cerveja é allema ; o queijo é flamengo ; a mulher é hespanhola ; o bacalhau é norueguez ... O gallego , até o gallego , o proprio gallego -- é gallego ! O porto -- Lisboa é do Hersent ; os caminhos de ferro , do Kergall ; a Africa , do Cecil Rhodes ; a opera , do José Paccini ... A unica coisa verdadeiramente portuguêsa que ainda temos é -- a Divida Externa ! " Elle dizia estas coisas serenamente , convictamente , mas resignadamente , sob um grande peso de infortunio , como quem acceita e se conforma com alguma tremenda determinação fatidica . Tinha de ser . Deixa-lo ser ! Eu olhava-o , como se olhasse uma esfinge ; e ouvia-o , todo ouvidos , como se a sua palavra fosse um evangelho . O que , sobretudo , me surprehendia nesse Poças , era o contraste entre o seu devastador pessimismo de hospede do Borges , irritado de visceras pela cozinha picante do Hotel e o seu contemporisador optimismo de homem publico , estimado de todos os Governos , cultivando jacinthos num caixote , alimentando um namoro de janella , e sabendo de cór as coplas do Boccacio . Não o percebi logo ; levei algum tempo para o perceber ; mas vim a percebê-lo . Poças não era só um grande magico , como logo suppuz nesse dia , emquanto durou a conversa que entre nós se seguiu , e se prolongou , após esse primeiro almoço . Não era só um grande ratão , como depois o julguei , quando elle apparecia na Camara antes de mais ninguem , e da Camara sahia no fim de todos , para não perder uma palavra só , d' um só discurso , não se fiando nos extractos levianos dos jornaes , e menos ainda no texto official do Diario das Camaras ... Poças era bem mais que um tipo : Poças era um simbolo ! Logo nessa tarde fui procurar ao Ministerio o meu amigo Fausto Guimarães , que era um outro simbolo . Fui procura-lo ao Ministerio da Justiça , onde Poças me disséra que eu o devia encontrar , por andar em obras a secretaria do Reino , que o Ministro d' elle preferia . O Presidente do Conselho accumulava as duas pastas : a do Reino e a da Justiça -- o que logo eu soube não ser trabalho de Hercules , porque os serviços do Ministerio do Reino alliviam muito depois de feitas as eleições , e o Ministerio da Justiça apenas alimenta , em tempos ordinarios , um debil movimento de transferencias de juizes e de beneficios ecclesiasticos . As eleições estavam feitas , os deputados a postos , os governadores civis em descanço , os administradores de concelho entregues aos cuidados do seu pomar ou do seu pedaço de horta . Agora , pelo Reino , apenas corriam alguns assumptos de Instrucção ; e a Instrucçao , em Portugal , não é coisa que dê muito que fazer a um ministro . Mesmo a chefia do Governo tornara-se com moda e suave . O momento da grande crise passara , e havia-se entrado num grato periodo de repouso e de esperança . Tinha-se inaugurado , quasi de um dia para outro , apenas com alguns artigos de fundo e uma queda de ministerio , uma fase de prestigio politico a que se convencionara chamar -- de Vida Nova , e á sombra da qual se conseguira realisar um novo emprestimo , quando já toda a gente dizia , dentro e fóra do paiz , que não se arranjaria nem mais uma libra sem a intervenção de uma administração estrangeira . Eram de fresca data os acontecimentos mais pungentes da patria . Por muito tempo não se acreditara nos boatos que corriam a respeito de muitos directores -- Bancos e de Companhias , gravemente compromettidos em transações íllicitas ; e os accusados , de mãos dadas com todos os Governos , repoltreados nas suas cadeiras do Parlamento , ingerindo-se em todos os negocios do Estado , dando leis e distribuindo juros ficticios , desassombradamente continuavam transacionando , favorecidos pela cumplicidade dos indifferentes e dos Poças . Não apparecia quem ousasse atirar a primeira pedra , como se todo esse formidavel escandalo se passasse em uma cidade inteiramente coberta de telhados de vidro . E todos esses estabelecimentos de credito , todas essss sociedades anonimas de responsabilidade limitada , haviam espalhado em volta de si um certo ruido de prosperidade , á sombra de nomes patrioticos , que inspiravam confiança , illudiam os incautos . Eram o Banco dos Luziadas , o Banco da Restauração de Portugal , o Banco 24 de Julho ... Eram a Companhia Real das Vias Ferreas Luzitanas , a Real Companhia da Agricultura Patria , a Companhia de Credito Camoneano -- que nunca se soube o que era . Cada uma d' essas Companhias e cada um d' esses Bancos tinha no seu conselho de administração , pelo menos , um ministro -- Estado honorario , que era quasi sempre , por uma inexplicavel coincidencia , o ultimo ministro da Fazenda ; e assim mantinham , todas ellas , e todos elles , Companhias e Bancos , as mais cordeaes relações com o Governo e , por intermedio do Governo , com o Thesouro . Quando o Banco dos Luziadas suspendeu pagamentos , logo os outros se sentiram necessitados de longa moratoria . Houve um grande sobresalto , seguido de um grande movimento de panico . A corrida aos Monte-pios foi uma coisa pavorosa : eram os pães que salvavam o futuro de seus filhos ! eram as mães que arrancavam , ás garras d' esses abutres , o dote de suas filhas ! E o assalto , verdadeiro assalto , fazia-se a sôco , a empurrão , a coice ... Os accionistas , vendo o seu rico dinheiro a arder , reuniam-se em assembléas geraes , e pediam sindicancias em altos berros , como as creanças que pedem a Emulsão de Scott ! A policia interveiu . Chegou a ser preso , e mettido no calouço n.° 7 , o presidente de um conselho de administração . Havia desfalques , havia falsificações , havia gazúas . O Cara linda , o Gaiteiro , o Moita e o Carrasco , tão conhecidos do habil Antunes , eram anjos , ao lado d' aquella confraria ! Os Tribunaes , da primeira instancia ao Supremo , foram atulhados de processos crimes . A Opinião , desvairada , gritou que Portugal estava sendo governado por ladrões ! Os Jornaes , furibundos , cobriam-se de tarjas negras e de improperios em normando . Toda a gente prudente se abotoava , e não sahia de casa á noite . Foi um terror ! Passou-se então esta coisa extraordinaria , funambulesca , unica : a debandada dos homens publicos , dando ás de Villa Diogo com medo da forca e do candieiro , que es jornaes republicanos queriam vêr funccionar no meio da praça , ferozmente , como no tempo em que os falsarios andavam menos seguros , mas mais seguros andavam os dinheiros no erario . Todos esses homens fugiam , positivamente fugiam , ás responsabilidades conhecidas do passado e ás contingencias tenebrosas do que ainda estava por vir . Fôra um riso , e fôra uma vergonha ! Era necessario organisar um governo désse lá por onde désse ; era urgente formar um gabinete fôsse lá como fôsse . Mas os partidos constitucionaes , desmantelados , abandonavam a Corôa . E até a Corôa se achou desamparada , quasi desequilibrada , atirada para trás , ás tres pancadas , sobre a primeira cabeça do paiz -- por ordem hierarchica . Esteve o paiz sem governo por espaço de tres semanas ! E na inquietação e no desespero d' esse mau bocado , foram chamados ao Paço todos os politicos que andavam , ha muito , tresmalhados da Constituição , a prégar no deserto , a apregoar virtudes , e a mostrar elixires . Appareceram duzias d' elles , radiantes , cada qual sobraçando o seu prograrama de governo , cada qual desenrolando , aos olhos amortecidos do paiz , o seu plano de salvação , o seu projecto de reforma . Ao redor da chamada burra do Thesouro reuniu-se então uma especie de junta de alveitares . E só não foi ministro quem não quiz sê-lo . Foi por essa occasião que voltou ao poder o Martiniano , o grande Martiniano , o incomparavel Martiniano ! Martiniano , que já tinha sido por tres vezes ministro da Fazenda , andava de mal com o Paço . Como toda a gente que anda de mal com o Paço , mas que com elle quer estar de bem , fundara um jornal satirico , a que dera o titulo de Piada Popular , e ahi começara a cultivar um genero muito apreciado de critica galhofeira , mas mordaz , a que elle chamou -- " a bisca politica " e que depois guardou esta designação alegre . Esse jornal tinha uma divisa , e essa divisa era esta : -- " Arde ? é pimenta . " E ardia , que tinha diabo ! Cada artigo da Piada era um caustico ; cada folhetim um sinapismo de mostarda ; e as biscas , espalhadas pelo jornal , eram moscas de Milão . O Paço torcia-se , os Ministros torciam-se , toda a gente se torcia -- uns com o ardor do topico sobre a propria pelle , outros com a risota que o caso provocava sobre a pelle alheia . Declarada a crise dos Bancos e das Companhias , Martiniano , que do tempo de ministro levara tambem sua rasca na assadura , habilmente desviara de si as attenções , e iniciara no jornal uma série de artigos furibundos , primeiro de ataque ás Instituições que haviam acobertado tanto e tão grosso escandalo , em seguida de alvitre e de conselho sobre o que deveria fazer-se , sem demora , para remediar o mal e entrar no bom caminho . Lembro-me que um d' esses artigos começava assim : -- " Bem fazem os que emigram , porque é um crime apodrecer na contemplação de semelhante espectaculo ! " Mas logo um outro , emendando a mão , exortava os novos d peleja , e dizia : -- " Sim ! Porque os novos têm fé , porque os novos têm coragem para remar contra a corrente . Só falta um homem que lhes indique o norte , e em nome d' esta palavra -- Patria -- começará para nós o periodo das sublimes loucuras . " O homem , estava-se a vêr , era elle . De dia para dia , os artigos cresciam de interesse ; a opinião alarmava-se . D ' uma vez , em que elle dissera isto : -- " Não se sabe ao certo se este paiz é Guatemala , ou Chili , ou Uruguay ... " e accrescentara , galhofeiramente : " A nosso vêr , uns dias parece Gerolstein , outros dias Pantana ... " -- os estudantes do Liceu , onde Martiniano era professor de português , fizeram-lhe uma enthusiastica ovação defronte do jornal , com marcha aux flambeaux , vivas á Patria , á Grammatica portuguêsa e á Piada nacional ! Martiniano viera á janella agradecer . Tinham-se reunido muitos populares , arruaceiros e curiosos , ao grupo , já de si numeroso , dos estudantes . Uma voz juvenil , vocalisando em voz grossa , gritou para cima : -- " Fale ! Fale ! " E esse grito fôra uma chispa que tocara a extremidade de um rastilho . Todos gritaram : -- " Fale ! Fale ! " E Martiniano falara , e falara a sério . -- " Quereis saber , meus amigos e meus concidadãos , qual é , neste momento , para Portugal , o desequilibrio entre a sua importação e a sua exportação ? " E os rapazes , por baixo da janella , respondiam em côro : -- " Queremos , sim senhor ! " -- " ... Quatorze mil contos ! " E um intenso ruido sublinhava , alastrando-se na multidão , aquella tremenda cifra . -- " Quereis saber , meus senhores , quanto nos custam , no momento em que vos falo , só os coupons e os juros do Estado e das Companhias a pagar no Estrangeiro ? " E os rapazes , em baixo , outra vez em côro : -- " Queremos , sim senhor ! " -- " ... Quatorze mil contos ! " E outra vez o mesmo intenso ruido sublinhava aquella outra cifra ... -- " Quereis saber , meus presados correligionarios -- e permitti que assim vos trate quem só tem , como vós , a mesma politica de dignidade nacional ... -- quereis saber , vós , que detestaes as loterias e odiaes a taluda , quereis saber quanto vos leva em cada anno , para fóra da fronteira , por Villar Formoso e por Barca d'Alva , a loteria hespanhola ? -- " Queremos , sim senhor ! " -- " ... Dois mil contos , meus amigos , dois mil contos ! " Martiniano , em começando a falar , tinha para horas . Falou , d' essa vez , cinco quartos de hora entrecortados de palmas , bravos e vivas . No fim , dirigindo-se especialmente aos estudantes do Liceu , disse ainda : -- " Vamos a isto , meus amiguinhos . E não se diga que o budhismo invadiu a alma de todos nós . Ainda ha salvação possivel ... Aproveitemos do passado apenas a lição ... E a proposito de lição ... é verdade ! não se esqueçam de que temos ámanhã os pronomes e os verbos ! " Mettera-se para dentro , cumprimentando , e descendo a vidraça , que era de guilhotina . Ainda havia guilhotinas ! No dia seguinte , a Piada trazia um artigo decisivo . A epigrafe dizia : -- Si j ' étais roi ! e o artigo mostrava , num resumo habil , qual a verdadeira doença de que Portugal enfermava , e qual a verdadeira cura que havia para essa doença . Já da epigrafe se deprehendia claramente o espirito d' esse artigo , que visava a Corôa , procurando bem indicar-lhe , numa linguagem metaforica , o que ella tinha de fazer , se realmente queria fazer alguma coisa ... ... Martiniano voltara ao Paço , reconciliara-se com o Paço . Ao outro dia , os leitores da Piada apenas notaram que ella vinha muito semsaborona . Houve uma suspeita . Poucas semanas depois , teve-se a confirmação d' essa suspeita : Martiniano entrava para o Ministerio da Fazenda . Ninguem estranhou . Elle estava , naturalmente , indicado . Nem a Piada se fizera para outra coisa ! No dia em que Martiniano , chamado aos conselhos da Corôa , reappareceu na Arcada , todos os Partidos reunidos fizeram-lhe uma manifestação de simpathia sem precedentes na nossa historia tragico-financeira . Foi um delirio . Os amigos mais dedicados subiram-no ao cóIo pelas escadas do Ministerio . De todos os lados irrompiam os vivas : -- " Viva o salvador da Patria ! " -- " Viva o credito do Paiz ! " E o paiz inteiro , a breve trecho , pinchava de regosijo , acreditando-se salvo . Martiniano promettera mundos e fundos . O coupon externo pagar-se-ia-integralmente . Os Bancos saldariam os seus encargos . As Companhias distribuiriam , como d' antes , os seus dividendos . Estabelecer-se-ia-o equilibrio do Orçamento . Reduzir-se-iam-as despezas . Reformar-se-iam-as repartições do Estado . Modificar-se-iam-os impostos . Consolidar-se-ia-a situação economica . Desenvolver-se-iam-a Agricultura e a Industria . Assignariam- se-tratados de commercio . Aproveitar-se-iam-as Colonias . O Estado apossar-se-ia-de todos os Caminhos de ferro . Resgatar-se-iam-os titulos da Divida de Dom||_Miguel Miguel|_Miguel . Experimentar-se-iam-as vantagens do bimetalismo . Viria oiro de Manica . Viriam perolas de Bazaruto . E a respeito da intervenção estrangeira , interpelado nas Camaras , Martiniano dissera , peremptoriamente : -- " Isso só se acceita debaixo da bocca dos canhões ! " Depois de tanta e tão risonha promessa , só faltava o dinheiro . E Martiniano , o maroto , arranjara o dinheiro , pondo em movimento todas as machinas litograficas do Banco da Restauração , fabricando cedulas de meio-tostão , de tostão , de dois tostões , de cinco tostões , de vinte e cinco tostões , derramando todo esse papel sobre o paiz , como numa prodigalidade de bodo . Os Bancos e as Companhias receberam do Thesouro , em abonos e avales , quanto lhes foi preciso para livrar da cadeia os directores . As cotações da Bolsa entreabriram um sorriso para os lados de Portugal . Os cartazes de Reillac , diffamando nos a Patria nas ruas de Paris , foram arrancados pela diplomacia . Os jornaes de chantage que , ainda na vespera , nos lançavam á cara os exemplos vil pendiosos da Turquia e do Egypto em bancarrota , acharam que o nosso caso não era , afinal , tão desesperado como erradamente se suppozera , " como até nós mesmo tinhamos chegado a suppôr " e que muito havia ainda a esperar da riqueza de Portugal e do tacto administrativo dos estadistas que tanto honravam o nome d' esta pequenina , mas muito altiva nação ! ... Foi neste feliz comenos , em que o pau , indo e vindo , deixava folgar as costas , que eu subi ao Ministerio da Justiça , em procura do meu amigo e contemporaneo de Coimbra , " Fausto Guimarães . -- " Nunca tinhas estado em Lisboa ? perguntou-me Fausto . -- " Já , mas com pouca demora . De cada vez que ia a férias , á Ilha . Apenas o tempo necessario para esperar aqui a saída dos paquetes . " -- " Vaes gostar ! asseverou-me . -- Lisboa é uma linda cidade . Eu adoro Lisboa . Um dos nossos peores defeitos é este , que todos temos , de dizer mal de tudo quanto é nosso -- " naquelle habito instinctivo de deprimir a patria " de que se fala no Mandarim do Eça de Queiroz , quando O General Camilloff pergunta a Theodoro : -- " Sabe chinez , Theodoro ? " E Theodoro responde : -- " Sei duas palavras só : mandarim ... e chá " . O General passa a sua mão de fórtes cordoveias sobre a medonha cicatriz que lhe atravessa a calva , e observa : -- " Mandarim , meu amigo , não é uma palavra chinesa , e ninguem a entende na China . É o nome que , no seculo XVI , os navegadores do seu bello paiz ... " -- Quando nós tinhamos navegadores ... " murmura Theodoro , suspirando ; e o General , continua : -- " ... Que os vossos navegadores deram aos funccionarios chinêses . Vem do seu verbo , do seu lindo verbo mandar ... " E Theodoro rosna , no habito instinctivo de deprimir a patria : -- " Quando nós tinhamos verbos ... " Ha quem diga que Lisboa é insupportavel . Eu acho-a magnifica ! " Tambem eu achava Lisboa magnifica . Mas um pouco ainda sob a impressão de enfado que me causara a impertinencia de trinta pobres andrajosos atravessando-se-me no caminho desde o Hotel até ao Ministerio , observei : -- " Para quem não está habituado , o que aqui se torna desagradavel deveras é a impertinencia dos mendigos . Parece que toda gente pede esmola ! " -- " Ou , pelo menos , parece que toda a gente pede alguma coisa . Ha , porém , uma outra casta de pedintes muito peor , incomparavelmente peor do que esses que te perseguem na rua : são os mendigos dos Ministerios , os eternos pretendentes , os afilhados politicos , todo esse formigueiro espesso de cavalheiros de chapeu alto que viste lá em baixo , na Arcada , e que não abandonam a Arcada desde que o sol nasce até que alcançam despacho . O pobre da rua estende-te a mão , e passa , cobrindo-te de bençãos se lhe dás um , conformando-se com a sua sorte se tu apenas lhe recommendas que tenha paciencia . Mas o mendigo do Ministerio te-ha , te-ha , te-ha , te-ha a fazer-lhe aquillo que te peça , porque desde o momento em que te entregou o seu memorial , que é a sua lamuria escripta , elle só deixará de sahir á tua frente , a embargar-te o passo para que te lembres d' elle , no dia em que o Diario do Governo tenha publicado o decreto que o nomeia , que o promove , ou que o transfere . Elle saberá a que horas tu saes habitualmente de casa , para que o vejas á tua porta . Elle acompanhará , a trote , os cavallos da tua carruagem , para que , de cada vez que a tua carruagem páre , seja elle quem te appareça a abrir a portinhola . Em seguida , galopando , tomará a deanteira , e quando fôres a entrar para a tua secretaria , será elle ainda quem , sollicitamente , te apparccerá a levantar o reposteiro . " -- " É um pesadelo ! " -- " É uma carraça . " -- " Mas é uma linda situação , a tua , de secretario de ministro ... " -- " Ha melhores , conforme os pontos de vista ... Eu prefiro Buenos-Ayres ... Mas concordo em que seja uma boa situação " -- " Tu és tambem deputado , pois não és ? " -- " Claro ! É indispensavel . Nem ha outro meio de furar . Ter um voto nas Camaras , e fazer valer esse voto , é meio caminho andado para tudo o mais . Agora é que tu vaes vêr que precioso tempo andaste perdendo em Coimbra . O que todos nós , mais ou menos , aprendemos na Universidade , não nos serve aqui para nada . Tudo isto está bem longe de nos dizer como se applica um methodo scientifico ao governo das sociedades ! De resto , que nos importa ... Hoje , em Portugal , e tanto em politica , como em arte , como em sciencia , como em litteratura , ganha-se facilmente uma reputação de grande homem , apenas com alguma audacia e com algum pedantismo . " Estas revelações -- porque para mim , ilhéo peludo e parvenu da politica , tudo quanto Fausto Guimarães acabava de me dizer eram verdadeiras revelações -- não me assustavam , nem sequer me intimidavam , perante a consciencia bem alta , em que eu vinha , do meu honroso mandato . Mas já nessa manha , ao almoço , o Poças se encarregara de começar o desbaste das minhas nobres illusões , nobres e cerradas ; e comquanto eu bem houvesse percebido nelle , na sua frase hostil e no seu gesto amargo , um falso pessimismo , que elle devia envergar em cada manhã , e ao sahir do seu quarto numero 56 para a vida publica , como quem enverga um pardesus , não deixava de ser certo que a semente da desconfiança , lançada assim ás mãos ambas por Fausto Guimarães sob o terreno das rainhas falsas noções , encontrava esse terreno já um pouco revolvido á superficie ... Quiz ouvir mais , não por precavido sentimento de cautella e caldo de gallinha , que nunca fizeram mal a doente , mas por um natural desejo de me instruir depressa em materia que , de surpresa , se me afigurava inteiramente nova . E insisti : -- " Em todo o caso , não é estadista quem quer , nem só porque o Rei o quer . Verdadeiro estadista era o Fontes . Verdadeiro estadista é hoje o teu Ministro ! " -- " Talvez , talvez podesse sê-lo . Mas não o é . Falta-lhe a envergadura ! " E chamando mais especialmente a minha attenção para uma estatueta que estava collocada sobre o marmore saliente do fogão mettido na parede , observou : -- " Queres a melhor prova ? Olha aquella pessima estatua . Conheces ... " Reparei , conheci . -- " É a estatua da Justiça ... " -- " Estás enganado ! disse Fausto . É a estatua da Injustiça . Eu te explico ... No dia em que o meu Ministro aqui entrou pela primeira vez , possuido de uma verdadeira plethora de boas intenções , e sobraçando esse magnificente programma de governo que enterneceu a provincia , aquella figura , que tu ali vês , tinha a venda descahida de um lado , e via , por um olho , tudo quanto lhe convinha , ao mesmo tempo que um dos pratos da balança pendia mais para o lado do olho a descoberto . E sabes tu o que elle fez , mal aqui entrou ? Foi-se á estatua , puxou-lhe a venda para cima , acertou o ponteiro da balança , e voltando-se para os chefes de repartição que tinham vindo cumprimenta-lo , disse : -- " Fiat justicia ! " Ora torna a olhar , fazes favor ... Lá tens a venda outra vez deitada para baixo , e o ponteiro , outra vez , pendendo para o olho aberto ... Emfim , tu vaes saber o que tudo isto é . " Um dos coçados reposteiros de reps verde , que pendiam da parede alta aos lados do fogão , franziu-se devagarinho , como se alguem , que atrás estivesse escutando , se decidisse a apparecer-nos . E logo um nariz descommunal , de larga venta , e rombo , e cavalgado por uma luneta desusada de aros de tartaruga , atravessou-se na conversa , entre as maçãs de um rosto rosado e luzidio : -- " Perdão ... Peço perdão ... Vinha saber se cá já estava o Ministro ... " Era o nariz impertinente de um cavalheiro exquisito , atarracado e sem barba , mettendo os pés para dentro e extremamente jovial . Vestia um casaco de astrakan com botões de madreperola , justo como uma luva , e muito curto , dando-lhe um grande relevo de formas , principalmente de formas posteriores . Calçava galochas de borracha e luvas amarellas , de camurça . Tinha pouco cabello ; e esse pouco que tinha , e ralo , apartava o ao meio , com muita pomada , cheirando fórte a jasmim . Mellifluamente , cumprimentou-me , inclinando a cabeça para o lado , esboçando um sorriso entre os labios grossos , baixando os olhos e arqueando um pouco os braços , em delicada mesura . Fausto disse-lhe quem eu era . Teve logo muito gosto em me conhecer . Ai , Jesus ! Parecia uma senhora ... -- " A quem tinha eu tambem , já agora ! o gosto de falar ? " -- " ... Meleças , só Meleças , creado de Vossa Excellencia ... " E voltando se para Fausto , num reboliço : -- " Como está o meu amigo ? como está sua esposa ? como estão os seus filhos ? " -- " Bem , tudo bem . E vossê ? E a Opposição , como passa ? " -- " Ora , a Opposição ! A Opposição só passa bem quando se acha no governo ! " -- " A Opposição é muito exigente ! exclamou Fausto . Parece que Já não lhe basta o actual regimen de liberdade de imprensa ! " -- " A liberdade de imprensa , meu caro senhor , é uma liberdade tão cuidadosamente garantida , que não ha meio de a gosar devidamente ... " E dizendo isto , num risonho saracoteio de toda a sua pessoa , o pittoresco interlocutor de Fausto procurava lêr me nos olhos se eu já havia percebido que tinha na minha frente um espirito superior . Fausto troçava-o , voltando-se para mim : -- " Ouve isto e pasma , Joaquim do Amaral ! Este homem , que tu aqui vês , o argucioso Meleças , redactor do Phantasma , ainda esta manhã publicava uma verrina tremenda contra o meu Ministro , attribuindo-lhe as peores infamias , arrastando-o pelas ruas da amargura , fustigando-o com o latego venenoso da sua satira , que é terrivel , e da qual te aconselho a que te livres ... E aqui o tens agora , calcando com as suas formosissimas galochas de borracha , o tapete do gabinete d' esse mesmo Ministro , com a mesma semcerimonia com que ámanhã o verás calcar a propria consciencia , se elle o despachar segundo official ! D ' aqui a pouco vae chegar o Ministro , e tu , que mal conheces o teu paiz , poderás vêr então uma das coisas mais curiosas que ha para vêr em Portugal :o estadista sorrir ao jornalista que o desancou , e apertar a mão que lhe bateu até o deixar em sangue ... Ha uma chamada brandura de costumes e uma liberdade de imprensa que consentem tudo isto , e Meleças ainda ousa achar pouco ! " Já de si aflautada , a voz do outro silvou em flautim : -- " Ora os ministros ! os ministros ! Os ministros são todos como aquella grande cocotte que dizia : " O maior prazer que tenho tido na minha vida foi o de me sentir deshonrada ! " Era boa a piada . Rimos . E Fausto , applicando uma sonora palmada ao trazeiro do redactor do Phantasma , riu mais e disse : -- " E vossê , ó Meleças , qual tem sido o maior prazer de toda a sua vida ? Era de boa politica , mesmo para um deputado independente , como eu , procurar ensejo de ser apresentado ao Presidente do Conselho antes de entrar na Camara e de prestar juramento . Fausto sollicitaria para mim essa subida honra , e no dia seguinte , áquella mesma hora , quando o Ministro voltasse da assignatura regia , proporcionar-se-ia-o ensejo . Assim foi . Eu nunca tinha tido occasião de falar com um ministro -- Estado , a não ser com o Pimentel Gouveia , lente da Universidade , mas que apenas estivera no governo mez e meio , e só era ministro -- Estado honorario quando andei na aula d' elle . E não era , por isso , sem um certo sobresalto , e uma tal ou qual intimidação , que eu aguardava , no gabinete de Fausto , o momento em que o meu amigo , correndo o coçado reposteiro de reps verde , me chamasse e me levasse até junto do seu Ministro ... Porque emfim , ser recebido no gabinete de um ministro , falar a um ministro , apertar a mão de um ministro , mesmo quando se não tem de um ministro a errada noção que dos ministros tem o povo , considerando-os a todos , indifferentemente , capitães de ladrões ou grandes homens , segundo as necessidades do Orçamento os levaram a crear mais um addicional , ou as conveniencias da Politica os aconselharam a reduzir um imposto de barreira -- não era caso de todos os dias , nem dos que menos contam na vida de quem , como eu , julga imputar aos factos o seu exacto valor , e de tudo toma apontamento miudo nalgum canhenho de memorias . E em vez de procurar desvanecer esse ligeiro sobresalto , aliás bem natural , emquanto não se franzia aquelle puido reposteiro de reps verde , a minha imaginação dava maior vulto , engrandecia de uma falsa importancia o simples caso , lançava perturbação nas minhas funcções psichicas , atrapalhava-me , em summa ... Para justificar , perante mim mesmo , a minha atrapalhação , imaginei-me transportado a uma extensa e doirada galeria onde se achassem reunidos , em desusado congresso , todos os ministros que tem tido Portugal nos ultimos sessenta annos -- e imaginei que todos elles , ao verem-me entrar , assim e sem mais nem menos , naquelle recinto que lhes era reservado como um pantheón , não occultavam surpreza e apenas procuravam dissimular , mas mal , como que uma certa suspeita receiosa pela minha inopinada presença de deputado independente , que vinha ali , sem duvida , para lhes pedir contas dos seus actos . Avançando , porém , um passo para mim , cada um d' elles , e todos , por sua vez , me estendiam a mão . Eu passava em revista essa immensa fileira de conselheiros da Corôa , e de todas as suas vozes , auctorisadas e convictas , ouvia o mesmo protesto : -- " Eis-nos offerecidos em holocausto no altar da Patria ! " E eu pensava que , se os talentos abriam distancias entre tantos homens de Estado , aproximava-os , a todos , o sacrificio ... Mousinho da Silveira , informado de que eu vinha ás Côrtes com propositos terriveis de reforma , chamava-me de parte , deitava o rijo braço sobre o meu hombro debil , dizia-me ao ouvido : -- " Meu caro amigo , peço-lhe que me poupe ... Olhe que isto da gente se deixar ser ministro , não é pequeno sacrificio . Afiguram-se marchetadas de estrellas as cadeiras do governo , e são entretecidas de espinhos ! Poupe-me , poupe-me ! " José da Silva Carvalho e Agostinho José Freire , que cochichavam no vão de uma janella , vinham ao meu encontro , enleavam-me em blandicias ; tinham ouvido já falar de mim , sabiam já que eu vinha disposto a metter tudo nos eixos , e appelavam para a minha clemencia : -- " Se Vossa Excellencia nos vê aqui , um na Fazenda outro na Marinha , é porque cedemos ante as obrigações que nos impunha a nossa qualidade de cidadãos portuguêses ... " Ainda estes illustres estadistas me não haviam largado , e já o Duque de Palmella e o Duque da Terceira me pediam desculpa , se não lhes fôra possivel reorganisar as finanças e consolidar o reino á medida dos meus desejos ... Joaquim Antonio de Aguiar , receiando ter-se tornado antipathico a minha Tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , com o seu decreto de abolição das ordens religiosas , encarregava-me de expor áquella devota senhora as razões ponderosas que o haviam forçado a desferir esse golpe mortal na influencia dos miguelistas . Adeantando-se , com delicadas maneiras , Costa Cabral desejou saber se eu me achava de accôrdo com a interpretação que elle dera á Carta , e se em meu entender fizera bem enfreando a liberdade de imprensa . E eu procurava , atabalhoadamente , uma resposta amavel que lhe désse , sem muito me comprometter , quando Saldanha , intervindo , me livrou do embaraço : -- " Diga-lhe que sim , Amarante , diga-lhe que sim ! " E lá foi seguindo , impavido , sobraçando as suas sete pastas dos seus sete Ministerios . Perplexo e gauche , entre tanto espectro illustre , eu vi passar nessa galeria extensa , mais extensa , talvez , que a galeria dos Uffizi de Florença , todos os ministros de todos os ministerios , desde 1832 para cá : os da Restauração e os da Revolução de Setembro ; os da Revolução de Abril e os da Reacção de Outubro ; os da Maria da Fonte e os da Janeirinha ; os da Revolta de Maio e os do Ultimatum de Janeiro ... E todos esses ministros , de todos esses ministerios -- cartistas e setembristas , cabralistas e patuléas , granjolas e barjonaceos -- todos quantos implantaram , viciaram e desfructaram o sistema de governo parlamentar , em que eu agora intervinha , mettendo o meu bedelho e sobraçando o meu honroso mandato de representante do Povo , eleito pelo voto livre do Povo , se acercavam de mim com artes de sedução , lisonjeando a minha força para lhe quebrar os impetos , soprando a minha vaidade para me verem himpar e arrebentar como a rã de Hisopete ; e todos elles , desde o Aguiar ao Fontes , e desde o Saldanha ao Bispo de Vizeu , tinham o ar de sollicitar , de implorar a minha indulgencia para os seus erros , lembrando-me , todos elles , que os homens que a Opinião precipitou hontem do poder , são sempre os mesmos que essa mesma Opinião , moderada já , irá buscar amanhã para lhes confiar os seus destinos ... ... Uma porta rangeu , vi correr-se o reposteiro . A um aceno de Fausto , achei me introduzido no gabinete do Ministro . E o que immediatamente se passou , em realidade , foi o perfeito seguimento , quasi logico , d' aquella especie de allucinação patusca de que me saccudiam -- apenas com esta differença : É que já não era o Ministro que se amolgava perante a independencia do meu honroso mandato , como o Costa Cabral e como os outros ; era eu , agora , que vergava o espinhaço na presença do Ministro , e mal me atrevia a avançar do limiar da porta : -- " ... Vossa Excellencia dá licença ? ... " disse . -- " Entre , faça favor ! " E logo estendendo-me a mão com lhanesa , e como se já me conhecesse de ha muito , o Ministro continuou : -- " Ainda bem que veiu ! Já cá estava a fazer falta . Foi o diabo , essa angina ... De mais a mais com recahida . E trinta e oito graus de febre , ein ? Olhem que brincadeira ... Já tinha estado em Lisboa ? " -- " Já , mas com pouca demora ... " -- " Vae gostar . Lisboa é uma linda cidade ... E vem decidido a trabalhar devéras na politica ? Parece-lhe que se adaptará bem a este meio ? " Eu já não sabia ao certo onde estava , nem de que terra era . Disse que sim , ao acaso . -- " Creio que sim ... Assim o desejo , pelo menos . " -- Ha-de adaptar-se ! insistiu elle , achando mole , e carregando . -- Sei que possue excellentes qualidades de orador . Seja bemvindo , porque é justamente d' isso que nós mais precisamos na Camara . Mas ser orador não basta . Convirá que adopte qualquer especialidade ... No Parlamento , como na Medicina , é necessario ser-se um pouco charlatão , para conquistar rapidamente uma boa vóga . Os especialistas têm sempre uma percentagem muito avultada para subir depressa . Nós temos , como sabe , os especialistas dos orçamentos , os especialistas dos pareceres , os especialistas dos ápartes , os especialistas dos apoiados ... Temos até os especialistas de quebrar carteiras ! É necessario que o meu amigo comece desde já a tatear o terreno , para descobrir a especialidade que mais lhe possa convir ... " Esta desataviada franqueza de acolhimento , esta correntia , familiar maneira de dizer , que desde logo deviam pôr-me á vontade , mais me perturbavam , me amachucavam . Desconfiado sempre , ilhéo pelludo , neófito e inexperiente nas ronhas da politica , eu não atinava em distinguir o que podesse haver de sinceridade , ou o que podesse haver de intrujice , em recepção apparentemente tão affectuosa . Depois , aquella miuda circumstancia de ter chegado ao conhecimento do Ministro a noticia da minha angina pectoris , e o facto , quasi enternecedor , d' ella não ter passado de lembrança a esse homem , que tantas e tão graves coisas devia ter em que pensar , chegando a precisar até , e depois de tanto tempo , o grau a que subira a intensidade da minha febre , e o caso da recahida , e os dotes de oratoria que me eram attribuidos ... -- tudo isso me enchia de surpreza , me embrulhava e me engasgava em tão difficultoso lance . Oscillei , vacillei um instante , encarei Fausto Guimarães , que observava de lado o meu estado de alma , e sorria . Fausto , argucioso , rapidamente leu no meu olhar uma urgente consulta , e respondeu de prompto , com um gesto energico , muito d' elle : que me atirasse eu de cabeça ! Ao mesmo tempo , e sem me darem mais tempo para deliberar , uma fórte mão invisivel cravou-me nas costas os cinco dedos aduncos , empurrou-me para a frente . Senti que o chão me fugia debaixo dos pés , fechei os olhos , mergulhei no abysmo : -- " Eu ponho-me , incondicionalmente , ao dispor de Vossa Excellencia . " Era a mão miseravel do miseravel Tarquinio ! -- " Muito obrigado ! " disse o Ministro . E eu fiquei sem saber se era a mim que elle agradecia o ter-me eu submettido , ou se era ao espirito do Doutor||_Tarquinio Tarquinio|_Tarquinio que o Ministro agradecia o ter-me elle empurrado ... Na marcação d' esta scena grotesca , entrava outra personagem , para quem o Ministro se voltou , tratando-o por -- Padre Eterno , e dizendo : -- " Temos aqui ( referia-se á minha pessoa ) o vogal que nos faltava para a commissão do Codigo . É necessario aggrega-lo , inicia-lo já . Não podemos perder mais tempo ... E a proposito , diga-me , em que alturas vae a discussão do projecto ? " -- " Vamos agora no artigo 32.. . " informou Padre Eterno , pachorrentamente . -- A questão das provas foi muito demorada . O Manoel de Sá queria a todo o transe que se dispensassem as offensas corporaes ... Toda a gente sabe que elle será um dos primeiros , se não o primeiro , a aproveitar-se da lei do divorcio , mas parece que não lhe chega o animo para bater na mulher ! E quasi toda a sessão de hontem se passou a ouvi-lo ... Não vejo meio de apressar a discussão ... " -- " Nem ha necessidade d' isso . Pelo contrario . Convem-me que o projecto se demore na commissão até ser votada a reforma dos parochos . Temos ainda uns quinze dias ... Mas tambem me convém que as reuniões da commissão sejam mais frequentes , para que os jornaes falem , para que se veja que alguma coisa se faz ... " -- " Nesse caso , concordava o Padre Eterno , não cortarei a palavra ao Manoel de Sá ! " Este Padre Eterno era o director geral dos Negocios Ecclesiasticos desde 1847 , nomeado ainda pelo Silva Ferrão -- Francisco Antonio Fernandes da Silva Ferrão , que fôra ministro com o Franzini , e com o Barão de Almofala . Reconheci-o logo , vendo-o entrar no gabinete , sobre uma caricatura soberba de Bordallo , no Album das Glorias . Era aquillo mesmo : a mesma hipertrofia dos tecidos adiposos , a mesma proeminencia do mento sensualão ; e a perna curta e cambando para fóra ; e a larga venta atulhada de simonte , e o olho somnolento , de carneiro mal morto , ensopado na membrana volumosa dos bordos palpebraes ; e todo elle eriçado de cerdas como um suino , nas sobrancelhas e nas fontes , nas ventas e nos ouvidos , nos pulsos e nos dedos ... E aquella mesma faceira , e a cachaceira esparralhada transbordando da golilha rôxa de conego , como da bocca de um boião de gorduras ... " Mudando de tom , para um tom de enfado , o Ministro perguntou : -- " Traz ahi muita coisa , Padre Eterno ? " -- " Trago só o mais urgente , o que não póde passar de hoje . -- E procurando um processo entre os dois grossos maços de processos , que os seus braços curtos abrangiam a custo , continuou , passando-o ás mãos do Ministro : -- Isto é o caso do Conego Boavidinha ... O Bispo tem razão . Na ha meio de lhe valer . Está averiguado que os filhos do Administrador são todos d' elle . O ultimo tem dois mezes ... É um escandalo ! O Administrador fechou a mulher num sotão , e tem-na , vae em tres semanas , a pão e laranjas . O Conego anda furioso , parece que armado de um bengalão de marmeleiro , á procura do Administrador por toda a parte , dizendo a toda a gente que o desanca , se elle não lhe solta a mulher ! " -- " É espantoso ! E o Administrador o que é que diz a isso ? " -- " O Administrador não apparece na rua , e vae de casa para a Administração por cima do muro do quintal , que é pegado . Ainda no domingo passado , que era dia de feira , e houve lá desordem , por mais que o chamassem não houve meio de o fazer sahir , e só appareceu á janella para dizer que não estava em casa ! E foi o proprio Conego que se pôz á frente dos guardas e varreu a feira . " -- " É uma situação insustentavel ... ponderou o Ministro . -- E o que diz o Bispo ? " -- " O Bispo ameaçou-o já de que lhe tirava a missa , e quer que nós o tiremos d' ali p ' ra fóra . " -- " Mas é o diabo , porque o circulo é d' elle ! Havia uma revolução . " -- " ... Se Vossa Excellencia quizesse , talvez achassemos um meio : trazê-lo para Lisboa . " -- " E como ? em que situação ? " -- " Fazendo-o deão da Sé . " -- " Mas elle não deixa a mulher ! " O Padre Eterno era o decano dos Directores geraes , e o prototipo , fidedigno , de todos eles . Era o homem de confiança dos Ministros , o alto funccionario entre os altos funccionarios , aquelle que , dentro dos complicados , tortuosos meandros da burocracia , tudo sabe , tudo resolve , tudo explica ; centralisando sob o dominio da sua garra todos os negocios ; fazendo depender do seu juizo todas as deliberações superiores ; monopolisando no seu conselho todos os conselhos . E creando , e sustentando , e avolumando embaraços sempre que fosse necessario embaraçar ; e admittindo , e patrocinando , e procurando facilidades sempre que fosse necessario facilitar ... -- " Traz-se tambem a mulher ! " despachou elle . -- A mulher era professora de instrucção primaria , e Sua Excellencia podia , pelo Ministerio do Reino , transferi-la para Lisboa . -- " Mas o marido , o Administrador ? " -- " Ora ! o marido , se Vossa Excellencia lhe fizesse constar que o demittia , sob qualquer pretexto , largava mais depressa a mulher que a administração do concelho . " O Ministro ainda hesitou um momento . Tolice ! Não havia que hesitar . Mandassem vir o Conego ; e elle trataria então , pelo Ministerio do Reino , de transferir essa pecora da mestra . O Padre Eterno escolheu outro processo , metteu-o á cara do Ministro . -- " Temos agora aqui um outro bico d' obra ... É o resultado do concurso para segundos officiaes . Tivémos de pôr em primeiro logar o Meleças ... " O Ministro deu um salto , empertigou se na cadeira : -- " Qual Meleças ? ! " -- O Meleças ... o do Phantasma . " -- " Isso não póde ser ! Não , lá isso , meu caro Padre Eterno , tenha paciencia ... O Meleças ! nomear eu o Meleças ! Esse desavergonhado Meleças que me tem dito as ultimas ... Não , lá isso , não ! " O Padre Eterno esclareceu : -- " Assim o entendeu o jury . Se Vossa Excellencia o preterir , mais o exaspera ... Se Vossa Excellencia o nomear , talvez elle se cale . " -- " E as provas ? " indagou o Ministro , já mais manso , tendendo já a uma possivel conciliação de coisas . -- " As provas ... não foram boas . Mas Vossa Excellencia bem sabe que isto agora não é uma questão de provas , é uma questão de conveniencia para o Governo . " -- " Pois sim , tem vossê razão ... Mas , ó meu caro Padre Eterno , diga-me com franquesa : se esse Meleças tivesse escripto a seu respeito o que de mim tem dito no Phantasma desde que eu entrei para o Ministerio , e se vossê tivesse de despacha-lo segundo official , mesmo num concurso , e com boas provas , vossê despachava-o , ó Padre Eterno ? Olhe bem para mim , diga-me com franquesa ... " -- " Eu não o despachava , não senhor : eu mettia-o num processo ! " -- " Mas então ... " -- " Mas então ... É que o Meleças nunca escreveu uma linha contra Vossa Excellencia ! Aquelles artigos não são d' elle . Nem elle sabe escrever . " -- " Em todo o caso , assigna-os . E se elle nem sabe escrever , mais uma razão para que eu não me ache de accordo com a classificação do concurso . Quem ficou em segundo logar ? " -- " Em segundo logar , ficou o filho do Conselheiro Paiva . Tem uma lettra magnifica . " -- " E não tem mais nada ? Para segundo official , é talvez pouco ... " -- " Tem o tio , que é presidente do Tribunal de Contas ! " Sahi d' ali aterrado . Eram então assim os ministros ! Era então assim a Politica ! Mas não deviam ficar por ahi as surprezas d' esse dia , já agora memoravel . Fausto Guimarães descera comigo do Ministerio á Arcada , offerecera-me logar na carruagem que tinha á sua espera . Chuviscava . E como eu nada tivesse que fazer de urgente nesse resto da tarde , nem o tempo convidasse a um giro na Baixa , acompanhaia-lo ao Salitre , onde precisava deixar uma encommenda , dariamos depois a volta lá por cima , e elle viria pôr-me á porta do Hotel á hora do jantar , não me dizendo que fosse eu jantar em sua casa , porque estavam sem cozinheiro . Só o meu querido Fausto me não dava surpreza , depois de tanto que o não via , desde que nos tinhamos separado em Coimbra , na noite da recita do nosso quinto anno , e na balburdia final d' aquella ceia opipara , que coroara de espumas de Champagne o nosso curso de Direito . Estava o mesmo , era sempre o mesmo : expansivo , alegre , bom rapaz , mettendo-nos no coração ! Mas quando desciamos a larga escadaria do Ministerio da Justiça , Fausto deixou-me avançar tres degraus , e observou : -- " O'Joaquim do Amaral ! Olha que essa sobrecasaca não te está nada bem ... Isso é sobrecasaca da Ilha , com certeza ! Ein ? Ora diz lá ... " -- " Pois está visto que é , e então ? ! que defeito lhe achas ? " -- " Não sei ... não sei ... Nem admira que o não saiba : eu não sou o Strauss ! Mas vae-te mal , vae-te mesmo muito mal , muito curta e muito larga ... E a góla a fugir do collarinho , e as abas que arreganham ... É um horror , Amaral , é um horror ! Vossês , na Ilha , sabem fazer admiravelmente eleições , mas não sabem fazer sobrecasacas ! desculpa que t ' o diga . " -- " Querias talvez que eu mandasse fazer a minha roupa a Londres ! " -- " Ora essa ! e porque não ? ! Não manda Londres buscar laranjas á tua Ilha ? " Estava eu muito enganado se ainda julgava que essa coisa de mandar de Portugal fazer fatos a Londres era uma pura fantasia dos janotas que o Eça mettia nos seus romances . Em materia de " costumes " , como diria o Poças rejubilando com o trocadilho , tudo nos vinha agora da Inglaterra , de Londres . Esquecera-se Kionga , esquecera-se o Ultimatum , desembaraçara-se dos crepes d' esse passageiro lucto nacional a estatua de Camões . Em menos de seis mezes , coisa curiosa ! operara-se no animo dos portuguêses uma singular transformação . Estávamos inglêses ! Eramos inglêses ! Queriamos morrer inglêses ! Como se produzira este fenomeno ? Como se operara esta transformação ? Ninguem o sabia ! Mas estava-se na presença de um facto , e de um facto perfeitamente assente , exacto , irremediavel , consummado . Tinhamos de acceita-lo , assignala-lo apenas , sem controversias . E Fausto , empurrando-me para o fundo da sua carruagem , que logo rodou e metteu pela Rua do Oiro , foi dizendo em que consistira essa extraordinaria mudança de caracter nacional , e qual a influencia d' essa mudança no animo e nos costumes da gente portuguêsa ... Os amigos da Inglaterra faziam da alliança inglêsa o eixo de toda a historia de Portugal -- desde a conquista de Lisboa , assignando Dom||_Affonso_Henriques Affonso|_Affonso_Henriques Henriques|_Affonso_Henriques o primeiro tratado . Não havia empreza nossa sem inglêses , e a honra de ser uma provincia da Inglaterra , como ficámos sendo depois do tratado de Metwen , não era pequena honra . A respeito d' esse tratado , agora , nenhum português de lei poderia deixar de condemnar a opinião do Oliveira Martins , que dissera reunir elle , á concisão epigrafica de um texto romano , a agudeza penetrante de um negociante carthaginês , ou judeu ... Portugal daria fructas e vinho aos inglêses ; os inglêses dariam a Portugal manufacturas e comer . Ficavamos sendo uma colonia vinicola da Inglaterra . E dizia-se agora , e escrevia-se nos jornaes , que esta era a tradição de toda a nossa historia ! Depois , em tres grandes momentos , essa alliança nos servira para mantermos a independencia : em 383 , em 1660 , em 1808.. . . E ninguem lembrava que , da primeira vez , o que os inglêses quizeram foi garantir ao Duque de Lencaster a corôa de Hespanha ; e consolidar , da segunda , o seu nascente imperio na India ; e bater , da terceira , Napoleão , ateando em nós a raiva de termos perdido Olivença . A Convenção , o Comité de Salvação Publica , o Directorio e o Junqueiro teimavam em considerar Portugal uma provincia -- Inglaterra , e não estavam contentes com isso ? Pois que tivessem paciencia ! E em cada manhã o Diario de Noticias offerecia , na sua secção de annuncios , tresentas mestras inglêsas , que se promptificavam a ensinar o inglês sem mestre em menos de quinze dias . E as livrarias reeditavam e vendiam milheiros do Novo Methodo de Ollendorf para aprender a lêr , escrever e falar a doce lingua inglêsa em menos de seis mezes ... As mercearias , que por occasião do Ultimatum tinham retirado das barricas de margarina o lettreiro de -- Manteiga inglêsa , legitima , reintegravam o lettreiro nas funcções do seu cargo . O Ferrari , o Pucci e o Cócó expunham nas suas vitrines apetitosos exemplares de puding inglês -- traduzido ! A elegante camisaria do Augusto Ribeiro , ao Chiado , vendera numa só tarde doze duzias , uma grosa ! de collarinhos Principe de Galles , 15 centímetros de altura , que existiam na loja desde a fundação da Monarchia . Um grupo de homens de lettras e artistas , que tinham andado atrás do deputado||_Eduardo_Abreu Eduardo|_Eduardo_Abreu Abreu|_Eduardo_Abreu na noite de 11 de Janeiro , dando morras á Rainha||_Victoria Victoria|_Victoria e vivas a Camões , percorria agora as ruas da Baixa em bando precatorio , pedindo cinco tostões para uma manifestação de mesa redonda na Taberna Inglêsa . Eduardo Costa , á Pampulha , lançava no mercado uma nova marca de bolachas denominadas -- Pic-pockets , de delicado sabor e perfume de baunilha . Na lista das casas de pasto , as comidas mais vulgares recebiam nomes inglêses , deploraveis : peixe frito era -- fried fish ; uma costeleta de vitela era -- a veal cutlet ; uma almondega era -- a forced-meat ball ! Os creados , se se lhes falava português , não respondiam . Para pedir um garfo , era necessario dizer : -- Give me a fork ! E para pedir uma colher : -- Give me a spoon ! A conversação familiar , a propria conversação familiar , isto a que se chama conversar cada um em sua casa , com a sua mulher e com os seus filhos , tornara-se uma verdadeira massada : -- Tem V. o meu chapeu ? -- Have you my hat ? -- Tenho o seu chapeu ... -- I have your hat . -- Não tenho o seu chapeu , mas tenho o lapis do rapaz do seu sapateiro . -- I have not your hat , but I have the pencil of your shoemaker's boy ... Levados nesta impetuosa corrente da Opinião , os jornaes tinham inaugurado plebiscitos sobre as probabilidades de uma nova alliança inglêsa , e por esse meio se averiguara , se patenteara á luz do nosso bello sol , que a fina flôr , o escol , a nata da intellectualidade de Portugal votava por unanimidade que se entrasse abertamente , immediatamente , nas negociações do tratado que devesse firmar a ambicionada alliança . Respondendo a esse plebiscito , um alto funccionario do Estado dissera : -- " ... Porque todos nós devemos compenetrar-nos d' isto : a alliança com a Inglaterra é o clarão de uma boa esperança -- a esperança de voltarmos a receber os nossos ordenados em libras ! " Uma illustre escriptora publica succintamente emittira , nestes termos , o seu voto na materia : -- " Ah ! não me perguntem nada ... Estou com os Inglêses ! " Um diplomata e poeta , parafraseando a Portuguêsa , que fôra o canto de protesto inspirado pela humilhação do Ultimatum , compozera outro himno que começava assim : Heroes do mar , nobre povo , Nação valente , immortal ! Isto não é nada de novo Entre Inglaterra e Portugal ! A's armas ! A's armas ! Sobre a terra , sobre o mar ! -- " Mas voltando á tua sobrecasaca , continuou Fausto , permitte-me que te aconselhe a que procures o meu alfaiate , e lhe encommendes uma outra . E desfaz-te d' essa . Presenteia com ella o guarda-portão do Borges , que saberá enverga-la com elegancia ... O Parlamento é ainda um logar de exhibição . O deputado tem de andar bem vestido , com boas luvas ... Olha o Jaurés , em França , na democratica França , como elle cahiu em ridiculo , por se apresentar no Parlamento de blusa socialista ! " Eu ainda tentei alguns argumentos em defesa dos meus principios e da minha sobrecasaca . Afigurava-se-me que o tempo não devia muito sobejar para semelhantes futilidades de vestuario e de elegancia a quem quizesse , deveras , preoccupar-se com as altas questões e com os altos assumptos que deviam absorver a vida parlamentar . Mas Fausto sahiu-se-me logo , e com furia , aos impedimentos . Estava eu muito enganado , redondamente enganado ! E a nossa velha , e boa , e segura amizade não consentiria que elle me deixasse debater , espernear nesse engano , como uma mosca que se debate e esperneia na teia de uma aranha ! Em obediencia ao Regimento , eu devia ser introduzido na Camara por dois dos meus collegas , deputados . Convidara-o já a elle , Fausto Guimarães , para ser um d' esses meus padrinhos ... ( O outro seria o Poças , já convidado tambem ) . Pois ficasse eu sabendo que elle não limitaria esse seu grato papel á formalidade do Regimento ; iria até onde a sua estima por mim lhe permittisse ; e a sua estima por mim não só lhe permittia , impunha-lhe o dever de bem me encaminhar naquella senda tortuosa por onde eu queria tomar ás cegas , quando me era preciso , ao contrario , arregalar muito os olhos ! -- " Já tens assignatura em S. Carlos ? " perguntou-me . -- " Nem pensei nisso sequer ... " -- " Pois tu não gostas de musica , homem da fortuna ? Uma coisa de que até os selvagens gostam ! " -- " Gosto , até gosto muito ; mas ainda esta manhã , ao almoço , se discutiu deante de mim essa coisa de assignatura em S. Carlos . Parece que é uma formidavel burla . Os assignantes ouvem sempre a mesma opera , e quando ha opera nova a recita é extraordinaria . Disse-me um hospede do Borges que , segundo os seus calculos , o assignante virá a ter , nesta epoca lirica , setenta e cinco por cento de Huguenotes ! Ora eu acho preferivel ouvir as operas que mais me agradem , a ouvir aquellas que mais agradem ao emprezario ... " -- " Joaquim do Amaral , o teu caso é outro ! Não se trata de saber se a opera é sempre a mesma , nem se a empreza te intruja . Quem tem uma cadeira em São Bento precisa ter uma cadeira em São Carlos . E assim como para se estar em São Bento o que menos importa é fazer boa politica , assim para frequentar São Carlos o que menos importa é que seja boa a musica ... Depois , quem não tem uma idéa para apresentar no Parlamento , tem sempre uma casaca para exhibir na Opera ; e uma boa casaca é já , e só por si , uma excellente recommendação ! " Risonhamente , e com affavel malicia , declarei a Fausto que o achava insupportavel . Parecia-me uma personagem deslocada do theatro do Dumas filho , com a incumbencia de animar o dialogo d' essa comedia em que eu me via mettido , fazendo frases á minha custa ... Que fim levara então o meu Fausto , aquelle grande , e são , e incorruptivel Fausto da Couraça dos Apostolos , inimigo rispido de todas as convenções e de todos os paradoxos ? ! A carruagem parou . Fausto abriu a portinhola , desceu , foi tocar no botão de uma campainha á porta da casa que naquella rua ( que era a Rua do Salitre ) tinha o numero 245 . Não teria demora . Apenas entregar uma encommenda , fazer uma pergunta , e mais nada . Cinco minutos , Amaral , só cinco minutos ! Um creado de gravata branca veiu abrir . E percebi que Fausto perguntava se a Senhora||_D._Claudia D.|_D._Claudia Claudia|_D._Claudia estava em casa ... Entrou , fechou-se outra vez a porta , e eu esperei , esperei , fartei-me de esperar . Quando me parecia que já era de mais e olhei o relogio , tinha passado meia hora . Eram cinco e vinte ! Receei não chegar ao Hotel a horas de jantar ... Mas Fausto apparecia nesse mesmo instante , todo açodado : -- " O'menino , perdôa ! Não foi minha a culpa ... " A culpa fôra de D. Claudia , que o detivera todo esse tempo , com mil perguntas , mil recommendações , mil coisas ; e não o deixara sahir antes , apesar de saber que elle tinha alguem a espera-lo , era baixo , no meio da rua . Era uma séca , uma verdadeira sarna ! E depois , menino , absorvente , despotica , absoluta , quasi tirannica ! Irra , que era demais ! Pois sim . Podia elle ter carradas de razão . Mas eu É que não sabia quem era " D. Claudia . -- " O quê , Amaral ? Pois tu não sabes quem é a D. Claudia ? Tu nunca ouviste falar da illustre D. Claudia ? Mas isso é o mesmo que não saber quem foi Cleopatra , ou Agripina ! o que sabes tu , afinal , meu desgraçado amigo , da eterna rotação da Terra em volta do grande Sol ? " Pois nada sabia , não . E era eu , agora , que lhe pedia desculpa ... Elle tomava , porém , sobre si , e de motu-proprio , o bello encargo de ser meu farol e meu guia , meu roteiro e meu elucidario . Onde eu não soubesse , que lhe perguntasse ! Não sabendo quem era D. Claudia , acceitava o favor , e perguntava ... Vim então no conhecimento de que essa D. Claudia , essa " sarna de D. Claudia " fôra a impulsora e era hoje a chefe do ( para mim ignorado ) movimento de propaganda feminista que se fazia em Lisboa , á semelhança das grandes capitães , com o complicado e perigoso fim de obter a declaração dos Direitos da Mulher , como consequencia logica da declaração dos Direitos do Homem ! Nem eu , nem Fausto -- nenhum de nós sabia , a par d' essa prerogativa maxima que a mulher moderna se arrogava , o que viria a ser de tudo aquillo a que , até então , nós chamavamos , talvez com demasiada vaidade -- os Direitos do Homem ! Tanto se prégara que a causa da mu-lher era a grande causa do seculo ; tanto se dissera que o homem era a força , e a mulher a graça ; tanto se repetira que a escravidão das Evas se tornara indigna dos benevolos Adães -- que as coisas tinham chegado ao ponto de rebuçado em que eu as vinha encontrar . Na discussão muito acesa dos doutrinarios modernos , entre Stuart Mill ( que queria a mulher emancipada do seu triste papel de serva , ou da sua pouco invejavel situação de odalisca ) e Schopenhauer ( que , ao contrario do seu confrade inglês , apenas concedia á mulher , e quasi que por muito favor , as funcções domesticas , a sujeição e o trabalho no interior da casa ) vencera Stuart Mill . A escrava fizera-se senhora : Senhora||_D._Claudia D.|_D._Claudia Claudia|_D._Claudia ... A graça alargara com sorrisos as suas cadeias ; a fascinação fizera cahir a seus pés os seus dominadores . Os legisladores começaram então a preoccupar-se com o destino da mulher nas suas condições civis ; os pedagogistas procuraram melhorar-lhe as condições de instrucção ; os economistas alargaram-lhe as condições industriaes ; os filosofos acabaram de encher-lhe o cerebro de minhocas ; e assim se viu a mulher açambarcar todas as profissões e todos os ideaes do homem . Ella foi , definitivamente , tudo quanto quiz ser . Ella foi advogado , ella foi medico , ella foi amanuense . Ella foi guarda livros , ella foi guarda-freios , ella foi guarda-fios . Ella foi telegrafista , ella foi ciclista , ella foi organista . Ella vestiu calças e usou ceroulas . Ella fumou de cachimbo e poz chapeu de côco . Ella tocou pratos e foi clarinete . Ella fez comicios , ella fez congressos , ella fez desordens . Para alinhavar discursos , ella deixou de apontoar meias ; para fazer frases , ella deixou de ter filhos . Seccaram- se-lhe os peitos , cerraram-se-lhe os buracos para os brincos , cresceram-lhe pellos na barba e cabellos no coração . Em presença d' esta revolução , attonito , o homem nem pensara em reagir . Conformara-se , tivera ao menos o criterio de acceitar sem reparo uma situação que tinha preparado pelas proprias mãos , submettera-se . Quando a mulher veiu para a rua , metteu-se elle em casa . E varreu a casa , limpou o pó , lavou as vidraças , sacudiu os tapetes , fez a cama , despejou a bacia , chamou a varina á escada , bateu as palmas da janella ao carvoeiro , acendeu o lume , poz a panella a geito , abanou , abanou , abanou . Foi , depois , sentar-se á machina e coseu , coseu a sua mágua comsigo mesmo , silenciosa Singer . Bordou a retroz , bordou a lãs , bordou a missanga . Passou a roupa a ferro , escovou as botas , deitou camfora nas roupas . Depois , foi pôr a meza ; e quando tudo estava prompto , antes que a senhora tivesse voltado para casa , teve elle tempo ainda de conceber um filho . A senhora , quando voltou , era pae ! E elle foi depois , bondoso e amoravel , o verdadeiro modelo das mães ... Só isto o salvava , e o desculpava , de todo o seu descuido e de toda a sua ignominia ! Tudo aquillo que d' antes constituia a feição simpathica e nobre da missão da mulher , e lhe dava um risonho realce ao lado do esforço e do sacrificio do homem , completando-se ambos na missão commum , era uma coisa que passara de moda , como a crinoline . Os Codigos modernos , querendo tudo aquilatar segundo a melhor filosofia da razão , haviam operado uma revolução assustadora , sanccionando conquistas pavorosas da egualdade civil dos sexos . Obtida a conquista da egualdade civil , caminhava-se já , de fronte alta , para a conquista da egualdade politica . A mulher fôra assim arrebatada ao meio em que a sua dedicação enchia de alegrias dôces a vida dos que ella amava -- irmãos , pães , esposo e filhos , quando toda ella se occupava nas mil e uma applicações amoraveis da sua actividade , bondosa de sua indole , contente do seu destino , vivendo para todos esses pequeninos sacrificios ignorados de que se compõe a vida de uma mulher dedicada : sacrificio do seu tempo , dos seus gostos , da sua pessoa ; alimentando esse terno , luminoso poema do silencio do lar , das escolas , dos hospitaes , onde ella , mãe , educadora , enfermeira , inteiramente se consagrava ao bem-estar dos outros , numa lenta e benefica infiltração de bondade , de docilidade , de meiguice ... A maternidade perdera os seus doces encantos de protecção , de vigilancia , de carinho , em volta de uma pequenina creatura a quem era preciso desenvolver o corpo , formar o coração , incutir o caracter , pelo leite , pela palavra , pelo exemplo ; e ficara sendo , repulsivamente , um longo e doloroso trabalho fisiologico ... Indo dos pequeninos sacrificios aos grandes , aos ruidosos sacrificios , que sempre dotaram de mulheres celebres a historia de todos os povos , até esses eram amesquinhados , quasi mettidos a ridiculo , pelo movimento empolgante das recentes idéas , que arbitravam á mulher uma grande força e uma grande importancia , mas uma força e uma importancia toda de ordem puramente moral , apoiadas só na Opinião tolerante dos homens . E só neste capitulo , que formosa era , e que arrogante , a tradicção das nossas guerreiras e ardilosas patricias ! Ahi tinhamos , por exemplo , aquella Deusadeu Martins , merecedora de que a sua municipalidade adoptasse por brazão uma mulher -- que fôra ella -- sobre as ameias de uma torre , com dois pães nas mãos , e em posição de os arremessar aos inimigos . Exhausta de mantimentos , ia a praça de Monsão render-se pela fome . E que ideou a portuguesinha valente ? De uns restos de farinha fez aquelles pães , trepou á muralha , e atirou-os aos sitiantes , bradando que havia pão dentro da praça para dar e vender ... E a nossa Brites de Almeida , a graciosa padeira , que amassara dentro de um forno alguns castelhanos fugitivos ? E o caso de Margarida de Abreu , apunhalando o rosto de um cavalheiro que a ultrajara ? E aquellas que no memoravel cerco de Diu formavam um batalhão , e acarretavam pedras , e levavam os aprestes necessarios ao fogo , e arremessavam contra os inimigos tudo quanto lhes podia causar damno , " sempre promptas e opportunas ? " A perturbação que esse movimento feminista vinha trazer á doçura dos nossos costumes , ao socego dos nossos lares , ao regalo das nossas rotinas , ganhava terreno sobre o sentimento nacional , sempre propenso á benevolencia , á fantasia e á galhofa . Esse golpe de audacia que a mulher portuguêsa , a nossa querida mulhersinha portuguêsa , tão recatada , tão séria , tão bananinha , e tão boa filha , tão boa mãe , tão boa dona de casa , vibrara na situação de invejavel garantia que disfructava -- tinha assarapantado o sexo fórte . Ella queria ser eleitora e queria ser elegivel ; queria ser deputada e queria ser ministra ; queria ser administradora e queria ser juiza . Mas em vez de atroar os ares com um grande grito de guerra ; e em vez de pegar em armas , em pedras e em pás do forno ; e em vez de vir para a rua , de braço arregaçado , cabellos desgrenhados , e o peito aberto ás balas , disposta á renhida lucta que bem sabia ter de travar para obter a conquista dos seus direitos politicos -- a lambisgoia traçara outro plano , lançara mão de outras armas , gizara outros ardís . Para desarmar os exercitos , fundara a Liga da Paz . Para reunir e concentrar energias , creara a Associação . Para acirrar os exaltados , annunciara o Meeting . Para estimular os simples , abrira a Conferencia . Para viciar a atmosfera , lançara o Jornal . Para subjugar os rebeldes , atirara-se ao Namoro . Para chamar a attenção dos indifferentes , emprehendera a Cocega ! E , finalmente , para melhor trabalhar , intrigar , agitar , e ganhar a confiança dos governos , mettera-se na Politica . Neste afan de disputar ao homem todas as funcções da vida social , e para isso de peito feito a empregar todos os meios , todos os recursos , todos os expedientes , a mulher portuguêsa facilmente encontrara do seu lado todos os grandes pensadores , todos os grandes filosofos , todos os grandes pedagogos , todos os grandes economistas , todos os grandes publicistas , todos os grandes oradores . Fizera-se um movimento poderoso de vulgarisação das novas doutrinas , todo um apostolado se erguera prégando a bella causa , pozera-se em acção uma claque enthusiastica applaudindo todos os dispauterios que a propaganda feminista fazia circular , já pelo artigo , já pelo relatorio , já pelo discurso . Quando chegou o momento de passar da theoria á pratica , e das palavras aos factos , a mulher portuguêsa , a nossa querida mulhersinha portuguêsa , que afinal não era tão simples como se suppunha , passou o pé aos pensadores e aos filosofos , aos pedagogos e aos economistas , aos publicistas e aos oradores -- e lançou-se nos braços dos ministros . Ora os ministros são homens , para determinados effeitos , como os outros homens . E no momento em que eu chegava a Lisboa , e entrava na politica , a mulher do meu paiz , tendo subjugado os ministros do meu paiz , convertia em leis todos os seus projectos . -- " Já tu vês , dizia-me Fausto , que não podias chegar em melhor occasião . É claro que o bom jogo vae todo para os ministros , que levam as reformas á Camara . Mas somos nós que votamos as reformas , e , por tabella , sempre alguma coisa nos tóca ... " Mettido na commissão da reforma do Codigo , achava-me eu , sem o saber , ao serviço de D. Claudia , por amor de quem se tratava de reformar o Codigo . Tudo isso era , porém , um complicado enrêdo que levava muito tempo a contar , e ficava para depois . Arranjasse eu uma sobrecasaca contemporanea , folheasse alguns capitulos da Arte de viver na sociedade , que adeantava já muito ao Manual da civilidade do João Felix Pereira , e quando estivesse prompto que lh'o dissesse , para elle me levar a casa de D. Claudia , e apresentar-me , lançar-me ... Chegavamos ao Hotel . Já não chuviscava , o céo aclarara um pouco , havia mais gente nas ruas . A ' porta do Borges , aguardando o toque da sineta para o jantar , encontrámos o Poças . Defronte do Hotel andava em obras a canalisação do gaz , e fôra lançada uma prancha de madeira sobre a valia aberta para dar passagem de um lado ao outro lado da rua . E como nos Martyres houvesse lausperenne , as pessoas devotas que sabiam da egreja e vinham para cima , chegavam ali e atravessavam a prancha . O chão revolvido e a chuva que cahira tinham espapaçado um lamaçal naquelle ponto de maior passagem ; e as mulheres , resguardando da lama a roda dos vestidos e os folhos das saias de baixo , que arrepanhavam em fru-frus , mostravam muito a perna . Todo embebido no exame d' esse mostruario , e perseguindo com o olhar um certo tornoselo que já ia longe , Poças nem déra pela nossa aproximação . Da portinhola do coupé , Fausto gritou-lhe : -- " O'Poças , guarda castidade ! " E só então é que o Poças nos viu , e sahiu ao passeio para nos vir falar . Como não houvera Camaras , aproveitara a tarde para dar uma volta ; mas o tempo transtornara-se , não havia mulheres na rua . Apenas agora , naquella estiagem , appareciam algumas . -- " Mas poucas , e uns estafermos ! " A chuva de mólha-tolos , que cahia sobre Lisboa desde a segunda-feira de Entrudo , envolvendo as collinas da cidade num panno de suja gaze , e cobrindo as casas da Baixa de uma humidade viscosa , a escorrer dos telhados como uma baba , resolvera-se por fim numa tremenda carga de agua que durara dois dias sem abrandar por instantes , precipitando pelo Chiado uma enxurrada ruidosa que tudo varria , e galgava em catadupas alterosas . Fôra uma providencia , pois que o cheiro nauseabundo dos tremoços , que a fina flôr da Aristocracia despejara das janellas do Turf sobre os transeuntes , desde o sabbado gordo , e que revestia o passeio de uma camada espessa , fermentando , era um fedor que invadia tudo , insupportavel , e já chegara ao meu quarto , que todavia não ficava a uma pequena altitude ! Poças e eu não nos tinhamos atrevido a sahir do Hotel durante esses dois dias , que já julgavamos não terem fim , e me lembravam o Diluvio universal . -- " Outra vez universal , não creio ... dizia Poças . Isso foi tempo ! Hoje , se Deus pensasse em decretar de novo o exterminio da especie humana , não o faria de animo leve , como então . A moderna estatistica das populações lhe-motivo para muito meditar e para muito hesitar . Ha uma tendencia assustadora para o decrescimento ; e se as coisas devessem passar-se , em caso d' um outro diluvio , como se passaram no primeiro , não se afigure a Vossa Excellencia que seria bastante metter numa arca apenas um casal de cada especie para resistir aos destroços do grande cataclismo ... D ' uma especie , pelo menos , sei eu em que um casal , só por si , não seria bastante ... " -- " Que especie é essa , ó senhor||_Poças Poças|_Poças ? " quiz eu saber , intrigado . -- " É a especie humana de Lisboa . Está averiguado . Para a propagação d' esta especie , um casal , isto a que se chama em linguagem juridica , marido e mulher , não offerece garantia . É preciso que haja sempre um marido supplente -- para as necessidades biblicas ... " Achei forte . Poças achou mais forte a pancada de agua que nesse momento batia no telhado , com estrondo , revolvendo as telhas . Olhámos para cima , instinctivamente , num receio de que o tecto se fendesse , e nos despejasse no quarto a tempestade . Fóra , nas ruas , o vendaval soprava e assobiava . De vez em quando , alguma vidraça , sacudida , estilhaçava-se , e ouvia-se o tlintar dos cacos na calçada ... Para aproveitar o tempo , comecei a pôr em ordem os meus papeis e os meus livros . Durante a minha estada na Ilha depois da formatura , e nos largos intervallos que a fama do Doutor||_Tarquinio Tarquinio|_Tarquinio abria , como largas bréchas , na minha advocacia , sempre desviando para elle as melhores causas , eu habituara-me ás longas e meditadas leituras , tendo principiado por devorar toda a livraria do Barão da Terra-Chã , que m ' a facultara , e que era vasta e escolhida ; passando depois á Bibliotheca da Camara , enriquecida com a herança de todos os livros de José Silvestre Ribeiro ; embrenhando-me até no Flos Santorum da Tia Genoveva ; e acabando na collecção do Diario das Camaras pertencente ao Pompeu , que a mandara encadernar em veludo azul com fechos e cantos de prata , como livros santos , e que " só por ser para mim " a deixava sahir de casa , um tomo por cada vez . Depois , quando já não havia na Ilha um livro que eu não tivesse lido , incluindo o livro de versos do João Hermeto , arcade , que m ' o levara a casa em mão propria , com dedicatoria passada a limpo por a filha , que tinha uma lettra magnifica , toda em grossos e finos -- entrei a fazer encommendas ruinosas á Livraria do Gil , que por cada paquete recebia de Lisboa , e me remettia para o escriptorio , duzias e duzias de volumes . Frequentando pouco o Club , pouco me demorando na botica do Cunha , por onde fazia caminho para o Club , eu recolhia cedo e deitava-me habitualmente tarde , e assim enveredei e vagueei , durante quatro annos , nas Litteraturas cultas e nas Litteraturas populares ; nas Religiões e nas Vidas dos Santos ; na Theologia , na Filosofia e na Historia da Filosofia ; na Moral , na Economia , no Direito ; nas Sciencias fisicas e nas Sciencias naturaes ; na Geografia e nas Viajens ; na Historia Universal e na Historia Patria ... Inspirado no moderno e fecundo methodo da observação e da experiencia , acompanhei de longe , mas tanto quanto me foi possivel , o movimento catapultuoso das sciencias novas , que por todos os lados e em todas as direcções recolhiam e ordenavam os grandes factos positivos , comparando-os e classificando-os , e d' elles tirando todas as claras consequencias . Conheci então , nesse campo vasto e uberrimo , resultados maravilhosos . Problemas que parecia deverem eternamente escapar ao conhecimento do homem , eram abordados , profundados , e em grande parte resolvidos luminosamente ; e todo um immenso thesouro de factos novos não só renovava as sciencias já conhecidas , mas constituia materia de outras novas sciencias de empolgante interesse . A Archeologia prehistorica reconquistava , para meu uso , na escavação paciente dos seculos desapparecidos , antepassados de que eu nem sequer suspeitava ; e para meu uso reconstituia , á força de descobertas , as industrias , os costumes , os tipos do homem primitivo , apenas mal libertado ainda da animalidade . A Anthropologia debuxava-me a historia natural do grupo humano no tempo e no espaço , convidava-me a seguis-lo nas suas evoluções organicas , e a estuda-lo nas suas variedades , nas suas raças e nas suas especies , alumiava-me nessas immensas questões da origem da vida , da influencia dos meios , da hereditariedade , dos cruzamentos , das relações com os outros grupos animaes ... A Linguistica explicava -- me , pelo estudo comparado dos idiomas , as successivas fórmas da linguagem , analisando as e preparando , por assim dizer , toda uma historia do Pensamento , seguida desde a sua origem e através de todas as edades . A Mithologia comparada dava-me entrada no rutilante e matizado espectaculo da creação dos deuses , ensinava-me a classificar os mithos , permittia-me estudar as leis da sua origem e do seu desdobramento através das innumeraveis e pittorescas fórmas religiosas . Todas as muitas outras sciencias -- a Biologia , a Astronomia , a Fisica , a Chimica , a Zoologia , a Geologia , a Geografia , a Botanica -- eu as vi , sob a influencia do mesmo methodo , amplificadas , enriquecidas , chamadas a prestarem-se um mutuo auxilio .